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O fluxo perene da literatura de cordel: coincidências “virtuosas” entre Mário de Andrade e os poetas nordestinos

The perennial flow of cordel literature: “virtuous” coincidences between Mário de Andrade and the Northeastern poets

RESUMO

Aproximar Mário de Andrade e os poetas da literatura de cordel pode parecer inusitado, mas se justifica pelo “descobrimento” dessa poética e suas andanças pelo Nordeste, em meados dos anos 1920, e pela adesão à causa popular expressa no alentado projeto de pesquisa Na Pancada do Ganzá, que reuniria toda a produção do folclore nacional, mas que não passou de um importante Prefácio. Foi esse o ponto de partida do ensaio em que dialogam interlocutores diversos - alguns virtuais à sua obra - como forma de mostrar o aval de Mário em relação não só à literatura clássica nordestina, mas à cultura popular como um todo.

PALAVRAS-CHAVE:
Literatura brasileira; literatura de cordel; Mário de Andrade; Na Pancada do Ganzá; Silvino Pirauá de Lima; Francisco das Chagas Baptista; Fundos Villa-Lobos

ABSTRACT

Brazilian northeastern poetry, as popularly known as “Cordel”, was overshadowed at the time due to criticism that “popular culture” was deemed of inferior quality. Yet, Mário de Andrade was an unconditional admirer and the genre is present throughout all his body of work (specially in “Na Pancada do Ganzá”). My research shows how refined the style actually was and how it created a sense of unity, mirroring the millenarian therapeutic effect that poetry can awake on. Cordel sparks interest in new readers/listeners, allowing to be constantly transmitted and embedded in some sort of a perennial flow, perpetuating itself as I prefer to believe. Therefore, one can understand why the “rhapsode” Mário de Andrade highly praised the genre and was spellbound by it.

KEYWORDS:
Brazilian literature; cordel literature; Mário de Andrade; Na Pancada do Ganzá; Silvino Pirauá de Lima; Francisco das Chagas Baptista; Fundos Villa-Lobos

A indefinição de gênero e a comoção mais profunda

A primeira versão de Macunaíma é redigida por Mário de Andrade em Araraquara, na “chacra” de seu tio Pio, entre 16 e 23 de dezembro de 1926, chegando à versão definitiva em 13 de janeiro de 1927. O anúncio de Macunaíma sairá no número 2 da Revista de Antropofagia, em agosto de 1928. Supõe-se que o “próprio Mário se encarregava de tratar da venda dos exemplares. Ao lado do preço, 7$000 (sete mil réis) está: pedidos para a rua Lopes Chaves n.108, isto é, para sua residência” (LOPEZ, 1978LOPEZ, Telê Porto Ancona. Macunaíma: o herói sem nenhum caráter. Edição crítica. Introdução. Rio de Janeiro: Livros Técnicos e Científicos; São Paulo: Secretaria da Cultura, Ciência e Tecnologia, 1978.)2 2 A título de curiosidade vale lembrar que esse procedimento de Mário vendendo o próprio livro em sua residência nos faz lembrar os poetas de cordel, especialmente Leandro Gomes de Barros, considerado o primeiro sem segundo por seus contemporâneos, que escrevia, imprimia, divulgava e vendia os próprios folhetos nos diversos endereços em que residiu no Recife. .

Figura 1
Anúncio na Revista de Antropofagia

Hesitando em intitular Macunaíma ora livro, ora romance folclórico e, finalmente, história, Mário, em carta a Raimundo de Moraes, classifica-se a si mesmo como rapsodo e explicita o processo de composição da obra:

O sr., muito melhor do que eu, sabe o que são os rapsodos de todos os tempos. Sabe que os cantadores nordestinos, que são nossos rapsodos atuais, se servem dos mesmos processos dos cantadores da mais histórica antiguidade, da Índia, do Egito, da Palestina, da Grécia, transportam integral e primariamente tudo o que escutam e leem pros seus poemas, se limitando a escolher entre o lido e o escutado e a dar ritmo ao que escolhem pra que caiba nas cantorias. Um Leandro, um Athayde nordestinos, compram no primeiro sebo uma gramática, uma geografia, ou o jornal do dia, e compõem com isso um desafio de sabença, ou um romance trágico de amor, vivido no Recife. Isso é o Macunaíma e esses sou eu. (ANDRADE, 1976_____. A Raimundo Moraes. In: _____. Táxi e crônicas no Diário Nacional. São Paulo: Duas Cidades, Secretaria de Cultura, Ciência e Tecnologia, 1976. , p. 433-435 - grifos meus).

Entre maio e agosto de 1927, realizaria a primeira de suas “viagens etnográficas”, percorrendo um trecho da Amazônia, em companhia de figuras ilustres da aristocracia paulista. É ainda como turista-aprendiz que visitará o Nordeste no ano seguinte. Seu propósito é um só: conhecer de perto o povo brasileiro e recolher material, não definindo a especificidade, para uma obra futura, na qual estariam reunidos os estudos sobre músicas, danças dramáticas, folclore etc.

Quando parti para o Nordeste em dezembro de 1928, não tinha a mínima intenção de construir uma viagem etnográfica. Pretendia sim recolher cantos populares, e quantos pudesse, porém sem a mais mínima organização. Recolheria o que topasse em meu caminho. (ANDRADE, 1980_____. Na Pancada do Ganzá - Prefácio. In Arte em Revista, Ed. Kairós: São Paulo, II (3), mar. 1980., p. 56).

Um antropólogo moderno avant la lettre, assim poderia ser definida a sua postura. Mário se confessa admirador do folclore e outras manifestações, sentimento que irá perdurar por toda a sua vida sob forma de paixão:

[...] Mas porém com essas críticas, exemplos, ligações, não pretendi fazer obra de etnógrafo, nem mesmo de folclorista, que isso não sou: pretendi foi assuntar, atocaiar com mais garantias a namorada chegando. Se acaso algumas constâncias me interessaram mais, se alguma nova eu terei fixado, foi sempre por essa precisão que tem o amante verdadeiro, de conhecer a quem ama. (ANDRADE, 1980_____. Na Pancada do Ganzá - Prefácio. In Arte em Revista, Ed. Kairós: São Paulo, II (3), mar. 1980., p. 55).

E confessa mais adiante que, nessa colheita desinteressada, nesses cantos tosquíssimos, “sentiu comoções essenciais, e vibro com uma excelência tão profundamente humana, como raro a obra-de-arte erudita pode me dar” (ANDRADE, 1980_____. Na Pancada do Ganzá - Prefácio. In Arte em Revista, Ed. Kairós: São Paulo, II (3), mar. 1980., p. 56).

Segundo Telê Porto, esse projeto de grande porte se afigurará num “importante texto abandonado”, que ficaria apenas no prefácio, intitulado Na Pancada do Ganzá, embora Mário devote a ele todo o seu tempo. Em depoimentos a amigos e em entrevistas a jornais da época comprovamos o empenho do escritor em relação ao livro.

No jornal Diário Carioca, de 5 de agosto de 1934, Mário revelará ao repórter Martins Castello que tem projetos demais e que

[...] no momento larguei toda e qualquer ficção para terminar meu livro Na Pancada do Ganzá, que é um estudo sobre a música do Nordeste. Espero acabar esse livro até fins do ano que vem. Então irei de novo ao Nordeste, para encher algumas lacunas que ficarem no livro e submetê-lo ao controle de intelectuais de lá [...]. (Apud LOPEZ, 1983_____ (Org.). Mário de Andrade: entrevistas e depoimentos. São Paulo: T. A. Queirós, 1983 , p. 46).

Em 1935, Mário voltará a falar do projeto: “No entanto, no momento, não escrevo nada, absolutamente nada de ficção, ocupado que estou em terminar o primeiro volume que é sobre Danças Dramáticas, do meu livro sobre folk-lore musical nordestino ‘Na Pancada do Ganzá’” (apud LOPEZ, 1983_____ (Org.). Mário de Andrade: entrevistas e depoimentos. São Paulo: T. A. Queirós, 1983 , p. 50).

Entrevistado por Jussieu da Cunha Batista, em 1944, que pergunta sobre seus planos de aumentar os quinze volumes das Obras Completas, Mário dirá que tem vários trabalhos novos e

Neste ano, pretendo ver se concluo pelo menos dois, o primeiro volume de Na Pancada do Ganzá, sobre folclore nordestino, e o Sequestro da Dona Ausente, também folclore, estudando as ressonâncias que teve na poesia popular luso-brasileira a ausência de mulher nos portugueses navegadores e nos primeiros tempos coloniais. (Apud LOPEZ, 1983_____ (Org.). Mário de Andrade: entrevistas e depoimentos. São Paulo: T. A. Queirós, 1983 , p. 113).

Mário da Silva Brito nos confirma o empenho de Mário em relação a esse livro ao folhear o fichário de Macunaíma:

Continuo a curiosear o fichário de Mário de Andrade. Estou na seção de folclore. Interrogo o escritor sobre o livro prometido Na Pancada do Ganzá. Não é propriamente o título de um livro - informa o autor de Belazarte. É um nome genérico. Uma espécie assim de indicação de um ciclo folclórico de sua obra. Sob essa denominação caberiam todos os estudos já feitos e ainda por fazer: música de feitiçaria - “catimbós” - danças dramáticas como as “Cheganças de Mouros e Marujos” e outros. (Apud LOPEZ, 1983_____ (Org.). Mário de Andrade: entrevistas e depoimentos. São Paulo: T. A. Queirós, 1983 , p. 94).

O interesse de Mário pela criação popular, no entanto, antecede a 1929, pois, ainda de acordo com Telê Porto, já em Paulicéia desvairada, ele teria ousado incorporar em seus poemas elementos oriundos do folclore, devotando admiração a Sílvio Romero e Mello Moraes.

A antologia de Francisco das Chagas Baptista e os Fundos Villa-Lobos

Uma ponta de decepção, um tom de queixume, é o que se percebe na leitura das palavras finais do prefácio de Coriolano de Medeiros3 3 João Rodrigues Coriolano de Medeiros nasceu no município de Patos, na Paraíba, a 30 de novembro de 1875. Foi sócio fundador do Centro Literário Paraibano, da Associação de Homens de Letras, do Instituto Histórico e Geográfico Paraibano, de cuja primeira diretoria fez parte. Por sua iniciativa e inspiração, foi fundada a Academia Paraibana de Letras, da qual foi o primeiro presidente. à antologia Cantadores e poetas populares, de autoria de Francisco Chagas Baptista, publicada em 1929BAPTISTA, Francisco Chagas. Cantadores e poetas populares. Paraíba: Typographia da Popular Editora, 1929.. O mérito de Chagas Baptista teria sido reunir pela primeira vez farto material poético de cantadores de sua terra (a Serra do Teixeira, na Paraíba, considerada o berço da literatura de cordel), muitos até então desconhecidos, atitude essa que vai merecer a lisonja do prefaciador e também ilustre conterrâneo, preocupado com a migração do material folclórico nordestino. Mas não deixa de se queixar do “esquecimento” de Chagas Baptista em relação às músicas de sua terra: “Quando se publicarão esses motivos [as melodias sertanejas] de que se vão indebitamente se appropriando os maestros das cidades colhendo, elles sós, resultados mais do que satisfactorios? A poesia nacional não deve esquecer a musica nacional” (MEDEIROS, 1929MEDEIROS, Coriolano de. Palavras sinceras. In: BAPTISTA, Francisco Chagas. Cantadores e poetas populares. Paraíba: Typographia da Popular Editora, 1929., s. p. - grifos nossos).

O prefácio data de dezembro de 1928. Embora curto, o texto pontua com bastante clareza um temor: os livros dedicados ao folclore nordestino, em sua maioria, seriam feitos por escritores que “inventam folk-lore também”. O de Chagas Baptista seria exemplar nesse aspecto, pois teria o mérito não só de preservar a forma original dos poemas dos cantadores, fornecendo um “testemunho idoneo [...] de material colhido, cirandado nas proprias fontes” (MEDEIROS, 1929MEDEIROS, Coriolano de. Palavras sinceras. In: BAPTISTA, Francisco Chagas. Cantadores e poetas populares. Paraíba: Typographia da Popular Editora, 1929., p. 9)4 4 Cito ipsis litteris Coriolano de Medeiros (1929, p. 9), para quem a antologia de Chagas Baptista, além da originalidade, prestaria uma “homenagem piedosa e justa aos nossos cantadores, cujo estro tem sido ultimamente, não só explorado à sustancia, como calumniado, adulterado a valer. Até os nomes lhes transformam!”. ,. como também reuni-los como produção cultural específica de uma região bastante rica em nomes de poesia popular.

No entanto, a referência aos “maestros da cidade” é bastante significativa, pois segundo o autor seriam estes os responsáveis pelo esvaziamento da produção popular do ponto de vista local. Os motivos estariam viajando, migrando indevidamente para as cidades... Antes de nos determos nessa acusação de Coriolano, é interessante fazer uma retrospectiva, digamos, histórica.

No livro fundamental da antropóloga Ruth Brito Lêmos Terra (1981TERRA, Ruth Brito Lêmos.A literatura de folhetos nos Fundos Villa-Lobos. São Paulo: Instituto de Estudos Brasileiros/USP, 1981.), A literatura de folhetos nos Fundos Villa-Lobos, ficamos sabendo da existência de uma coleção de textos reunidos há mais de 70 anos, que fazia parte de um projeto maior de Mário de Andrade, visando a sistematizar e publicar a produção popular brasileira. O interessante é a maneira como se originou a Coleção: a partir das sucessivas viagens empreendidas por músicos, compositores etc. ao Norte e Nordeste patrocinadas pelo mecenas Arnaldo Guinle, com vistas a reunir numa antologia todo o folclore nacional.

Pixinguinha, Donga e João Pernambuco participaram dessa empreitada, e caberia a Villa-Lobos reunir o material coletado. A autora nos relata os percalços acontecidos no meio do caminho, como os desentendimentos dos “pesquisadores” com o mecenas do projeto. Apesar disso foram recolhidos 633 textos, alguns copiados mais de uma vez, num total de 527 obras: romances, trovas, letras de música urbana, poemas popularescos, como os de Catulo da Paixão Cearense, e poemas da literatura erudita, como os de Castro Alves e Tobias Barreto. Os textos, no entanto, salvo exceções, não contêm indicação de autoria, local e data de publicação.

Ruth Terra (1981TERRA, Ruth Brito Lêmos.A literatura de folhetos nos Fundos Villa-Lobos. São Paulo: Instituto de Estudos Brasileiros/USP, 1981.) nos informa que a maioria desses textos - cerca de 300 obras - refere-se à literatura popular, mais especificamente a folhetos de cordel. As pastas contendo esse material foram presenteadas por Heitor Villa-Lobos a Mário de Andrade antes de 1929. Nessa mesma época Mário já tinha publicado Macunaíma, realizado duas viagens à Amazônia como “turista aprendiz” e ao Nordeste coletando dados para o grande projeto intitulado Na Pancada do Ganzá. Nos folhetos de cordel inclusos nessa lista há muitos comentados por Mário, o que indica sua familiaridade com o conteúdo e também admiração: chega a tecer comentários inusitados sobre alguns deles e nos fornecerá pistas quase um século depois para a originalidade das composições.

É curioso observar uma coincidência intertextual entre o prefácio de Coriolano ao livro de Chagas Baptista mencionado anteriormente e as palavras de Mário, quase uma confissão, nessa introdução ao livro inacabado:

Do fundo das imperfeições de tudo quanto o povo faz, vem uma força, uma necessidade que, em arte, equivale ao que é a fé em religião [...]. É mesmo uma pena, os nossos compositores não viajarem o Brasil. Vão na Europa, enlambusam-se de pretensões e enganos do outro mundo, pra amargarem depois toda a vida numa volta injustificável. Antes fizessem o que eu fiz, conhecessem o que amei, catando por terras áridas, por terras pobres [...] essa única espécie de realidade que persiste [...] e que é a própria razão primeira da Arte: a alma coletiva do povo. [...] Porque não basta saber compor. Carece ter o que compor. (ANDRADE, 1980_____. Na Pancada do Ganzá - Prefácio. In Arte em Revista, Ed. Kairós: São Paulo, II (3), mar. 1980., p. 56).

No Prefácio observamos o trato meticuloso de Mário quanto à forma e estrutura do livro e a designação dada a cada parte: a língua e a poesia, a música, as danças dramáticas, as melodias do boi etc. Esse primeiro esboço, no entanto, será mexido pelo autor, e o Prefácio tomará a forma escrita definitiva em 1932, embora a forma original remonte a 1929 com o início da coleta da vasta bibliografia de apoio.

Insistamos, portanto, nessa data, pois ela coincide exatamente com a publicação do livro de Chagas Baptista e pelo fato de que, já nessa época, encontrava-se Mário literalmente apaixonado pela criação popular. Como assinala Telê Porto, é provável que o Prefácio contenha duas leituras: uma que mostra o desejo do escritor em realizar o amplo projeto, e outra que nos revela sua consciência política, através da discussão do “estaduanismo” expressa pelas considerações sobre a Revolução Constitucionalista de 1932, o que vai acarretar, provavelmente, o desinteresse pelo livro.

A discussão sobre o estaduanismo parece ser o item do Prefácio que contém subliminarmente a resposta de Mário a Coriolano, pois estabelece ao acaso uma linha dialógica de argumentos em que o autor se esquiva da acusação contida no texto do paraibano, ressaltando a eterna “rivalidade” do resto do Brasil em relação a São Paulo:

O Rio Grande do Norte tem birra da Paraíba, a Paraíba tem muita birra de Pernambuco, Pernambuco tem birra da Paraíba [...]. É que todos tem birrinha uns dos outros, todos se ajuntam pra ter birra de São Paulo. Em Minas, em 1917 e em 1924, no Pará, no Amazonas, Mato Grosso, no Rio de Janeiro, na Bahia, Alagoas, Pernambuco, Paraíba, Rio Grande do Norte, de sergipanos e piauienses também a bordo, eu surpreendia a vaga amargura por S. Paulo, concretizada então no tipo ideal do paulista, riquíssimo, secarrão, orgulhosíssimo e desprezador, que a imaginação sofrida da burguesia brasileira criara, pra poder detestar ou apenas maldar, com mais razão. (ANDRADE, 1980_____. Na Pancada do Ganzá - Prefácio. In Arte em Revista, Ed. Kairós: São Paulo, II (3), mar. 1980., p. 56).

As referências às viagens empreendidas são sintomáticas em relação à sua própria formação intelectual e à sua concepção do país: em 1917 realiza a primeira a Minas, onde encontra o barroco mineiro e visita em Mariana o poeta Alphonsus de Guimarães. Voltaria em 1919. Em abril de 1924, durante a Semana Santa, empreende a viagem a Ouro Preto e cidades históricas acompanhado do grupo de intelectuais e poetas do Modernismo, a que ele próprio intitulou como “da descoberta do Brasil”. E, por último, a alusão às viagens “etnográficas” realizadas ao Norte e Nordeste entre 1927 e 1928, embora planejadas pelo escritor desde 1926, como sabemos pela correspondência endereçada a Manuel Bandeira.

Os “maestros da cidade” a que se referia Coriolano seriam o próprio Villa-Lobos e seus auxiliares diretos, músicos e compositores dedicados a recolher os elementos nacionais, fossem eles versos, modinhas, poemas. Indiretamente, Mário se incluirá no rol.

A queixa de Coriolano é praticamente elucidada por Mário: onde o primeiro via apropriação indébita do folclore regional, o outro se defendia falando de uma “colheita” absolutamente imparcial, sem ligação com a tarefa de etnógrafo ou folclorista, apenas exercício de uma paixão. Ao lado desse nítido “bairrismo” de Coriolano, sobrepõe-se a preocupação de Mário de fixar a “entidade nacional”, colaborando com o povo enquanto este se revelava, isto é, à medida que o escritor enxergava na produção popular os traços da cultura.

Preocupação essa já prenunciada no comovente “Dois poemas acreanos”, em Clã do jabuti (1925-1927): numa leitura diametral à de Coriolano, a imagem do solitário irmão lá no meio da floresta, situado geograficamente tão distante de São Paulo, será evocada comovidamente pela memória afetivo-intelectual do poeta. Ao contrário, Mário quer sair de si mesmo e deixar o povo revelar naturalmente suas expressões legítimas, cabendo a ele observar e descrever:

[...] Como será a escureza [...] Desse mato-virgem do Acre? Como serão os aromas [...] Desse chão que é também meu? [...] Me sinto bem solitário No mutirão de sabença Da minha casa, amolado Por tantos livros geniais, “Sagrados” como se diz... E não sinto os meus patrícios! [...] E não sinto os seringueiros que amo de amor infeliz! [...]. (ANDRADE, 1979_____. Dois poemas acreanos. In: _____. Clan do jaboti. Poesias completas. 5a. ed. São Paulo: Martins, 1979, p. 150-152., p. 150-152).

Em Coriolano e Mário, aqui considerados, pela leitura intertextual, interlocutores virtuais, detectamos dois movimentos opostos. No primeiro, o temor pela “fuga” dos motivos do folclore nordestino adquire conotação obsessiva, pois, ao mesmo tempo que demonstra zelo, aprisiona o objeto numa moldura local, asfixiante e retrógrada. Em Mário, ao contrário, estabelece-se um compromisso, uma espécie de contrato de trabalho com a causa popular, absolutamente desapegado de qualquer intenção a não ser a de reunir essa vasta manifestação num projeto ambicioso, infelizmente não concluído, que o envolverá literalmente anos a fio, obrigando-o a adiar outros tantos textos e ficções que compunham seu universo habitual, sua expressão diante do mundo.

Essa “dívida” do escritor com o popular, ou melhor, do rapsodo, como fez questão de mencionar em suas inúmeras declarações sobre o gênero de Macunaíma, representa para mim a mais alta lição de civismo e desprendimento intelectual: o que sobressai imediatamente é sua preocupação com a diferença brasileira, ou, como disse brilhantemente dona Gilda de Mello e Souza, Mário de Andrade via se projetar em Macunaíma “a essência de sua meditação sobre o Brasil, os índices do esforço feito por ele para entender seu povo e o seu país” (MELLO E SOUZA, 1979MELLO E SOUZA, Gilda. O tupi e o alaúde: uma interpretação de Macunaíma. São Paulo: Duas Cidades, 1979., p. 27).

Voltamos ao Prefácio de Na Pancada do Ganzá como um penitente chega ao local da peregrinação para reafirmar a crença em São Mário de Andrade. No finalzinho de seu “importante texto abandonado”, Mário se identificará literalmente ao universo do cordel, declarará seu amor e admiração, mencionando, não à toa, Silvino Pirauá de Lima5 5 Nascido em Patos (Paraíba) em 1848, era considerado exímio violeiro e grande repentista, atribuindo-se a ele a criação do romance em verso. Discípulo de Francisco Romano, percorreu vários estados com ele e recriou o célebre desafio de seu mestre com o cego Inácio da Catingueira, ocorrido em sua cidade natal e que teria durado oito dias. Morreu cantando na cidade de Bezerros (agreste de Pernambuco) em 1913. , denominado por seus pares o “enciclopédico”, cujos versos constam na antologia de Francisco das Chagas Baptista6 6 O poema de Silvino Pirauá tem o mesmo título “E tudo vem a ser nada”, como no refrão. , que Mário provavelmente já teria consultado:

Enfim paro aqui e principio mostrando os tesouros que ajuntei. Não tenho a mínima ilusão sobre o meu pouco trabalho e prazer formidável que tive coligindo essas coisas... [...] Só me resta uma certa tristurinha indecisa de não ser profissional no assunto e não ter valorizado com mais base os tesouros do meu povo. Mas aí ficam pelo menos os tesouros pra que melhor os possa engrandecer. “Tudo mais vem a ser nada”, como no verso do cantador. (ANDRADE, 1980_____. Na Pancada do Ganzá - Prefácio. In Arte em Revista, Ed. Kairós: São Paulo, II (3), mar. 1980., p. 58).

A alusão ao verso “e tudo vem a ser nada” serve para colocar Mário de Andrade nesse círculo virtuoso da poesia popular. Por outro lado, o refrão nas décimas de Pirauá reafirma em última análise a Poesia tout court como a única atividade que vale a pena:

Honra, grandeza, brazões Enthusiasmos, bondades São completas vaidades, São perfeitas illusões, Argumentos, discussões; Algazarra, palavrada, Sinagoga, caçoada, Murmúrios, tricas, censura, Muito tem a criatura, E tudo vem a ser nada. [...] Bailes, theatros e festins, Comédia, drama, assembleia, Club, lyceu, epopeia; Todos aguardam seus fins, Flores, relvas e jardins, Festas com grande zuada, Outeiro e Campinada Frondam, copam e florescem, Brilham, luzem, resplandecem; E tudo vem a ser nada. (Apud BAPTISTA, 1929, p. 109-113 - foi mantida a grafia original).

A mesma conclusão a que Mário chega na escuridão solitária da mata-virgem urbana da Paulicéia Desvairada e que o leva a se dedicar desde sempre à causa popular, protegendo para a posteridade um sem-número de textos, causos, músicas, objetos - bens abstratos, única riqueza perene. Sem Mário de Andrade e sua missão de compreender e amar o Brasil, sua crença na força do povo, não seria possível falar nesse círculo virtuoso da poesia, patrimônio imaterial popular preservado por ele e tantos outros e que chegou até nós como uma das mais altas expressões da cultura.

Tudo o mais vem a ser nada.

REFERÊNCIAS

  • ANDRADE, Mário. Conversa com Mário de Andrade. Diário Carioca, n. 1.848, 2ª secção, 5 de agosto de 1934. Entrevista concedida a Martins Castello. Apud LOPEZ, Telê Porto Ancona. Mário de Andrade: entrevistas e depoimentos. São Paulo: T. A. Queiroz, 1983.
  • _____. A Raimundo Moraes. In: _____. Táxi e crônicas no Diário Nacional. São Paulo: Duas Cidades, Secretaria de Cultura, Ciência e Tecnologia, 1976.
  • _____. As heranças de uma geração. Entrevista a O Jornal, a. 17, Rio de Janeiro, 5 de maio de 1935. Apud LOPEZ, Telê Porto Ancona. Mário de Andrade: entrevistas e depoimentos. São Paulo: T. A. Queiroz, 1983, p. 50.
  • _____. Dois poemas acreanos. In: _____. Clan do jaboti. Poesias completas. 5a. ed. São Paulo: Martins, 1979, p. 150-152.
  • _____. Na Pancada do Ganzá - Prefácio. In Arte em Revista, Ed. Kairós: São Paulo, II (3), mar. 1980.
  • BAPTISTA, Francisco Chagas. Cantadores e poetas populares. Paraíba: Typographia da Popular Editora, 1929.
  • BRITO, Mário da Silva. Uma excursão pelo fichário de Macunaíma: reedições, novas obras e planos de futuros trabalhos de Mário de Andrade - o mais organizado intelectual do Brasil. “Pelos domínios do Folclore”. Diário de S. Paulo, São Paulo, 2 dez. 1943. Apud LOPEZ, Telê Porto Ancona. Mário de Andrade: entrevistas e depoimentos. São Paulo: T. A. Queiroz, 1983, p. 43.
  • LOPEZ, Telê Porto Ancona. Macunaíma: o herói sem nenhum caráter. Edição crítica. Introdução. Rio de Janeiro: Livros Técnicos e Científicos; São Paulo: Secretaria da Cultura, Ciência e Tecnologia, 1978.
  • _____ (Org.). Mário de Andrade: entrevistas e depoimentos. São Paulo: T. A. Queirós, 1983
  • MEDEIROS, Coriolano de. Palavras sinceras. In: BAPTISTA, Francisco Chagas. Cantadores e poetas populares. Paraíba: Typographia da Popular Editora, 1929.
  • MELLO E SOUZA, Gilda. O tupi e o alaúde: uma interpretação de Macunaíma. São Paulo: Duas Cidades, 1979.
  • TERRA, Ruth Brito Lêmos.A literatura de folhetos nos Fundos Villa-Lobos São Paulo: Instituto de Estudos Brasileiros/USP, 1981.
  • 2
    A título de curiosidade vale lembrar que esse procedimento de Mário vendendo o próprio livro em sua residência nos faz lembrar os poetas de cordel, especialmente Leandro Gomes de Barros, considerado o primeiro sem segundo por seus contemporâneos, que escrevia, imprimia, divulgava e vendia os próprios folhetos nos diversos endereços em que residiu no Recife.
  • 3
    João Rodrigues Coriolano de Medeiros nasceu no município de Patos, na Paraíba, a 30 de novembro de 1875. Foi sócio fundador do Centro Literário Paraibano, da Associação de Homens de Letras, do Instituto Histórico e Geográfico Paraibano, de cuja primeira diretoria fez parte. Por sua iniciativa e inspiração, foi fundada a Academia Paraibana de Letras, da qual foi o primeiro presidente.
  • 4
    Cito ipsis litteris Coriolano de Medeiros (1929, p. 9), para quem a antologia de Chagas Baptista, além da originalidade, prestaria uma “homenagem piedosa e justa aos nossos cantadores, cujo estro tem sido ultimamente, não só explorado à sustancia, como calumniado, adulterado a valer. Até os nomes lhes transformam!”.
  • 5
    Nascido em Patos (Paraíba) em 1848, era considerado exímio violeiro e grande repentista, atribuindo-se a ele a criação do romance em verso. Discípulo de Francisco Romano, percorreu vários estados com ele e recriou o célebre desafio de seu mestre com o cego Inácio da Catingueira, ocorrido em sua cidade natal e que teria durado oito dias. Morreu cantando na cidade de Bezerros (agreste de Pernambuco) em 1913.
  • 6
    O poema de Silvino Pirauá tem o mesmo título “E tudo vem a ser nada”, como no refrão.
  • 7
    Para Helio Eichbauer

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    10 Jun 2019
  • Data do Fascículo
    Jan-Apr 2019

Histórico

  • Recebido
    17 Jan 2019
  • Aceito
    14 Mar 2019
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