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Candian: o último caipira

Candian: the last caipira

RESUMO

O artigo reúne algumas peculiaridades de um ser humano identificado na antropologia como caipira. Em seu âmago existencial, reúnem-se particularidades como a relação com o bairro rural, o mutirão e os cânticos do cururu. Dessa forma, partindo dos documentos iconográficos do historiador e intelectual Ernani Silva Bruno disponíveis no Instituto de Estudos Brasileiros da Universidade de São Paulo (IEB/USP) e dos estudos do sociólogo e literato Antonio Candido, o presente trabalho intenta demonstrar as ações e relações sociais dessa cultura na cidade de Iracemápolis por meio dos hábitos cotidianos do senhor Candian, membro responsável pela transmissão do modo de vida tradicional do campo na zona urbana.

PALAVRAS-CHAVE:
Bairro rural; caipira; tradição oral.

ABSTRACT

The article brings together some peculiarities of a human being identified in the anthropology as caipira. In its existential core, there are some particularities such as the relation with the rural neighborhood, the “mutirão” and the songs of the cururu. In this way, starting from the iconographic documents of the historian and intellectual Ernani Silva Bruno available at the Institute of Brazilian Studies of the University of Sao Paulo (IEB/USP) and the studies of the sociologist and literate Antônio Candido, the present work aims to demonstrate the actions and social relations of this culture in the city of Iracemápolis through the daily habits of Mr. Candian, responsible member for the transmission of this traditional country way of life in the urban zone.

KEYWORDS:
Rural neighborhood; caipira; oral tradition.

Localizada na Região Sudeste, mais precisamente no interior do estado de São Paulo, a formação da cidade de Iracemápolis ocorreu no final do século XIX por meio da doação de terras para a construção de uma pequena capela em 1861. A ocupação da região em que hoje se localiza esse município ocorreu em 1817, quando foi desmembrada a sesmaria do Morro Azul. Sobre a região onde se encontra essa cidade pode-se destacar a influência sofrida pela economia cafeeira do século XIX no chamado segundo Oeste Paulista, principalmente com a contribuição das cidades de Limeira e Rio Claro, duas localidades que se tornaram as mais importantes da região após a decadência produtiva do Vale do Paraíba. Utilizando-se em larga escala do sistema de trabalho escravocrata, quando ainda permitido pelo governo brasileiro, também foi uma das primeiras regiões a realizar experimentos com o sistema de colonato com a vinda de imigrantes alemães e italianos.

Entretanto, a região onde se encontra Iracemápolis, com maior contribuição da cidade de Piracicaba, também se destacou na produção açucareira em fins do século XIX e boa parte do XX, quando se tem a incursão de métodos industriais para maior produtividade na exploração do açúcar. Primeiramente, havia os engenhos banguês, substituídos mais tarde pelos centrais. Se antes a produção se fazia a lombo de quadrúpedes, agora as máquinas pesadas substituiriam boa parte desse modus operandi rústico, incutindo um padrão altamente disciplinar no âmbito produtivo e trabalhista.

Contudo, a terceirização do fornecimento de cana a diversos agricultores promovida pelo engenho central ainda dificultaria o projeto de modernização da produção agrícola brasileira, cujo intuito era o de enfrentar o mercado externo - concorrendo, por exemplo, com o açúcar antilhano e o de beterraba europeu -, além dos problemas em suplantar a preferência do mercado interno pelos resistentes engenhos banguês não engolidos pelo novo sistema. Todavia, décadas mais tarde, quando alcançaram uma acumulação de terras para cultivar a cana de que necessitavam, aliado à mecanização dos meios de produção, esses engenhos centrais conseguiram vencer de vez os engenhos banguês, transformando-se nas usinas de cana-de-açúcar e dominando o mercado exportador e interno.

Nesse viés, aproveitando a mão de obra disponível, tanto a local quanto a imigrante, as usinas começam a modelar o espaço rural a partir da paisagem e das habitações por meio da construção de colônias com casas geminadas (entre outros equipamentos de lazer voltados ao trabalhador, como campos de futebol). Essa paisagem foi modificada integralmente em virtude do êxodo rural, que deslocou os habitantes para bairros operários na cidade. É nesse contexto que se tem a resistência desses moradores aos hábitos modernos de habitar. Mesmo com suas casas de aspecto operário, manteriam vestígios da vida no campo como a prática do plantio de hortas, a criação de animais, com alguns desses habitantes ainda salvaguardando as tradições religiosas, como novenas e cânticos tradicionais, mantendo viva a cultura tradicional do interior paulista conhecida como caipira e, agora, já influenciada pelos “italianismos” advindos da imigração. Dessa forma, mesmo com a inserção de novos conteúdos em seu seio, essa cultura conseguiria se reorganizar frente às constantes intempéries que lhe apareciam abrindo preciosas fendas para a sua sobrevivência.

Todavia, para melhor esclarecimento do propósito deste trabalho, convém lembrar algo das amplas discussões sobre a dicotomia entre o rural e o urbano na antropologia e na sociologia, assim como nas disciplinas voltadas a estudos urbanos. Longe da intenção de fomentar ainda mais a já esgarçada tentativa de definição dos limites ou interconexões entre os dois mundos, o texto tem como parâmetro demonstrar como essa relação é pouco observada em seus fundamentos existenciais (ou seja, nas ações e relações sociais) se tomada com certa acuidade a bibliografia instauradora sobre o assunto.

A bibliografia aqui apresentada, consagrada por autores como Antonio Candido, Maria Isaura Pereira de Queiroz e Ernani Silva Bruno, não é abordada como simples consulta literária, mas como fonte primária, no intuito de facilitar a imersão da experiência no mundo caipira pelo pesquisador frente a tantas camadas existenciais ditadas, não exclusivamente, pelo ritmo do capital. O motivo principal de encarar essa bibliografia dessa forma é a bela oportunidade de tomar contato com o trabalho de alguns pesquisadores que ainda puderam observar o caipira imerso em seu hábitat tradicional, cultivando um modo de vivência já extinto ou agudamente descaracterizado pelas nuances do tempo. Além do mais, conjuntamente com os trabalhos bibliográficos, os cadernos de anotações e as diversas fontes iconográficas disponíveis também forneceram parâmetros importantes ao pesquisador que, ao olhar para o espaço da cidade onde só fora possível encontrar vestígios dessa cultura, conduziu-se pelo fio de Ariadne para identificar traços característicos nas casas, bairros, entre outros locais de reunião onde a cultura caipira atualmente se manifesta.

Dessa forma, o que se propõe aqui não é saber até que ponto o mundo rural fora tragado pela industrialização ou pelo capital financeiro e turístico, mas sim partir de uma análise desses autores para buscar entender como o caipira estrutura um código ético que o identifica como um autêntico ser-no-mundo num meio que lhe é diferente, como o urbano. Mesmo que possamos classificá-lo como partícipe de uma cultura que abrange o conceito “contrarracional”, em oposição às diversas imposições socioculturais que norteiam seu modo de vida, como o complexo usineiro na região tratada pelo texto, o propósito de apresentar um estudo de caso como resistência no âmbito cultural a partir de manifestações artísticas não significa que a intenção seja classificar essa prática como mera manifestação de lazer, nem muito menos “museológica” e desconectada do saber-fazer típico dos povos tradicionais.

Mais precisamente, o cururu1 1 Cururu se define pela literatura especializada como um canto repentista, seguido por danças como a catira e o cateretê, que preza em sua narrativa trovas de caráter profano ou religioso no intuito de cultivar a memória caipira. Segundo Candido, esse cântico teria surgido do sincretismo entre as culturas indígena e cristã católica quando da tentaiva de incutir, por parte dos jesuítas em suas aldeias, a ideologia eclesiástica para doutrinação dos nativos. CANDIDO, Antonio. Cururu. Cururu. Remate de males, 1999, p. 37-58. Disponível em: <periodicos.sbu.unicamp.br/ojs/index.php/remate/article/view/8635987/3696>. Acesso em: 3 mar. 2017. , quando aqui abordado, não é tomado como produto cultural voltado ao consumo por intermédio de rádios, gravadoras e eventos culturais, mas como revelação e permanência de um mundo autêntico que congrega um conjunto de práticas cotidianas que, porventura e infelizmente, fenece já há algum tempo. Essa condição de ser-no-mundo congrega um conjunto de ações que forja uma simbólica relativa ao meio espacial e social através da qual sobrevive uma cultura autêntica observável em poucos detentores da tradição, como pessoas mais velhas que foram capazes de proporcionar a transição entre o mundo tradicional e o moderno. Porém, nessa nova condição, os traços dessa cultura, em que as práticas tradicionais sustentavam a memória de um mundo em perpétua densidade original, já aparecem institucionalizados, artificializados e desconectados do seu conjunto original. Dessa maneira, na medida em que o senhor Candian ocupou justamente essa posição de elo, é muito mais no sentido da reconstrução de um todo do que na elaboração de uma “micro-história”, ou seja, o que se pretende aqui é desvendar “o que se perde e o que se ganha” num contexto de desaparecimento da autenticidade de um modo de ser.

É por isso que em nosso estudo incluímos a figura desse senhor. A intenção é demonstrar que o mundo autêntico não envolve simplesmente o viés “cultural”, mas sim que este se compõe num cotidiano - fazendo a necessária ressalva de que esse “cotidiano”, por parte do homem, constitui uma reflexão sobre seu papel social dentro de uma comunidade frente a outros modos de ser, e não somente sobre um mero “dia a dia” em que o que se pauta é a sistematicidade de suas ações. Esse cotidiano também envolve muitas vezes o sobrenatural, como, por exemplo, a busca de respostas mais claras frente às burocracias do mundo moderno e da liberdade radical proposta pela contemporaneidade. Assim, apontando as lides diárias do senhor Candian, almejou-se demonstrar que havia até pouco tempo pessoas que detinham esse modo tradicional de vida em sua plenitude, conseguindo envolver os demais num consenso coletivo e que o tornavam ainda mais coeso quando, por meio da arte (música), envolviam as pessoas participantes daquele mundo. Isso é muito importante para entender como o joguete das rimas do cururu, quando são lançadas aos demais, atualiza o passado ao mesmo tempo que vai mapeando os lugares onde essas pessoas vivem ou se confraternizam pelo canto, promovendo a visibilidade da urdidura desse mundo. Nesse contexto, o cururu e os rituais religiosos, mais do que manifestações culturais ou artísticas, são o coroamento das experiências de vida num determinado lugar.

O problema surge quando esse “mundo” é banalizado, interpelado num senso de espacialidade extremamente impessoal e paradigmático, como, por exemplo, quando é limitado às áreas periféricas das cidades, próximas à “natureza circundante”. Análises dessa ordem denotam a incompreensão sobre o próprio caráter do meio urbano, que contém diversas temporalidades e espacialidades, levando-se novamente a discussão para a inacabável e dicotômica problemática “rural-urbano”. Desvios semelhantes também ocorrem quando avaliações superficiais conduzem a uma imediatista identificação do bairro periférico urbano com o autêntico bairro rural, denotando que esse bairro rural não passaria de mera adjacência do núcleo urbano em expansão que, em sua “onisciência”, já preveria o seu aglutinamento num futuro não muito distante, pois institucionalizado pelas ditas “racionalidades”. Vide a quantidade de documentos antigos em que é possível ver os denominados “fogos” catalogados pela administração imperial, onde esses mesmos documentos compõem a constelação analítica de boa parte da historiografia sobre a fundação de cidades no Brasil, sem ao menos passar por um crivo mais cuidadoso das reais intenções de sua utilização.

Dessa maneira, crê-se que os litígios sociais que são observados ou balizados pela literatura clássica sobre o assunto, juntamente com exemplos como o do senhor Candian - que no caso não está sendo abordado como “o” protagonista dessa cultura, mas sim como um genuíno cultor dela -, visam contribuir para a compreensão sobre o que seria o mundo rural brasileiro apartado das confusões que o envolvem no bojo da agricultura predatória ou do olhar plasmado do urbanismo acadêmico. Assim, entende-se que, para melhor compreender esse “mundo rural”, não basta classificá-lo a partir do que o homem produz do seu contato com a natureza ou “compará-lo com o mundo civilizado”, mas sim perceber que essa relação abriga uma codificação de valores que compõem ações e, quando acionados, convocam, nomeiam, cantam, poetizam e resguardam essa relação. Melhor dizendo, esses valores fazem os homens habitarem mais uma vez esse mundo, arriscando dizer que nomeá-lo por meio da ação é carregá-lo integralmente.

Por fim, o artigo se divide primeiramente num momento de reconhecimento do que seria, para os autores especializados no assunto, o “caipira” enquanto categoria existencial, o que significa envolver todo um conjunto de ações e de relações sociais digno de uma experiência que era transmitida de geração para geração por meio de narrativas exemplares. Busca-se uma melhor compreensão de como se davam as relações do passado com o presente para, num segundo momento, observá-las no estudo de caso aqui apresentado, tentando identificar a atual mediação da tradição em novos contextos espaçotemporais já que, na tradição, o tempo está ligado estritamente ao espaço. A questão também é saber como essas relações procuram outros parâmetros para conseguirem tecer-se coletivamente na atualidade, por exemplo, numa roda de ouvintes por intermédio de um narrador que não deixa de ser uma espécie de aedo (poeta-cantor) em seu sentido original, ou seja, um ser preso à terra e que se qualifica como a memória do lugar.

O caipira enquanto ser existente

Especificamente, esse ser caipira seria uma espécie de lavrador da terra segundo Cornélio Pires2 2 PIRES, Cornélio. Conversas ao pé do fogo. São Paulo: Imprensa Oficial do Estado, 1987. , pois a palavra “caipira” deriva do tupi-guarani capiâbiguâra, no qual se denota o derivativo “caipirismo”, que seria um tipo de acanhamento, o comportamento de um indivíduo envergonhado e de pouca experiência no âmbito social. Dividindo a palavra caipira, tem-se a raiz “caí”, que em tupi-guarani significa “gesto do macaco ocultando o rosto”; “capipiara” significa “aquilo que é do mato” e deriva de “capiã”, ou seja, “de dentro do mato”. Todas essas palavras são compostas a partir de “caapi”, “aquele que trabalha na terra, que lavra a terra”3 3 Ibidem. .

Nesse viés, há também autores como Antonio Candido4 4 CANDIDO, Antonio. Os parceiros do Rio Bonito: estudo sobre o caipira paulista e a transformação dos seus meios de vida. Rio de Janeiro: J. Olympio, 1964. , que buscam traçar o perfil sociológico e antropológico desse ser humano que ainda habita o interior paulista, demonstrando que, na expansão geográfica dos bandeirantes, o resultado não foi apenas a incorporação de território às terras da Coroa portuguesa na América, mas também a definição de certos tipos de cultura e de vida social. O ponto de partida para compreender essa situação deve ser buscado na própria natureza do povoamento paulista, desde logo condicionado pela atividade itinerante e predatória das bandeiras. Aqui há o denominado fenômeno do “bandeirismo”, que pode ser compreendido de um lado como um vasto processo de invasão ecológica e de outro como um determinado tipo de sociabilidade com suas próprias formas de ocupação desse território.

Dessa maneira, o povoamento disperso originário dos acampamentos de permanência relativa favoreceria a manutenção de uma produção de subsistência, recurso esse de extrema importância quando o caipira precisava estabelecer o equilíbrio entre a necessidade de sobrevivência e a falta de técnicas capazes de proporcionar um rendimento maior de sua terra. Isso significa que as técnicas e instrumentos rudimentares de trabalho da cultura improvisada do seminômade encontrariam condições favoráveis para se plasmarem na cultura caipira, mais precisamente no momento em que se condicionava uma coerente sociabilidade pautada na desnecessidade do trabalho compulsivo, favorecendo a preservação dos costumes da vida desse ser humano em seu lugar de vivência. Como exemplo, tem-se o seu hábitat caracterizado por um povoamento ralo e disperso que, na verdade, não constituiu um isolamento por sua parte, mas sim uma congregação de cooperadores vicinais e participantes da vida lúdico-religiosa conhecida como “bairro rural”5 5 QUEIROZ, Maria Isaura Pereira de. Bairros rurais paulistas. São Paulo: Livraria Duas Cidades, 1973. .

Para isso, também se dispõem os registros, estudos e inventários realizados pelo historiador e intelectual Ernani Silva Bruno6 6 BRUNO, Ernani Silva. O equipamento da Casa Bandeirista segundo os antigos inventários e testamentos. São Paulo: Departamento do Patrimônio Histórico, 1977. para o livro emblemático denominado O equipamento da Casa Bandeirista segundo os antigos inventários e testamentos, onde se encontra a catalogação dos utensílios mais indispensáveis ao antigo explorador do hinterland paulista em sua habitação tradicional. Além do mais, esse historiador teria demonstrado as lides laborais e comunitárias do caipira em seus registros de campo nas áreas que concernem ao Vale do Paraíba, como nas cidades de Apiaí e Areias, iconografia disponibilizada nos arquivos do Instituto de Estudos Brasileiros da Universidade de São Paulo (IEB/USP).

Nesses registros, no caso fotografias e anotações em cadernos de pesquisa de campo, é possível visualizar e entender os diversos costumes caipiras resistentes desde os idos tempos do século XVII, época da germinação do que o autor denomina de “mundo caipira”, como nos feitios dos objetos de cerâmica, os costumes do pilhar o milho, as diversas procissões dos bairros rurais em dias de festa do padroeiro local, além de uma dinâmica observação do núcleo principal do bairro rural composto pela capela, pela venda e pelas casas dos moradores. Esse material nos serviu como um quadro comparativo entre as práticas tradicionais que envolviam um passado já quase em extinção e um olhar mais aprimorado quando fora estudado o modo de vida do senhor Candian, antigo residente da cidade de Iracemápolis e que resguardava os costumes do mundo caipira. Para tanto, é válido lembrar que as fontes bibliográficas e iconográficas nos serviram como elementos norteadores no que tange a experiências de vida do caipira e não para sua simples catalogação.

Bairro rural: genius loci

Das experiências voltadas à formação da coletividade caipira, o bairro rural serve como estrutura fundamental para uma noção de sociabilidade. Consiste no agrupamento de algumas ou muitas famílias mais ou menos vinculadas pelo sentimento de localidade e pelas práticas de auxílio mútuo. Interpretado dessa maneira, o bairro rural seria o elemento responsável pela noção de lugar para o caipira, implicando um aspecto antropológico associado ao físico-territorial7 7 CANDIDO, Antonio, 1964, op. cit. .

As habitações podem estar próximas umas das outras, sugerindo um esboço de povoado escasso ou podem estar afastadas, mal se percebendo a unidade que as congrega. Para maior clareza, o conceito de bairro rural abarca extensões, dimensões e aspectos físicos, mas, além de determinar um território por características topográficas, caracteriza-se por um segundo elemento: o sentimento de localidade existente nos seus moradores.

Figura 1
Capela do Bairro da Divisa localizada no interior paulista, mais precisamente no limite entre as cidades de Iracemápolis e Piracicaba, 2015. Fonte: acervo próprio

Figura 2
Bairro rural em Santa Cruz do Rio Abaixo (São Luiz do Paraitinga), s/d. Fonte: Arquivo IEB/USP. Fundo Ernani Silva Bruno, código do documento: ESB-L3-SP-I-235

Esse sentimento depende do intercâmbio entre as famílias8 8 FUKUI, Lia Freitas Garcia. Sertão e bairro rural. São Paulo: Ática, 1979. . Tal intercâmbio estaria baseado nas cooperações mútuas presentes nos trabalhos das lavouras, como plantio, colheita, entre outros serviços impossíveis de serem realizados individualmente ou pelo próprio núcleo familiar. Esse intercâmbio também aparece nas atividades lúdico-religiosas, nas quais, além da cooperação para preparar a festa do padroeiro do bairro, instauram-se os laços de compadrio entre os participantes. Isso acontece devido ao fato de as atividades lúdico-religiosas se desenvolverem quase em um paralelismo no Brasil, pois a disseminação da religião católica, em seus moldes tradicionais, pouco conseguiu ser realizada no país. Dessa maneira, tem-se um catolicismo de cunho mais rústico e sincrético nas zonas rurais, o que significa que elementos da doutrina cristã foram pouco a pouco misturados com elementos considerados pagãos.

As atividades da lavoura e da indústria doméstica também constituem oportunidades de auxílio cooperativo e socialização para o caipira. Essas atividades solucionam o problema da mão de obra nos grupos de vizinhança e suprimem as limitações da atividade individual ou familiar. Esse auxílio cooperativo se denomina mutirão9 9 CALDEIRA, Clovis. Mutirão: formas de ajuda mútua no meio rural. São Paulo: Brasiliana, 1956. , consistindo essencialmente na reunião de vizinhos a fim de efetuar determinados trabalhos de derrubada de mata, confecção de roça, plantio. Aqui, pode-se notar relativa divisão de trabalho e o estabelecimento de liderança coordenadora. Vale a ressalva de que tal divisão de trabalho está relacionada à cooperação vicinal, não havendo relação monetária durante o processo do mutirão, e sim o estabelecimento de um sistema de favores que garante a economia local. A cooperação mútua também auxilia no aceleramento do tempo de execução do trabalho que, para o caipira sozinho ou com o auxílio de sua família, levaria vários dias.

Nesse viés, a figura do ócio na cultura caipira também se conecta estritamente aos “dias de guarda”. Esses dias se referem aos “dias desastrosos”, nos quais se acredita que o trabalho pode causar grave prejuízo devido ao desrespeito à norma religiosa. Em grande relação com a sacralidade, o tempo livre tem um papel marcante na semana do caipira por promover contatos sociais e, comumente nesses dias, têm-se festas nas capelas ou nas casas do bairro, visitas a outros bairros rurais vizinhos e recreações locais.

O ano agrícola é a grande e decisiva unidade de tempo que define a orientação da vida do caipira bem como as suas possibilidades e dificuldades econômicas. Ao longo dele existem marcos cronológicos referenciais representados pelas festas anuais e de ordenamento das etapas do trabalho. Tais etapas são pautadas pelas orientações das épocas de chuvas, secas e pelas condutas de plantio agrícola, que são regidas pelos ciclos vegetativos e ajuste da planta às condições meteorológicas. Nesse contexto, na medida em que se encontra esse tipo de bairro rural estruturado segundo as práticas tradicionais caipiras, encontra-se também o cururu, canto presente nas diversas tarefas que envolvem o coletivo e que exerce papel importante na identificação do sujeito com os seus semelhantes.

O canto (de um mundo) do cururu

Entre os diversos registros realizados por intermédio de Ernani Silva Bruno sobre a vida caipira e mantidos no acervo do IEB, encontra-se um texto com o título “Esse mundo caipira que vai se acabando”10 10 BRUNO, Ernani Silva. Esse mundo caipira que vai se acabando. Original em arquivo datilografado. Disponível em: Arquivo do Instituto de Estudos Brasileiros da Universidade de São Paulo (IEB/USP). Fundo Ernani Silva Bruno. Código do documento: ESB(65)5-44 [s/d]. , onde há diversos relatos sobre os traços dessa cultura. Sobre a viola, a catira e o cururu, por exemplo, ressalta-se no texto em questão o clamor entristecido de versos, mas se enfatiza a importância da narrativa nos acontecimentos moldados em crítica e humor. Os elementos da música e da dança do mundo caipira também denotam algumas características peculiares, como a presença de instrumentos percussivos além da viola, no caso, o reco-reco e o pandeiro, somados a danças diversas. Do típico bate-pé da catira ou cateretê, torna-se perceptível a presença do jongo, da congada e do batuque, envolvendo a linguagem do cururu em temas de proezas e de valentias harmonizadas e ritmadas por instrumentos típicos da cultura africana como o tambu, o mulemba, a matraca e o guaiá. Da fusão entre a cantoria caipira e a percussão do afrodescendente, o resultado são as danças do samba de lenço, assinalando um contraste com o samba urbanizado que, no caso, é o carnavalesco, nascido das ruas cariocas do início do século XX.

Embora haja uma atitude pessimista do autor do texto quanto ao desaparecimento “desse mundo”, o cururu é um canto ainda praticado pelos caboclos no interior do estado de São Paulo, também podendo ser encontrado em certas partes dos estados de Minas Gerais, Goiás e Mato Grosso. Consta de uma dança em que se tem a predominância do sexo masculino em sua apresentação consistindo numa saudação aos presentes, numa louvação aos santos e finalmente nos desafios cantados. Nessa manifestação, os cantadores, de forma improvisada, propõem uns aos outros problemas de fundo religioso ou profano, visando derrotar o adversário e exaltar a própria pessoa.

O nome está associado genericamente ao sapo denominado cururu na língua tupi-guarani e ligado às representações místicas sobre o fogo11 11 CANDIDO, Antonio, 1999, op. cit. . Antes de receber o sincretismo cristão, seu conteúdo original abordava o roubo do fogo por animais, motivo muito presente nas tribos da América do Sul onde esse ato era efetuado por uma raposa ou por um sapo. O sapo aparece de forma mais predominante nas tribos da família linguística dos tupis-guaranis, pois tal animal tem a capacidade singular de engolir coisas ardentes como cigarros e brasas confundindo-os, por vezes, com vagalumes. Na representação dramática do mito podem ocorrer verdadeiras “danças do sapo” em que os dançadores refazem o processo mítico “do rapto do fogo”. Esse ritual consistia num ato particular do chefe da tribo num momento específico do acontecimento em que, ao se levantar, dançava alguns passos e, ao final, sentava-se tragando um cachimbo.

A reinterpretação do ritual na cultura caipira se deu por meio da catequese jesuítica que aproveitou cantos e danças dos índios para levá-los a compreender e aceitar mais depressa a doutrina cristã. Assim, o cururu começou a aparecer nas festas religiosas, o que levou ao entendimento equivocado sobre os trabalhos jesuíticos por parte das autoridades eclesiásticas que confundiam essas estratégias de aculturação com práticas de paganismo. À revelia das críticas, essas alegorias foram reinterpretadas e utilizadas para a catequese e, naturalmente, acabaram cristianizadas. Mesmo assim, através da fusão étnica e linguística, o que se deu foi a incorporação de práticas mágico-religiosas indígenas à sociedade formada pela catequese.

Há ainda a hipótese de Antonio Candido12 12 Ibidem. de que, nas festas católicas, jesuítas e índios ajustavam seus passos e seus cantos formando, mais tarde, um quadro ritualístico que se constituía em: louvor de personagens sobrenaturais e de santos católicos, relato de feitos, debate poético e a oportunidade de afirmação pessoal. Os temas também versavam sobre as façanhas e mortes dos antepassados, além de figuras de animais como pássaros e cobras, sempre entoando comparações em trova. Essas trovas se faziam de repente, com um motim no qual um a um dos participantes se apresentava. O local escolhido para a manifestação do canto era o terreiro, onde os desafiantes se “enfrentavam” até cansarem. Quando isso ocorria, outro o substituía.

Vale lembrar a respeito do improviso que permitia a ampliação da participação, pois os presentes podiam intervir na manifestação a qualquer momento, lembrando a tribo guaianá, que cantava fatos e acontecimentos baseados nesse aproveitamento poético do cotidiano, elemento importante no desenvolvimento do cururu. Aos poucos, no debate, com a cristianização, foram aparecendo os santos e as suas virtudes, fazendo com que o relato de feitos e a afirmação pessoal fossem sendo inspirados (e não substituídos) por elementos sugeridos pela nova situação da qual ia emergindo paulatinamente a cultura caipira.

Nesse viés, com base na constatação empírica, esse canto ainda acontece em alguns bairros específicos no espaço urbano da cidade de Iracemápolis, onde é possível encontrar elementos semelhantes aos dos bairros rurais, locais em que originariamente se faz esse tipo de ritual cântico. Nos bairros urbanos de Iracemápolis é possível encontrar casas com grandes quintais e criação de galinhas, plantação de hortas e pequenos pomares formados por habitantes que antes moravam nos antigos bairros rurais e que foram expulsos pelo avanço da concentração latifundiária que as usinas de açúcar e álcool engendraram na região.

Assim, com o auxílio da música entoada, a reconstrução simbólica que faz reviver o antigo modo de habitar permite que se sustente até os dias de hoje as alegorias do cururu no espaço da cidade. Por meio da linguagem, esse canto guarda em seus temas uma capacidade de simbolizar e memorizar um espaço-tempo vivido que, a cada momento entoado, sinaliza na malha urbana um lugar peculiar para que possa ocorrer, fazendo com que as pessoas que comunguem desse canto resistam às transformações nos padrões de sua vivência.

Candian13 13 In memoriam. : homem de resistência

Para o estudo desse quadro de resistência, foi utilizado o relato de um dos mais importantes detentores dessa tradição na cidade de Iracemápolis: o senhor Candian (1942-2016). A escolha desse curureiro justifica-se na medida em que, na observação de campo, foi possível a constatação da articulação de seu modo de vida tradicional (sua horta, seu padrão de trabalho para com ela) com outras características que o distinguem perante os demais, como a ligação que mantinha com a sacralidade enquanto detentor de saberes que envolviam, além do cururu, simpatias e benzimentos.

Isso influenciava não só o seu papel na comunidade enquanto ser altamente distinguível, mas em seu prestígio como cantador, já que as cantorias eram por ele iniciadas e encerradas com sua palavra final. Além do mais, era o próprio que apresentava os demais cantadores e ouvintes ilustres da comunidade presentes na roda de cururu, fato que, na nomeação cantada, comungavam-se essas pessoas tanto na entoação (e na porfia) do canto quanto na certeza da participação dos saberes da tradição caipira.

Figura 3
Roda de cururu realizada na cidade de Iracemápolis, 2015. Fonte: acervo próprio

Figura 4
Senhor Candian responde a um desafio de cururu, 2015. Fonte: acervo próprio

O senhor Candian nasceu numa das muitas colônias próximas da cidade de Iracemápolis, mais precisamente na colônia que se chamava “Colônia São Luís” (conhecida como “Coloninha do Sapo”). Segundo relato dele mesmo, seus avós vieram de Roma para o Brasil, mas os pais, já nascidos no país, residiam nas colônias da região. O aspecto dessas e de outras colônias era de casas próximas umas das outras, se encontrando até geminadas. O banheiro, de fossa, era coletivo e localizado no lado de fora; as cercas que separavam um vizinho de outro eram confeccionadas de bambu.

Nessa época, o aspecto da cidade de Iracemápolis ainda se revestia de um modo rústico de se viver, com vários sítios e chácaras (a maioria sem registro de propriedade) espalhados em sua área municipal. As pessoas residentes ainda plantavam árvores frutíferas e hortaliças, chegando algumas a ter bambuzais. Como a única função das cercas era manter os animais nos limites das casas de seus donos, em sua maioria galinhas e porcos, todas eram feitas com esses bambus. Havendo poucas pessoas com bambuzais na redondeza, os donos os vendiam para as pessoas que lhes solicitavam, ganhando certo prestígio na redondeza. Quando as pessoas não tinham dinheiro, trocavam uma quantia de bambu por ovos, frutas, verduras, galinhas entre outros objetos.

Antes das usinas de açúcar se consolidarem na região, a disposição de lotes e casas não se fazia segundo um traçado formal. As casas, ou melhor, a implantação delas na topografia se assemelhava a pequenos sítios nas unidades de vizinhança. Dessa maneira, não era comum achar plantações monocultoras destinadas ao grande comércio (como a cana-de-açúcar, por exemplo), e sim algum comércio local de frutas (como banana, mamão e manga), de hortaliças etc., detendo esses produtos um grande valor até nas trocas realizadas com os vizinhos.

Como exemplo, o senhor Candian relatou como se dava a relação entre as plantações e os laços de vizinhança que havia no tempo em que as usinas ainda não haviam se estabelecido, ou seja, quando ainda eram pequenos engenhos de aguardente. No tempo de seu pai, mesmo em beira de pista, quando plantava quadras de vassoura, um vizinho próximo plantava feijão, outro plantava milho, outro girassol e assim sucessivamente. Quando algum desses vizinhos sentia necessidade de algo de que não dispunha em sua terra, sempre trocava o que possuía por aquilo de que necessitava. Outra prática era a troca de objetos de vestuário quando perdiam a utilidade ou não mais serviam.

Dessa forma, em Iracemápolis, antes da constituição da malha urbana, segundo ele, era possível encontrar uma disposição territorial baseada na localização dos vários engenhos de aguardente (os chamados engenhos banguês), de sítios de médio porte e de pequenas propriedades. Uma curiosidade é que esses engenhos e demais propriedades rurais não eram contundentes a ponto de estabelecerem uma concorrência desleal que pudesse desmantelar os laços de vizinhança ou, na mesma proporção, despossar os habitantes autóctones do seu lugar de origem.

Já a típica unidade de vizinhança do bairro rural começou a perder força quando o engenho de aguardente da família Ometto começou a crescer, transformando-se na Usina Iracema e avançando cada vez mais no campo. Desde então, as pessoas começaram a morar na zona urbana, em áreas adensadas e em pequenos lotes próximas umas das outras, chegando até a conhecer pessoas de outras colônias que nunca haviam visto. Com o desequilíbrio das pequenas economias familiares, na medida em que a usina avançava ferozmente na compra de terras, as pessoas eram forçadas a migrar para o espaço urbano, sendo obrigadas a vender suas glebas ao complexo açucareiro.

Após a consolidação da usina, o senhor Candian relatou que o modo de vida em consequência do trabalho também havia mudado. Antes, plantando para a subsistência e, no máximo, vendendo o excedente às vendas rurais ao redor ou em feiras organizadas na cidade (além das constantes trocas entre os propínquos), o plantio de cana nesse momento seguia um modo de produção pautado nas tarefas em série14 14 Diz o próprio senhor Candian que o plantio em série da cana-de-açúcar se fazia do seguinte modo: um trabalhador abria um buraco na terra e um outro, logo atrás, colocava o ramo da planta e o fincava. , abandonando a diversidade de espécies, o plantio regido pelo ciclo anual das estações, as formas tradicionais de tratamento das mudas, o conhecimento das sementes e da qualidade da terra. Após essa etapa, pôde-se verificar que a formação do núcleo urbano de Iracemápolis começou a se consolidar quando os engenhos banguês foram desaparecendo, forçando também essas famílias a se mudarem para a cidade, e seus empregados, para outras colônias, no caso, formadas sob a gestão da administração da Usina Iracema. De início, esses engenhos resistiam vendendo a sua (já escassa) produção para a usina, porém, perdiam constantemente a preferência de mercado.

Segundo o senhor Candian, quando os donos desses engenhos desistiam da produção de açúcar por falta de capital ou quando peremptoriamente faliam, a usina pagava os impostos atrasados dessas terras e adquiria a propriedade. Muitas vezes, alguns desses campos não tinham registro em cartório, fazendo com que a usina os adquirisse por baixos valores ou acertos de dívidas e os regularizasse incorporando-os de imediato ao patrimônio industrial. Dessa forma, as pessoas que viviam dispersas nas unidades de vizinhança rurais passaram a residir em habitações construídas pela usina, tanto em colônias para atender a demanda de mão de obra como em habitações de aspecto operário no núcleo urbano.

O lugar: a horta, o trabalho, os utensílios e as construções

O senhor Candian, resistindo como caipira autêntico ao se instalar na cidade, manteve a sua atividade como agricultor cultivando hortaliças. O terreno no qual detinha sua horta, local onde havia funcionado o matadouro da cidade e localizado atualmente no centro (mais precisamente atrás do terminal rodoviário municipal), não lhe pertencia, mas o uso lhe foi concedido por acordo verbal. Segundo ele, esse acordo partiu da prefeitura. Afirmou também que o ponto, frequentado por pessoas que faziam uso de entorpecentes à noite, era sempre citado nos debates da câmara municipal como alvo de um projeto de requalificação, que poderia contar com uma rua ou passarela para transeuntes além de melhoramentos como iluminação e segurança.

Apesar da suposta concessão, o senhor Candian afirmava que uma pequena extensão de terra nesse local já pertencia a seu pai - que só conseguia demarcar utilizando aspectos da paisagem, como árvores, algum caminho trilhado no chão, pela nascente d’água que utilizava para irrigar sua horta ou de alguma propriedade de um antigo vizinho. Como seu pai não conseguia pagar os impostos após sua terra ter sido declarada como solo urbano quando da municipalização, já que Iracemápolis foi até o ano de 1954 um distrito de paz de Limeira, acabou perdendo a propriedade.

No dia em que foi realizada a visita a campo presenciou-se um pouco da rotina que o senhor Candian tinha em sua horta, que se revestia de um aspecto organizado tanto pela disposição das cercas de bambu quanto por aquilo que era plantado nos canteiros. Constava de duas construções de madeira improvisadas, porém muito firmes e estratégicas. A primeira, onde guardava utensílios como enxada, facão, arame, faca, galões para armazenamento da água, lugar onde repousava a carriola quando não usada etc., ficava logo à direita da entrada. Do lado de fora dessa construção, ficava um pequeno monte de terra adubada com esterco de animais a qual utilizava para fertilizar o solo para o plantio.

Havia, pelo menos, três canteiros de alface e alguns pés de bananeira acima à direita. A demarcação “não oficial” de um vizinho de ofício eram esses mesmos pés de bananeira. Ficava ali também, na construção à direita, seu relógio de pulso, que pouco usava. Para marcar o tempo, utilizava-se da posição do sol, que perfazia sombras a partir de pontos de referência como objetos, marcos, vegetação; quando “dava fome”, interrompia seu trabalho e ia comer. Não levava marmita. Fazia todas as refeições em casa, pois a horta não distava muito mais do que poucos quarteirões de sua casa. Dentro da pequena construção da direita havia também algumas sacolas plásticas que utilizava para colocar as verduras vendidas15 15 Segundo o seu próprio relato, quando o senhor Candian não conseguia vender as suas verduras, as concedia gratuitamente para quem não pudesse pagar. , facilitando para aqueles que iriam levar os produtos.

Figura 5
Horta do senhor Candian. Canteiros, local de trabalho e edificação da direita, o trabalho na horta e os utensílios necessários, 2015. Fonte: acervo próprio

Já na segunda construção, do lado esquerdo, havia uma espécie de “telhado de chuchu” formado pela cerca feita para acomodar a hortaliça-fruto, dando assim um aspecto de cobertura. Aproveitavam-se troncos de árvores cortados, improvisando o resto da estrutura com estacas de madeira. Na entrada já era possível ver o “primeiro cômodo”. Nele, encontrava-se uma prateleira antiga de madeira de fundo espelhado. Mais adiante, dentre muitos utensílios, uma balança, duas velhas cadeiras e uma espécie de mesa improvisada com armações de madeira. Havia um sofá que utilizava como cama onde, às vezes, no período da tarde, descansava para depois continuar a trabalhar. A saída era lateral. Havia também, ao fundo, outro cômodo, que guardava mais alguns utensílios de trabalho. Outro fator de destaque eram algumas imagens de santos e dois terços pendurados, um perto da saída lateral e outro dentro do cômodo onde se encontrava o sofá.

Figura 6
Horta do senhor Candian. Construção da esquerda - local de descanso, de plantio de ervas medicinais e de árvores frutíferas ao fundo, 2015. Fonte: acervo próprio

Na parte do fundo da construção, à esquerda, havia mais uma cerca cruzando-se e confundindo-se com as do vizinho de cima e do lado, confeccionada com pedaços de madeira e de portas velhas. No caminho até o fundo, havia uma disposição curiosa de plantio. As ervas mais delicadas como erva-de-santa-maria, erva-doce ou pequenos tomates rasteiros eram plantados de forma paralela aos pés de banana, mandioca ou de outro tipo mais resistente e de maior porte. Onde se encontravam essas ervas era possível ver (e sentir aos pés) uma saliência formada pela água da chuva que escorria pela horta, formando uma espécie de canaleta com a terra levantada pelas raízes das outras árvores frutíferas, podendo-se assim, para aqueles que adentrassem seu local de trabalho, andar sem receio algum de pisar em algo.

A disposição dos utensílios e das construções se dava de forma coerente e obedecia as indicações das lidas laborais, ou seja, do plantar e do colher. Dessa forma, as estruturas foram construídas de forma a manter sempre à mão os instrumentos necessários à lida na horta, conservando-os, portanto, nas proximidades. Mesmo que na construção da esquerda, onde se encontrava o cômodo para descanso, não houvesse utensílios de trabalho, o tipo de plantação ali, que era de árvores frutíferas como banana, mamão, laranja (além das ervas), já compreendia que as cascas desses frutos (que foram encontradas na saída lateral da construção) fossem juntadas de forma a serem armazenadas e utilizadas na fertilização do solo junto com o adubo.

No dia da visita, o senhor Candian havia acordado cedo (como costumeiramente fazia) para cuidar de sua plantação. Trajava uma camisa de manga comprida, uma calça e um par de chinelos, trajes esses que utilizava até quando participava nas rodas de cururu realizadas na cidade. Havia roçado alguns canteiros para a plantação de pés de cebolinha que adquiriu com um vizinho que também tinha horta.

Figura 7
Cebolinhas adquiridas com o vizinho de horta e quase prontas para serem plantadas, 2015. Fonte: acervo próprio

Carreara naquela manhã pouco mais de 50 litros d’água. Levava baldes e um regador. Mesmo com dificuldades para andar, caminhava em direção à nascente d’água onde a coletava para irrigar sua horta. O caminho até a nascente, não distando mais do que 15 ou 20 metros da horta, era demarcado no chão pelo constante andar da carriola. A nascente o provia de água necessária para sua horta, sendo dispensável o uso de água encanada.

Figura 8
Lide diária do senhor Candian: buscar água numa das nascentes do Ribeirão Cachoeirinha, que corta o município de Iracemápolis, 2015. Fonte: acervo próprio

Figura 9
Coleta de água na nascente do Ribeirão Cachoeirinha, 2015. Fonte: acervo próprio

Outra constatação na visita a campo foi a facilidade com que o senhor Candian descrevia seu ofício, sua horta, os utensílios que utilizava, além da nomeação dos vizinhos ao redor. Quando estava em sua casa, lembrava mais da época em que trabalhava na usina, dos jogos de futebol de que participava no centro de lazer da empresa e dos engenhos antigos. Na horta, as coisas pareceriam ficar mais fáceis e a conversa não envolvia trabalho com horários estabelecidos nem elementos urbanos eram utilizados quando descrevia seu lugar de trabalho. Nem mesmo a lembrança do ofício que exercia na usina entrava em pauta.

Considerações finais

Para uma melhor consistência do fenômeno caipira, não bastava uma simples observação do cotidiano e das rodas de cururu que o senhor Candian capitaneava. Essa consistência surgia nas muitas vezes que se encarava, frente a frente, as situações nas quais ele se comportava como peça importante na comunidade. Para uma melhor constatação ou, se se preferir, mais concreta, as brechas se apresentavam nas conversas mantidas com esse senhor e nas cantorias ouvidas, transformando-se a linguagem, nesses instantes, num elemento condensador entre vida, trabalho e cantoria.

Nesse viés, o artigo seguiu a linha de convidar o leitor para se aprofundar na experiência sentida pelo pesquisador: na narrativa, ato da emissão das palavras, tinha-se por meta encará-las como detentoras de uma experiência tão intensa e substancial de um mundo que, igual às enxadas do senhor Candian, cravava sulcos tanto nas diversas materialidades encontradas (construções da horta, a própria terra revolvida esperando plantio) quanto nas imaterialidades, como, por exemplo, nos “causos”, lendas profanas e sagradas e na agremiação por meio dos convites feitos às rodas de cururu.

Dessa forma, intentou-se apresentar como o senhor Candian adensava sua condição existencial caipira como um elemento ativo não só na propagação dos costumes tradicionais, mas na manutenção do sentido deles num mundo que exclui a participação das culturas consideradas “de baixo”. O intuito de denominá-lo como “último” não fora pela denotação de ser ele a única pessoa a realizar essas atividades na cidade de Iracemápolis, mas sim por ser o último a cultivar o sentido dessas atividades a ponto de conseguir engajar as demais pessoas numa tarefa em comum: a vontade que as pessoas tinham de explicar e manter sua forma de vida. Assim como no mutirão que, numa visão mais pragmática, seria a síntese das questões básicas da existência caipira - que não sobrevive sem uma autêntica organização comunitária dos trabalhos lavorais -, tal organização, pelo papel de cantador do senhor Candian, também revelava o desejo de enfrentar os problemas cotidianos, juntando homens e mulheres de herança rural na mesma tarefa de tentar encontrar razão em viver futuramente em contextos urbanos modernos.

Não que seja a intenção do caipira tentar ser deus de si mesmo, mas a figura de um cantador como o senhor Candian conseguia apreender e organizar algumas explicações de acontecimentos estranhos ao mundo desse ser humano, como a decrepitude de seus valores perante outros considerados modernos. Assim, o canto servia de conduta ética e de arcabouço de respostas às novas situações, envolvendo primeiramente a forte relação com a terra, ou seja, a mais palpável e, posteriormente, um paradoxo implicado no destino humano. Dessa forma, como no ato do canto do cururu, esse destino nada mais seria do que o duelo em que esse homem é lançado e desafiado a explicar a si próprio.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

  • BRUNO, Ernani Silva. Esse mundo caipira que vai se acabando. Original em arquivo datilografado. Disponível em: Arquivo do Instituto de Estudos Brasileiros da Universidade de São Paulo (IEB/USP). Fundo Ernani Silva Bruno. Código do documento: ESB(65)5-44. [s/d].
  • _____. O equipamento da Casa Bandeirista segundo os antigos inventários e testamentos. São Paulo: Departamento do Patrimônio Histórico, 1977.
  • _____. Santa Cruz do Rio Abaixo - São Luiz do Paraitinga. s/d. 1 fotografia., p&b., 8 cm x 8 cm. Disponível em: Arquivo do Instituto de Estudos Brasileiros da Universidade de São Paulo (IEB/USP). Fundo Ernani Silva Bruno. Código do documento: ESB-L3-SP-I-235.
  • CALDEIRA, Clóvis. Mutirão: formas de ajuda mútua no meio rural. São Paulo: Brasiliana, 1956.
  • CANDIDO, Antonio. Os parceiros do Rio Bonito: estudo sobre o caipira paulista e a transformação dos seus meios de vida. Rio de Janeiro: J. Olympio, 1964.
  • _____. Cururu. Remate de Males. s/v, s/n, 1999. Disponível em: <periodicos.sbu.unicamp.br/ojs/index.php/remate/article/view/8635987/3696>. Acesso em: 3 mar. 2017.
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  • PIRES, Cornélio. Conversas ao pé do fogo. São Paulo: Imprensa Oficial do Estado, 1987.
  • QUEIROZ, Maria Isaura Pereira de. Bairros rurais paulistas. São Paulo: Livraria Duas Cidades, 1973.
  • 16
    CORDOVA, Vitor Sartori; VICTAL, Jane. Candian: o último caipira. Revista do Instituto de Estudos Brasileiros, Brasil, n. 68, p. 164-186, dez. 2017.
  • 1
    Cururu se define pela literatura especializada como um canto repentista, seguido por danças como a catira e o cateretê, que preza em sua narrativa trovas de caráter profano ou religioso no intuito de cultivar a memória caipira. Segundo Candido, esse cântico teria surgido do sincretismo entre as culturas indígena e cristã católica quando da tentaiva de incutir, por parte dos jesuítas em suas aldeias, a ideologia eclesiástica para doutrinação dos nativos. CANDIDO, Antonio. Cururu. Cururu. Remate de males, 1999, p. 37-58. Disponível em: <periodicos.sbu.unicamp.br/ojs/index.php/remate/article/view/8635987/3696>. Acesso em: 3 mar. 2017.
  • 2
    PIRES, Cornélio. Conversas ao pé do fogo. São Paulo: Imprensa Oficial do Estado, 1987.
  • 3
    Ibidem.
  • 4
    CANDIDO, Antonio. Os parceiros do Rio Bonito: estudo sobre o caipira paulista e a transformação dos seus meios de vida. Rio de Janeiro: J. Olympio, 1964.
  • 5
    QUEIROZ, Maria Isaura Pereira de. Bairros rurais paulistas. São Paulo: Livraria Duas Cidades, 1973.
  • 6
    BRUNO, Ernani Silva. O equipamento da Casa Bandeirista segundo os antigos inventários e testamentos. São Paulo: Departamento do Patrimônio Histórico, 1977.
  • 7
    CANDIDO, Antonio, 1964, op. cit.
  • 8
    FUKUI, Lia Freitas Garcia. Sertão e bairro rural. São Paulo: Ática, 1979.
  • 9
    CALDEIRA, Clovis. Mutirão: formas de ajuda mútua no meio rural. São Paulo: Brasiliana, 1956.
  • 10
    BRUNO, Ernani Silva. Esse mundo caipira que vai se acabando. Original em arquivo datilografado. Disponível em: Arquivo do Instituto de Estudos Brasileiros da Universidade de São Paulo (IEB/USP). Fundo Ernani Silva Bruno. Código do documento: ESB(65)5-44 [s/d].
  • 11
    CANDIDO, Antonio, 1999, op. cit.
  • 12
    Ibidem.
  • 13
    In memoriam.
  • 14
    Diz o próprio senhor Candian que o plantio em série da cana-de-açúcar se fazia do seguinte modo: um trabalhador abria um buraco na terra e um outro, logo atrás, colocava o ramo da planta e o fincava.
  • 15
    Segundo o seu próprio relato, quando o senhor Candian não conseguia vender as suas verduras, as concedia gratuitamente para quem não pudesse pagar.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Sep-Dec 2017

Histórico

  • Recebido
    16 Maio 2017
  • Aceito
    25 Out 2017
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