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O musicar como trilha para a etnomusicologia

Musicking as a path for ethnomusicology

Nos últimos anos, um grupo amplo de pesquisadoras5 5 Cientes dos imbróglios políticos da linguagem e da posicionalidade do saber, optamos pela utilização do feminino universal como deslocamento de uma expectativa de linguagem que, como tão bem discutiu Haraway (1995[1987]), se pretende, ao mesmo tempo, masculina e desencarnada. tem buscado novas trilhas para a produção etnomusicológica. O campo de estudos que toma músicas e sons como sua pedra de toque passou por diversas transformações, especialmente no cruzamento com saberes oriundos de outros campos disciplinares, sejam eles mais relativos ao mundo artístico, sejam relacionados às diversas áreas das ciências humanas e sociais. Uma significativa mudança foi a passagem de uma perspectiva mais centrada na música enquanto produto, e em seus aspectos puramente formais, para a música como prática e processo.

Em diálogo com as contribuições clássicas da etnomusicologia, apostamos que a noção de “musicar” - tradução adotada para o termo musicking, cunhado pelo etnomusicólogo e compositor Christopher Small (1927-2011) - propõe um horizonte analítico capaz de reorganizar focos e atenções nas práticas de análise, enriquecendo a maneira como são produzidas, pensadas e analisadas as práticas musicais contemporâneas.

Nesse ímpeto, propomos o presente dossiê da Revista do Instituto de Estudos Brasileiros como contribuição a esse rico debate. Nesse sentido, nosso empreendimento se filia a um projeto coletivo que tem procurado ampliar o escopo de investigação sobre práticas musicais, de maneira a incluir distintos modos de engajamento com a música. O título do dossiê - “Eu musico, tu musicas, nós musicamos” - parodia o título do famoso livro do autor neozelandês, Musicking (SMALL, 1998SMALL, Christopher. Musicking: the meanings of performance and listening. Middletown, Ct: Wesleyan University Press, 1998.). A tradução literal do termo para o português deixa escapar o fato de a expressão corresponder, na língua inglesa, a um provocativo neologismo. Ao optar por musicking (que aparentemente configura um erro gramatical) em vez do estabelecido infinitivo to music, Small pretende chamar atenção para sua proposta de estudar música como processo e não como objeto. Segundo o autor:

Musicar é tomar parte, em qualquer capacidade, de uma performance musical, seja se apresentando ou ouvindo, ensaiando ou praticando, oferecendo material para performance (o que também se chama composição), ou dançando. Podemos por vezes até estender o significado do musicar às atividades das pessoas que verificam os ingressos na porta, ou as pessoas que movem o piano e bateria, ou os roadies que deixam os instrumentos preparados e fazem as checagens de som, ou os faxineiros que limpam tudo depois que todos foram embora. Eles também estão contribuindo para a natureza dos eventos em uma performance musical. (SMALL, 1998SMALL, Christopher. Musicking: the meanings of performance and listening. Middletown, Ct: Wesleyan University Press, 1998., p. 9)6 6 No original: “To music is to take part, in any capacity, in a musical performance, whether by performing, by listening, by rehearsing or practicing, by providing material for performance (what is called composing), or by dancing. We might at times even extend its meaning to what the person is doing who takes the tickets at the door or the hefty men who shift the piano and the drums or the roadies who set up the instruments and carry out the sound checks or the cleaners who clean up after everyone else has gone. They, too, are all contributing to the nature of the event that is a musical performance”. A tradução de trechos de obras é de nossa responsabilidade. .

A abordagem de Small tem merecido visibilidade crescente entre musicólogos, etnomusicólogos, antropólogos da música, performers e educadores especializados em música, pois se refere aos modos pelos quais as pessoas interagem com a música, independentemente de qual seja essa relação. Exemplo vigoroso das possibilidades desses diálogos culminou na formulação, com financiamento da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp), do Projeto Temático “O musicar local: novas trilhas para a etnomusicologia”, que conta atualmente com mais de 40 pesquisadoras7 7 O Projeto Temático Fapesp (Processo: 16/05318-7) reúne pesquisadores de diversas instituições, especialmente da Universidade de São Paulo (USP) e Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), em torno da abordagem do musicar local. O projeto é coordenado pela etnomusicóloga profa. dra. Suzel Ana Reily, do Departamento de Música da Unicamp. . Inspirado na proposição do etnomusicólogo neozelandês, o projeto inquire sobre a relação entre música e localidade a partir das práticas das pessoas envolvidas nos musicares, investigando como o musicar constrói a localidade e como ele, por sua vez, é construído por ela. Assim, ao dar foco à localidade da atividade musical, esse projeto temático chama atenção para o papel da música na articulação de contextos, independentemente da origem do estilo em questão. Isso porque localidades são contextos dinâmicos; são pontos de encontros contínuos entre pessoas, ideias, práticas, tecnologias, objetos que convergem no local ao longo do tempo. Entende-se, assim, que a especificidade da localidade deriva de suas relações com outras localidades, mais do que de seu isolamento, como nos mostra também Finnegan (1989)FINNEGAN, R. The Hidden Musicians: Music-making in an English town. Cambridge: Cambridge University Press, 1989. em seu estudo sobre práticas musicais em Milton Keynes. Articulando discussões sobre localidade, comunidade e diferentes modos de engajamento com música, tal abordagem tem favorecido a desconstrução de essencializações que tradicionalmente conectam estilos musicais específicos a localidades definidas.

Essa mesma abordagem multifacetada encontra-se nos artigos do compêndio The Routledge Companion to the study of local musicking (Compêndio Routledge para o estudo do musicar local), que discutem como o musicar constrói, interculturalmente, localidades, e como localidades são construídas por musicares. Ou seja: como as pessoas se engajam com ideias de comunidade e lugar através da música? As editoras desse livro convidaram autores que discutem as conexões entre música e local, enfatizando a forma como práticas musicais e discursos sobre música se relacionam com as experiências cotidianas das pessoas e com o seu entendimento do ambiente local, suas conexões e compromissos com essa localidade e com as pessoas que o habitam. Ao abordar o musicar a partir da perspectiva de onde ela acontece, as contribuições que compõem essa coleção se engajam nos debates sobre o processo do musicar, construção de identidades, construção de comunidades e redes, competições e rivalidades, lugar e construção do espaço, e dinâmicas locais/globais.

Cabe mencionar ainda, como parte desse projeto coletivo que visa desenvolver um campo de pesquisa sobre musicares locais, o IX Encontro Nacional da Associação Brasileira de Etnomusicologia e o XII Encontro de Educação Musical da Unicamp. Realizados conjuntamente em maio de 2019 na cidade de Campinas, esses eventos, já tradicionais no campo de pesquisa e prática musical brasileira, tiveram as edições recentes dedicadas ao tema “Musicar local”, reunindo mais de 250 participantes, em 41 sessões de trabalho.

O presente Dossiê, então, segue pelas trilhas abertas pelo projeto temático e pelo compêndio, e procura explorar a diversidade de trabalhos que têm sido gerados nesse crescente campo de pesquisa. Entendemos que, mais do que um recorte temático ou uma categoria descritiva, a noção de “musicar local” configura-se como abordagem, uma ferramenta que pode ser utilizada para investigar distintas realidades musicais. De fato, a variedade dos casos empíricos explorados pelos pesquisadoras que têm lançado mão dessa categoria analítica demonstra que a noção tem a capacidade de extrapolar realidades e quadros empíricos particulares. Chama também a atenção a presença de maneiras muito diversas de fazer pesquisa com musicares locais. Pesquisas em que o recurso ao audiovisual é intrínseco à produção da investigação, outras de caráter histórico e em arquivos, experiências engajadas e colaborativas variadas, diversas maneiras de realizar etnografias multissituadas e também cartografias sonoras, dentre outras.

Ainda que abrangente em seu escopo, esse dossiê não explora especificamente importantes discussões que têm sido enfatizadas em pesquisas recentes tanto no Projeto Temático quanto nos encontros aludidos. Dentre as diversas formas de fazer pesquisa sobre os musicares locais, gostaríamos de enfatizar a contribuição crescente de investigações em que o uso do audiovisual é central na constituição da pesquisa. Se o registro de imagens e sons é uma forma de coleta de informações bastante utilizada na etnomusicologia desde pelo menos os anos 19608 8 Ver, por exemplo, os trabalhos de Dauer (1971) e Kubik (1970). , recentemente temos produtivas interfaces entre etnomusicologia e antropologia visual na produção de filmes etnográficos sobre musicares diversos. O trabalho que vem sendo desenvolvido junto ao Laboratório de Imagem e Som em Antropologia (LISA/USP)9 9 O Laboratório de Imagem e Som em Antropologia, ligado ao Departamento de Antropologia da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo, foi inaugurado em outubro de 1991. Desde então vem atuando como um centro básico de pesquisa e formação de alunos no campo da antropologia visual e da etnomusicologia, sendo atualmente coordenado pela profa. dra. Sylvia Caiuby Novaes. Os filmes produzidos no LISA estão disponíveis no canal do Laboratório no Vimeo (https://vimeo.com/lisausp). , que integra o Projeto Temático, fornece bons exemplos de quão profícuo pode ser o estudo de fazeres musicais diversos através do emprego do audiovisual e da produção de filmes etnográficos10 10 Exemplos desse tipo de pesquisa, no Projeto Temático “Musicar local”, são as investigações levadas a cabo por Alice Villela sobre a relação entre música e audiovisual a partir de uma série documental, por Rose Satiko Gitirana Hikiji e Jasper Chalcraft sobre música e imigração, e por Mihai Leaha sobre a cena musical DIY em São Paulo. .

Por outro lado, também é digna de nota a crescente produção em diversas áreas do conhecimento sobre musicares que, ao se debruçar sobre grupos marcados por questões relativas a gênero e sexualidade, promovem um diálogo e discussão com a recente literatura da etnomusicologia LGBTQ/queer, ainda incipiente no Brasil11 11 Nesse sentido, apontamos a pesquisa de Vitor Grunvald, desenvolvida junto ao Temático, sobre o cenário musical brasileiro contemporâneo, que desafia questões de gênero e sexualidade com a música. . Essas reflexões fazem parte de um esforço mais amplo de pensar as diversas relações entre arte e política no campo musical12 12 Tanto a pesquisa de Gibran Braga, sobre cena underground de música eletrônica em São Paulo e Berlim, quanto a pesquisa de Lorena A. Muniagurria, sobre a relação entre o musicar do carimbó paraense e as políticas de patrimônio imaterial, são exemplos dessas diversas articulações. .

Para divulgar a chamada para este dossiê, nossa ementa evocava o Compêndio da Routledge, bem como o Projeto Temático da Fapesp, já mencionados. Assim, adiantávamos que nosso intuito era motivar a reflexão sobre as formas de fazer, estudar, praticar, ensinar música, buscando apresentar um panorama que viesse a exercitar tanto o pensamento crítico quanto o diálogo entre diversas áreas do conhecimento. Alguns dos estudiosos do Projeto Temático Fapesp comparecem neste dossiê, comprovando que a representatividade do Brasil no panorama internacional do “Musicar local” é elevada.

Em “Itinerários de um mundo musical: a música de câmara brasileira nos concertos da Sonata (Portugal)”, Guilhermina Lopes escreve sobre a formação de uma sociedade de concertos de Lisboa (Portugal), pelo compositor Fernando Lopes-Graça (1906-1994), unindo a abordagem de C. Small à de Howard Becker (1982)BECKER, Howard. Art worlds. Berkeley: Univ. of California, 1982., conhecida como “mundo musical”. Em análise que reúne e contrapõe a produção musical do Brasil e de Portugal do final da Segunda Guerra Mundial, a autora estuda a circulação de repertórios, as relações profissionais e de amizade entre artistas músicos e compositores, e a mediação de Lopes-Graça, compositor e pianista, fundador da referida associação de concertos. Logo, a autora não apenas estuda a divulgação da música portuguesa, ela historia e analisa a dinâmica interna dessas associações criadas para a realização de concertos, demonstrando, entre outros, que, sob certas condições, elas competem entre si, sobrepujando as atividades umas das outras, caso da Fundação Calouste Gulbenkian, inaugurada em 1969. Assim, além de revelar qual o repertório brasileiro executado nas salas de concerto portuguesas, as redes de sociabilidade afloram porque a musicóloga percorre bibliografia extensa com a finalidade de demonstrar que ação e processo se combinam nos “musicares” de Fernando Lopes-Graça.

Também sobre sociabilidade fala Shannon Garland, como evoca o próprio título de seu artigo. “Trocando ideias musicais: a sociabilidade da circulação na música carioca independente nos anos 1990” evoca outro referencial teórico, como Brian Larkin (2008LARKIN, B. Signal and noise: media, infrastructure, and urban culture in Nigeria. Durham: Duke University Press Books, 2008.; 2013)_____. The Politics and Poetics of Infrastructure. Annual Review of Anthropology, v. 42, n. 1, 2013, p. 327-343. e Julia Elyachar (2010)ELYACHAR, J. Phatic labor, infrastructure, and the question of empowerment in Cairo. American Ethnologist, v. 37, n. 3, 1 ago. 2010, p. 452-464. para, junto a C. Small, estudar o fazer musical em torno da música indie. A autora analisa a escuta desse gênero a partir de gravações que são veiculadas no que ela chama de “sociabilidade da circulação”. Para tanto ela acompanha as trajetórias de Pedro “Bonifrate” Franke e de Filipe “Giraknob” Silva, da banda Supercordas, para demonstrar que “as práticas de intercâmbio de mídia musical a partir dos anos 1990 formaram um afeto sonoro e uma ética de interação social” que estão na base de um musicar que compreende formas de agenciamento que conectam as diversas bandas do período.

No artigo “Benditos da Ladeira do Horto: uma breve etnografia do silêncio”, de Ewelter Rocha, encontramos outro exemplo de uma investigação que explora sonoridades, mas, curiosamente, nesse caso, sonoridades que se apresentam sob a forma de silêncios. Rocha nos brinda com um estudo sobre benditos, antigos cânticos de penitência entoados em Juazeiro do Norte (CE), investigando as relações que devotos idosos moradores da Ladeira do Horto estabelecem com esse repertório musical. Frente à recusa de beatas e devotos idosos de cantarem velhos benditos, o autor passou a explorar as performances do silêncio. Lançando mão de recursos audiovisuais, ele atenta para escusas verbais, fisionômicas e gestuais mobilizadas para justificar o não cantar. Em um belo exercício de etnografia musical, que terminou por perseguir indícios de sonoridades ora silenciadas, Rocha investiga um pensamento religioso e os motivos sutis que levaram a que o repertório musical de benditos tenha deixado de ser entoado, mostrando como esse silêncio não significou a perda de sentidos ou de eficácia desses cânticos.

O texto “Performance, significado e interação no musicar participativo/apresentacional de uma roda de choro” também trata de gestos, de maneira significativa, além de recursos audiovisuais. Nele, Renan Moretti Bertho nos fornece um olhar atento e original para performances em rodas de choro do interior de São Paulo. Explorando quatro ações desse fazer musical - os olhares, os gestos, as falas e as interações -, Bertho descreve como as dimensões participativas e apresentacionais do choro se integram e se ressignificam dependendo do engajamento e interação entre os participantes. A pergunta da qual parte o autor trata de saber como essas interações se dão no decorrer do processo performativo de uma prática musical que é pautada em significados históricos tanto quanto em experiências artísticas. Para respondê-la o autor realiza uma etnografia atenta às ações mencionadas a fim de entender significados e experiências empíricas que permeiam o musicar na roda de choro analisada. As ideias de performance apresentacional e participativa como “campos de prática musical”, tal como definidos por Thomas Turino (2008)TURINO, Thomas. Music as social life: the politics of participation. Chicago: University of Chicago Press, 2008., são centrais no argumento do artigo, que tem por efeito enfatizar o processo de produção musical e evidenciar que os aspectos performáticos desse musicar específico são relacionais, e por vezes sincrônicos, em suas dimensões participativa e apresentacional, ressignificam-se na coletividade e expressam sistematicamente o engajamento dos participantes e a interação entre os mesmos.

Outro artigo a explorar as noções de Thomas Turino é o de Estêvão Amaro dos Reis. Em “Popular cultures and new performance contexts in contemporary Brazil: the case of Festival do Folclore de Olímpia”, Reis, parte de uma rica etnografia realizada junto ao Pastoril Dona Joaquina para discutir significativas transformações nos contextos de performance de diversas expressões da cultura popular e folclórica. O autor se baseia em elaborações de Turino (2008)TURINO, Thomas. Music as social life: the politics of participation. Chicago: University of Chicago Press, 2008. sobre performances participativas e apresentacionais, bem como na discussão de Etienne Wenger (1998)WENGER, Etienne. Communities of practice: learning, meaning, and identity. Cambridge: Cambridge University Press, 1998. sobre comunidades de prática, para ponderar que, se antigamente o musicar de diversos desses grupos era marcado por uma economia simbólica, material e territorial circunscrita pela tradição histórica e pela narrativa mítica associada à ancestralidade, hoje em dia, os festivais de folclore promovem uma reorganização dos elementos performativos de forma a criar novos contextos. Contudo, não se trata de uma abordagem saudosista que visa apenas marcar a decadência de formas tradicionais. Para além de noções de espetacularização e canibalização, propostas por José Jorge de Carvalho (2004)CARVALHO, José Jorge. Metamorfoses das tradições performáticas afro-brasileiras: de patrimônio cultural a indústria de entretenimento. In: LONDRES, Cecília et al. Celebrações e saberes da cultura popular: pesquisa, inventário, crítica, perspectivas. Rio de Janeiro: Centro Nacional de Folclore e Cultura Popular/Iphan, 2004, p. 65-83. (Série Encontros e Estudos). para pensar essas rearticulações, o autor retoma as considerações de Marcela Caetano Popoff (2009)POPOFF, Marcela Liliana Caetano. As perversões ficcionais da representação: de Vaimaca Peru a Antonio Conselheiro. 233 f. Tese (Doutorado em Letras). Faculdade de Letras da Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte, 2009. sobre o conceito de subalternidade para mostrar como esses novos contextos de performance também apresentam possibilidades de negociação do capital simbólico do Pastoril, o que, inesperadamente, contribui para sua revitalização.

O interesse e o vigor da abordagem do musicar local nos permite lançar luz a práticas pouco abordadas na literatura etnomusicológica mas bastante presentes na vida social, como a prática em um coral leigo, analisada por Hellem Pimentel no artigo “Do ensaio à apresentação: dimensões da performance musical de um coro institucional”. Assim como o artigo de Bertho, o texto de Pimentel também foca sua discussão na análise de performances musicais, buscando articular as proposições teóricas do campo da etnomusicologia à antropologia da performance para analisar o contexto de produção musical de um coral urbano ligado a uma instituição pública, a Justiça Federal do Espírito Santo. A autora, que é ao mesmo tempo a regente do coral, observou o engajamento dos coristas/servidores públicos nos momentos distintos dos ensaios e em apresentação pública. O fazer musical em contexto institucional pode reforçar os ideais das práticas da entidade, como o comprometimento com a instituição e a promoção da imagem da Justiça Federal do Espírito Santo perante os servidores e a sociedade. No entanto, o texto mostra como os momentos dos ensaios, com aquecimentos, repertório descontraído, expressividade corporal, risos e piadas, fazem os coristas entrarem em estado de flow, que a autora compara a experiências de liminaridade e communitas (cf. Turner, 1969TURNER, Victor. The ritual process: structure and anti-structure. Chicago: Aldine Publishing Co., 1969.), o que transforma corpos disciplinados e tensos, propiciando a descontinuidade da rotina institucional e ao que a autora aponta como uma “ruptura na estrutura social”. A experiência ordinária do cotidiano abre-se para um momento temporal singular no sentido do que afirma Blacking (1973, p. 26)BLACKING, John. How musical is man?. Seattle: University of Washington Press, 1973.: “A qualidade essencial da música é o seu poder de criar um outro mundo, de tempo virtual”.

Por sua vez, o artigo “Dança do ventre em São Paulo: cena, mercado e sustentabilidade em uma prática de dança local”, de Érica Giesbrecht, apresenta um caso de configuração local de repertórios globalmente disseminados - tema caro aos estudos de musicares locais. Articulando a discussão já clássica sobre a “glocalização” (ROBERTSON, 1992ROBERTSON, Roland. Globalization: social theory and global culture. London: Sage, 1992.; 1995_____. Glocalization: time-space and homogeneity-heterogeneity. In: FEATHERSTONE, Mike; LASH, Scott; ROBERTSON; Roland (Org.). Global modernities. Londres, Sage Publications, 1995, p. 25-44.) às noções de fluxos, malhas e emaranhados de Tim Ingold (2007INGOLD, Tim. Lines: a brief history. London: Routledge, 2007.; 2011_____. Being alive: essays on movement, knowledge and description. New York: Routledge, 2011.; 2012)_____. Trazendo as coisas de volta à vida: emaranhados criativos num mundo de materiais. Horizontes Antropológicos, Porto Alegre, ano 18, n. 37, 2012, p. 25-44., Giesbrecht descreve como, em São Paulo, a dança do ventre se constituiu em cena e mercado que engajam um número considerável e crescente de pessoas - e isso, argumenta a autora, apesar de se tratar de uma dança marginal ao circuito cultural da cidade. Inspirada na noção de malha de Ingold, afirma que essa realidade é produto de um intrincado emaranhado de relações, em que cena e mercado estão imbricados e se sustentam mutuamente. Longe de se tratar de algo estável, a autora descreve a maneira em que a cena depende da ação cotidiana das bailarinas para existir. Dançando, mas também praticando uma série de outras ações que constituem esse musicar - como ensinar, tomar aulas, produzir shows, apresentar-se, bordar o próprio figurino, consumir diversos produtos relacionados à dança do ventre, postar e “curtir” vídeos e fotografias de outras bailarinas no Facebook, dentre outras atividades - elas tecem diariamente os fios que constituem a dança do ventre na cidade.

Longe de esgotar possibilidades, potencialmente infinitas, de apropriação da noção de musicar como abordagem para a etnomusicologia, este dossiê pretende ser uma contribuição à constituição de um campo de diálogos e explorações teóricas e musicais que coloca, no seio de suas preocupações, a música como campo expandido de práticas que se constroem a partir de universos diversos, multifacetados, e que, historicamente, não foram sempre reconhecidos como território de análise do campo. Desejamos que nosso esforço se some a outros e que nossas ideias, palavras e ritmos sigam construindo trilhas e musicares potentes para compor capacidades analíticas tanto mais fortes quanto abrangentes.

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    Cientes dos imbróglios políticos da linguagem e da posicionalidade do saber, optamos pela utilização do feminino universal como deslocamento de uma expectativa de linguagem que, como tão bem discutiu Haraway (1995[1987])HARAWAY, Donna. Saberes localizados: a questão da ciência para o feminismo e o privilégio da perspectiva parcial. Cadernos Pagu, v .5, p.7-41, 1995 [1987]., se pretende, ao mesmo tempo, masculina e desencarnada.
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    No original: “To music is to take part, in any capacity, in a musical performance, whether by performing, by listening, by rehearsing or practicing, by providing material for performance (what is called composing), or by dancing. We might at times even extend its meaning to what the person is doing who takes the tickets at the door or the hefty men who shift the piano and the drums or the roadies who set up the instruments and carry out the sound checks or the cleaners who clean up after everyone else has gone. They, too, are all contributing to the nature of the event that is a musical performance”. A tradução de trechos de obras é de nossa responsabilidade.
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    O Projeto Temático Fapesp (Processo: 16/05318-7) reúne pesquisadores de diversas instituições, especialmente da Universidade de São Paulo (USP) e Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), em torno da abordagem do musicar local. O projeto é coordenado pela etnomusicóloga profa. dra. Suzel Ana Reily, do Departamento de Música da Unicamp.
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    Ver, por exemplo, os trabalhos de Dauer (1971)DAUER, A. M. Research film in ethnomusicology: aims and achievements. Yearbook of the International Folk Music Council, v. 1, 1971, p. 226-233. e Kubik (1970)KUBIK, G. Transcription of Mangwilo Xylophone Music from film strips. African Music, v. 3, n. 4, 1965, p. 35-51. Corrigenda in African Music, 4(4) [1970]..
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    O Laboratório de Imagem e Som em Antropologia, ligado ao Departamento de Antropologia da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo, foi inaugurado em outubro de 1991. Desde então vem atuando como um centro básico de pesquisa e formação de alunos no campo da antropologia visual e da etnomusicologia, sendo atualmente coordenado pela profa. dra. Sylvia Caiuby Novaes. Os filmes produzidos no LISA estão disponíveis no canal do Laboratório no Vimeo (https://vimeo.com/lisausp).
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    Exemplos desse tipo de pesquisa, no Projeto Temático “Musicar local”, são as investigações levadas a cabo por Alice Villela sobre a relação entre música e audiovisual a partir de uma série documental, por Rose Satiko Gitirana Hikiji e Jasper Chalcraft sobre música e imigração, e por Mihai Leaha sobre a cena musical DIY em São Paulo.
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    Nesse sentido, apontamos a pesquisa de Vitor Grunvald, desenvolvida junto ao Temático, sobre o cenário musical brasileiro contemporâneo, que desafia questões de gênero e sexualidade com a música.
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    Tanto a pesquisa de Gibran Braga, sobre cena underground de música eletrônica em São Paulo e Berlim, quanto a pesquisa de Lorena A. Muniagurria, sobre a relação entre o musicar do carimbó paraense e as políticas de patrimônio imaterial, são exemplos dessas diversas articulações.

REFERÊNCIAS

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    26 Ago 2019
  • Data do Fascículo
    May-Aug 2019

Histórico

  • Recebido
    15 Jul 2019
  • Aceito
    31 Jul 2019
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