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Fazendo cócegas nas tradições: o samba disjuntivo de Tom Zé

Tickling the traditions: the disjunctive samba of Tom Zé

RESUMO

Este artigo investiga o trabalho de Tom Zé em relação à tradição do samba, enfocando principalmente três discos concebidos como “estudos”: Estudando o samba (1976), Estudando o pagode (2005) e Estudando a bossa (2008). Com base na leitura atenta das letras de algumas canções selecionadas e na análise de aspectos formais de sua música, este estudo busca compreender as estratégias experimentais que ele empregou para abordar criticamente a tradição da música brasileira. Propomos o termo “samba disjuntivo” para caracterizar seus experimentos com ritmo, harmonia, poética e performance que combinam inovação musical com crítica social.

PALAVRAS-CHAVE:
Samba; tradição; disjunção; experimental

ABSTRACT

This article explores the work of Tom Zé in relation to the tradition of samba, focusing primarily on three albums conceived as “studies”: Estudando o samba (1976), Estudando o pagode (2005), and Estudando a bossa (2008). Based on close reading of selected song lyrics and the analysis of some of the formal aspects of his music, this study seeks to understand the experimental strategies he has deployed in engaging critically with the tradition of Brazilian song. We propose the term “disjunctive samba” to characterize his experiments with rhythm, harmony, poetics, and performance that combine musical innovation with social critique.

KEYWORDS:
Samba; tradition; disjunction; experimental

A questão da tradição musical na música brasileira foi central para o projeto tropicalista. O famoso apelo de Caetano Veloso para a “retomada da linha evolutiva” citou o exemplo de João Gilberto, que havia utilizado a “informação da modernidade musical” para renovar a tradição do samba: “Dizer que samba só se faz com que frigideira, tamborim e um violão sem sétimas e nonas não resolve o problema” (BARBOSA, 1966BARBOSA, Airton Lima et al. Que caminho seguir na música popular brasileira?. Revista Civilização Brasileira, Rio de Janeiro, n. 7, p. 375-385, 1966., p. 378). Menos reconhecido, mas ainda mais estridente em seu ataque à tradição musical, foi o disco solo de estreia de Tom Zé de 1968, Grande liquidação pela gravadora Rozenblit. Em uma declaração manifestada sobre a contracapa, o artista defende uma posição de crítica insurgente contra a tradição defendida por uma elite cultural de “múmias embalsamadas” que lançam um olhar desconfiado em direção ao seu trabalho: “Eu sou a fúria quatrocentona de uma decadência perfumada com boas maneiras e não quero amarrar minha obra num passado de laço de fita com boemias seresteiras”. De todos os tropicalistas, Tom Zé foi talvez mais explícito em seu desafio à tradição, particularmente quando usada para acusar artistas de falta de autenticidade ou alienação da cultura brasileira.

Ao tomar uma posição crítica, Tom Zé criou o que podemos chamar de “samba disjuntivo”, que aciona a justaposição contrastante, a contradição, e a desmontagem verbo-musical. Como exemplo, podemos citar “Quero sambar meu bem”, uma faixa de seu primeiro disco, em que ele abraçou o samba como fonte de prazer, mas se afastou de seu apelo saudosista para os tradicionalistas:

quero sambar também mas eu não quero andar na fossa cultivando tradição embalsamada


De acordo com Guilherme Araújo Freire (2014FREIRE, Guilherme Araujo. Experimentalismo, sátiras e metrópole nas doze canções do disco Grande liquidação, de Tom Zé. Opus, v. 20, n. 1, p. 207-232, jun. 2014., p. 221), Tom Zé brinca com gênero musical nesse refrão: seu desejo de “sambar também” coincide de maneira disjuntiva com o ritmo 4/4 de rock, mudando para valsa, uma música antiga (a “tradição embalsamada”) durante uma segunda metade da estrofe. Entrevistado pela Folha de S. Paulo no fim do mesmo ano, ele citou um trecho de “2001,” sua composição defendida por Os Mutantes no Festival da Música Popular Brasileira em 1968:

Ora eu nasci na minha época, sem ter idade, nos braços de 2 mil anos, e não quero herdar uma velhice precoce, nem a tentativa lírica e estéril de realizar os sonhos dos meus avós. Não quero o mundo nem a minha obra num passado de laço de fita, embalsamado por possíveis tradições musicais ou culturais de saudades perfumadas. (OLIVEIRA, Adones, 1968OLIVEIRA, Adones de. Festival e um depoimento de Tom Zé. Folha de S. Paulo, Ilustrada, 11 dez. 1968, p. 23. apud OLIVEIRA, 2014).

A estética disjuntiva do disco manifestou-se na tensão dupla entre a modernidade urbana e a tradição sertaneja e entre o experimentalismo formal e o apelo popular (DUNN, 2009b_____. Tom Zé and the performance of citizenship in Brazil. Popular Music, v. 28, n. 2, p. 217-237, 2009b., p. 220).

Em composições posteriores, Tom Zé2 2 As imagens constantes neste texto são do arquivo pessoal do autor. debruçou-se sobre a construção e invenção da tradição no processo de formação nacional. Por mais rica e vibrante que a tradição musical brasileira seja, ela também inspira reverência e timidez exageradas que acabam impedindo a inovação e a liberdade. Em “Senhor cidadão” do seu disco Se o caso é chorar (1972), a devoção à tradição fundamenta-se no pavor da mudança, como sugere o refrão “Com quantos quilos de medo se faz uma tradição?”. O medo produz a tradição, aqui entendida como o conjunto de identidades, obrigações e privilégios que constituem o sujeito burguês exemplar - o “senhor cidadão” - durante os anos da ditadura militar (DUNN, 2009b_____. Tom Zé and the performance of citizenship in Brazil. Popular Music, v. 28, n. 2, p. 217-237, 2009b., p. 223).

Em seu disco seguinte, Todos os olhos (1973), ele lançou essa crítica diretamente a outros músicos brasileiros logo na primeira faixa, “Complexo de épico”, em que declara que “todo compositor brasileiro é um complexado” em sua devoção à “validez”: “Por que então essa metáfora-coringa chamada ‘válida’ que não lhe sai da boca? Como se algum pesadelo estivesse ameaçando nossos compassos com cadeiras de roda”. O título da canção brinca com a expressão freudiana, “complexo de Édipo”, que descreve um estágio fundamental do desenvolvimento pessoal em que uma criança tem desejo sexual inconsciente pelo parente do sexo oposto, que deve ser superado e resolvido para o desenvolvimento psicossexual saudável. Como explica Bernardo Oliveira (2014OLIVEIRA, Bernardo. Estudando o samba - Tom Zé. Rio de Janeiro: Cobogó, 2014. (O livro do disco)., p. 25), o “complexo de épico” seria a compulsão de posicionar-se como herói, assim como os personagens da poesia épica da Grécia Antiga, na luta contra o regime militar. Para Tom Zé, os compositores brasileiros precisavam livrar-se das camisas de força estéticas e ideológicas, sobretudo no que refere à cultura nacional, para atingir um estado de experimentação permanente.

Ao mesmo tempo, revelou-se como cultivador sensível da tradição musical, quase sempre de maneira irreverente. A música “Augusta, Angélica, e Consolação” é uma homenagem caprichosa a Adoniran Barbosa, o mestre do samba paulistano que documentava a sombria paisagem urbana de São Paulo. As letras antropomorfizam um trio de avenidas famosas do centro de São Paulo, tornando-as três mulheres com personalidades distintas. As mulheres incorporam as características das avenidas que levam seus nomes. Na época, a Rua Augusta costumava ser o local de lojas de moda, enquanto a Avenida Angélica tinha muitos consultórios médicos. Na música de Tom Zé, a primeira gasta seu dinheiro em roupas importadas, enquanto a outra cheirava “a consultório médico” e sempre lhe “deu o bolo”. Como o nome sugere, apenas a Consolação lhe deu consolo na solidão urbana de São Paulo. De acordo com Marcos Napolitano (2005NAPOLITANO, MARCOS. O olhar tropicalista sobre a cidade de São Paulo. Varia História, v. 21, n. 34, p. 504-520, julho 2005., p. 506), Tom Zé “seria o mais paulista dos tropicalistas baianos”, incorporando vários aspectos de São Paulo em suas canções, enquanto Caetano Veloso e Gilberto Gil só se referiram a Rio de Janeiro e Salvador durante a fase tropicalista. No início dos anos 1970, os outros tropicalistas mudaram para o Rio de Janeiro, onde construíram carreiras artísticas bem-sucedidas, enquanto Tom Zé permaneceu em São Paulo, onde desenvolveu uma prática musical marcada por invenção e experimentalismo.

Ao longo de sua carreira, Tom Zé tem cultivado e subvertido a tradição simultaneamente, elucidando a lógica do experimentalismo musical como “um encontro imaginário e trans-histórico de passados e presentes” (ALONSO-MINUTTI; HERRERA; MADRID, 2018ALONSO-MINUTTI, Ana R.; HERRERA, Eduardo; MADRID, Alejandro. Experimentalisms in practice: music perspectives from Latin America. New York: Oxford University Press, 2018., p. 2), como querem os organizadores de um volume recém-publicado sobre a música experimental latino-americana. Demonstram ainda o que chamam de “o caráter local de experimentalismos” (p. 10) contra uma ontologia universalista que visa definir a experiência sonora do experimental. Proponho aqui uma leitura do experimentalismo musical de Tom Zé que se fundamenta em disjunção, um conceito que pode ser abordado por vários ângulos, desde a estética não mimética, fragmentária ou dissonante até a condição social caracterizada pela distribuição extremamente desigual de direitos e recursos. Teresa Caldeira e James Holston (1999CALDEIRA, Teresa; HOLSTON, James. Democracy and violence in Brazil. Comparative Studies in Society and History, v. 41, n. 4, p. 691-729, out. 1999., p. 717), por exemplo, propuseram a noção de “democracia disjuntiva”, em que “a institucionalização, a prática e o sentido da cidadania” no Brasil “são normalmente desiguais, desequilibrados, irregulares, heterogêneos, arrítmicos e até contraditórios”. O enfoque principal do ensaio será os três discos conceituais definidos como “estudos” que abordam a tradição do samba.

Estudando o samba e a desmontagem do ritmo

O disco Todos os olhos marcou, segundo o compositor, o começo de um período prolongado de ostracismo e afastamento do grande público em que abriu mão do sucesso comercial (OLIVEIRA, 2014OLIVEIRA, Bernardo. Estudando o samba - Tom Zé. Rio de Janeiro: Cobogó, 2014. (O livro do disco)., p. 44-45). A ruptura provocada pelo disco desencadeou um processo de radicalização experimental que resultou três anos depois no disco Estudando o samba (1976), a obra-prima da primeira fase de sua carreira, em que Tom Zé propôs a desconstrução da canção brasileira, particularmente o samba, através das imperfeições fragmentárias, produzindo o que Luiz Tatit chama de “descanção”, que se livra de noções tradicionais da beleza no cancioneiro nacional. Segundo Tatit (2004, p. 237-238), “ao contrário do procedimento habitual dos cancionistas de estetizar o cotidiano, Tom Zé cotidianizava a estética: inseria as imperfeições, as insuficiências, os defeitos”.

A primeira faixa do disco, um samba lento intitulado “Mã”, logo introduz essa estética disjuntiva através da justaposição de elementos tradicionais, como o ritmo 2/4 do samba produzido por uma bateria completa com surdo, um tamborim e um chimbau ao qual se acrescentam sonoridades tipicamente associadas com o rock: um ostinato tocado por baixo e dobrado por uma guitarra elétrica distorcida. Em sobreposição, entram dois bandolins executando outro ostinato em intervalo dissonante. Esse desenho musical tornar-se-ia uma espécie de marca de Tom Zé nos anos seguintes. Um coro de vozes entoa “Batize esse neném”, criando uma “narrativa mítica” sobre o surgimento do samba, como observa Oliveira (2014OLIVEIRA, Bernardo. Estudando o samba - Tom Zé. Rio de Janeiro: Cobogó, 2014. (O livro do disco)., p. 91). Acompanhado por uma seção de metais, o coro anuncia o nascimento com uma torrente de aliterações: “Eh! Os sambas e arcanjos/ Oh! A rua e arruaça/ Eh! A mão da madrugada/ Eh! O seio sua sede”.

Na segunda faixa, intensifica-se o efeito de disjunção com a passagem da anunciação épica de “Mã” para um recuo lírico em “A felicidade”, o standard da bossa nova composto por Tom Jobim e Vinicius de Moraes que se tornou uma referência mundial na voz de Agostinho dos Santos no filme Orfeu negro (1959). O estranhamento disjuntivo é reforçado pelo arranjo em que o canto se guia pela divisão rítmica do 6/8 enquanto o violão marca o 1o e o 4o tempo, sugerindo uma divisão binária, produzindo assim uma colagem polirrítmica logo interrompida por uma fanfarra de metais e a cadência militar de um tarol. Como nota Herom Vargas (2012VARGAS, Herom, As inovações de Tom Zé na linguagem da canção popular dos anos 1970. Galaxia, n. 24, p. 270-291, dez. 2012., p. 289), o arranjo desconcertante sugere que “essa felicidade pode ser pensada de forma diferenciada, por conta de sua difícil existência em meio à ditadura”.

A estética disjuntiva chega a seu ápice na terceira faixa, “Toc”, uma das composições mais radicais da música brasileira, em que o ritmo do samba é desmontado e redistribuído por todos os elementos sonoros (OLIVEIRA, 2014OLIVEIRA, Bernardo. Estudando o samba - Tom Zé. Rio de Janeiro: Cobogó, 2014. (O livro do disco)., p. 94-95). A composição é um crescendo lento e tenso construído sobre uma viola de dez cordas que carrega a batida de samba de 2/4, rajadas rápidas de metais e elementos percussivos inusitados, como as batidas de uma máquina de escrever. Destroça e atomiza o samba, assim como os gritos estridentes soam pulverizados em uma liquidificadora no final da gravação. “Toc” parece ter até perturbado seu antigo professor, Hans Joachim Koellreutter, que revelou em uma entrevista para o maravilhoso documentário de Carla Gallo, Tom Zé, ou quem irá colocar uma dinamite na cabeça do século (TOM ZÉ, 2005), que tinha perdido o sono depois de ouvir pela primeira vez a composição. Para o maestro alemão, que introduziu a música dodecafônica no Brasil nos anos 1940, a composição apresentou “um novo conceito de tempo”, que ele chama de “tempo quadridimensional” (OLIVEIRA, p. 94-95). “Toc” foi um prelúdio para experiências posteriores com instrumentos de trabalho dos operários (serrote, martelo, esmeril, britadeira) e instrumentos eletroacústicos caseiros como o HertZé, um tipo de sampler analógico conectado a fitas gravadas que produziam explosões aleatórias de som. Com essa pesquisa de timbres com ferramentas, máquinas e fitas, Tom Zé visava criar uma “música operária” que trazia o experimentalismo para o âmbito da música popular (FREIRE, 2017_____. A produção de Tom Zé na década de 1970: considerações sobre o projeto da música “operária” e o disco Estudando o samba. Revista do Instituto de Estudos Brasileiros, n. 68, p. 122-144, dez. 2017., p. 142).

Com seriedade anunciadora e tensão vanguardista, as primeiras três faixas compõem a “tese” do disco baseada na desconstrução do samba. Já a quarta faixa, “Tô”, afrouxa o arco com humor brincalhão em forma de um samba partido-alto, composto em parceria com o sambista carioca Elton Medeiros. Compreendido em relação às primeiras faixas do disco, “Tô” é uma metacanção, que nos dá uma chave para entender Estudando o samba. Declarado em primeira pessoa, com um eu bem destacado, Tom Zé explica o disco, propondo a contradição como o caminho para a invenção:

Tô estudando prá saber ignorar Eu tô aqui comendo para vomitar Eu tô te explicando prá te confundir Eu tô te confundindo prá te esclarecer.

Ou seja, “estudar o samba” envolve também “saber ignorar” suas normas e padrões. Em “Tô,” nas palavras de Oliveira (2014OLIVEIRA, Bernardo. Estudando o samba - Tom Zé. Rio de Janeiro: Cobogó, 2014. (O livro do disco)., p. 96), “o samba pode ser pensado como uma forma em mutação permanente, abrindo caminho para novos procedimentos e ideias”. Se as primeiras três faixas do disco demonstram a práxis da “descanção”, os versos de “Tô” nos dão a teoria, mesmo que a forma musical da composição seja um samba tradicional sem grandes ousadias experimentais.

Quando foi lançado, em 1976, Estudando o samba dividiu a crítica especializada. O venerável jornalista de música Sérgio Cabral (1976CABRAL, Sérgio. E se estudasse mais?. O Globo, 25 de fevereiro, 1976., p. 34-35), um promotor da tradição musical brasileira, especialmente o samba carioca, escreveu uma resenha para O Globo, sarcasticamente intitulada “E se estudasse mais?”. Menosprezando a síntese de samba, rock e técnicas vanguardistas, sobretudo de música concreta, Cabral sugeriu que Tom Zé não tinha aprendido o gênero musical consagrado, identificado sobretudo com os morros de Rio de Janeiro. Em uma das poucas apreciações positivas de Estudando o samba, Gilberto Vasconcellos (1977VASCONCELLOS, Gilberto. Música popular: de olho na fresta. Rio de Janeiro: Graal, 1977., p. 77) chamou atenção para a importância do disco enquanto intervenção crítica: “Independentemente da intenção ou consciência de seu autor, ele acaba por trazer à tona a questão do destino do samba, isto é, ele instiga a reflexão sobre a função cultural que desempenha o samba no atual momento da MPB”. Para Vasconcellos, o disco de Tom Zé representou um contraponto bem-vindo ao sambão-joia, o samba pop dos anos 70 que seguia a lógica de mercado da indústria cultural, e abriu alternativas à “redundância adoidada” do samba comercial.

Pouco reconhecido quando foi lançado, Estudando o samba teria um papel fundamental na ressurreição da carreira de Tom Zé quando pensava em abandonar a música e voltar para Irará, Bahia, sua terra natal. Em meados dos anos 1980, o músico e produtor David Byrne (da antiga banda Talking Heads) achou um exemplar de Estudando o samba em uma loja do Rio de Janeiro. Na época, Byrne estava no estágio de planejamento de suas aclamadas e bem-sucedidas compilações de música brasileira, incluindo Beleza tropical, O samba e O forró, todos lançados no final dos anos 1980. Em uma loja de discos no Rio de Janeiro, ele achou uma cópia recém-reeditada de Estudando o samba e imaginava que fosse um disco convencional de samba. De volta a Nova York, escutou o disco, ficou deslumbrado com sua audácia experimental e mais tarde viajou para São Paulo à procura de Tom Zé. Com base principalmente em Estudando o samba e em Todos os olhos, Byrne lançou em 1990 uma compilação, por seu selo Luaka Bop, intitulada, com ironia intencional, The best of Tom Zé: massive hits. A compilação recebeu aplausos de críticos musicais norte-americanos e europeus, resultando em comparações com John Zorn, Frank Zappa e Captain Beefheart, bem como com o próprio Byrne. O disco permaneceu durante várias semanas na lista da Billboard na categoria Alternativos Adultos e chegou ao quarto lugar no levantamento realizado com críticos musicais pela revista Downbeat para escolher o Melhor Álbum da categoria de World Music.

A compilação teve o efeito de reinvigorar sua carreira, levando-o de volta ao estúdio para gravar material novo, mexer com ideias antigas e reciclar faixas esquecidas da década de 1970. Essas aventuras de autofagia musical não se referem apenas a reprisar antigas canções, mas sim demonstrar a apropriação seletiva, a citação irônica e a repetição através da diferença. Em 1992, lançou The hips of tradition, seu primeiro LP de material novo com o selo Luaka Bop, com participações de David Byrne em “Jingle do disco” e do guitarrista-cantor experimental Arto Lindsay em “Tatuarambá,” uma canção que revisitou a questão da tradição na música brasileira e serviu como motivo do título do disco - “as ancas da tradição”. Como parte da anatomia que possibilita o equilíbrio corporal e gera movimentos, as ancas simultaneamente denotam estabilidade e mobilidade. Para Tom Zé, as tradições musicais não devem ser preservadas e reverenciadas, mas desmontadas e reconstituídas, utilizando novas informações poéticas e musicais (DUNN, 2009aDUNN, Christopher. Brutalidade jardim: a tropicália e o surgimento da contracultura brasileira. São Paulo: Editora Unesp, 2009a., p. 228-229). Em “Tatuarambá”, um neologismo que combina “samba” com “tatuagem”, a bateria e a guitarra elétrica marcam o ritmo de samba enquanto Tom Zé puxa um coro de vozes quase operáticas que entoam:

Êê, tatuarambá Ôô, pelar o corpo para no samba-ba-bá Êê, sujar o corpo de samba Segura o rabo do samba, taí, pintou, eô

Enquanto isso, Arto Lindsay tira ruídos industriais de sua guitarra elétrica de doze cordas, criando um ambiente sonoro tenso e estridente. “Tatuarambá” é outra metacanção sobre sua postura irreverente e inovadora perante o samba em que Tom Zé está “fazendo cócegas nas tradições”, como resume no final da canção.

Estudando o pagode e a “harmonia induzida”

Trinta anos depois de gravar Estudando o samba e quinze anos depois da retomada de sua carreira professional, Tom Zé voltou para a ideia de estudo, dessa vez sobre o pagode, o samba popular desprezado por ouvintes de classe média. O próprio conceito do disco Estudando o pagode (2005) é disjuntivo, sendo um estudo em forma de opereta em três atos que aborda a história da opressão psicológica, sexual e social das mulheres através do pagode, um gênero musical frequentemente associado com a bravata machista e a objetivação do corpo feminino. Segundo Tom Zé, o pagode trata a mulher como “um pedaço de carne” com danças hipersexualizadas, assim como a famosa dança da garrafa (VILELA, 2006VILELA, Sávio. Primeira parte da entrevista exclusiva com Tom Zé. Carta Maior, 11/4/2006.). A opereta continha vinhetas musicais interligadas em três atos cantados por protagonistas masculinos e femininos, apoiados por coros de duelo de homens e mulheres.

Estudando o pagode foi inspirado por sua leitura de Reivindicação dos direitos da mulher, de Mary Wollstonecraft, escrito em 1792, e pelo estudo de Riane Eisler, O cálice e a espada: nossa história, nosso futuro, que retrata as antigas sociedades mediterrâneas baseadas na harmonia com a natureza e as relações de gênero igualitárias. Eisler argumenta que essas sociedades foram varridas por invasores que praticavam pastoralismo nômade, ganharam poder através da violência e a sustentaram através da subjugação das mulheres. Os direitos de propriedade tornaram-se intrinsecamente ligados à propriedade de mulheres e crianças através do casamento e da reprodução. O disco também se baseou em um estudo local que revelou que 70% das mulheres entrevistadas não tinham orgasmos durante o sexo, o que sugeriu a ele que elas eram mal-amadas (WELCH, 2006WELCH, WILL. Bread and circuses: Brazil’s madcap post-tropicalista Tom Zé is still making the avant-garde go pop. The Fader, n. 35, p. 89-95, jan.-fev. 2006., p. 94-95). O roteiro do disco ainda cita a renomada psicanalista Maria Rita Kehl e sua indagação sobre produção social do machismo: “A escola do machismo é a casa ou a casa do machismo é a escola?”.

Se Estudando o samba é principalmente um estudo de ritmo, Estudando o pagode é um estudo de harmonia. Nos anos 1960, ele tinha estudado na Universidade Federal da Bahia com Walter Smetak, o professor e luthier suíço que lhe inspirou um fascínio por escalas microtonais e timbres inusitados. No encarte do disco, ele explica que visava “um canto popular com mais de um centro de referência tonal: um jogo de simultaneidades como aquele que a gente já vê em algumas histórias em quadrinhos, filmes e em outros brinquedos”. Em algumas canções do disco, Tom Zé experimentou com o que chamou de “harmonia induzida”, que envolve melodias dissonantes que o ouvinte naturalmente “corrige” ao entoar. Para conseguir esse efeito, utilizou folhas da árvore ficus, com as quais tinha brincado, ainda criança, em Irará, para produzir um timbre nasal e estridente. Para Tom Zé, interessava o som “glissado” e microtonal da folha que não se adapta à escala diatônica.

As melodias dissonantes e tensões harmônicas dão forma musical ao tema do disco: a discórdia e a desigualdade entre as mulheres e os homens. O disco abre com “Ave Dor Maria”, uma canção que ostenta as microtonalidades produzidas pelas folhas de ficus junto com um coro de mulheres rezadeiras que produzem um som estrídulo e nasal ao entoar “Ave Maria, cheia de graça, o Senhor é convosco, bendita sois vós entre as mulheres”. O discurso reverente das rezadeiras contrasta violentamente com um coro de acusadores masculinos, que canta sob um baixo distorcido, um pandeiro marcando o samba e uma bateria tocando rock:

Mulher é o mal Que Lúcifer bota fé. Quando achou Primeiro ovo do Cão Ela chocou

Um coro feminino responde ao libelo, rogando pela intercessão de Maria para advogar em favor das mulheres oprimidas. Logo contra-ataca o homem em frases como “de giz me cobris de tanta lama e ferida” e “procuras doce no sal e nem me vês.” A canção termina com o cântico das rezadeiras e o zumbir das folhas de ficus, enquanto o coro das mulheres grita repetidamente: “Desce da cruz!”. Assim, sugere que a opressão da mulher fundamenta-se, pelo menos em parte, no martírio masculino promovido pela religião cristã.

As folhas de ficus e um pandeiro em ritmo de samba introduzem a segunda faixa, “Estúpido rapaz”, um dueto tenso com vozes femininas e masculinas que dramatiza um descompasso amoroso, com destaque para o discurso da mulher que lança esta advertência:

Estúpido rapaz [...] Se você vem numa boa Pode vir Também não tô à-toa Eu te boto no colo Te dou pão e mingau Mas se você vem de cacete Pode vir Que eu vou de pedra e pau

Enquanto isso, a voz masculina do personagem Maneco Tatit (na voz de Tom Zé) entoa paralelamente: “Eu sei que é perder meu tempo agir assim/ É prolongar inimizade velha que dói”. Termina a canção com um extenso grunhido de burro, que ridiculariza a ignorância machista.

O embate entre os sexos prossegue com a “Proposta de amor”, em que o homem oferece um “acordo de paz” baseado em um “novo tipo de amor” que seja “mais solidário”, reconhecendo que ao longo da história os homens têm usado a religião e a lei ocidentais para controlar e oprimir as mulheres. Assim, Maneco Tatit faz o apelo:

Uma cartinha de amor Politicamente correta Você de saia, eu de calça, Felicidade será nossa meta. Assim será!

Em vez de igualdade e solidariedade, Maneco oferece uma cartinha “politicamente correta” que propõe o casamento tradicional (“você de saia, eu de calça”) baseado em felicidade. “Assim será!”, proclama o pretendente.

Logo a seguir, na faixa “Quero pensar (a mulher de Bath)”, a protagonista feminina, Mãe Jussara Saveiro, rebate “Assim será o que, seu vagabundo?!”. Para ela, o casamento tradicional representa um retrocesso; seria “o velho algoz” que aprisionava as mulheres. Indignado, Maneco Tatit recorre à tradição familiar para admoestar sua adversária: “Dizia meu avô, mulher assim é o diabo, é o demônio, é o pecado”. Citando os ditados compartilhados por gerações de mulheres em sua família, Saveiro retruca: “Dizia minha avó que mentiroso torce o rabo e deixa o galo encurralado”. A canção termina com uma citação da melodia de “A felicidade”, de Jobim e Moraes. Contra a precariedade efêmera da felicidade e a perpetuidade da tristeza sugeridas no clássico da bossa nova, o coro final entoa:

Felicidade sim, sonhar, sonhar O eterno amor sonhar Em termos ancestrais. Não aquela eternidade De Vinicius de Moraes. Tristeza não, tristeza fim, Tristeza bem longe de mim.

A promessa do “eterno amor” garantido por “termos ancestrais” contrasta com o amor moderno e fugaz que Vinicius de Moraes propõe em seu famoso “Soneto da fidelidade” - um amor “que seja infinito enquanto dure”.

Estudando a bossa e a performance desconstrutiva

Enquanto Estudando o pagode trata o sofrimento das mulheres em sociedades patriarcais, o estudo final da trilogia de Tom Zé, Estudando a bossa (2008), baseia-se na ideia de que a sociedade brasileira, especialmente a população masculina, se tornou mais feminizada graças à bossa nova, o estilo de samba íntimo e minimalista que surgiu no final dos anos 1950. Ele também credita à bossa nova inspirações de engenharia “femininas”, como as plataformas flutuantes que ondulam nas ondas, possibilitando a construção da longa e elegante faixa de concreto que se estende pela Baía de Guanabara para ligar o Rio de Janeiro a Niterói. Para Tom Zé, a construção da Ponte Rio-Niterói não apenas resolveu um problema de transporte de massa ou integrou a região ao redor do Rio de Janeiro. Na canção “Amor do Rio”, a ponte uniu dois amantes que tinham sido eternamente separados pela baía:

Dos contratempos musicais suaves que a bossa traz tal plataformas ao mar leves a flutuar Aí que nosso engenheiro esperto com ferro e concreto (bom) fez aquele (bom) sambinha-herói fundear a Ponte Rio-Niterói.

Nessa canção a bossa nova inspira não somente o lirismo amoroso, mas também as soluções técnicas da engenharia. Já em 1971, quando a ponte ainda estava em construção, o cantor comentou a importância da bossa nova para a educação sentimental dos brasileiros. Entrevistado pela revista Bondinho, Tom Zé declarou: “Nós fomos o povo em cima do qual a bossa nova foi atirada e nós tivemos que sofrê-la. Tivemos que modificar os nossos conceitos estéticos” (VESPUCCI, 1971VESPUCCI, Ricardo. Tom Zé. Bondinho, p. 27-30, dez. 9-22, 1971., p. 29).

A nova batida de violão e o modo de cantar baixinho inventados por João Gilberto representaram, conforme Walter Garcia (1999GARCIA, Walter. Bim bom: a contradição sem conflitos de João Gilberto. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1999., p. 21-22), “uma síntese do samba”, que se realizou com a redução da batucada e sua transposição rítmica para o violão. Os grandes standards da bossa nova foram compostos por Tom Jobim, o mais destacado compositor brasileiro de música popular no século XX, e Vinicius de Moraes, respeitado poeta e diplomata modernista, que reforçou ainda mais o status da bossa nova. Apesar dos resmungos de alguns críticos, que acusaram João Gilberto de cantar “desafinado” ou denunciaram a influência do jazz americano, a bossa nova logo conquistou sucesso comercial e aclamação da crítica em casa e no exterior. A bossa nova é associada a um momento de otimismo e desenvolvimento no Brasil. Para artistas e intelectuais brasileiros, a bossa nova foi um sinal de modernidade, uma conquista épica que atraiu a atenção internacional, assim como a seleção nacional de futebol quando venceu sua primeira Copa do Mundo em 1958 ou como a nova capital federal, Brasília, um monumento à arquitetura modernista utópica. Segundo Augusto de Campos (1968CAMPOS, Augusto de. Balanço da bossa e outras bossas. São Paulo: Perspectiva, 1968., p. 60-61), a bossa nova, tal como o futebol brasileiro e a poesia concreta, era um “produto acabado” (em vez da “matéria-prima do primitivismo nacional”) que servia “de exportação”. Seguindo essa leitura desenvolvimentista da bossa nova, Tom Zé explicou: “Em 1958 nós exportávamos matéria-prima... Ora, exportar matéria-prima é o grau mais baixo da aptidão humana. Nesse mesmo ano, nós passamos a exportar arte. Ora, arte, bossa nova e futebol são o grau mais alto da aptidão humana” (PIMENTA, 2011PIMENTA, Heyk (Org.). Encontros - Tom Zé. Rio de Janeiro: Azougue, 2011., p. 82).

Estudando a bossa não contêm nenhum standard de bossa nova. Em vez disso, as 13 composições originais fazem referências - algumas óbvias, outras oblíquas, algumas sinceras, outras paródicas - aos famosos sambas e bossas dos anos 1950. Não é um disco da bossa nova. É um metadisco sobre o significado histórico da bossa nova (“Brazil, capital Buenos Aires”), seus precursores (“Salvador Bahia de Caymmi”), seus criadores principais (“Síncope Jãobim”, “João nos tribunais”), seus detratores (“O céu desabou”), e suas musas (“Mulher de música”). O disco abre com um pequeno refrão da canção “Brazil, capital de Buenos Aires,” que resume a tese central do disco:

No dia em que a bossa nova inventou Brazil teve que fazer direito, senhores pares, porque a nossa capital era Buenos Aires, a nossa capital era Buenos Aires.

O estilo novo de tocar samba colocou o Brasil no mapa para um público internacional, conseguindo nada menos que a moderna “invenção” do país. Depois da bossa nova, ninguém poderia confundir Brasil com Argentina, ou Rio de Janeiro com Buenos Aires. Sua associação nostálgica com um breve período de democracia e progresso deve-se em parte à ascensão do regime autoritário em 1964. Em um país onde os artistas, intelectuais e cientistas depararam com impedimentos estruturais para alcançar reconhecimento internacional, João Gilberto destacou-se como um modelo de perfeição técnica como músico, enquanto Tom Jobim consolidou seu lugar como compositor e arranjador de renome mundial com muitas composições que se tornaram standards de jazz.

No entanto, essas mesmas realizações prenderam a bossa nova dentro de uma ideologia de competência técnica e “bom gosto”, garantindo que o estilo seria sempre adequado para salas de concertos e coquetéis, mas não especialmente aberto à inovação. Os tropicalistas eram todos entusiastas da bossa nova, mas uma das principais razões pelas quais eles embarcaram em sua própria aventura ruidosa no som híbrido foi precisamente subverter o “bom gosto” na música brasileira. Entre seus contemporâneos na MPB, Tom Zé era um dos menos dedicados ao legado bossa nova, que ele admirava, mas não cultivava em seu repertório. Suas sensibilidades musicais e culturais estavam longe dos bairros praieiros e sofisticados da zona sul do Rio de Janeiro. Além disso, ele alegou ter limitações técnicas em tocar o violão no estilo da bossa nova, levando-o a novas abordagens e soluções. Como ele afirmou em uma entrevista para Luiz Tatit e Arthur Nestrovki: “Meu negócio era saber que não sabia fazer o certo. E quem não sabe fazer o certo, você há de imaginar, fica trabalhando no limite” (TOM ZÉ, 2009, p. 249). Por isso, um elemento de humor irônico percorre Estudando a bossa, às vezes irrompendo em espasmos dessacralizantes como em “Outra insensatez, Poe!”, uma paródia do standard de Jobim e Moraes, em que a dor emocional expressa no original é substituída por dor física, com referências à doença (“catapora sarampo”) e à opressão (ditadura, arame farpado):

catapora sarampo me deu uma febre impura deu de doer que batia no peito com ditadura te te perder de arame farpado em pele crua padecimento aquela noite nua e assim foi assim conheci outra insensatez minha maioridade que você fez ao me dar tantas dores de uma só vez

A participação de David Byrne, que canta uma parte da letra em inglês, serve menos como tentativa de atingir um público internacional do que como um dispositivo para reforçar o sentimento de estranhamento. Durante quase um minuto no final da canção, a voz desafinada e rouca de Tom Zé solta um prolongado berro de agonia, acompanhado pela voz afinada e empostada de Byrne e o ritmo lento de bossa nova marcado por um violão suave e percussão tocada com escovinha, produzindo um efeito disjuntivo e incômodo, mas também hilariante.

Se a desmontagem da canção passa pela atomização do ritmo em Estudando o samba e pela harmonia induzida em Estudando o pagode, a disjunção efetua-se principalmente através da performance em Estudando a bossa. Nos shows, durante a execução das canções “João nos tribunais” e “O céu desabou”, duas faixas que contam a história da bossa nova e sua importância para a música brasileira, Tom Zé “toca” o que parece um violão. Em determinado momento, ele começa a desmontar o violão falso, distribuindo o tampo e o fundo para outros músicos tocarem como instrumentos de percussão enquanto ele toca um apito embutido na cintura do instrumento. Dessa forma, ele desconstrói a bossa nova por médio de uma performance jocosa.

Considerações finais

Quando Tom Zé gravou Estudando o samba, em meados da década de 1970, ele não tinha a intenção de criar uma trilogia de “estudos”. Ele não concebeu o disco como uma intervenção radical na música popular brasileira ou como um divisor de águas na própria carreira. Ele não poderia ter imaginado que suas faixas constituiriam o núcleo de uma compilação de 1990 que alcançaria um público internacional ou seria considerado um dos melhores discos na categoria World Music da década pela revista Rolling Stone. Seu retorno aos “estudos” 30 anos depois foi uma maneira de reconhecer o significado de Estudando o samba em sua trajetória artística. Estudando o pagode sintetiza em forma de opereta suas reflexões sobre a política sexual e as relações de gênero, configuradas para um estilo de samba associado ao machismo. Estudando a bossa, em contraste, explora um estilo frequentemente entendido como “feminino” e procura revelar seu poder construtivo em relação ao desenvolvimento nacional. Como um conjunto, essas gravações oferecem uma perspectiva única sobre o experimentalismo musical de Tom Zé, sua estética de disjunção, sua preocupação permanente com a crítica social e sua relação complexa com a tradição da música brasileira.

Para concluir, gostaria de voltar para a famigerada “linha evolutiva” de Caetano Veloso à luz da leitura que Antonio Cícero fez da ideia para depois considerar sua relação com a prática musical de Tom Zé. O conceito de evolução nas artes é problemático se tomado como uma declaração teleológica visando a um avanço qualitativo. Para o filósofo, pode haver, no entanto, a “evolução técnica”, que implica maior complexidade formal em determinadas artes, assim como a bossa nova fez em relação ao samba. Mas a “evolução” também pode se dar através do que Cícero (2003, p. 204-205) chama de “elucidação conceitual”, um procedimento que amplia e reconfigura o campo artístico. Podemos citar exemplos como Stockhausen e Cage na música de vanguarda, ou Duchamp, Warhol e Oiticica nas artes plásticas. Da bossa nova para a tropicália, não houve uma evolução técnica; pelo contrário, houve uma “involução” técnica, exemplificada pela atração que Caetano Veloso sentia pela música “menos séria” como o iê-iê-iê (CÍCERO, 205-208). A tropicália representou, segundo Cícero, a elucidação conceitual da MPB que promoveu “uma abertura sem preconceitos não só a toda a contemporaneidade, mas também a toda a tradição” (CÍCERO, p. 213).

No caso específico de Tom Zé, podemos constatar que ele introduziu novidades formais no âmbito da música popular, mas deixamos em aberto se essas novidades representaram uma “evolução técnica” dentro da tradição da música popular brasileira. Ao declarar que “não sabia fazer o certo”, o próprio Tom Zé sugeriu que não, embora seus experimentos sonoros, assim como a desmontagem rítmica e a utilização de frases dissonantes, escalas microtonais e instrumentos eletroacústicos inventados, possam indicar que sim. Não há dúvida de que a “descanção” de Tom Zé é um caso exemplar do que Cícero chama de “elucidação conceitual”, tanto que transbordou até o projeto tropicalista. Segundo Luiz Tatit (2004TATIT, Luiz. O século da canção. São Paulo: Ateliê Editorial, 2004., p. 238), sua trajetória criadora convergiu como a tropicália no final dos anos 1960, mas depois seguiu para outra direção, “que revelava outra procedência e outro desenvolvimento” nos anos 1970 e depois. Ele propunha novas formas de fazer composições e arranjos, novas sonoridades produzidas por instrumentos inventados, ferramentas de construção e achados do mundo natural. E com seu samba disjuntivo, que brincava com ritmo, harmonia, poética e performance, Tom Zé inventou formas insólitas de “fazer cócegas nas tradições”.


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    As imagens constantes neste texto são do arquivo pessoal do autor.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    May-Aug 2018

Histórico

  • Recebido
    07 Maio 2018
  • Aceito
    02 Ago 2018
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