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Medir o tempo e outros poemas

Measuring time and other poems

RESUMO

A seção Criação tem por objetivo publicar textos e materiais inéditos de escritores e/ou artistas, fotógrafos, desenhistas, além de documentos inéditos encontrados no Arquivo do IEB-USP. “Medir o tempo e outros poemas” reúne cinco poemas de Heitor Ferraz Mello. Mello é poeta, jornalista e professor na Faculdade Cásper Líbero, em São Paulo. Trabalhou durante muitos anos como crítico de literatura, tendo colaborado em diversos jornais e revistas brasileiras. Publicou, entre outros livros de poesia, Coisas imediatas (1996-2004) (MELLO, 2004MELLO, Heitor Ferraz. Coisas Imediatas (1996-2004). Rio de Janeiro: 7 Letras, 2004.), Um a menos (MELLO, 2009MELLO, Heitor Ferraz. Um a menos. Rio de Janeiro: 7 Letras, 2009.) e Meu semelhante (MELLO, 2016MELLO, Heitor Ferraz. Meu semelhante. Rio de Janeiro: 7 Letras, 2016.).

PALAVRAS-CHAVE •
Heitor Ferraz Mello; poesia; literatura brasileira contemporânea

ABSTRACT

The Creation section has the objective of publish unpublished texts and materials by writers and/or artists, photographers, designers, as well as unpublished documents found in the USP IEB Archive. “Measuring time and other poems” gathers five poems written by Heitor Ferraz Mello. Mello is a poet, journalist and professor at Faculdade Cásper Líbero, São Paulo. He worked for many years as a literary critic, writing for several Brazilian newspapers and magazines. Mello published, among other poetry books, Coisas imediatas (1996-2004) (MELLO, 2004MELLO, Heitor Ferraz. Coisas Imediatas (1996-2004). Rio de Janeiro: 7 Letras, 2004.), Um a menos (MELLO, 2009MELLO, Heitor Ferraz. Um a menos. Rio de Janeiro: 7 Letras, 2009.) e Meu semelhante (MELLO, 2016MELLO, Heitor Ferraz. Meu semelhante. Rio de Janeiro: 7 Letras, 2016.).

KEYWORDS
Heitor Ferraz Mello; poetry; contemporary Brazilian literature

Coworking

Devo começar este relato

Por aqui

Na mesa de uma padaria

O Tejo revolto ao fundo

Com as caravelas do descobrimento

Um começo épico

Para um pão na chapa

E um café para rebater o sono

Um astrolábio marrom

Pintado num escudo de madeira

E colocado acima de minha cabeça

Me desorienta

Logo pela manhã

São apenas memórias

Relâmpagos de imagens

Num céu frio e cinza

Sentado hoje na cozinha de casa

Nesse outro revés da vida

Não se trata de um romance

Apenas notas esparsas

Desse tumulto maior

Que é estar parado

Sem que nada se movimente

O escorrer contínuo do tempo

Atolando todos os sentidos

Como uma veia enfartada

Um painel recobre toda a parede do fundo da padaria

O trasunto de um destino individual

A borra no fundo de uma xícara de café

No fundo no fundo

De um corpo imóvel

Atado a um conflito que não cabe na presença física

A padaria ficava longe de casa

Em um bairro distante

Onde minha filha frequentava uma escolinha

Para não ter que voltar para casa

Uma hora de trânsito

Preferia passar as manhãs por lá

Deixava-a na escolinha

E ia para a padaria

Levando minha mochila de tralhas e livros

Um escritório improvisado

Um coworking barato

O preço do café do pão na chapa e um maço de cigarros

Desde que começou a pandemia

Nunca mais voltei a esse lugar

Tenho no celular

Várias fotos do painel do fundo

Com as caravelas e as águas agitadas do Tejo

Com o Mosteiro dos Jerônimos

E alguns versos de Camões

Era a minha paisagem matinal

Meu corpo refletido naquelas águas

Mareado

Uma aventura trágico-marítima

Uma aventura de descoberta e destruição

Relações de acidentes íntimos

E que não interessam tanto ao relato

E que interessam tanto ao relato

Apenas íntimo

Na enumeração dispersa

Dos desastres vividos e sem reação

Deste lugar evasivo

De mar e fumaça de café

O corpo capitula

Sempre há um tipo de luto

Quando se volta a um lugar inóspito

Como as padarias desta cidade

(Quase todas iguais com pães iguais e cafés iguais e pessoas iguais)

Mesmo que tenha um toque épico e português

Para uma vida prosaica e sem grandes lances

Mas não era isso que estava pensando

Quando retornei ao painel da padaria

Ao astrolábio de minha desorientação

Se retorno, retorno como quem encontra um ponto de onde naufragar

E despencar nas águas turvas do presente

Aquele painel apenas testemunha a fragilidade da imaginação

Por mares intranquilos

Que saem da parede e desaguam na mesinha de madeira

Posso sentir o peso da imobilidade

Da vida que participo e me entrego

Na qual me afogo sem romper as barreiras que me prendem

Se retorno, retorno a um ponto

Que gostaria de ser o da mudança

O momento da dobradiça

Mas que range, emperra

Talvez este painel seja o momento antes do começo da pandemia

Quando tudo ainda se acumulava

Para depois arrebentar

Nas mãos e na arcada dentária

Para arrebentar no coração extinto e exausto.

Restauração

Andamos ali

Entre aquelas ruínas e puxadinhos

Casas afundadas

Abaixo do nível da rua

A gramática daquelas casas

Com pouco espaço

Vírgulas, entre uma frase e outra

Para comportar a família numerosa

Um quadrado para todos os suores

Todos os prazeres e dores

Convém manter as paredes que rebentaram para fora

Do desenho original?

Parece uma língua viva - estropiada e viva

Que nasce

Da necessidade única

De expressar a vida

A existência a contrapelo.

Medir o tempo

Gosto quando ele sai pulando pelas estrelas

Reconstruindo o tempo

Largando o menino no centro do chão

Tão pequeno

Do tamanho de um relógio de pulso

Na palma da mão

Vejo suas pernas enormes

Quase de um gigante desengonçado

Como um país esfarrapado

O desenho de um país

Como uma folha mal arrancada do caderno

O tempo pequenino

Crônica da vida desfeita e refeita

Quantas vezes morremos?

As vozes que se cruzam

Numa armadilha que não consigo acompanhar

É um épico em tamanho menor

Uma noite que abocanha tudo

Esse ritmo que absorve

Para nos entreter com enigmas

A dor se dissolve indissolúvel

Como borra de café no fundo da xícara

Como as patas fletidas e tesas

Dos cavalos quando morrem

Um último gesto

No fundo do cinzeiro.

Tempo de colher

Certa vez

meu pai chegou em casa

com um garoto espancado

Lembro-me do garoto espancado

Não me lembro

se havia ou não hematomas

mas o garoto

tinha sido espancado

pelo padrasto

*

Não sei por que

confundo este dia

com o dia em que meu pai

chegou em casa

com uma cabra

dentro de uma caixa

o olho vermelho da cabra

o pelo áspero da cabra

dentro de uma caixa

*

Naquela época

eu não sabia de garotos

espancados

Que os militares também espancavam

garotos até quase a morte

ou até matá-los

para depois

esquartejá-los

e espalhá-los pela mata

como farelos de pão

para que jamais fossem encontrados

e caso fossem encontrados

jamais fossem identificados

*

Não sei se aquele garoto

espancado foi espancado por algum militar

Meu pai nunca me contou

e hoje já não contaria

Diria que tudo não

passou de minha imaginação de garoto

Que um corretivo

não faz mal a ninguém

*

Pode ser que tudo

não tenha passado de um sonho

do garoto espancado

e o olho vermelho de uma cabra.

Uma história de classe

A única memória

Construída foi esta:

A da destruição

A identidade corrosiva

De nomes, documentos

Que hoje chegam digitalizados

Sem nenhum rastro de vida

A sífilis comeu as vísceras silenciosas das famílias

As famílias se devoraram

No mais íntimo ritual de morte

E assim se perpetuaram

A violência abafada

Muda

Corre neste sangue ralo

Sem esteio

Somos filhos desse tecido

Dessas mãos crispadas

Sobre as pernas duras

De quem já não anda

Mordo por dentro a arcada dentária

De todos os mortos triturados

E programaticamente

Esquecidos.

REFERÊNCIAS

  • MELLO, Heitor Ferraz. O rito das calçadas: aspectos da poesia de Francisco Alvim 283 f. Dissertação (Mestrado em Letras - Literatura Brasileira). Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, 2001.
  • MELLO, Heitor Ferraz. Coisas Imediatas (1996-2004) Rio de Janeiro: 7 Letras, 2004.
  • MELLO, Heitor Ferraz. Um a menos Rio de Janeiro: 7 Letras, 2009.
  • MELLO, Heitor Ferraz. Meu semelhante Rio de Janeiro: 7 Letras, 2016.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    13 Maio 2022
  • Data do Fascículo
    Abr 2022

Histórico

  • Recebido
    01 Fev 2022
  • Aceito
    08 Mar 2022
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