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Por uma cartografia sentimental: do imaginário ficcional de Cidadilha à cidade-ilha de Vitória (ES)

For a heartfelt cartography: from the fictional imaginary “Cidadilha” to the island city of Vitória (ES)

RESUMO

A partir da geografia imaginária de Cidadilha, a cidade-ilha colonial de Vitória (ES), do escritor e historiador capixaba Luiz Guilherme Santos Neves, a meta é construir uma cartografia sentimental. Para tanto, criou-se a figura de um viajante-cartógrafo, que desembarcará na ilha para vivenciá-la antropofagicamente e reapresentar a ficção do ponto de vista do visitante. Ele abrirá pistas para interlocuções entre o corpus teórico (Rolnik, Certeau, Tuan etc.) e as experiências cartográficas realizadas na concretude do objeto empírico (a cidade de Vitória). O artigo estrutura-se como roteiro de viagem, pressupondo também que Cidadilha seja uma viagem no espaço-tempo verossímil ao traçado original do (e até hoje verificável no) núcleo fundacional de Vitória.

PALAVRAS-CHAVE:
Urbanização e literatura; Cidadilha e Vitória; cartografia sentimental e antropofagia; topografia e toponímia

ABSTRACT

From the imaginary geography of “Cidadilha”, the writer and historian Luiz Guilherme Santos Neves’ colonial island city of Vitória (ES), the goal is to build a heartfelt cartography. For that, the figure of a traveler-cartographer was created, who will disembark on the island to experience it anthropophagically and re-introduce the fiction from the visitor’s point of view. He will open clues for interlocutions between the theoretical corpus and the cartographic experiences accomplished in the empirical object’s concreteness (the city of Vitória). The article is structured as a travel itinerary, also assuming that “Cidadilha” is a voyage in space-time credible to the original layout of (and still verifiable in) Vitoria’s founding nucleus.

KEYWORDS:
Urbanization and literature; “Cidadilha” and Vitória; heartfelt cartography and anthropophagy; topography and toponymy.

O desejo é a criação do mundo.

(ROLNIK, 2016______. Cartografia sentimental: transformações contemporâneas do desejo. 2 ed. Porto Alegre: Sulina/Editora da UFRGS, 2016.).

A cidade não conta o seu passado, ela

o contém como as linhas da mão.

(CALVINO, 1990CALVINO, Italo. As cidades invisíveis. Tradução Diogo Mainardi. São Paulo: Companhia das Letras, 1990.).

A partir da geografia imaginária de Cidadilha (SANTOS NEVES, 2008_____. Cidadilha: crônica inverossímil de uma cidade inexistente. Vitória: Cultural/ES & Edições Tertúlia, 2008. Disponível em: <http://www.tertuliacapixaba.com.br/arquivo/cidadilha/capa.htm>. Acesso em: 15 jun. 2017.
http://www.tertuliacapixaba.com.br/arqui...
)1 1 Referimo-nos ao autor pelo binômio Santos Neves por se tratar de tradicional família local, com peso nos setores cultural, político e judiciário: Jones foi governador e senador e empresta seu nome ao Instituto Jones Santos Neves; Guilherme (pai de Luiz Guilherme), destacado folclorista do Estado; Reinaldo, escritor; e Desembargador Santos Neves nomeia uma avenida da Praia do Canto, bairro tradicional de Vitória. , obra ficcional inspirada na cidade-ilha de Vitória, capital do Espírito Santo, do escritor e historiador capixaba Luiz Guilherme Santos Neves, o desafio é exercitar, na prática, a cartografia sentimental (ROLNIK, 2016______. Cartografia sentimental: transformações contemporâneas do desejo. 2 ed. Porto Alegre: Sulina/Editora da UFRGS, 2016.), simulada e escrita (em uma parte do artigo) por um viajante-cartógrafo, figura que criamos para dar conta de tal empreitada. Justificamos que a obra ficcional pressupõe uma viagem no espaço-tempo, de forma verossímil, à Vitória colonial do século XIX. Por isso, a estrutura do artigo também remete à ideia de viagem, detalhada adiante.

A criação do viajante-cartógrafo tem um triplo objetivo: 1) ele reapresentará Cidadilha por outro ponto de vista, o do visitante (vulnerável por ser malvisto e rejeitado pelos cidadilhos), que desembarcará na cidade-ilha para percorrê-la, vivenciá-la e saboreá-la. A meta, aqui, é descrever suas descobertas territoriais como viajante ávido por experiências sinestésicas sempre mais eficazes no primeiro contato com lugares desconhecidos, por não estarem sujeitas à cegueira da cotidianidade; 2) em sua escrita, o cartógrafo vai entrelaçar as referências de Cidadilha às suas sensações, sabores e dissabores. A meta é elaborar a cartografia do viajante para detectar as relações entre os cidadilhos e entre esses moradores e a alteridade, incluindo o cartógrafo; 3) temperar os percursos do cartógrafo em uma viagem no espaço-tempo, por meio das impressões, vivências e experiências antropofagicamente capturadas e degustadas por ele e reexperimentadas no aqui-agora da cidade-ilha. A meta é vivenciar na própria pele as descobertas do cartógrafo, ressignificando-as em processos de subjetivação derivados dos modos de ser e estar cidadilho.

Nessa viagem espaçotemporal, por hipótese, o viajante atuará como cartógrafo antropofágico, entendida a antropofagia em sentido figurado: de obra que consome a força da referência para revigorá-la, reanimá-la e perpetuá-la2 2 A antropofagia cultural é entendida como tática recursiva e tem sido praticada, com mais ou menos voracidade, em diversos campos da arte e das ciências. . Por isso, a ideia do entrelaçamento textual do cartógrafo e de Luiz Guilherme. Partimos do princípio de que isso ocorreu: 1) na criação de Cidadilha, pois o escritor baseou-se em outro livro (ELTON, 1986ELTON, Elmo. Logradouros antigos de Vitória. 2. ed. Vitória: Instituto Jones Santos Neves, 1986. ); 2) nos encaminhamentos e resultados do exercício-laboratório que gera este artigo, realizado em pesquisa pós-doutoral (em curso) no Programa de Pós-Graduação em Arquitetura e Urbanismo da Universidade Federal do Espírito Santo (PPGAU/UFES). Assim, ao desembarcar em Cidadilha, o cartógrafo percorrerá 11 dos 30 referenciais urbanos3 3 No Apêndice de Cidadilha, o escritor lista os 30 referenciais urbanos ficcionais de sua obra e os atualiza com os referenciais reais/atuais de Vitória: Cais das Colunetas (já extinto, diante da escadaria do Palácio Anchieta); Escadaria das Pobres Figuras (hoje Bárbara Lindenberg); Rua do Egito (Francisco Araújo); Rua da Capelinha (José Marcelino, onde se situa a Capela de Santa Luzia); Rua da Matriz (atual Pedro Palácios); Largo da Misericórdia (Praça João Clímaco, em frente à antiga Igreja da Misericórdia); Bosque da Solidão (Jardim da Praça João Clímaco); Rua da Barreira (Comandante Duarte Carneiro); Beco da Ressurreição (Rua São Gonçalo, que leva à igreja do mesmo nome); Rua São Francisco (a do convento do mesmo nome); Ladeira das Patas Brancas (Rua Dionísio Rosendo); Rua do Fogo (Rua Caramuru); Porto dos Padres (Rua General Osório com a Nestor Gomes); Ladeira da Várzea (Professor Balthazar); Largo dos Pelames (Praça Ubaldo Ramalhete e arredores); Rua do Reguinho (a atual Graciano Neves); Morro da Fonte Grande (mantém o mesmo nome); Rua do Piolho (13 de Maio); Ladeira do Carmo (Dr. Azambuja); Ladeira de São Bento (mantém o nome); Ladeira da Pedra (Escadaria São Diogo); Rua da Praia (Duque de Caxias); Rua da Mangueira (Av. Florentino Avidos, confluência com a Nestor Gomes. Antiga 1o de Março); Praia da Conceição (Praça Costa Pereira); Rua Cais de São Francisco (a mesma); Ladeira do Pelourinho (Escadaria Maria Ortiz); Ladeira do Bispo (Rua Dom Fernando); Rua do Rosário (a mesma); Beco da Miséria (ligava a Costa Pereira à Av. Jerônimo Monteiro); e Praça do Teatro (Praça Costa Pereira, onde se situava o antigo Teatro Melpômene, incendiado em 1924. Em seguida, a 100 metros do local, construiu-se o Teatro Carlos Gomes, principal referência de espaço cênico de Vitória até a atualidade). contemplados na ficção, com o necessário feeling para observar as premissas da cartografia sentimental (detalhadas adiante).

Check-in : viagem no tempo e no espaço ficcional

Cidadilha é mais do que uma viagem no tempo à Vitória colonial do século XIX. É uma travessia no espaço urbano da capital verídica, encravada entre o mar e o Maciço Central, cujo núcleo fundacional se restringia a apenas 26,5 km². Desde sua fundação, em 1551, até o final do século XIX, Vitória teve forte influência portuguesa tanto na linguagem do conjunto arquitetônico quanto no traçado urbano disposto sobre a topografia irregular do terreno. “Nesta paisagem, o casario baixo, discreto e contínuo formou os primeiros caminhos de interligação aos principais espaços públicos da vila: os largos” (ELTON, 1986ELTON, Elmo. Logradouros antigos de Vitória. 2. ed. Vitória: Instituto Jones Santos Neves, 1986. ). No geral, tais largos sediavam igrejas, como uma espécie de átrio ou foyer para os fiéis, visitantes ou observadores desses templos.

Na ficção, a topografia, a toponímia e o mapeamento da cidade erguida sobre a colina e expandida para a parte baixa correspondem, de modo fidedigno, ao traçado urbano irregular, trazendo à tona o que resta do núcleo fundacional de Vitória, por meio de suas ruas, largos, morros, cais etc.

Das páginas de Cidadilha, emergem cenas humanizadas ficcionalmente pelo narrador onisciente, que relata (no pretérito) o cotidiano, entendido aqui como as “relações elementares com as coisas [...]; a apropriação do corpo, do espaço e do tempo, do desejo. A moradia, a casa” (LEFEBVRE, 1991LEFEBVRE, Henri. A vida cotidiana no mundo moderno. São Paulo: Ática, 1991., p. 42), isto é, como o conjunto de relações rotineiras e reprodutíveis que moradia, casa e moradores mantêm com seus contextos. Cotidiano também como “maneiras de fazer”4 4 Entendidas numa rede de relações entre o habitar, falar, ler, cozinhar, caminhar, relacionar-se com o outro etc. (CERTEAU, 1994, p. 47). , ações praticadas por indivíduos ordinários que subvertem a ordem imposta, criando “táticas [...] [para] jogar com os acontecimentos [...] [e transformá-los] em ‘ocasiões’” (CERTEAU, 1994CERTEAU, Michel de. A invenção do cotidiano: 1. Artes de fazer. Petrópolis: Vozes, 1994., p. 47). Táticas praticadas nas miudezas cotidianas “(falar, ler, circular, fazer compras ou preparar as refeições etc.), [...] [como] vitórias do ‘fraco’ sobre o mais ‘forte’ [...], pequenos sucessos, artes de dar golpes, astúcias de ‘caçadores’ [...], simulações polimorfas, achados que provocam euforia” (CERTEAU, 1994, p. 47). São exemplos que se aplicam aos cidadilhos por subverterem a imposição do poder constituído, o Cabido dos Notáveis Macróbios, de desenvolver o turismo local. Os moradores criam táticas para expulsar os turistas. Assim, das páginas de Cidadilha, emergem contraposições entre sentimentos topofílicos5 5 Laços afetivos entre habitantes e hábitat (TUAN, 1980). e/ou terrafílicos6 6 Neologismo definido como: “ligação afectiva entre as pessoas e os territórios que induz acções em prol do desenvolvimento [e] representa um acréscimo conceptual à noção de topofilia” (ROCA, 2009). expressos também na memória afetiva e nostálgica impregnada por relações afetivas entre Luiz Guilherme e sua cidade natal7 7 Com reconhecidos estudos sobre a história do Espírito Santo, Luiz Guilherme, nascido, criado e permanente urbanita de Vitória, desde 1933, há quatro décadas dedica-se também à literatura, mantendo lealdade às suas raízes, à historiografia, ao folclore e/ou a personagens de sua terra. - e emoções topofóbicas - destiladas na linguagem satírica, mordaz ou debochada utilizada pelo autor para narrar situações assombrosas.

Há ainda um jogo de logro em que o escritor inverte tanto a imagem urbana de Vitória (na capa do livro representada por uma gravura invertida) quanto a imagem simbólica da cidade (ao longo do livro, reinventada e ressignificada por metáforas, sinédoques e assíndetos, transformando os percursos em relatos). Se, de um lado, esse jogo permite a criação de situações inverossímeis, de outro, exalta tradições religiosas e folclóricas capixabas, funcionando como enunciação de uma realidade concreta da cidade que continua vigente até hoje.

Foi nesse caldo de ingredientes que embasamos o exercício-laboratório, que deriva nesta viagem pelo espaço-tempo e que fundamenta nossa própria cartografia (no presente), afastando-se do padrão acadêmico tradicional por três fatores: 1) por tratar-se de um conjunto de experimentações com nossos próprios corpos vibráteis, nos espaços e lugares urbanos onde se desenvolvem as ações da referência ficcional e a nossa própria cotidianidade; 2) por tratar-se da leitura e interpretação de objetos temáticos (a cidade, o urbano e as experimentações nesses espaços) que se manifestam como fenômenos polifônicos e plurissígnicos; 3) pela reinterpretação de tais fenômenos de modo intertextual: pela historiografia e pela topofilia do criador de Cidadilha e de suas criaturas. A estrutura está construída em seis passagens: Check-in; Embarque; Desembarque; Vai e vem urbanos - ou as cinco pistas registradas pelo cartógrafo; Percursos: das pistas do cartógrafo a outras pegadas; e Check-out.

O Check-in introduz a obra literária e demonstra por que ela serviu de ponto de partida. O Embarque contém conceituações sobre a cartografia sentimental e a construção do perfil do viajante. O Desembarque destina-se à chegada desse viajante, cuja atuação como cartógrafo se processará de modo intertextual conjugado no presente do indicativo e na primeira pessoa do singular8 8 Essa estratégia derivou em licença poética na utilização dos excertos de Cidadilha (destacados com aspas), mesclados às impressões/sensações do cartógrafo (grafadas em itálico), com as referências em rodapé. . Os Percursos identificam e associam pistas, linhas e ideias soltas do cartógrafo, cabendo a nós amarrá-las via Cidadilha e referências historiográficas e teóricas que sustentarão o artigo9 9 Em Percursos, o texto será construído na primeira pessoa do plural, aplicando-se as normas da ABNT. . Por fim, em Check-out, as considerações finais.

Embarque: das pistas teóricas à criação do cartógrafo imaginário

Se no princípio foi o verbo, o verbo se faz cartografia. Cartografia que é diferente do mapa: enquanto este representa “um todo estático”, a cartografia “é um desenho que acompanha e se faz ao mesmo tempo que os movimentos de transformação da paisagem” (ROLNIK, 1987ROLNIK, Suely. Cartografia ou de como pensar com o corpo vibrátil. In: Núcleo de Estudos de Subjetividade da PUC. São Paulo, 1987. Disponível em: <http://www.pucsp.br/nucleodesubjetividade/suely%20rolnik.htm>. Acesso em: 10 jun. 2017.
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, p. 23)10 10 Partimos do princípio de que o conceito de paisagem transcende aos limitados âmbitos da visibilidade ou dos aspectos formais de determinado fragmento territorial. Trata-se de um conceito inerente aos domínios psicossociais relacionado aos sistemas sensitivo, perceptivo e cognitivo; à produção de subjetividades individuais e coletivas intrínsecas às relações entre humanos e destes com o ambiente. Para Santos, a paisagem desvela a história das dinâmicas sociais, é o palimpsesto que plasma as sucessivas lógicas da produção no espaço e no tempo; a paisagem precede a história que será escrita sobre ela ou se modifica para acolher uma nova atualidade, uma inovação (SANTOS, 1997). . Assim, o papel do cartógrafo “é dar língua para afetos que pedem passagem [...]. O cartógrafo é, antes de tudo, um antropófago” (ROLNIK, 1987, p. 23), que captura, devora e dá sentido aos movimentos de intensidades/sensações dos desejos, aos modos de vivências e afetos que surgem e deslizam em seu plano afetivo e em seu entorno, alimentando-se de diferentes linguagens. É antropófago11 11 A antropofagia entendida como uma forma de subjetivação, caracterizada “pela ausência de identificação absoluta e estável com qualquer repertório, a abertura para incorporar novos universos, a liberdade de hibridização, a flexibilidade de experimentação e de improvisação para criar novos territórios e suas respectivas cartografias” (ROLNIK, 2007, p. 19). também por reaproveitar as referências teóricas do seu repertório, transformando-as em devir, sem desprezar outras “matérias de qualquer procedência [...] [sem] racismo de frequência, linguagem e estilo” (ROLNIK, 1987, p. 24). Portanto, há flexibilidade no devorar, experimentar, improvisar, construir e criar a cartografia, baseando-se “nas urgências indicadas pelas sensações, ou seja, os sinais da presença do outro [no] corpo vibrátil” (ROLNIK, 2016, p. 20). Corpo vibrátil é a capacidade que nossos órgãos de sentidos têm de atuarem em conjunto e que nos permite

[...] apreender a alteridade em sua condição de campo de forças vivas que nos afetam e se fazem presentes em nosso corpo sob a forma de sensações. O exercício desta capacidade está desvinculado da história do sujeito e da linguagem. Com ela, o outro é uma presença que se integra à nossa textura sensível, tornando-se assim, parte de nós mesmos. (ROLNIK, 2016______. Cartografia sentimental: transformações contemporâneas do desejo. 2 ed. Porto Alegre: Sulina/Editora da UFRGS, 2016., p. 12).

Essas reflexões são basilares aos nossos procedimentos narrativos e cartográficos: é preciso que “o outro deixe de ser um objeto de projeção de imagens preestabelecidas [...] e possa se tornar uma presença viva, com a qual construímos nossos territórios de existência” (ROLNIK, 2016______. Cartografia sentimental: transformações contemporâneas do desejo. 2 ed. Porto Alegre: Sulina/Editora da UFRGS, 2016., p. 12). Para se concretizar, aciona-se “uma potência específica do sensível” (ROLNIK, 2016, p. 12) já comprovada pela neurociência: cada órgão de sentido possui dupla capacidade - uma cortical e outra subcortical. A primeira conecta-se à percepção como a conhecemos, seguindo dois movimentos: primeiro, a percepção que nos leva a apreender o mundo em suas formas; o segundo faz com que projetemos nossas representações nas formas capturadas, atribuindo-lhes sentido. Já a capacidade subcortical, a menos utilizada e a mais desconhecida, faz parte do corpo vibrátil e possibilita que as figuras de sujeito e objeto se dissolvam, integrando o corpo ao mundo.

O intercâmbio dessas duas capacidades dos órgãos do sentido humano permite dois tipos de olhar: 1) por meio da percepção, o mais frequentado pelas pesquisas acadêmicas; e 2) por meio do olho vibrátil, raramente utilizado nesses estudos. Para Rolnik, “é na dinâmica desses dois olhares que nos é dado entrever o traçado de cartografias nos movimentos de criação da realidade de um determinado contexto histórico. Este constitui a dimensão propriamente micropolítica do texto, sua natureza cartográfica” (ROLNIK, 2016______. Cartografia sentimental: transformações contemporâneas do desejo. 2 ed. Porto Alegre: Sulina/Editora da UFRGS, 2016., p. 13). Abrimos, assim, novas pistas para o perfil do nosso cartógrafo imaginário: dando-lhe sentido à vida e aos desejos, bem como ao “finito ilimitado” (ROLNIK, 2016, p. 55).

Nosso viajante é sagaz, curioso por novas descobertas e aberto ao conhecimento de outros mundos e aos intercâmbios de alteridades; está atento às sensações pulsantes, sem medo de devorar as máscaras da alteridade, absorvendo-as de tal forma que integrarão a trama de sua tessitura e que reconstruirão suas ações e seu modus operandi. Devido à capacidade de absorver máscaras da alteridade, o cartógrafo não terá nome próprio, justamente para não reduzi-lo à esfera da individualidade, permitindo-lhe compartilhar do coletivo cidadilho e desfrutar da polifonia inerente à vida em Cidadilha.

Desembarque: em cena, o cartógrafo e o jogo de logro na língua traiçoeira

Quase chegando, mas a cidade continua encoberta. Navego pela “baía de Cidadilha e” surgem “sete pedras de boa conformação [...]: a primeira é uma pedra morena12 12 Trata-se do Morro do Moreno (mais de 180 metros de altitude), situado à margem da cidade continental de Vila Velha, berço da colonização do Espírito Santo. [...], à esquerda de quem entra na baía; a segunda é penha13 13 É o Convento da Penha, principal monumento religioso do Espírito Santo, construído no alto de um penhasco de mais de 150 metros, em Vila Velha. que tem no topo um convento que parece uma fortaleza, que parece um castelo, que parece um bolo de noiva ou um gato angorá; a terceira se parece com olhos cavos e cegos” [...]; perco uma pequenina; surge outra “dobrada, uma em cima da outra, com o formato de ovos”; agora outra, “de meter medo, em forma de pão de açúcar14 14 Trata-se do Penedo, com mais de 130 metros, em formato de pão de açúcar. , que sobre o mar desce a pique; finalmente a derradeira pedra é a que a baía vigia e assinala Cidadilha”.

Ancoramos? O “navio” parece baixar “o ferro em plena baía... Uma ponte elástica se estende do cais até nós como língua de deboche. Sobre ela, uma inscrição: ‘Passe, passante, em passos que não sejam compassados para que em passos compassados não se dê seu passamento para a morte’”. Acelero a leitura-passo até o Cais das Colunetas. Olho para trás. Os mais lerdos, despencam quando “a língua de deboche” se recolhe de volta ao cais. Quantos morrem tragados pelo mar? Assustado, ouço um alegre coro, parece festa: “Lá vem a sinhá marreca/ com seu samburá na mão. /Ela diz que vem trazendo/ empadinhas de camarão”. Subo a Escadaria das Pobres Figuras15 15 Atual Escadaria que leva ao Palácio Anchieta, sede do governo estadual, situado no extremo oposto do que foi o Largo da Misericórdia, hoje Praça João Clímaco. Na outra margem situava-se a Igreja da Misericórdia. No seu terreno está erguido o Palácio Domingos Martins (antiga sede da Assembleia Legislativa), hoje sede do Centro de Cultura Sônia Cabral. , adornadas por estranhas estátuas, dizem que “são tipos populares de Cidadilha, andrajosos, decadentes” e sujos. Triste homenagem às Pobres Figuras. A escadaria é sustentada por colunas que “nascem de dentro das águas ignóbeis da baía e transpassam o passadio de madeira, recobertas de ostras como milhos numa espiga”. Sobre as colunas, “12 caveiras de burro” se agitam “ao vento” (SANTOS NEVES, 2008_____. Cidadilha: crônica inverossímil de uma cidade inexistente. Vitória: Cultural/ES & Edições Tertúlia, 2008. Disponível em: <http://www.tertuliacapixaba.com.br/arquivo/cidadilha/capa.htm>. Acesso em: 15 jun. 2017.
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, p. 19), seis de cada lado. Chego a duvidar dos meus olhos e sinto arrepios pelo corpo. No topo, encontro uma multidão em festa. Recepção para nós?

Pista 1: “Boa viagem faz quem em sua casa fica em paz” ( Santos Neves, 2008_____. Cidadilha: crônica inverossímil de uma cidade inexistente. Vitória: Cultural/ES & Edições Tertúlia, 2008. Disponível em: <http://www.tertuliacapixaba.com.br/arquivo/cidadilha/capa.htm>. Acesso em: 15 jun. 2017.
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, p. 17)

Algo chama a atenção no morro defronte ao Cais: “um placar com um número em algarismos arábicos antes da palavra VISITANTES. É uma estatística na casa do milhar controlada por um arlequim sem nariz e sem um olho” (SANTOS NEVES, 2008_____. Cidadilha: crônica inverossímil de uma cidade inexistente. Vitória: Cultural/ES & Edições Tertúlia, 2008. Disponível em: <http://www.tertuliacapixaba.com.br/arquivo/cidadilha/capa.htm>. Acesso em: 15 jun. 2017.
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, p. 15): Misterioso. Quando o número aumenta, “os guizos da sua carapuça soam alto e sinto mau som” [...]. Mas todos festejam. Me dão uma senha: “sobreviver para ver é vitória” (SANTOS NEVES, 2008, p. 16). Converso aqui e ali e descubro: quando “o tilintar dos guizos” dança “pelos ares sua dança”, sua dança celebra a morte; o festim destina-se aos que caem da língua debochada, jeito de “toda Cidadilha saber que menos pessoas” (SANTOS NEVES, 2008, p. 16) chegam para importunar. E eu cheguei... e não sou bem-vindo. Por quê?

Anoitece. Observo a Escadaria das Pobres Figuras ainda mais sinistra: “as caveiras servem de luminárias a base de óleo de mamona” (SANTOS NEVES, 2008_____. Cidadilha: crônica inverossímil de uma cidade inexistente. Vitória: Cultural/ES & Edições Tertúlia, 2008. Disponível em: <http://www.tertuliacapixaba.com.br/arquivo/cidadilha/capa.htm>. Acesso em: 15 jun. 2017.
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, p. 19). Os cidadilhos “preferem a luz úmida das mamonas à eletricidade em suas casas e nos logradouros públicos para preservarem as características coloniais do lugar. Dizem que graças a essa tradição Cidadilha parece um presépio16 16 Até hoje Vitória é associada à imagem de Cidade-Presépio, nome-símbolo que a capital do Espírito Santo recebeu no início do século XX, por sua “semelhança explícita do desenho natural da cidade a um presépio, tanto pela configuração quando pela dimensão de seus objetos - ilhas, baías, canais, pedras, morros” (MONTEIRO, 2005). , à luz baça dos lampiões noturnos” (SANTOS NEVES, 2008, p. 19) “[...] sem tetos chegam em tribos, parecendo irmanados pelos laços de uma miserabilidade indestrutível. Acomodam-se nos escaninhos da escadaria sobre esteiras de palha ou cobertores esfarrapados, acendem fogareiros a carvão para o aquecimento da noite e se põem a cantar para atenuar a miséria em que vegetam: Tingolê, tingolá,/ Toca a viola pra nós dançar”... (SANTOS NEVES, 2008, p. 21-22). Nem perceberam minha presença. Exausto e confuso, vou dormir.

Pista 2: topofobia e estranhas tradições

Acordo cedo. Já estou no Largo da Misericórdia, coração da cidade, em frente à sua igreja em meio a uma multidão de moradores. Outra festa? Aqui, o Cabido dos Notáveis Macróbios realiza julgamentos e punições aos condenados, exercendo seu poder. “O povo [...] comparece em massa para assistir ao que considera um espetáculo inigualável”. Chega “o carrasco com seu capuz que lhe desce até o gogó, deixando expostos apenas seus olhos carrascais. É de fato mera tradição, porque toda Cidadilha”, inclusive eu, “sabe que o verdugo é o amolador de facas e tesouras da cidade” (SANTOS NEVES, 2008_____. Cidadilha: crônica inverossímil de uma cidade inexistente. Vitória: Cultural/ES & Edições Tertúlia, 2008. Disponível em: <http://www.tertuliacapixaba.com.br/arquivo/cidadilha/capa.htm>. Acesso em: 15 jun. 2017.
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, p. 31).

O nome Misericórdia vem dos pedidos de clemência dos espectadores. Começa o rito das execuções em série: escondem os acusados e o carrasco precisa encontrá-los. Quando está distante, os moradores “gritam: está frio”; ao se aproximar, “está quente”. Agora, o carrasco descobre um e todos gritam: “queimou”. Parece um jogo de gato e rato e os cidadilhos adoram. A vítima é “arrastada para aplicação da pena”. Procuro uma linha de fuga, porque soube que mutilam “dedos, mãos, orelhas e pés”. As partes decepadas são tratadas, trituradas e preparadas como doce de chouriço, iguaria típica. “É manjar dos deuses, garantem os entendidos” (SANTOS NEVES, 2008_____. Cidadilha: crônica inverossímil de uma cidade inexistente. Vitória: Cultural/ES & Edições Tertúlia, 2008. Disponível em: <http://www.tertuliacapixaba.com.br/arquivo/cidadilha/capa.htm>. Acesso em: 15 jun. 2017.
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, p. 34). Com o estômago embrulhado, não vi nem degustei.

Vai e vem urbanos - pista 3: o traçado das ruas obedece à topografia

Do Largo da Misericórdia sigo pelo Beco da Ressurreição, subo “uma escadaria de trinta e três degraus escavados na terra” (SANTOS NEVES, 2008_____. Cidadilha: crônica inverossímil de uma cidade inexistente. Vitória: Cultural/ES & Edições Tertúlia, 2008. Disponível em: <http://www.tertuliacapixaba.com.br/arquivo/cidadilha/capa.htm>. Acesso em: 15 jun. 2017.
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, p. 39-40-43) que leva à Igreja São Gonçalo ou Igreja de Nossa Senhora da Boa Morte ou da Ressurreição. Há duas portas ao lado da entrada principal. Pergunto o porquê a um passante. Resposta: houve disputa, a congregação se dividiu e “uma bula episcopal” determinou a separação do acesso. Uma porta destina-se aos “adeptos da Boa Morte” e outra “aos da Ressurreição” (SANTOS NEVES, 2008, p. 39). Hoje não é dia da procissão que encena a ressureição da santa. Dizem que oferecem aos turistas óculos de papelão, com lentes que permitem “visão tridimensional”. Resultado: “pesadelos horríveis, povoados de fantasmas” (SANTOS NEVES, 2008, p. 43).

Desço a ladeira e chego ao Porto dos Padres17 17 Atualmente não há vestígios. Estaria situado entre as ruas General Osório e Nestor Gomes, nas imediações do Parque Moscoso. , que até pouco antes da expulsão dos jesuítas do Brasil, em 1756, “era o único porto de Cidadilha” que não passava de um cais. Dizem que “terminava numa prancha de madeira batida pelas águas do mar; [...] gorgolejava o arroto das águas quando as marolas explodiam sob o seu passadio; sem tirar nem pôr, porto não é, pois que de porto não tinha o porte - e nem sequer o porte de cais do porto. Só era porto por ser privativo dos padres de Jesus e porque os padres de Jesus mereciam do povo de Cidadilha [...] a maior consideração possível” (SANTOS NEVES, 2008_____. Cidadilha: crônica inverossímil de uma cidade inexistente. Vitória: Cultural/ES & Edições Tertúlia, 2008. Disponível em: <http://www.tertuliacapixaba.com.br/arquivo/cidadilha/capa.htm>. Acesso em: 15 jun. 2017.
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, p. 52). Porém, os padres “permitiam” que outras pessoas o “usassem”, desde que repetissem sete vezes sem errar: “o peito do padre é preto, o que mostra que os religiosos de Jesus tinham certa dose de humor”. Mas “houve um tempo em que os de Jesus foram expulsos de Cidadilha e de sua história. Foi então que o porto passou a abrigar prostíbulos onde mulheres desairosas jogavam o jogo-das-pernas-para-o-ar a qualquer hora do dia ou da noite” (SANTOS NEVES, 2008, p. 53).

Vou até a Rua do Fogo, dizem “que é a única ladeira com nome de rua”. Escorrego nas “pedras escorregadias”, aiii... Caio, me emporco de lama... O moço me socorre e avisa: o lugar é conhecido “como Ladeira do Quebra-Bunda. Assim, ora a rua é rua, ora é ladeira, conforme o nome com que é tratada” (SANTOS NEVES, 2008_____. Cidadilha: crônica inverossímil de uma cidade inexistente. Vitória: Cultural/ES & Edições Tertúlia, 2008. Disponível em: <http://www.tertuliacapixaba.com.br/arquivo/cidadilha/capa.htm>. Acesso em: 15 jun. 2017.
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, p. 50). É do Fogo porque aqui “os acendedores de lampiões morrem queimados pelas chamas do óleo de mamona das luminárias que acendem”. Converso com um deles. Explica que a profissão passa “de avô para neto, dentro de uma única família de miseráveis. Por se tratar de função honorífica, os membros da estirpe ficam cada vez mais pobres, de uma geração a outra. Pudera. O custo de vida tem aumentado historicamente em Cidadilha com a sufocante cobrança de impostos, o que provoca o empobrecimento da população e, naturalmente, o da apagada grei dos acendedores de lampiões. Dita a tradição: que morram queimados pelas chamas do óleo do ofício [...]. Morrem condignamente cremados no nobre mister de iluminar os logradouros da cidade, para que esta brilhe sempre com a graça e elegância de um presépio” (SANTOS NEVES, 2008, p. 51). Triste herança familiar e cruel tradição de ofício-morte.

Subo outra ladeira e chego à Capela de Santa Luzia18 18 A Capela de Santa Luzia foi construída no século XVI e é o imóvel mais antigo e preservado do centro fundacional. , “branca e periquitinha, empoleirada no alto de uma rocha” (SANTOS NEVES, 2008_____. Cidadilha: crônica inverossímil de uma cidade inexistente. Vitória: Cultural/ES & Edições Tertúlia, 2008. Disponível em: <http://www.tertuliacapixaba.com.br/arquivo/cidadilha/capa.htm>. Acesso em: 15 jun. 2017.
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, p. 26). Leio uma “inscrição gravada na pedra da porta da capela: ‘Não olhe para trás’”. Um “zarolho” esbarra em mim e entra correndo na capela. Vou atrás dele. Ele roga à santa que o cure, que olhou para trás porque pensou que fosse brincadeira e não profecia, que o perdoe... E nada. Repete a ladainha outras vezes até que um bando de marimbondos sai do teto e um deles fisga o olho do zarolho. Matei duas charadas: que “o aviso” é para “quem passa na rua e não para quem entra na capela” (SANTOS NEVES, 2008, p. 26) e que o milagre não é da santa, mas do ferrão de um marimbondo. Outra pegadinha “maldosa” da língua cidadilha. Mas essa não colou!!!

Pista 4: a cidade e suas toponímias

Prossigo a caminhada, subindo e descendo. Dou numa rua de miseráveis, “todos sujos, esmolambados” [...] e suas “casas baixas e pobres” (SANTOS NEVES, 2008_____. Cidadilha: crônica inverossímil de uma cidade inexistente. Vitória: Cultural/ES & Edições Tertúlia, 2008. Disponível em: <http://www.tertuliacapixaba.com.br/arquivo/cidadilha/capa.htm>. Acesso em: 15 jun. 2017.
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, p. 65). Uma “velha maluca se aproxima”, me cutuca “com o dedo” e pergunta: “O que é, o que é, que anda com os pés na cabeça?” (SANTOS NEVES, 2008, p. 66). Não sei, o que é? “É piolho, é piolho! - produzindo, com a boca desdentada, um ronco impossível de se definir como gargalhada ou rugido de raiva” (SANTOS NEVES, 2008, p. 67). Ai de mim, estou na Rua do Piolho e já sinto coceira na cabeça. Dizem que os cidadilhos não frequentam o local, que discriminam os miseráveis daqui e que, se esta rua “se chamasse Rua do Bicho-de-Pé, o nome também viria a calhar devido à fartura de pulex penetrans que a infesta e que se instala nos pés dos que por ela andam” (SANTOS NEVES, 2008, p. 66). Acelero o passo para cair fora, antes que seja tarde... Só quero um banho e descansar. Pausa.

Volto para a rua. Desço ladeiras em direção à parte baixa da cidade. Encontro a rua do Reguinho, “cortada longitudinalmente pelo reguinho que lhe dá nome e a divide em duas partes: uma, de terra batida; outra, de terra solada. Na primeira, ficam as casas dos pescadores pobres, que só têm redes, anzóis e puçás para pescar; na segunda, as casas dos pescadores menos pobres, donos de canoas de pesca. Todos vivem lado a lado como se não existisse entre eles o reguinho da pobreza que os separa” (SANTOS NEVES, 2008_____. Cidadilha: crônica inverossímil de uma cidade inexistente. Vitória: Cultural/ES & Edições Tertúlia, 2008. Disponível em: <http://www.tertuliacapixaba.com.br/arquivo/cidadilha/capa.htm>. Acesso em: 15 jun. 2017.
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, p. 60). Encontro pescadores que contam que “a rua ficou célebre” graças aos seus filhos. “As águas do reguinho descem perenemente do Morro da Fonte Grande, cujo nome explica sua denominação, para a baía de Cidadilha. Mas no outono alcançam seu ponto ideal de serenidade. É quando os filhos dos pescadores aproveitam para fazer barquinhos de papel que botam para flutuar no reguinho. A brincadeira contagiou os adultos. Em pouco tempo, junto com os barquinhos de papel, barcos de madeira montados por artesãos de cabelos enrodilhados passaram a navegar o reguinho, enfeitados com bandeirolas coloridas. O costume virou tradição, e a tradição associou-se a São Pedro, padroeiro dos pescadores” (SANTOS NEVES, 2008, p. 61). Até que enfim, uma história que emociona e não arrepia.

Pista 5: toponímia invertida

Soube que tem uma praia por perto. Pois, a caminho estou. Cheguei... “Bem que podia se chamar Rua da Maré, dos Mangues ou dos Caranguejos. Mas, por uma questão de bairrismo”, os cidadilhos preferem “chamá-la Rua da Praia. No entanto, praia nenhuma existe por aqui e, de rua, o que” há é “um caminho escorregadio à beira do mangue” (SANTOS NEVES, 2008_____. Cidadilha: crônica inverossímil de uma cidade inexistente. Vitória: Cultural/ES & Edições Tertúlia, 2008. Disponível em: <http://www.tertuliacapixaba.com.br/arquivo/cidadilha/capa.htm>. Acesso em: 15 jun. 2017.
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, p. 75). Opsss, escorrego, quase caio... “As casas situadas de um lado desse caminho têm quintais voltados para a maré que os inunda nas cheias. Quando a maré” baixa, “o cheiro penetrante da lama entra pelas casas adentro, junto com centenas de caranguejos que parecem animais domésticos. [...] a tradição mais celebrada na Rua da Praia” são “as caranguejadas” (SANTOS NEVES, 2008, p. 75-76). Aproveito para degustar... Não há talheres. Observo a técnica dos cidadilhos: quebrar as patas nas articulações. Devoro o fiapo da carne branquinha. Vou quebrando o restante, sem sucesso. A carne fica grudada na parte interna. Agarro a puã e sigo a técnica de um comensal: pego uma tábua e um pedaço de madeira que serve de martelo, bato com força e despedaço tudo. Ganho outra puã e bato com mais delicadeza. Sucesso! Uma delícia. Peço outra e não dão. Alegam que é a melhor parte. Falam para eu comer a barriga, mas prefiro caminhar, com as mãos lambuzadas...

Chego na Praça do Teatro e não há teatro. Informam que havia um “construído numa arquitetura de madeira19 19 Trata-se do Teatro Melpômene, construído em torno de 1896, em pinho de Riga importado da Suécia. Com iluminação elétrica de geração própria, era a melhor casa de espetáculo do século XIX, funcionando também como sala de cinema. O incêndio ocorreu durante a exibição de um filme, em 8 de outubro de 1924. Depois, foi vendido a André Carloni, arquiteto autodidata, que aproveitou as colunas de ferro fundido para sustentar o Teatro Carlos Gomes, inaugurado em 1927, transformando-se na mais tradicional casa de espetáculos do Espírito Santo. [...] pegou fogo e somente ficaram de si mesmo cinzas sobre cinzas. Mas o nome permanece em homenagem ao ilustre incendiado” (SANTOS NEVES, 2008_____. Cidadilha: crônica inverossímil de uma cidade inexistente. Vitória: Cultural/ES & Edições Tertúlia, 2008. Disponível em: <http://www.tertuliacapixaba.com.br/arquivo/cidadilha/capa.htm>. Acesso em: 15 jun. 2017.
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, p. 99). A Praça é animada. Funciona como palco de “exibições populares”: vejo, aos gritos, uma pregação religiosa. Vou até o vendedor “de ervas milagrosas, as demonstrações de curas são extraordinárias”. Curam tudo e todos. Observo que há “um cardápio sortido de shows que fascina a multidão”. Vou até os trovadores. Eles sobem num “banquinho portátil, que carregam debaixo do braço, para declamar quadrinhas do seu repertório com o ânimo de colegiais de primeiras letras [...]: “Eu sou pequena,/ Das pernas grossas,/ Vestido curto,/ Papai não gosta” (SANTOS NEVES, 2008, p. 100). O público delira. Os capoeiristas chegam “despidos a caráter: com uma calça branca justa que lhes vai até as canelas, descalços e com o peito nu em alto relevo”. Abrem “uma roda folgada e, ao som de um berimbau de barriga, se lançam num simulacro de combate à base de chutes e tesouradas com as pernas para o ar como se fossem atingir brutalmente os adversários que contra-atacam no mesmo estilo e violência, sem que nenhum dos contendores acerte o corpo do outro. Tudo à brinca, nada à vera, numa mentirinha arteira e rasteira, sob o trinado miudinho do berimbau, be-rim-bau, be-rim-bau-bau...” (SANTOS NEVES, 2008, p. 100).

Hora de seguir para o cais e partir, sem berimbau-bau-bau, para encarar as marolas da baía e suas pedras tão singulares.

Percursos: nas pistas do cartógrafo e outras pegadas

Antes de seguir as pistas do cartógrafo, algumas considerações: Luiz Guilherme, no seu citado jogo de logro, não inclui o Colégio dos Jesuítas e a Igreja de São Tiago20 20 “A encosta sobre a qual se edificou o Colégio [e a Igreja] é um contraforte da serra que domina a superfície sudoeste da ilha, sobrepondo-se garbosamente à garganta que o liga ao sistema orográfico principal. Ganha assim predomínio sobre toda a paisagem que a pequena baía bordeja. É singular a situação eleita por Afonso Brás [jesuíta que mandou edificar o conjunto arquitetônico], onde construiu a mais bela e valiosa sede da sua [...] missão” (DERENZI, 1971, p. 19). (demolidos para a construção do atual Palácio Anchieta, sede do Executivo estadual) em sua cartografia ficcional. Desse conjunto arquitetônico construído em meados do século XVI, o escritor só inclui a escadaria (das Pobres Figuras) que lhe dá acesso, mas deixa pistas da presença dos jesuítas na Ilha, como o citado Porto dos Padres. Nesse logro, há um jogo de lusco-fusco: 1) na narrativa verbal, o escritor ofusca a igreja jesuítica, levando o leitor que conhece Vitória a procurá-la ao longo do livro até por sua importância histórica e sua marcante localização; 2) na linguagem imagética, como já dito, a Igreja se ilumina na capa de Cidadilha, mantendo-a em destaque na referida inversão (ou relação especular) da imagem da cidade. Por esse viés, não haveria como escamotear sua presença: “eram massas arquitetônicas que se desdobravam na mais coerente interligação. Completavam a paisagem montanhosa sem ferir-lhe a fisionomia plástica que a natureza moldara” (DERENZI, 1971DERENZI, Luiz Serafim. História do Palácio Anchieta. Vitória: Secretaria de Educação e Cultura, 1971., p. 19). Luiz Guilherme explicou esse logro em palestra realizada no Programa de Pós-Graduação em Arquitetura e Urbanismo da Universidade Federal do Espírito Santo (PPGAU/UFES), em 2016:

[...] a inversão de valores e do foco visual se mostra evidente desde a capa do livro, onde o desenho da velha cidade provincial de Vitória aparece com seus polos geográficos invertidos, num simbolismo ambíguo, ou seja, com o núcleo urbano em torno da igreja de Santiago, fundada pelos jesuítas, colocado à direita de quem olha o desenho, tendo no lado oposto o núcleo em torno da igreja do Rosário, numa contraposição de imagens que não correspondem à realidade física da cidade vista de sua baía21 21 Palestra realizada no Programa de Pós-Graduação em Arquitetura e Urbanismo da Universidade Federal do Espírito Santo (PPGAU/UFES) em 11 de novembro de 2016. O escritor também enviou o texto por e-mail (grifos nossos). .

Evidenciam-se, assim, as relações entre o verbal, o imagético, a cidade, o imaginário geográfico, a historiografia e suas ressignificações.

Quanto ao paradoxo sobre o visitante, vimos que ele só é bem-vindo pelo Cabido para engordar os cofres públicos, mas é mal-vindo pelos cidadilhos. Voltemos, então, à Pista 1 do viajante-cartógrafo, que sentiu na pele e no espaço o que os cidadilhos desejam: boa viagem faz quem em sua casa fica em paz. A senha que o visitante recebe - “sobreviver para ver é vitória” -, confirma o narrador, celebra a vitória dos sobreviventes da ponte-língua traiçoeira, “habilitando-se a ver a cidade aonde aportavam, embora muitos visitantes [confundam] os seus termos com frases [sem] sentido: sobreviver apara a vitória; só reviver para a vitória; viver e ver é vitória” (SANTOS NEVES, 2008_____. Cidadilha: crônica inverossímil de uma cidade inexistente. Vitória: Cultural/ES & Edições Tertúlia, 2008. Disponível em: <http://www.tertuliacapixaba.com.br/arquivo/cidadilha/capa.htm>. Acesso em: 15 jun. 2017.
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, p. 16).

Por que os visitantes insistem em ir para Cidadilha? O narrador ironiza três hipóteses: 1) “porque visitantes visitam desde as muralhas da China até o cós do mundo”; 2) “para tirar a prova de que [Cidadilha] nada [tem] a lhes oferecer de visitável. Neste caso, [agem] como São Tomés” [...]; 3) “Mas se nada [há] para encher os olhos [...], já se sabe que ali [estão] a célebre língua-ponte do Cais das Colunetas e as estatísticas do placar que um arlequim misterioso [manipula] na função de mordomo da cidade” (SANTOS NEVES, 2008_____. Cidadilha: crônica inverossímil de uma cidade inexistente. Vitória: Cultural/ES & Edições Tertúlia, 2008. Disponível em: <http://www.tertuliacapixaba.com.br/arquivo/cidadilha/capa.htm>. Acesso em: 15 jun. 2017.
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, p. 17-18).

São motivos que deixam os visitantes felizes até descobrirem outras tenebrosidades dos cidadilhos, explicitadas na Pista 2 do cartógrafo, sobre o verdadeiro imbróglio provocado pela mistura entre topofobia e estranhas tradições. Pela etimologia, topos é lugar, e phóbos, medo mórbido de certos lugares. Ou seja, o inverso da topofilia, familiaridade e apego ao lugar, o que leva Tuan (1980TUAN, Yi-Fu. Topofilia: um estudo da percepção, atitudes e valores do meio ambiente. São Paulo/Rio de Janeiro: Difel, 1980., p. 114) a concluir: “A familiaridade engendra afeição, quando não o desprezo”. No caso de Cidadilha, não é apenas a ausência da familiaridade do visitante com o lugar. O que gera a topofobia são as sarcásticas e tragicômicas táticas dos moradores. Além da festa para os mortos da ponte-língua, do chouriço que o cartógrafo não quis degustar, citemos outro exemplo tradicional: o bosque da solidão, localizado no Largo da Misericórdia. O local reserva uma particularidade: a gruta sob o barranco do bosque, dizem, “é a boca de um túnel que se descaminha pelo interior das montanhas que cercam a cidade-ilha, até desembocar numa saída de geografia variável, movediça como a foz de um rio movediço, [...] [cujo] bafo cavernoso [...] [provoca] vômitos e diarreias” (SANTOS NEVES, 2008_____. Cidadilha: crônica inverossímil de uma cidade inexistente. Vitória: Cultural/ES & Edições Tertúlia, 2008. Disponível em: <http://www.tertuliacapixaba.com.br/arquivo/cidadilha/capa.htm>. Acesso em: 15 jun. 2017.
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, p. 36). Pior: há setas turísticas para a gruta. Resultado: só de chegarem “perto da entrada fétida, e ainda por cima, ao começarem botar os bofes para fora, são brindados pelos moradores com esta pergunta galhofeira: Sarapico, pico, pico,/ Quem te deu tamanho bico?” (SANTOS NEVES, 2008, p. 36 - grifos do autor). Portanto, enquanto o visitante vivencia a topofobia, os cidadilhos divertem-se com seu parque de horrores.

Na Pista 3, o traçado sinuoso das ruas, obedecendo à topografia, é capturado na caminhada do cartógrafo ao subir e descer morros e registrar as maneiras do fazer cotidiano. Para Certeau (1994CERTEAU, Michel de. A invenção do cotidiano: 1. Artes de fazer. Petrópolis: Vozes, 1994., p. 176), os “jogos dos passos moldam espaços. Tecem os lugares” e se relacionam a algo mais: o “ato de caminhar está para o sistema urbano como a enunciação [...] está para a língua” (CERTEAU, 1994CERTEAU, Michel de. A invenção do cotidiano: 1. Artes de fazer. Petrópolis: Vozes, 1994., p. 177 - grifos). Ou seja, o ato de caminhar estabelece um espaço de enunciação, cujo efeito “é uma tríplice função ‘enunciativa’”:

[...] é um processo de apropriação do sistema topográfico pelo pedestre (assim como o locutor se apropria e assume a língua); é uma realização espacial do lugar (assim como o ato da palavra é uma realização sonora da língua); enfim, implica relações entre as posições diferenciadas, ou seja, “contratos” pragmáticos sob a forma de movimentos (assim como a enunciação verbal é “alocução”, “coloca o outro em face” do locutor e põe em jogo contratos entre colocutores). (CERTEAU, 1994CERTEAU, Michel de. A invenção do cotidiano: 1. Artes de fazer. Petrópolis: Vozes, 1994., p. 177-grifos do autor).

Ao percorrer a cidade-ilha, o cartógrafo tece os lugares acompanhando a topografia e transforma a caminhada em “relatos de práticas de espaços” (CERTEAU, 1994CERTEAU, Michel de. A invenção do cotidiano: 1. Artes de fazer. Petrópolis: Vozes, 1994., p. 181) por associá-los a duas figuras de linguagem: a sinédoque e o assíndeto. A primeira (metonímia) designa uma parte no lugar do todo, como a língua traiçoeira, que conota a ponte de acesso à Cidadilha, como as maldades dos cidadilhos. O assíndeto suprime “os termos de ligação, conjunções e advérbios, numa frase ou entre frases. Do mesmo modo, na caminhada, seleciona e fragmenta o espaço percorrido; ela salta suas ligações e partes inteiras que omite [...]. Pratica a elipse dos lugares conjuntivos” (CERTEAU, 1994, p. 181).

Porém, a elipse dos lugares conjuntivos não oculta a Pista 4 em que o cartógrafo estabelece relações entre Cidadilha e suas toponímias, descrevendo como seu corpo vibrátil percebeu a ressignificação de ruas, como a do Piolho, do Reguinho ou do Fogo. Tais nomes eram batizados pela criatividade popular, mas o conhecimento dessa denominação se restringiria aos cidadilhos por falta de qualquer indicação22 22 Segundo Elton (1986, p. 12), “o povo é que se encarregava da nomenclatura urbana, não existindo placas indicando a denominação desta ou daquela artéria”. Essa tradição de ocultar os nomes das vias urbanas se mantém até hoje em muitos logradouros de Vitória. Talvez, por isso, o sistema de localização adotado pelos capixabas preferencialmente se dê pela utilização de referenciais urbanos, ao invés de toponímicos, dificilmente reconhecíveis para visitantes. .

Em contraposição, nosso viajante flagrou toponímias invertidas, abrindo a Pista 5, após relatar o espaço percorrido. Na Praça do Teatro, enquanto a narrativa mantém o finado Teatro Melpômene em elipse (no plano geográfico), sua presença se ilumina na memória histórico-afetiva. Essa memória definiu todos os encaminhamentos e os respectivos conjuntos de cartografias por aqui navegados, que extrapolaram os trinômios passado, presente, devir; concretude, virtualidade, presencialidade; e presença, ausência, potência na linguagem e nas experiências fenomenológicas.

Check-out

A partir da literatura, vimos o quanto o espaço imaginário se conecta ao núcleo fundacional de Vitória e de que forma o escritor humaniza o cotidiano dos cidadilhos, preservando laços históricos, tradições religiosas e folclóricas similares aos da cidade real. O cartógrafo antropofágico cumpriu seu papel: devorou a cidade, se abriu à alteridade, se alimentou não só do referencial de Luiz Guilherme (que se nutriu de outras obras, de sua experiência como historiador e de suas nostalgias), mas, ao “intertextualizar” suas caminhadas em relatos com a narrativa de Cidadilha, revigora a obra ficcional. Mais do que isso, o cartógrafo abre passagem aos afetos/desejos ao permitir que seu olho e corpo vibráteis capturem, experimentem e degustem todas as sensações, inclusive as variações do prefixo topos, que, adicionado a diferentes sufixos, gera outros sentidos/afetos às experiências no espaço e na paisagem: grafia, de sistemas analíticos e descritivos; filia, de familiaridade e afeto; e fobia, relativo ao medo e à aversão.

Porém, um fio permanece solto: a terrafilia, o “antônimo da topofilia. Pode-se dizer que existe uma relação inversa (correlação negativa) entre as duas noções: quanto mais forte a descaracterização, mais fraca a topofilia e vice-versa” (ROCA; OLIVEIRA; NUNO, 2006). Por essa perspectiva, há um triplo viés em Cidadilha: 1) como dito, a terrafilia é imposta pelo Cabido para desenvolver a cidade, abrindo novos negócios com o turismo, mas a ficção não detalha se há preocupação quanto à preservação da cidade. É provável que não; 2) os cidadilhos não querem os visitantes para não perderem suas noções de topofilia, de raízes e de costumes, seu folclore e seu jeito de ser e viver, permanecendo avessos às possíveis descaracterizações. Relembrando: querem preservar a cidade como presépio, justamente uma das imagens símbolos verídicas da capital capixaba23 23 “Os habitantes da cidade-ilha preferem a luz úmida das mamonas à eletricidade em suas casas e nos logradouros públicos para preservarem as características coloniais. Dizem que graças a essa tradição Cidadilha parece um presépio” (SANTOS NEVES, 2008, p. 19), conforme também (re)narrado pelo cartógrafo. ; 3) Luiz Guilherme esclareceu, em sua referida palestra que, ao criar Cidadilha, tentou desconstruir a “badalada visão de Cidade Sol24 24 “Cidade sol” é o título de uma alegre canção de Pedro Caetano em homenagem a Vitória (associando-a a um paraíso) que, de tão popular, tornou-se uma espécie de hino (não oficial) e também um nome-símbolo da cidade. e Ilha do Mel25 25 Há versões de que os índios chamavam a Ilha de Vitória de Guananira e Ilha do Mel, mas “não existem registros confiáveis de que fosse verdadeira a expressão, de origem tupi, significando ‘ilha do mel’, [...] embora esta versão tenha caído em domínio público” (SANTOS NEVES, 2013). , Pasárgada ou Xangrilá”, conhecidos paraísos imaginários. Ou seja, tentou desconstruir a simbologia que associasse Cidadilha a um paraíso perdido. Embora o escritor não tenha incluído (em sua citação) a Cidade-Presépio (presente na ficção), esta não deixa de ser um paraíso prestes a se perder na visão dos cidadilhos. Assim, o autor criou “uma gozação literária, tendo por base a antiga cidade de Vitória”.

Portanto, a terrafilia aplica-se ao Cabido, e a topofilia, aos cidadilhos. O escritor, por sua vez, ao contrário de outras ficções dedicadas a Vitória26 26 Passeio pelo centro de Vitória na companhia de Rubem Braga (SANTOS NEVES, 1992) e Navegação em torno da ilha vislumbrada (SANTOS NEVES, 2014) são apenas exemplos da vasta obra literária do criador de Cidadilha. e ao Espírito Santo, desconstruiu as imagens símbolos de sua terra natal, apropriando-se de uma linguagem mordaz e satírica. Desse modo, é provável que transite entre a terrafilia e a topofilia até porque, como urbanita, sentiu em seu corpo vibrátil os efeitos da descaracterização da cidade em suas transformações das dinâmicas urbanas e às alternâncias econômico-sociais, sem perder o sentimento topofílico.

De volta a Cidadilha, para Luiz Guilherme27 27 Informação colhida na referida palestra de 2016. , por trás de toda carga de menosprezo aparente, há uma “mal disfarçada afetividade de quem, apesar de falar mal, agiu movido por um grande bem-querer ao objeto mal falado, por mais contraditório que isso possa parecer”. Talvez, por isso, o escritor brindou seus leitores com outra ficção sobre Vitória: Navegação em torno da ilha vislumbrada (2014) em outro tom:

A ilha é firme e dadivosa, encravada num anel de mar. Ao seu redor, ilhas menores se espalham - satélites magnetizados.

A ilha sempre amanhece com cara de terra nova. É um estímulo para que seus habitantes fiquem de bem com a vida.

À noite, a ilha é platônica e misteriosa e a pátina da maresia umedece discretamente os bancos das praças públicas. (SANTOS NEVES, 2014_______. Navegação em torno da ilha vislumbrada. Fotografias de Pedro Nunes. Vitória: Cultural/ES & Edições Tertúlia, 2014., p. 11).

Nessa contraposição a Cidadilha, o escritor abre outro espaço-tempo no imaginário geográfico de Vitória, adicionando sempre a história de sua cidade quinhentista, seus costumes, evolução e conflitos. E nos ensina a repensar o espaço como “uma dimensão implícita que molda nossas cosmologias estruturantes. Ele modula nossos entendimentos do mundo, nossas atitudes frente aos outros” (MASSEY, 2008MASSEY, Doreen. Pelo espaço: uma nova política da espacialidade. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2008., p. 14). Por esse viés, o espaço afeta o modo de abordar as cidades e de praticar “um sentido de lugar. Se o tempo é a dimensão da mudança, então o espaço é a dimensão do social: da coexistência contemporânea de outros” (MASSEY, 2008, p. 14). A partir de Cidadilha, chegamos a outras maneiras de narrar, de criar e de praticar a teoria. Afinal, “a teoria surge da vida” (MASSEY, 2008, p. 14) para ser praticada com volúpia. E também porque “teoria é sempre cartografia” (ROLNIK, 1987ROLNIK, Suely. Cartografia ou de como pensar com o corpo vibrátil. In: Núcleo de Estudos de Subjetividade da PUC. São Paulo, 1987. Disponível em: <http://www.pucsp.br/nucleodesubjetividade/suely%20rolnik.htm>. Acesso em: 10 jun. 2017.
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). No nosso caso, em exercício prático, em mergulhos na geografia dos afetos, montando um mosaico de camadas de palimpsestos que devoramos, associamos e ressignificamos em múltiplas saídas, mas sem pretensões de chegar a conclusões definitivas. Construímos pontes para permitir outras travessias e outros modos de cartografar desejos/afetos.

REFERÊNCIAS

  • CALVINO, Italo. As cidades invisíveis. Tradução Diogo Mainardi. São Paulo: Companhia das Letras, 1990.
  • CERTEAU, Michel de. A invenção do cotidiano: 1. Artes de fazer. Petrópolis: Vozes, 1994.
  • DERENZI, Luiz Serafim. História do Palácio Anchieta. Vitória: Secretaria de Educação e Cultura, 1971.
  • ELTON, Elmo. Logradouros antigos de Vitória. 2. ed. Vitória: Instituto Jones Santos Neves, 1986.
  • LEFEBVRE, Henri. A vida cotidiana no mundo moderno. São Paulo: Ática, 1991.
  • MASSEY, Doreen. Pelo espaço: uma nova política da espacialidade. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2008.
  • MONTEIRO, Peter Ribon. Vitória: identidade e visibilidade. In: SIMPÓSIO DE COMUNICAÇÃO VISUAL URBANA, 1., 2005, São Paulo. Papers.... São Paulo: Faculdade de Arquitetura e Urbanismo/USP, 2005. Disponível em: <http://www.fau.usp.br/depprojeto/labim/simposio/PAPERS/SCV3AU13.htm>. Acesso em: 20 maio 2017.
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  • ROCA, Zoran. Paisagem, identidade territorial, desenvolvimento e terrafilia. Comunicação. Sessão de Debate e Reflexão sobre Política Nacional de Arquitectura e Paisagem, Ministério do Ambiente, do Ordenamento do Território e do Desenvolvimento Regional. Sintra, 2009. Disponível em: <tercud.ulusofona.pt/index.php/pt/documentos-on-line/category/5-2009?...roca...>. Acesso em: 5 jun. 2017.
  • ROCA, Zoran; OLIVEIRA, José, NUNO, Leitão. Da topofilia à terrafilia: paisagens, modos de vida e desenvolvimento territorial. In: ENCONTRO NACIONAL DE PROFESSORES DE GEOGRAFIA ENTRE O MAR E A TERRA: paisagens, itinerários didacticos, 20., 2006. Papers... . Peniche, Portugal: Universidade Lusófona. Disponível em: <tercud.ulusofona.pt/index.php/pt/documentos-on-line/category/8-2006>. Acesso em: 27 maio 2017.
  • ROLNIK, Suely. Cartografia ou de como pensar com o corpo vibrátil. In: Núcleo de Estudos de Subjetividade da PUC. São Paulo, 1987. Disponível em: <http://www.pucsp.br/nucleodesubjetividade/suely%20rolnik.htm>. Acesso em: 10 jun. 2017.
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  • ______. Cartografia sentimental: transformações contemporâneas do desejo. 2 ed. Porto Alegre: Sulina/Editora da UFRGS, 2016.
  • SANTOS, Milton. Metamorfoses do espaço habitado. 5. ed. São Paulo: Hucitec, 1997.
  • SANTOS NEVES, Luiz Guilherme. Passeio pelo centro de Vitória na companhia de Rubem Braga. Fotografias de Humberto Capai. São Paulo: Empresa de Artes, 1992.
  • _____. Cidadilha: crônica inverossímil de uma cidade inexistente. Vitória: Cultural/ES & Edições Tertúlia, 2008. Disponível em: <http://www.tertuliacapixaba.com.br/arquivo/cidadilha/capa.htm>. Acesso em: 15 jun. 2017.
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  • _______. A primeira sesmaria do Espírito Santo. In: Morro do Moreno, 2013. Disponível em: <http://www.morrodomoreno.com.br/materias/a-primeira-sesmaria-do-espirito-santo.html>. Acesso em: 10 jun. 2017.
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  • _______. Navegação em torno da ilha vislumbrada. Fotografias de Pedro Nunes. Vitória: Cultural/ES & Edições Tertúlia, 2014.
  • TUAN, Yi-Fu. Topofilia: um estudo da percepção, atitudes e valores do meio ambiente. São Paulo/Rio de Janeiro: Difel, 1980.
  • 1
    Referimo-nos ao autor pelo binômio Santos Neves por se tratar de tradicional família local, com peso nos setores cultural, político e judiciário: Jones foi governador e senador e empresta seu nome ao Instituto Jones Santos Neves; Guilherme (pai de Luiz Guilherme), destacado folclorista do Estado; Reinaldo, escritor; e Desembargador Santos Neves nomeia uma avenida da Praia do Canto, bairro tradicional de Vitória.
  • 2
    A antropofagia cultural é entendida como tática recursiva e tem sido praticada, com mais ou menos voracidade, em diversos campos da arte e das ciências.
  • 3
    No Apêndice de Cidadilha, o escritor lista os 30 referenciais urbanos ficcionais de sua obra e os atualiza com os referenciais reais/atuais de Vitória: Cais das Colunetas (já extinto, diante da escadaria do Palácio Anchieta); Escadaria das Pobres Figuras (hoje Bárbara Lindenberg); Rua do Egito (Francisco Araújo); Rua da Capelinha (José Marcelino, onde se situa a Capela de Santa Luzia); Rua da Matriz (atual Pedro Palácios); Largo da Misericórdia (Praça João Clímaco, em frente à antiga Igreja da Misericórdia); Bosque da Solidão (Jardim da Praça João Clímaco); Rua da Barreira (Comandante Duarte Carneiro); Beco da Ressurreição (Rua São Gonçalo, que leva à igreja do mesmo nome); Rua São Francisco (a do convento do mesmo nome); Ladeira das Patas Brancas (Rua Dionísio Rosendo); Rua do Fogo (Rua Caramuru); Porto dos Padres (Rua General Osório com a Nestor Gomes); Ladeira da Várzea (Professor Balthazar); Largo dos Pelames (Praça Ubaldo Ramalhete e arredores); Rua do Reguinho (a atual Graciano Neves); Morro da Fonte Grande (mantém o mesmo nome); Rua do Piolho (13 de Maio); Ladeira do Carmo (Dr. Azambuja); Ladeira de São Bento (mantém o nome); Ladeira da Pedra (Escadaria São Diogo); Rua da Praia (Duque de Caxias); Rua da Mangueira (Av. Florentino Avidos, confluência com a Nestor Gomes. Antiga 1o de Março); Praia da Conceição (Praça Costa Pereira); Rua Cais de São Francisco (a mesma); Ladeira do Pelourinho (Escadaria Maria Ortiz); Ladeira do Bispo (Rua Dom Fernando); Rua do Rosário (a mesma); Beco da Miséria (ligava a Costa Pereira à Av. Jerônimo Monteiro); e Praça do Teatro (Praça Costa Pereira, onde se situava o antigo Teatro Melpômene, incendiado em 1924. Em seguida, a 100 metros do local, construiu-se o Teatro Carlos Gomes, principal referência de espaço cênico de Vitória até a atualidade).
  • 4
    Entendidas numa rede de relações entre o habitar, falar, ler, cozinhar, caminhar, relacionar-se com o outro etc. (CERTEAU, 1994, p. 47).
  • 5
    Laços afetivos entre habitantes e hábitat (TUAN, 1980).
  • 6
    Neologismo definido como: “ligação afectiva entre as pessoas e os territórios que induz acções em prol do desenvolvimento [e] representa um acréscimo conceptual à noção de topofilia” (ROCA, 2009).
  • 7
    Com reconhecidos estudos sobre a história do Espírito Santo, Luiz Guilherme, nascido, criado e permanente urbanita de Vitória, desde 1933, há quatro décadas dedica-se também à literatura, mantendo lealdade às suas raízes, à historiografia, ao folclore e/ou a personagens de sua terra.
  • 8
    Essa estratégia derivou em licença poética na utilização dos excertos de Cidadilha (destacados com aspas), mesclados às impressões/sensações do cartógrafo (grafadas em itálico), com as referências em rodapé.
  • 9
    Em Percursos, o texto será construído na primeira pessoa do plural, aplicando-se as normas da ABNT.
  • 10
    Partimos do princípio de que o conceito de paisagem transcende aos limitados âmbitos da visibilidade ou dos aspectos formais de determinado fragmento territorial. Trata-se de um conceito inerente aos domínios psicossociais relacionado aos sistemas sensitivo, perceptivo e cognitivo; à produção de subjetividades individuais e coletivas intrínsecas às relações entre humanos e destes com o ambiente. Para Santos, a paisagem desvela a história das dinâmicas sociais, é o palimpsesto que plasma as sucessivas lógicas da produção no espaço e no tempo; a paisagem precede a história que será escrita sobre ela ou se modifica para acolher uma nova atualidade, uma inovação (SANTOS, 1997).
  • 11
    A antropofagia entendida como uma forma de subjetivação, caracterizada “pela ausência de identificação absoluta e estável com qualquer repertório, a abertura para incorporar novos universos, a liberdade de hibridização, a flexibilidade de experimentação e de improvisação para criar novos territórios e suas respectivas cartografias” (ROLNIK, 2007, p. 19).
  • 12
    Trata-se do Morro do Moreno (mais de 180 metros de altitude), situado à margem da cidade continental de Vila Velha, berço da colonização do Espírito Santo.
  • 13
    É o Convento da Penha, principal monumento religioso do Espírito Santo, construído no alto de um penhasco de mais de 150 metros, em Vila Velha.
  • 14
    Trata-se do Penedo, com mais de 130 metros, em formato de pão de açúcar.
  • 15
    Atual Escadaria que leva ao Palácio Anchieta, sede do governo estadual, situado no extremo oposto do que foi o Largo da Misericórdia, hoje Praça João Clímaco. Na outra margem situava-se a Igreja da Misericórdia. No seu terreno está erguido o Palácio Domingos Martins (antiga sede da Assembleia Legislativa), hoje sede do Centro de Cultura Sônia Cabral.
  • 16
    Até hoje Vitória é associada à imagem de Cidade-Presépio, nome-símbolo que a capital do Espírito Santo recebeu no início do século XX, por sua “semelhança explícita do desenho natural da cidade a um presépio, tanto pela configuração quando pela dimensão de seus objetos - ilhas, baías, canais, pedras, morros” (MONTEIRO, 2005).
  • 17
    Atualmente não há vestígios. Estaria situado entre as ruas General Osório e Nestor Gomes, nas imediações do Parque Moscoso.
  • 18
    A Capela de Santa Luzia foi construída no século XVI e é o imóvel mais antigo e preservado do centro fundacional.
  • 19
    Trata-se do Teatro Melpômene, construído em torno de 1896, em pinho de Riga importado da Suécia. Com iluminação elétrica de geração própria, era a melhor casa de espetáculo do século XIX, funcionando também como sala de cinema. O incêndio ocorreu durante a exibição de um filme, em 8 de outubro de 1924. Depois, foi vendido a André Carloni, arquiteto autodidata, que aproveitou as colunas de ferro fundido para sustentar o Teatro Carlos Gomes, inaugurado em 1927, transformando-se na mais tradicional casa de espetáculos do Espírito Santo.
  • 20
    “A encosta sobre a qual se edificou o Colégio [e a Igreja] é um contraforte da serra que domina a superfície sudoeste da ilha, sobrepondo-se garbosamente à garganta que o liga ao sistema orográfico principal. Ganha assim predomínio sobre toda a paisagem que a pequena baía bordeja. É singular a situação eleita por Afonso Brás [jesuíta que mandou edificar o conjunto arquitetônico], onde construiu a mais bela e valiosa sede da sua [...] missão” (DERENZI, 1971, p. 19).
  • 21
    Palestra realizada no Programa de Pós-Graduação em Arquitetura e Urbanismo da Universidade Federal do Espírito Santo (PPGAU/UFES) em 11 de novembro de 2016. O escritor também enviou o texto por e-mail (grifos nossos).
  • 22
    Segundo Elton (1986, p. 12), “o povo é que se encarregava da nomenclatura urbana, não existindo placas indicando a denominação desta ou daquela artéria”. Essa tradição de ocultar os nomes das vias urbanas se mantém até hoje em muitos logradouros de Vitória. Talvez, por isso, o sistema de localização adotado pelos capixabas preferencialmente se dê pela utilização de referenciais urbanos, ao invés de toponímicos, dificilmente reconhecíveis para visitantes.
  • 23
    “Os habitantes da cidade-ilha preferem a luz úmida das mamonas à eletricidade em suas casas e nos logradouros públicos para preservarem as características coloniais. Dizem que graças a essa tradição Cidadilha parece um presépio” (SANTOS NEVES, 2008, p. 19), conforme também (re)narrado pelo cartógrafo.
  • 24
    “Cidade sol” é o título de uma alegre canção de Pedro Caetano em homenagem a Vitória (associando-a a um paraíso) que, de tão popular, tornou-se uma espécie de hino (não oficial) e também um nome-símbolo da cidade.
  • 25
    Há versões de que os índios chamavam a Ilha de Vitória de Guananira e Ilha do Mel, mas “não existem registros confiáveis de que fosse verdadeira a expressão, de origem tupi, significando ‘ilha do mel’, [...] embora esta versão tenha caído em domínio público” (SANTOS NEVES, 2013).
  • 26
    Passeio pelo centro de Vitória na companhia de Rubem Braga (SANTOS NEVES, 1992) e Navegação em torno da ilha vislumbrada (SANTOS NEVES, 2014) são apenas exemplos da vasta obra literária do criador de Cidadilha.
  • 27
    Informação colhida na referida palestra de 2016.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Sep-Dec 2018

Histórico

  • Recebido
    10 Jul 2017
  • Aceito
    18 Out 2018
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