Open-access As cartas brasileiras na trama epistolar de José Enrique Rodó (1898-1910)

Brazilian letters in the epistolary web of José Enrique Rodó (1898-1910)

RESUMO

O artigo analisa 15 cartas endereçadas do Brasil ao escritor uruguaio José Enrique Rodó entre 1898 e 1910, que revelam um programa intelectual para conectar escritores em torno da Pátria Intelectual, ideia concebida por ele para delinear um destino intelectual comum para o continente latino-americano. As cartas podem ser utilizadas para estudar a circulação de ideias e a formação de uma rede de sociabilidade letrada na região, sendo possível observar que o autor buscou inserção no território brasileiro, mesmo não havendo indícios aqui de uma geração propriamente arielista. No entanto, a importância de Rodó é atestada por inúmeras resenhas de seus livros e pelo interesse de muitos brasileiros em se conectar com um dos intelectuais mais importantes de sua geração, contribuindo para a consolidação da inteligência latino-americana.

PALAVRAS-CHAVE
Correspondência brasileira; José Enrique Rodó; sociabilidade intelectual

ABSTRACT

This article analyzes 15 letters addressed from Brazil to the Uruguayan writer José Enrique Rodó between 1898 and 1910, which reveal an intellectual program to connect writers around an Intellectual Homeland, an idea conceived by Rodó to outline a common intellectual destiny for the Latin American continent. The letters can be used to study the circulation of ideas andthe formation of a network of literate sociability in the region. We are interested in observing through this correspondence that the author sought insertion in Brazilian territory, even though there is no evidence of a proper Arielist generation. However, his importance was attested to by numerous reviews of his books and by the interest of many Brazilians to connect with one of the most important intellectuals of their generation, contributing to the consolidation of Latin American intelligence.

KEYWORDS
Brazilian correspondence; José Enrique Rodó; intellectual sociability

O acervo do escritor uruguaio José Enrique Rodó (1871-1917) lotado na Biblioteca Nacional de Uruguay (BNU), Montevidéu, congrega substanciosa correspondência passiva de escritores procedentes de diversas localidades, principalmente da América Latina e da Espanha. As cartas iluminam aspectos da complexa rede de sociabilidade que permeava o universo dos intelectuais da virada do século XIX para o XX, que buscaram se agrupar em torno de temas ligados ao futuro do continente latino-americano. Por isso fornecem valiosas contribuições memorialísticas para o estudo da modalidade precoce da circulação internacional de ideias produzidas naquele contexto.O objetivo deste artigo é analisar os esforços de José Enrique Rodó em consolidar conexões com autores latino-americanos, especificamente, observando aqui seu empenho para tecer uma rede de solidariedade intelectual envolvendo o Brasil. Na nossa percepção, Rodó foi um dos irradiadores desse grande movimento de ideias e de atitudes estéticas capazes de romper com o nacionalismo restrito. Assim, buscaremos em sua correspondência passiva, entre 1898 e 1910, as cartas enviadas a partir do território brasileiro, não exclusivamente de correspondentes brasileiros, mas também de outras nacionalidades, que por motivos diversos se encontravam no país.

Essas correspondências, como veremos, abrem a possibilidade de analisar as múltiplas conexões entre o Brasil e a América Latina, observando o esforço rodoniano para reunir as nações americanas, marcadas por uma bicontinentalidade, que muitas vezes prendeu o Brasil, por conta de sua superioridade geográfica, aanálises exclusivamente nacionalizantes.

Ao localizarmos a produção rodoniana no registro dos estudos transnacionais, reconhecemos o esforço do autor, desde o final do século XIX e o início do XX, em convergir a crítica literária, a produção teórica sobre a intelectualidade e a articulação de uma rede internacional interessada na integração e no aprofundamento da análise sobre o continente.

Em Ariel (1900), obra mais conhecida e analisada de José Enrique Rodó, o autor delineou um projeto educacional no sentido amplo, bastante ambicioso, destinado à juventude de seu período, motivado pelas mudanças históricas ocorridas a partir de 1898 com a perda pelo império espanhol de suas últimas colônias, estabelecendo-se, a partir daí, um novo e poderoso império - os Estados Unidos -, que impunha, segundo o autor, modelos de conduta altamente utilitaristas e especializados à América Latina.

Real de Azúa (1976) destacou que o tom do chamado presente no livro era de urgência. Havia uma pedagogia social, e as soluções e as forças mobilizadoras aludiam sempre ao coletivo, ao americano. Desse projeto, ou dessa missão intelectual, surge uma versão do arielismo, encarado como um espaço de sociabilidade juvenil que buscava latinizar a América, tornar o continente familiar aos habitantes, unir as fronteiras nacionais e recuperar o elo perdido com a independência política. É válido pontuar que o chamado para a união do continente integrava todo o corpo de textos de Rodó, não somente Ariel. Alfonso García Morales (1992) sustentou que o discurso arielista se dedicava a traçar um programa de orientação moral e a fixar nos jovens ideais para enfrentar a vida e fazer realizar suas esperanças, a partir das quais podiam enfrentar os perigos causados pelo utilitarismo e pela especialização, e realizar suas esperanças conforme o sentido da vida integral.

Para a exposição do nosso argumento, dividimos o texto em dois momentos: a recepção de Rodó no Brasil, a partir de autores brasileiros que resenharam suas obras e tentaram, de algum modo, introduzir suas ideias no país; no segundo momento, realizamos uma análise das cartas enviadas para o autor a partir do Brasil a fim se observar qual o conteúdo dessas missivas,as quais comprovam que o autor tentou se comunicar com diversos intelectuais brasileiros, enviando suas produções para cá.O país, portanto, não pode ser encarado como comarca ausente em suas reflexões.

As cartas recebidas a partir do território brasileiro serão lidas como sinais capazes de retratar certos movimentos de Rodó em torno do desejo do artista na inserção do seu nome no circuito intelectual neste país. Dessa forma, o texto almeja a produção de um relato da presença do Brasil na diversa correspondência rodoniana, ampliando o horizonte das expectativas em fazer circular seu nome, a partir de um exercício de recuperação da memória que elas preservam.

A serialidade das cartas envolvendo o Brasil engloba tendências distintas, desde um atestado de recepção e envio de produtos intelectuais - como a correspondência do poeta modernista Ricardo Jaimes Freyre, de Raul Villa-Lobos, de Carlos Magalhães de Azevedo, do representante da Livraria Garnier, de Alexandre Barbosa Lima, de César Castro - até as cartas cujo mote envolve questões diplomáticas, como a de Henrique Lisboa, ou as cartas institucionais, como a da Biblioteca Pelotense que solicita o envio das obras de Rodó, e a carta de Lindolfo Collor, que compartilha a criação da Academia de Letras do Rio Grande do Sul.

Essa heterogeneidade da correspondência nos ajuda na reconstrução de como Rodó também foi visto com sua devida importância para o momento intelectual brasileiro, uma vez que as missivas serão encaradas como veículos de gestação e desenvolvimento do espaço de contato entre várias nacionalidades.

Como apontou Ana María Barrenechea (1990), a origem da carta é de ordem extraliterária, porém mantém forte relação com a literatura por ser objeto cultural básico e traçar um programa que atualiza o que se escreve e o que se lê, conectando emissor e receptor. Ainda acrescenta que a forma epistolar pode ser veículo variado de conteúdos e cumpre funções diferentes. Partindo desse pressuposto, as discussões literárias, as questões políticas e diplomáticas, o papel do intelectual e artista aparecem interconectados e formam uma espécie de mosaico polifônico enredando o mapa das relações intelectuais traçado por José Enrique Rodó.

Dentre os inúmeros documentos conservados no Arquivo José Enrique Rodó, sob a guarda da Biblioteca Nacional de Uruguay (BNU), que abarcam livros, documentos pessoais, originais manuscritos de suas obras, fotografias e objetos pessoais, a correspondência constitui um volume significativo da documentação. Como destacou Roberto Ibáñez (2014), o primeiro a se debruçar sistematicamente no emaranhado arquivístico doado pela família à BNU em 1945, Rodó possuía grande vontade testamentária, que se traduziu na guarda do que recebia e, em alguns momentos, no registro ou cópia do que despachava.

Dessa forma, como demarcou Elena Romiti (2023), o interesse teórico e crítico sobre os arquivos literários e culturais da região sul-americana responde a uma reflexão continental, que há algumas décadas destaca a importância de perguntar sobre a construção de uma própria perspectiva para ver a América Latina. Trata-se de arquivos locais que foram pensados como memória, um território individual e coletivo, que entra em tensão com os “fenômenos de desterritorialização”, constitutivos dos atuais processos e globalização (ACHUGAR, 2004, p. 153 - tradução minha).

No oceano epistolar passivo de José Enrique Rodó observamos de modo muito intenso a mencionada desterritorialização, uma vez que o esforço e a dedicação para aproximar universos culturais e literários sempre foram despendidos pelo autor. Por meio das cartas endereçadas a ele, podemos afirmar que o rol de suas trocas percorreu o raio de alcance muito grande, expandindo o perímetro ibero-americano e alcançando Europa e América do Norte.

Essa dispersão de seu pensamento, da sua literatura e de seus projetos, abriu espaço para a construção de redes transnacionais a partir de experiências culturais específicas que passaram a ser tematizadas por diversos autores no sentido de projetar uma formatação intelectual latino-americana. Essa característica do legado arquivístico rodoniano nos possibilita adentrar nos estudos do manuscrito literário de autores contemporâneos,que se aglutinaram a partir de alternativas disponíveis para o período, dentre elas, a correspondência.

Em consonância com a hipótese de Claudio Maíz (2009), os letrados hispano-americanos do final do século XIX e começo do XX viram como indispensável a necessidade de redefinir a relação com a cultura ocidental, traçando, com isso, algumas estratégias de forma consciente, cuja finalidade era criar espaços de pertença comuns e internacionalizados. Entre 1898 e 1920 se constituiu uma comunidade imaginada mais além das fronteiras nacionais da Hispano-América, e mais além do Oceano Atlântico.

No interior dessa pátria intelectual ocorre um febril ativismo que inclui instituições, academias, ateneus, salas de redação de periódicos e de revistas. A chamada pátria intelectual, denominada por Rodó, foi concebida como um lugar ideal para romper com as fronteiras do mapa, que não são as mesmas da geografia espiritual. Os epistoláriosingressaram nesse contexto como ferramenta que ajudoua estabelecer uma comunidade virtual, fazendo parte dos gêneros discursivos do eu.Nesse sentido, seu estudo contribui para a reconstrução das redes que escritores, artistas e intelectuais propiciaram.

A função do intelectual foi tema muito presente nos diálogos epistolares traçados por Rodó, que escreveu muito e a muita gente e guardou cartas de muitos remetentes - seu arquivo contém por volta de 3 mil peças - incluindo sua obra, correspondências, objetos pessoais, livros e folhetos -, conforme contagem, feita pela Biblioteca Nacional de Uruguay. Sua correspondência ativa vem sendo gradativamente conhecida com mais intensidade em edições feitas pelos pesquisadores interessados no tema.

As cartas direcionadas a Rodó são exemplos de cruzamento dos espaços fronteiriços que conectaram pessoas e grupos a partir da constituição de redes intelectuais que ramificaram ideias, projetos, produção dos mais variados conteúdos ligados à arte e ao pensamento, indo, portanto, além do relato memorialístico dos correspondentes de Rodó, e servindo como possibilidade de observar as tradições culturais e intelectuais em diálogo.

Rodó resenhado por brasileiros

Ao longo da primeira década e parte da segunda do século XX, Rodó publicou alguns textos voltando sua atenção para a integração do Brasil em suas preocupações intelectuais: “Discurso sobre el tratato com el Brasil” (1909); “Sobre el tratado com el Brasil” (1909); “Iberoamérica” (1910); “Río Branco: en ocasión de su muerte” (1912); “Cielo y agua” (1916). No texto “Nuestro desprestigio (el caciquismo endémico)”, de 1912, Rodó volta a mencionar o Brasil, de modo marginal, e indicar alguns problemas políticos nos países do continente, o que, na visão do autor, reforçaria os laços de pertença comum à grande comarca latino-americana.

A obra de José Enrique Rodó foi recepcionada por alguns intelectuais brasileiros, no entanto, não obteve o mesmo êxito que em países como Paraguai, Peru, Chile, México, Cuba, e outras localidades, que forjaram uma geração de intelectuais notadamente arielistas. O livro Ariel, publicado em 1900, teve sua primeira versão para o português em 1926 - trata-se de uma adaptação feita por Hermes da Fonseca Filho. No segundo momento a versão assume outra rubrica, a de tradução, sendo publicada em 1933 pela Renascença Editora, do Rio de Janeiro2. Segundo Liliana Weinberg (2001, p. 63), o caso de Ariel é um dos mais extraordinários exemplos de como a recepção de um texto pode transformar sua leitura, o que conferiu reconhecimento e especificidade de cada obra em seu processo de adoção.

Em 1954, Silvio Julio de Albuquerque Lima publicou o livro José Enrique Rodó e o cinquentenário do seu livro Ariel, no qual tece algumas hipóteses que refletem sobre o não reconhecimento - ou reconhecimento tardio - da obra de Rodó no Brasil. Na sua opinião, “Não nos cansaremos nunca de dizer que o coloniato português e a monarquia bragantina, que odiavam os espanhóis e queriam ignorar, em vão, toda a grandeza real da sua cultura, foram as duas causas do insulamento brasileiro na América dos séculos XVIII, XIX e XX” (JULIO, 1954, p. 5).

Para Silvio Julio essa característica teria sido fundamental para que no Brasil a obra de Rodó não fosse reconhecida como foi em outras partes do continente. Segundo ele, o país atravessava, no início do século XX, a fase aguda e densa do galicismo absoluto, interno e externo - não nos importávamos com nada, senão com o que era proveniente dos cafés e bulevares parisienses.

Ariel, ao sair do prelo e ao deslumbrar americanos e espanhóis, não foi sabido do Brasil, de maneira nenhuma. Glorioso e triunfante, traduzido e comentado, ficou oculto de nosso país, que não participou de tão justa consagração, visto que vivíamos de costas para o Novo-Mundo e genuflexos a qualquer excrescência francesa. Lembramo-nos perfeitamente de nosso esforço titânico, indescritível, para conseguirmos, de 1912 a 1930, que os intelectuais brasileiros ao menos lessem as páginas americanistas de Ariel! (JULIO, 1954, p. 9).

Silvio Julio agradece os incentivos daqueles que escrevem alguma coisa sobre Rodó: João Pinto da Silva, Tasso da Silveira, Vicente Licínio de Cardoso e Celso Vieira. Agregamos Sérgio Buarque de Holanda.

Tasso da Silveira (1895-1968) foi um dos fundadores da Revista América Latina: Revista de Arte e Pensamento, que circulou pelo Rio de Janeiro entre 1919 e 1920. Em 1922 publicou o livro de ensaios intitulado A igreja silenciosa, dedicado a interpretações sobre diversos autores, dentre eles, José Enrique Rodó.Silveira(1922, p. 19) encara o significado que a obra do autor uruguaio teria para a América Latina, que seria o mesmo que a de Ralph Waldo Emerson teria para a América do Norte: “um espírito sereno e disciplinado em meio à relativa barbaria ambiente, uma flor de alta cultura desabrochando, por misterioso fenômeno de transplantação, em terreno inculto e primitivo”.

Silveira menciona inclusive uma interpretação da obra Motivos de Proteo, livro publicado em 1909, que seria um estudo completo sobre a verdadeira vocação humana. Rodó seria um mestre que nos conhece em nosso mundo interior, mostrando uma das mais vastas erudições de que se tenha notícia nos tempos de hoje. Em sua interpretação, é surpreendente a facilidade com que o ensaísta joga com dezenas de obras de todas as literaturas, de cuja maioria não tivemos notícias ainda. Surpreende ainda a conexão que seu espírito estabelece entre todos esses conhecimentos tão múltiplos e diversos, cujo encadeamento induz a verdadeiras leis psicológicas, admiráveis de precisão:

Perscrutando a natureza desse complexo fenômeno, o ensaísta uruguaio escreveu páginas de serena formosura, e das mais humanas e profundas que se possam contar na literatura americana. Além disso, são essas páginas tão simples e acessíveis na calma emoção de sua linguagem, que nosso coração recebe com mais facilidade ainda do que nosso espírito. (SILVEIRA, 1922, p. 25).

Ariel foi lido e comentado pelo sociólogo Sérgio Buarque de Holanda, que em 1920 escreveu um artigo originalmente publicado na Revista do Brasil. Nele o autor comenta principalmente a parte da crítica aos Estados Unidos da América. Encarando o livro de Rodó como “magnífica obra do notável pensador uruguaio” (HOLANDA, 1996, p. 45),o historiador criticou a índole dos brasileiros, que, na sua percepção, macaqueavam tudo quanto é estrangeiro, e constatou que o utilitarismo yankee não se coaduna com a índole do povo brasileiro.

Holanda encara o Brasil sempre em processo de concretização. Mas não deixa de admitir o efeito nocivo do utilitarismo, condenado por Rodó. Num processo evolutivo inacabado, o Brasil nega o propósito materialista último, não porque conservaria os valores da cultura clássica, da nobreza e da inteligência, mas sim pelas condições climáticas e intelectuais do povo e da sua elite, que possuem caráter extremamente imitativo.

João Pinto da Silva, em seu livro Vultos do meu caminho, de 1926, também dedicou um dos capítulos para comentar a obra de Rodó, considerando-o como um “professor de idealismo”. No texto o autor tece comentários gerais sobre a vida do uruguaio, o que prova que teve contato com suas principais biografias. Aponta que Rodó foi, rigorosamente, um neoclássico, pela soberana harmonia da forma e do pensamento. Tudo nele revela o culto da Grécia Antiga: as suas predileções, as suas ideias, os seus sonhos de arte. Acima de tudo, além de qualquer preocupação ou escola, Rodó foi um nobre e glorioso pensador:

Vivendo numa época em que se começava a depreciar os valores imponderáveis do espírito, com a ascensão dos mais estreitos utilitarismos, propôs-se Rodó mostrar como seria triste o mundo quando os homens renunciassem ao sopro de idealidade, de sonho, que o distingue dos outros animais. Foi esse o objetivo de Ariel. Idêntico é o sentido dos Motivos de Proteo. (SILVA, 1926, p. 27).

Pinto da Silva encara que Ariel não é o melhor livro de Rodó, apesar de brilhante e profundo. Sua obra máxima seria Motivos de Proteo, pela extraordinária soma de beleza e de verdade. Rodó está todo ele nesse livro. Por fim, comenta sobre a noção de pátria mobilizada pelo uruguaio, cuja definição é a mais bela que já viu, e que é definida de acordo com a razão histórica, mais fiel à tradição étnica, que seria a América, livre das rivalidades que a enfraquecem: “Pena que o Brasil permaneça quase estranho à alteração profunda, para melhor, que se realiza, tão expressivamente, em torno dele” (SILVA, 1926, p. 58).

Interessante que ambos os autores trocaram correspondência. Quando Pinto Silva publicou uma versão desse texto mencionado no jornal O Diário, enviou uma cópia, e Rodó respondeu com as seguintes palavras, reproduzidas no livro Vultos do meu caminho, em 15 de junho de 1914:

Estimado Señor: Tuve la satisfacción de recibir su atenta y afectuosa carta y juntamente a ella, el número de “O Diário” en que aparece el hermoso artículo de Vd. Que va titulado con mi nombre. La benevolencia de que se muestra Vd. Tan prodigo para conmigo y para con mis obras, obligaría por si sola mi más sincera gratitud. Pero, además, debo agradecerle el sentimiento verdadero y la honda comprensión que pode Vd. en sus juicios, porque aún más grato que ser elogiado es ser comprendido y el elogio adquiere su mayor halago cuando manifiesta la superioridad de espíritu del que lo formula. (RODÓ apud SILVA, 1926, p. 63).

Outro autor brasileiro que mencionou as ideias de José Enrique Rodó foi Vicente Licínio de Cardoso (1889-1931), que em 1924 publicou Pensamentos brasileiros, que contém o capítulo “De Artigas a Rodó”, publicado originalmente no Jornal do Comércio em 1920.

Na sua percepção, o pensador uruguaio seria um obreiro consciente de um idealismo prático americano, representante da América Espanhola e da afirmação da consciência americana. A palavra forte e harmoniosa de Rodó refletia a vida do ambiente, na opinião de Cardoso, e seria importante compreender o valor do trabalho de ação dentro de um programa de realização almejada pelo povo: “A obra de Rodó é, até certo ponto, a escultura espiritual do barro americano modelado pela nacionalidade uruguaia” (CARDOSO, 1924, p. 92).

Ademais, o autor menciona a ênfase dada à juventude, e ressalta o aspecto educacional presente em seu texto, visto como chave de solução para os problemas nacionais.

“Como se percebe, o americanismo que Vicente Licínio lê em Rodó não se traduz num particularismo espiritualista, mas na expressão de uma energia prática que marcaria os homens desse continente” (MAIA, 2005, p. 200). Nesse sentido, a figura intelectual de Rodó exemplificaria um tipo intelectual americano - “A sua obra viverá porque nela se sente a alma de um povo que se expressou através dela. A arte é o meio de expressões do homem. A massa social é um corpo; o artista é a mão ou a voz desse organismo” (CARDOSO, 1924, p. 89).

Apesar das diversas interpretações que oscilam entre o pertencimento e a identificação do Brasil à América Latina, diluídas ao longo do século XIX e XX, nos chama a atenção o forte peso intelectual de José Enrique Rodó no continente, e inserir como o Brasil se comportou diante de um dos autores mais representativos sobre a identidade do continente latino-americano pode vir ser uma possibilidade para explorar nossa articulação entre Brasil e América Hispânica.

Como analisou Belén Castro Morales (1999), no pensamento de Rodó encontramos uma redefinição importante do papel da crítica literária e da cultura americana, do intelectual e do ensinamento, que foram o cimento de um projeto para o futuro da região. Para a autora, seria uma filosofia cultural definida no marco do arielismo e inspirada pelo princípio proteico de uma evolução constante, tema da obra mais importante do pensador uruguaio, Motivos de Proteo.

Contudo, Rodó também foi consciente das limitações que impediam o desenvolvimento imediato de seu projeto, limitações comuns das novas sociedades, que por serem imaturas no campo intelectual, carecendo de instituições universitárias e científicas, impediam o processo de profissionalização do homem das letras e o pleno desenvolvimento de uma disciplina intelectual, haja vista o fato de o próprio autor ter se dividido em diversas funções, além da de escritor: deputado, cronista, professor etc. esse contexto, a literatura, como destacou Pablo Rocca (2001, p. 87 - tradução minha), era a melhor ferramenta para cumprir o sonho integrador de Rodó, “com ela se consagraria a conquista, progressivamente, da autoctonia que liberaria a América dos laços de dependência que a sujeitavam”.

Por isso a relevância do conceito de geração presente na sua obra, uma vez que a crítica literária praticada pelo autor também estava composta de um discurso político e social, que militava a partir de diversas ferramentas, dentre elas, a centralidade da correspondência, na convocação de outros intelectuais, deslocando suas propostas e construindo espaços epistemológicos de enunciação para além das fronteiras nacionais.

As cartas brasileiras lidas como propostas de sociabilidade intelectual

Das cartas localizadas entre 1898 e 1910, encontramos 14 que foram remetidas a partir do Brasil, incluindo cartões-postais, ou que mencionaram alguma incursão do autor no território por motivos literários ou indicação de nomes para difundir seu trabalho, ou mesmo cartas institucionais, como as da Biblioteca Pelotense ou da Academia de Letras do Rio de Janeiro.

Sobre as cartas escritas por Rodó, Roberto Ibáñez(1961, p. 55 - tradução minha) ressalta como traço comum do autor uma “amável compostura, cortesia e circunspecção”, observando que sua postura como epistológrafo é a de um escritor ativo e propagandista de ideias e que raramente suas cartas são utilizadas como veículo de confidências pessoais. Ainda de acordo com Ibáñez, nessas cartas Rodó não se abre e nem insinua caminhos da própria intimidade, tampouco se esforça para ter acesso à alheia, não envia abraços epistolares e se limita a uma saudação pontual.

Apesar de as missivas de Rodó não registrarem conteúdo propriamente autobiográfico, como exceção a esse traço de sua correspondência ativa, Wilfredo Penco (1980) avalia que a cartas enviadas a um de seus mais próximos amigos, Juan Francisco Piquet, desde os anos de sua iniciação literária, possivelmente em 1895, até pouco antes de sua morte -que abarcam um vasto período -, refletem preocupações e interesses vitais traduzidos no plano da confidência epistolar. Essas cartas,nas quais Rodórevelou suas íntimas crises, seu conflitivo estado pessoal, suas preocupações políticas etc., conduzem à análise de muitos aspectos do seu fazer literário e, além disso - outro importante motivo para serem relembradas-, do contexto cultural em que foram escritas, pois trata-se de registros discursivos repletos de valor para a história da interação de vozes entre intelectuais brasileiros e uruguaios envolvidos de alguma maneira no mundo intelectual e das letras.

Como poderemos notar, os expressivos documentos epistolares podem comprovar que Rodó estabeleceu um verdadeiro programa intelectual a fim de suprir o isolamento geográfico das nações que estavam em busca da emancipação ideológica, portanto cumpriram função primordial no campo letrado ibero-americano. Nesse sentido, apontou Brigitte Diaz (2016, p. 54):

Toda correspondência oferece-se a quem quiser analisá-la como encruzilhada de problemas linguísticos, históricos, ideológicos. A polimorfia e a plurifuncionalidade intrínsecas a esse gênero infiel a si próprio possibilitam múltiplas abordagens, que vão desde a história da vida privada até as das práticas de escrita do eu, passando pela sociologia da literatura, a genética literária, a pragmática da comunicação a distância.

As cartas recebidas por José Enrique Rodó merecem atenção por seu volume e heterogeneidade de nacionalidade, mas é possível, por meio dessa matéria bruta e pouco visitada, detectar um traço comum: a vontade de compor o projeto proposto pelo mestre Rodó, superar o isolamento da cultura nacional e articular um discurso integrador moderno, projeto iniciado pelo autor de Ariel desde o final do século XIX, quando dirigiu junto a outros jovens conterrâneos a Revista Nacional de Literatura y Ciencias Sociales (1895-1897), utilizada como plataforma das produções teóricas, literárias, notícias sobre escritores e movimentos intelectuais do continente.

Em seus poucos anos de funcionamento o periódico foi, segundo Emir Rodríguez Monegal (1967), a primeira tribuna literária de Rodó, que a partir dela anunciou alguns princípios fundamentais de sua política literária: a necessidade de preservar a continuidade da cultura hispânica e ocidental, o sentimento de tradição literária hispano-americana e nacional. Além disso, revelou seu interesse pela literatura contemporânea de língua espanhola.

Do mesmo modo, Rodríguez Monegal (1967, p. 1320 - tradução minha) encarou a correspondência de Rodó como um aspecto imprescindível de sua “política literária”, e uma “arma formidável de um labor de proselitismo americanista”. A partir de sua eficácia comunicativa, conseguiu colocar em circulação através do gênero epistolar uma poderosa corrente americanista que teve sua primeira plataforma na RevistaNacional de Literatura y Ciencias Sociales.

A primeira correspondência remetida do Brasil a Rodó data de 20 de setembro de 1897.Trata-se de um cartão-postal do poeta modernista Ricardo Jaimes Freyre (1868-1933) - cuja identificação do remetente é “encarregado de negócios de Bolívia” -, no qual manifesta seu agradecimento “al distinguísimo escritor” (25010v) por estar presente em sua lista de subscritores. Finaliza a pequena carta informando que a Revista será enviada a Petrópolis, Brasil.

Em maio de 1898, Jaimes Freyre envia uma nova carta a Rodó, com o mesmo timbre da Legação da Bolívia no Brasil, a partir da cidade de Petrópolis, na qual aponta que a Revista Nacional chegou a solo brasileiro, e, mesmo contando com uma incipiente circulação, os intelectuais utilizaram da correspondência como forma de fazer transitar seus produtos intelectuais. No mês de julho de 1898 Jaimes Freyre enviou outro bilhete de agradecimento do número da Revista de Literatura y Ciencias Sociales, onde foi publicado um soneto de sua autoria.

Outra carta remetida do Brasil a Rodó foi a de Raul Villa-Lobos, a partir da cidade do Rio de Janeiro, em 28 de janeiro de 1898, na qual se diz agradavelmente surpreendido pelo livro La vida nueva.

Li com prazer, de uma assentada, e dou-vos os meus parabéns pelo valioso serviço que acabai de prestar à literatura de vosso país, enriquecendo-a com esse belo subsídio. Incluso remeto-vos um exemplar do meu último trabalho que saiu com o mesmo pseudônimo que adotei para minha Revolta da Armada. É apenas uma insignificante lembrança. (25369)3.

Raul Villa-Lobos, pai do grande compositor brasileiro Heitor Villa-Lobos, integrou a Revista Brazileira - órgão que se dedicava a temas ligados à história, geografia e artes plásticas - entre 1895 e 1899, à época dirigida por José Veríssimo, atuou como funcionário público da Biblioteca Nacional, escreveu livros didáticos e traduziu obras para o português (GUÉRIOS, 2003).

A carta de Villa-Lobos direcionada a Rodó revela-se como importante fonte para a compreensão da presença e circulação de suas obras no país, bem como a presença de autores brasileiros na biblioteca do escritor uruguaio, do mesmo modo que potencializa e converge as diferentes modalidades de uma “sociabilidade letrada” (WEINBERG, 2021, p. XI - tradução minha) estabelecida para além das barreiras linguísticas e geográficas.

Como ressaltou Brigitte Diaz (2016), a correspondência não deve ser lida como simples reverberação da vida do escritor, nem como longínquos reflexos de uma escrita que ocorre em outro espaço, mas é também em e pela correspondência que o escritor age sobre si próprio e sobre os representantes da instituição literária aos quais se dirige.

Considerando essa perspectiva, observamos por meio de outras correspondências enviadas a Rodó essa faceta da ação dos representantes dessa institucionalidade literária. Outro brasileiro que enviou uma missiva a Rodó foi Carlos Magalhães de Azevedo (1872-1963), um dos intelectuais que integrou a Academia Brasileira de Letras, exerceu carreira diplomática e escreveu poemas, contos e ensaios.

A carta, de 20 de janeiro de 1903,escrita em espanhol, também remetida do estado do Rio de Janeiro, cidade de Petrópolis, aponta que fazia tempo que Magalhães desejava enviar um exemplar do seu último livro ao uruguaio devido ao “prazer intelectual e à admiração com que li suas notáveis produções” (tradução minha), no entanto, não teria enviado antes a Rodó por ignorar seu endereço, mas que agora o teria conseguido por intermédio de um companheiro das letras. Observamos que o contato é bastante incipiente, uma vez que o missivista não possuía o endereço para enviar a carta para Rodó. O livro encaminhado se intitula Horas sagradas.

Mi satisfacción será muy grande, si Usted, leyéndola, sintiera el de recordar mi nombre y hacer conocer ese libro a sus compatriotas, entre los cuales pasé días tan agradables en el inicio de mi carrera diplomática, habiendo sido Montevideo mi primer puesto y teve el placer de ver algunos de mis escritos traducidos en la lengua castellana y publicados por La Razón. (26736v-26737).

Magalhães se despede dizendo que teria verdadeiro interesse em ler uma carta ou artigo com as impressões sobre seus livros. Observamos nesse trecho novamente o desejo do correspondente em construir uma interação literária com Rodó, estabelecendo vínculos a partir da literatura. Nesse sentido, Liliana Weinberg (2021) ressalta que houve entre a intelectualidade hispano-americana formas e práticas de sociabilidade letrada estabelecida através de cartas, viagens, encontros e debates de circulação de textos e leituras, intervenções no espaço público etc. Essas publicações não só permitem estabelecer relações dinâmicas e religar experiências, mas também podem ser examinadas a partir de processos comparativos a fim de compreender as formas de vinculação e irradiação que se estabelecem entre esses núcleos de inteligência e criatividade.

Em carta datada em 4 de agosto de 1903, assinada pelo primeiro secretário da Biblioteca Pública Pelotense, fundada em 14 de novembro de 1895, há a solicitação do envio de uma coleção de suas obras. Interessante revelação da carta no sentido de construção do acervo da Biblioteca, que muitas vezes estava ao sabor da contribuição dos próprios escritores, e também pelo fato de provavelmente não existirem livrarias especializadas na região. Dessa forma, a carta aqui mencionada nos ajuda a explicar uma circunstância interessante de buscar acessar experiências culturais de outras sociedades: “Testemunho do indivíduo que escreve, testemunho do grupo ao qual pertence ou tenta integrar, bem como representação contínua de uma ordem social, a carta se encontra ‘na encruzilhada’ dos caminhos individuais e coletivos” (HAROCHE-BOUZINAC, 2016, p. 25).

Outra carta remetida a Rodó, do território nacional, em 25 de agosto de 1903, é do jornalista cubano Francisco García Cisneros, com quem o uruguaios e correspondeu diversas vezes. A carta é timbrada com o logotipo do Hotel dos Estrangeiros, localizado na Praça José de Alencar, no Rio de Janeiro, estabelecimento inaugurado em 1849, e atento à proposta de hospedagem associada ao cosmopolitismo carioca.

Na missiva, García Cisneros aponta que faz um mês que está em terras brasileiras, “pródigas em belezas”, diz que não conhece ninguém e escreveu da Europa a Luis Berisso, porque ele conhece o movimento intelectual do Rio de Janeiro, mas não obteve resposta, por isso pergunta a Rodó.

¿Conoce U. algún literato brasileño, a quien recomendarme? Existen en Montevideo revistas literarias - envíeme una lista - adonde puedo enviar mis artículos […]. Escríbame a este Hotel dos Estrangeiros donde estaré dos meses más. Acuérdese de mí y escríbame - se lo ruego. Suyo de corazón, Francisco García Cisneros. (26903-23903v).

Como apontou Alain Pagès (2017, p. 107), a aparência dos manuscritos guarda informações fundamentais, que revelam a materialidade do manuscrito: uma carta comunica sua mensagem não somente pelo texto que propõe, mas também pela multiplicidade dos signos que acompanham o texto: a forma da escrita, a ocupação do espaço da página, o número de folhas, os acréscimos colocados nas margens, a assinatura. García Cisneros apresenta em sua missiva vários signos: está em viagem, hospedado num hotel para estrangeiros, pedindo informações sobre a literatura brasileira, revistas de Montevidéu para enviar textos de sua autoria. Ainda complementa com a informação de que já havia escrito da Europa para outro interlocutor perguntando sobre o trânsito intelectual. Essas informações apontam naquele alvorecer do século XX uma possibilidade de pensar o trabalho do crítico a partir de enfoques teóricos metropolitanos e da necessidade de pensar as manifestações literárias e intelectuais de modo integrador, numa tentativa de agrupar escritores em torno do que é produzido, além de vislumbrar a possibilidade de se profissionalizar nesse ramo, incipiente naquele momento.

Claudio Maíz (2010) aponta que a viagem tem sido uma ação de extrema importância na história intelectual da América Latina, pois facilita a formulação de narrações de autoafirmação, a construção de metáforas culturais e a indagação identitária, além da constatação da emergência da categoria de um discurso fronteiriço. Toda essa situação reforça a perspectiva de fortalecimento de redes intelectuais, além de localizar nessas redes a importante atuação de José Enrique Rodó a partir de seu país.

As observações de García Cineros sobre a cidade do Rio de Janeiro, ao transitar pela cidade carioca, revelam sua admiração pelas belezas locais e, ao mesmo tempo, o olhar do viajante em trânsito, que almeja diluir as fronteiras nacionais em prol do intercâmbio intelectual.

Em outra pequena correspondência datada em 9 de março de 1904, timbrada com o selo institucional da Livraria Garnier e assinada pelo seu gerente à época, J. Lansac, lemos:

Em resposta a sua carta de 15 do mês passado venho comunicar que o livro a que se refere a sua precisão será remetido a Ud. pelo senhor cônsul do Uruguay desta cidade. Com alta consideração subscrevo-me. (27005).

Interessante apontar que, através dessa resposta, percebemos que Rodó gostaria de acessar um livro comercializado pela Livraria, e que o mesmo lhe seria entregue por intermédio do cônsul uruguaio. Em outra correspondência conseguimos a confirmação do envio dessa obra, que se tratava do livro de José Veríssimo, um dos seus comentadores no Brasil. Veríssimo publicou uma resenha sobre Ariel no Jornal do Comércio, em 18 de dezembro de 1900, intitulada “A regeneração da América Latina”, na qual refletia também sobre a obra de A. Rodríguez, Peligros americanos. O texto foi enfeixado no livro Homens e coisas estrangeiras, editado pela Garnier, em 1902, e aponta que Ariel seria um discurso filosófico à maneira do século XVIII, à maneira dos gregos e à maneira dos diálogos e outras peças de Ernest Renan. Veríssimo é um dos autores brasileiros que percebeu que o Brasil republicano poderia enveredar pela imitação do modelo norte-americano, e advertiu para esse perigo (BARBOSA, 1986, p. 8).

A carta assinada por Adolfo Basanez, cônsul do Uruguai no Rio de Janeiro, foi escrita a Rodó no mesmo dia da carta de J. Lansac, e diz:

Distinguido Sr. Doctor: en la librería Garnier supe que deseaba tener una obra del ilustre profesor Veríssimo, en que halla su nombre entre dos de los mas distinguidos literatos de América. Le mando el deseado libro com el Doctor Puyal. (27004).

É muito provável que Rodó tenha acessado os comentários tecidos por Veríssimo a respeito de sua obra, e que ambos tenham trocado suas produções, o que pode ser confirmado em cartão-postal remetido pelo escritor brasileiro em 21 de junho de 1909, em que agradeceu a Rodó pelo envio de sua obra Motivos de Proteo.

O interessante a ser ressaltado a partir dessa troca de correspondência, mobilizando a entrega do livro solicitado por Rodó, é sua grande curiosidade intelectual em conhecer a obra que tece comentários sobre sua produção, mostrando assim, que por trás das cartas, mesmo impessoais e indiretas, também conseguimos observar traços de uma rede literária e intelectual dispersa, mas que é capaz de denunciar dinâmicas e de ampliar o horizonte das expectativas intelectuais daqueles que se utilizaram dessa ferramenta como forma de interação de vozes.

Outro cartão-postal presente nas correspondências de Rodó é o de Henrique Lisboa, que assina como ministro plenipotenciário do Brasil:

Al ciclo de la prensa la simpática manifestación hecha a su patria el día sábado por la noche al llegar la noticia de la firma del Tratado de la Lagoa Mirin y Rio Jaguaron. (285018).

Em 24 de setembro de 1909, Rodó pronunciou o discurso “Sobre el tratado con el Brasil” no círculo da Prensa de Montevideo, à época presidido por ele, durante a festa promovida por essa instituição para um grupo de estudantes e jornalistas brasileiros que levaram o busto do barão de Rio Branco, o qual foi entregue ao Ateneu uruguaio. Esse evento ocorreu um mês antes da assinatura do tratado Merin-Yaguarón, que solidificou a livre navegação bilateral das águas das fronteiras da lagoa Mirim e do rio Jaguarão. Essa negociação teve a participação direta do barão do Rio Branco.

Em 16 de julho de 1910, Henrique Lisboa envia outro cartão-postal a Rodó, no qual agradece a ele o “amável oferecimento dos livros Ariel e Motivos de Proteo” (28929). Além disso, afirma que entregará os exemplares ao barão do Rio Branco dedicados a ele.

Em sua análise sobre os cartões-postais, cartas ou bilhetes, Haroche Bouzinac aponta que essas formas de expressão buscam comodidade, sendoo primário motor da criação da carta: “O cartão-postal com efeito autoriza uma liberação de um tom acertadamente mais desenvolto. O estilo elíptico pode se tornar exclamativo: interpela-se o destinatário” (HAROCHE-BOUZINAC, 2016, p. 50).

O teor da mensagem não é nada confidencial, mas serve para conservar o vínculo evitando as confissões.

Outra carta que ressalta a tentativa de Rodó se fazer presente no Brasil é a do jornalista Cassio Farinha, que em 1º de junho de 1909 escreveu para o autor dizendo que assistiu à conferência do Senhor Almada sobre sua obra Motivos de Proteo, proferida em 31 de maio de 1909 no Ateneu de Montevidéu, quando o conferencista se diz muito entusiasmado com a obra do seu conterrâneo:

[...] es una obra nuestra - aunque no trate de cosas nacionales, ni venga a resolver ningún problema político; que ha salido de nuestro ambiente, y que será por el mundo civilizado como el vocero de nuestra gloria o como la certificación siquiera de que existimos sobre el planeta, puesto que tenemos un pensador de fuste y un escritor exquisito. (ALMADA, 1912, p. 164-165).

A partir da conferência, Farinha se diz animado para conhecer o livro e se oferece para levar alguns exemplares para os intelectuais brasileiros:

Doctor Je. Rodó. Estimado amigo. Asistí la conferencia del Señor Almada sobre su interesante libro “Motivos de Proteo” y le confieso que quedé entusiasmado. Sigo para Rio de Janeiro el 5 de este mes y como mandé un telegrama encomiando su libro, tan bien ponderado para aquel señor es justo que allí haya gran deseo de conocerlo. Me ofrezco Señor Rodó para llevar algunos ejemplares para los intelectuales, entre estes, los señores Doctor Luis Edmundo (poeta) redactor del Correio da Manhã, Dr. Mucio Teixeira (poeta), Dr. Pedro Moacyr (escritor, deputado), Agenor de Carvoliva Mello, Cassiano Nascimento, Barbosa Lima, Carlos, Alfonso Celso Jr., Barão de Piracicaba (uno de los talentos literarios del Brasil), y otros a quien Ud. quiera enviar. Nuestra casa es en la calle Uruguay 657, y ahí estoy a su disposición. Aprovecho la oportunidad de saludarlo y de felicitarlo vivamente por su deslumbrante trabajo. (28171-28171v).

Localizamos uma breve carta de Alexandre Barbosa Lima, um dos nomes mencionados na carta acima, atestando o recebimento do livro. Apesar das poucas palavras, essa carta comprova que o livro obteve ao menos um trânsito interno no Brasil, e que Farinha pode ter cumprido com o prometido de fazer chegar às mãos dos autores mencionados.

A missiva de Barbosa Lima datada em 20 de julho de 1909, no Rio de Janeiro, diz:

Foi-me entregue um exemplar do famoso livro Motivos de Proteo, que vossa senhoria teve a extrema gentileza de brindar-me. Lembra-me sobremaneira esse espontâneo obséquio de vossa senhoria que muito me esvanece. (28235).

Outra carta dirigida a Rodó em 25 de agosto de 1909 é proveniente de Porto Alegre, assinada por César de Castro, que envia ao autor seu último trabalho literário Frutos do meu pomar.

Solicito-vos para ele a honra de um minuto de vossa atenção. Recebestes, há dias enviado, um exemplar de outro livro meu “Esperança morta”, bem como uma carta acusando a chegada,e agradecendo, em nome de Rebeldaria, o vosso sugestivo Motivos de Proteo? (28304).

Castro anunciava as causas do perecimento do periódico mencionado na carta, onde escreveria algo sobre “vossa adorável obra”:

Se me falta competência para tão alta incumbência, sobeja-me simpatia, entusiasmo, agradecimento pela emoção experimentada e persistente pelos perturbadores ensinamentos que recebi da vossa pena ilustre. (28305).

A última carta que mencionamos é assinada por Lindolfo Collor, datada em 29 de março de 1910, e está timbrada com o selo da Academia de Letras do Rio Grande do Sul. Nela afirma que gostaria de notificar Rodó sobre a constituição da mesma, cujo esforço seria a “emancipação e bons créditos da nossa literatura meridional” (28846). Elenca os nomes dos participantes, dentre eles: Achylles Porto Alegre, João Maya, Ildefonso Gomes, Pinto da Rocha, Joaquim Alves Torres, Zeferino Brasil, Augusto Porto Alegre, M. Faria Correa, Irineu Trajano da Silva, Cesar de Castro e Lindolfo Collor.

Interessante observar que a missiva possui o objetivo de notificar Rodó sobre a constituição de uma Academia de Letras, órgão difusor da literatura produzida no estado, o que indica o peso que o autor tinha para a região e, ao mesmo tempo, denuncia a tentativa de construir redes de sociabilidades literárias via a incipiente instituição.

Considerações finais

A densidade do material empírico aqui mobilizado põe relevo aos inúmeros aspectos da correspondência de José Enrique Rodó, que conservou e organizou de modo primitivo as cartas endereçadas a ele. Como apontou Reinaldo Marques (2023, p. 80), uma “função oblíqua” exercida pela troca de cartas pelos escritores é que elas funcionam como instância de constituição de seus arquivos, pois servem com recorrência para enviar textos, livros, recortes de jornais e periódicos, documentos, informações sobre obras e revistas publicadas, solicitar empréstimos de livros e devolvê-los.

A recuperação desses documentos dispersos aqui analisados traduz parcialmente que a trama epistolar de Rodó representa um amplo espaço testemunhal sobre suas tentativas de expandir sua representatividade para o Brasil. As cartas episódicas - já que não temos a oportunidade de cotejá-las ou confrontá-las - referentes ao período analisado são portadoras de conteúdos que denunciam as primeiras aproximações entre Rodó e correspondentes brasileiros,tanto com representantes de dentro quanto de fora do círculo de escritores profissionais. O contato epistolar não pode ser considerado como anódino, pois as cartas representam, em muitos sentidos, um ato de construção da memória da união latino-americana que atravessa boa parte das correntes intelectuais do período, que se pautaram pela sustentação da continentalidade, tão valorizada por Rodó.

O método artesanal das trocas de cartas, ideias, perspectivas e também a circulação de livros, reportagens de jornal, textos para revistas, o pedido de informações sobre o movimento intelectual local, guardam as memórias compartilhadas desses correspondentes com uma figura que tentou de diversas formas consolidar sua ideia de Pátria Continental.Como ele mesmo afirmou,“las fronteras del mapa no son las de la geografía del espíritu” (RODÓ, 1967, p. 156) - foi pensando dessa forma que sua perspectiva de integração ibero-americana adquiriu ênfase programática nos diálogos epistolares disseminados mundo afora, incluindo o gigante Brasil.

As cartas mencionadas denunciam o enfoque teórico metropolitano da atuação de Rodó, que manteve durante toda sua trajetória o olhar vigilante, em busca de outros escritores, obras, movimentos exteriores, que abrissem caminhos para a arte e a intelectualidade futura do continente. Desse modo, a sua travessia epistolar cruzou e logrou atingir muitas latitudes, não fixando uma enunciação, o que nos conduz a pensar na correspondência como diálogo, por mais que se apresente com monólogo.

A correspondência recebida por ele analisada neste texto nos mostra seu empenho em ponderar uma concepçãomais universal e menos particular da literatura praticada por uma geração de autores que buscava conectar o espaço ibero-americano, estabelecendo um panorama literário amplo e moderno.

  • O artigo é resultado das pesquisas de pós-doutorado realizado no Instituto de Estudos Brasileiros da Universidade de São Paulo (IEB/USP) entre 2022 e 2024, com financiamento do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), na modalidade Pós-Doutorado Sênior (Processo (102147/2022-1).
  • 2
    No livro consultado na Biblioteca de Obras Raras Fausto Castilho da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), não há prefácio nem informação de editoração. Não cotejamos as duas versões - adaptação e tradução - para analisar se há alterações significativas entre ambas.
  • 3
    Após os trechos citados das correspondências, estão inseridos os códigos de referência das cartas catalogadas no Archivo Literario (Colección José Enrique Rodó) da Biblioteca Nacional de Uruguay.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    11 Abr 2025
  • Data do Fascículo
    2025

Histórico

  • Recebido
    23 Jan 2024
  • Aceito
    13 Dez 2024
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