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“Pouco mais do que uma viagem de turismo”: as viagens de juventude de Celso Furtado

“Little more than a tourist trip”: the youth travels of Celso Furtado

RESUMO

Este ensaio sobre o significado das viagens de juventude para a formação da persona intelectual de Celso Furtado se utiliza da escrita autobiográfica para sugerir que tanto é possível constatar um movimento contínuo de alargamento dos círculos de sociabilidade para o qual as viagens contribuem, assim como perceber que essa escrita cumpre uma função que nos permite pensar naquele alargamento na chave dos riscos que esse self enfrenta no contato com o mundo e que a viagem como metáfora sumariza.

PALAVRAS-CHAVE:
Celso Furtado; relatos de viagem; escrita de si

ABSTRACT

This essay on the meaning of youth travel for the formation of the intellectual persona of Celso Furtado uses autobiographical writing to suggest that it is so possible to see a continuous movement of widening sociability circles to which travel contributes, as to realize that this writing fulfills a function that allows us to think about that enlargement in the key of the risks that this self faces in contact with the world and that the journey as a metaphor summarizes.

KEYWORDS:
Celso Furtado; travel narratives; self writing

A escrita como exercício pessoal feito por si e para si é uma arte da verdade díspar; ou, mais precisamente, uma maneira racional de combinar a autoridade tradicional da coisa já dita com a singularidade da verdade que nela se afirma e a particularidade das circunstâncias que determinam seu uso. (FOUCAULT, 2004FOUCAULT, Michel. Ditos e escritos. V. 5. Ética, sexualidade, política. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2004.).

Talvez a frase não seja mais do que um lugar comum, mas escrever sobre Celso Furtado é uma empreitada de risco. Não fosse a complexidade e a vastidão quase enciclopédica de sua própria obra, inúmeros professores e pesquisadores nacionais e estrangeiros se debruçaram sobre os seus trabalhos em diversas áreas do conhecimento e sobre aspectos diversos da sua biografia, constituindo uma fortuna crítica difícil de se dominar em pouco tempo2 2 Remeto aqui o leitor ao site do Centro Internacional Celso Furtado de Políticas para o Desenvolvimento, que reúne e disponibiliza grande parte da bibliografia sobre Celso Furtado, facilitando enormemente o trabalho dos pesquisadores. Sobre a trajetória do Celso Furtado economista, cito o excelente artigo de Afrânio Garcia Jr. (2019). .

Sendo assim, ressalto desde já que os meus propósitos aqui são bastante limitados. Arrisco-me neste ensaio a tratar do tema das “viagens de formação” a partir da escrita pessoal de Celso Furtado e, para isso, ao valer-me sobretudo do volume Diários intermitentes (2019FURTADO, Celso. Diários intermitentes: 1937-2002. Organização, apresentação e notas de Rosa Freire D’Aguiar. Prefácio de João Antonio de Paula. São Paulo: Companhia das Letras, 2019.), começo com a impressão de contrariar o seu autor. Em janeiro de 1938, ele anota com sua letra miúda e regular o seguinte: “sendo necessário, queimá-lo-ei, mas não permitirei que alguém roube o valor imutável que reside em sua essência - ser amigo e unicamente meu [...] que o mistério do acaso livre este livro de qualquer profanação” (FURTADO, 2019FURTADO, Celso. Diários intermitentes: 1937-2002. Organização, apresentação e notas de Rosa Freire D’Aguiar. Prefácio de João Antonio de Paula. São Paulo: Companhia das Letras, 2019., p. 44). Corrobora a sinceridade dessa declaração o fato de ser muito improvável que, aos 18 anos incompletos, Celso Furtado atribuísse algum valor intelectual àquelas anotações, assim como o gênero biografias e memórias não lhe parecia despertar especial interesse. Também os estudos sobre a vida privada, a subjetividade e seu papel ganham relevo nas ciências sociais em um período posterior, quando elas expandiram seus limites disciplinares e avançaram sobre terrenos insuspeitados para o então jovem estudante do Liceu Paraibano, que ainda buscava entender a si próprio e ao mundo que o rodeava com os recursos da seleção eclética que fazia na biblioteca paterna3 3 A lista que reproduzo aqui é longa e certamente incompleta. Além dos livros positivistas que herdara do tio, lia A filosofia da vida, de Will Durant, Schopenhauer, o médico eugenista Renato Kehl, os estudos literários de Agripino Grieco e um romance de Pearl Buck. Em 1940, lê “ O Guarany e Diva, de Alencar, Casa-Grande e Senzala, de Freyre, Memórias de Braz Cubas e Quincas Borba, de Machado, Joseph Fouché , de Zweig. No ano seguinte, lerá Confúcio, Platão, Graça Aranha, Kepler, Tennyson, Wilde, Bergson, Proudhon, Coulanges, Rosseau” (D’AGUIAR, 2014, p. 15). .

Por conseguinte, o presente estudo parte de dois pressupostos que contrariam duplamente o nosso autor. Primeiro, confirmando os maus pressentimentos do jovem Furtado, o pressuposto de que as ciências sociais seguem firme no programa weberiano de desencantamento do mundo nos espaços que lhes competem e que tomar como objeto de estudo os seus diários é, sim, profaná-los. Segundo, contrariamente ao que afirma em sua autobiografia de 1997, aos 77 anos de idade, quando, ao mesmo tempo que minimiza o seu zelo juvenil pela escrita pessoal, delimita e qualifica o seu valor - “a vida pessoal tem o mistério desses tesouros de fábula que, quando expostos à luz, perdem seu verdadeiro significado” (FURTADO, 1997, p. 93) -, busco destacar a importância dessa escrita pessoal4 4 Naturalmente, o conjunto de publicações dos escritos de Celso Furtado como Anos de formação e Diários intermitentes, organizado por Rosa Freire D’Aguiar, viúva de Celso, além da Obra autobiográfica, publicada em vida do autor com a colaboração de Rosa, são o principal lastro desse interesse e dessa importância. . Considero que essa escrita de si e esse cuidado de si demonstrados pelo autor, a tarefa de profunda automodelagem a que se impôs, se tiveram como condições de possibilidade os contextos em que se realizavam - a classe, a posição na família, as instituições, os diálogos, os horizontes intelectuais e, acima de tudo, a preponderância que o indivíduo biológico assume como valor básico da sociedade ocidental moderna (VELHO, 1994VELHO, Gilberto. Memória, identidade e projeto. In: VELHO, Gilberto. Projeto e metamorfose: antropologia das sociedades complexas. Rio de Janeiro: Zahar, 1994.) - foram resultado de uma escolha consciente para a qual constava como fator decisivo a vontade de entender e intervir no mundo.

Atitude própria, como argumenta Daniel Pécaut (1990PÉCAUT, Daniel. Os intelectuais e a política no Brasil: entre o povo e a nação. São Paulo: Ática, 1990.)5 5 Nísia Trindade Lima (1999), em valioso trabalho sobre os sentidos atribuídos pelos intelectuais brasileiros às categorias de “sertão” e “litoral”, sumariza o debate travado nos anos 1990 acerca de uma periodização que estabelece continuidades e descontinuidades entre o ensaísmo das primeiras décadas do século XX e o surgimento de uma fase científica na investigação social no Brasil com a fundação da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da USP em 1933 e da Escola Livre de Sociologia e Política. Como não é o caso de retomar aqui este debate, adoto, juntamente com Nísia e outros, a periodização de Daniel Pécaut e principalmente a perspectiva da relevância do vínculo entre os intelectuais e o projeto de nação, no caso brasileiro. , do tipo de relação que os intelectuais brasileiros desde a década de 1920 estabeleceram com o Estado que embutiu o voluntarismo como marca predominante. Ou seja, embora esse processo de automodelagem não seja incongruente com um momento de crença na autonomia e na autossuficiência dos intelectuais enquanto categoria - e ser um deles parece ter sido desde sempre a escolha de Celso Furtado6 6 Para a diferença entre identidades socialmente já dadas e outras adquiridas em função de opções e escolhas, remeto ao artigo de Gilberto Velho (1994), “Memória, identidade e projeto”, publicado em Projeto e metamorfose: antropologia das sociedades complexas . -, o destaque aqui é dado para os elementos que concorreram para a sua execução. Ou seja, importa aqui como isso foi feito e não por que foi feito.

Convém, portanto, começar este ensaio sobre o significado das viagens de juventude para a formação da persona intelectual de Celso Furtado tecendo alguns comentários sobre o corpus documental desse trabalho, que são, além dos já mencionados Diários intermitentes (2019) e o primeiro volume da Obra autobiográfica (1997), os textos publicados no quinto volume da Coleção Arquivos Celso Furtado, Anos de formação - 1938-1948: o jornalismo, o serviço público, a guerra, o doutorado (2014).

O livro Diários intermitentes: 1937-2002 consiste na publicação de uma seleção das anotações íntimas de Celso Furtado em ordem cronológica - com exceção do período da guerra, destacado por Rosa Freire D’Aguiar em um capítulo à parte, “A guerra na Itália, 1945” - e que são pontuadas, primeiro, pela experiência dos deslocamentos e depois, já ao final, pela flutuação dos registros entre as dimensões do pessoal e do público, em “Balanços, sínteses, 1988-2022”. Nesse livro consta “quase meia centena de cadernos incompletos” que se estendem por 65 anos. Para efeito da análise serão consideradas mais detidamente as anotações de 1937 a 1948; as posteriores serão incluídas apenas quando se referirem especificamente a esse período.

Já a Obra autobiográfica é composta de três volumes. O primeiro, A fantasia organizada, começa com os dez Contos da vida expedicionária, ficção escrita durante o tempo em que o nosso autor esteve na guerra7 7 Esses contos foram publicados originalmente em 1946, com o título De Nápoles a Paris (Contos da vida expedicionária) e republicados nessa edição da Obra autobiográfica por insistência de Rosa Freire d’Aguiar. . Também aqui serão selecionados desse primeiro livro as partes que correspondem ao mesmo período mencionado acima, ou seja, os capítulos “Os ares do mundo” e “Fuga para a planície”, em que é flagrante a ausência dos fatos de sua infância e juventude em João Pessoa e Recife. A narrativa começa no pós-guerra em 1947, no Rio de Janeiro, no momento em que o autor avalia o destino mais adequado - URSS, Londres ou Paris - para o prosseguimento de sua formação intelectual e profissional. Celso Furtado assume aqui a sua persona pública como critério de seleção dos fatos e parece considerar suas primeiras impressões como irrelevantes em um projeto de história das ideias ou do papel das ideias na história. Pelo contrário, concentra-se na análise da conjuntura europeia do período em seus aspectos econômico, político, social e cultural, a partir das suas observações à época, ou seja, por um testemunho pessoal dos acontecimentos. O jovem Celso Furtado surge, então, no texto da autobiografia, como um personagem do Celso Furtado da velhice, que - se colocados em diálogo - por vezes corrige os excessos do primeiro, como veremos mais adiante.

Nesse sentido, suponho, estamos como que diante de personas literárias distintas que compartilham uma mesma biografia. O título do primeiro livro da Obra autobiográfica é sugestivo para esta via de interpretação: “A fantasia organizada”, tirado de um verso de Paul Valery (“Ne sommes-nous pas une fantaisie organisée? Une incohérence qui fonctionne, et un désordre qui agit?”), pode ser uma resposta positiva às indagações da mocidade. A busca juvenil de coerência subjetiva parece ter sido deixada de lado. As questões tornaram-se outras para o autor da maturidade.

Assim, na medida em que invertem ou subvertem o ordenamento autobiográfico, centrado na vida pública, as anotações feitas em Diários servirão para introduzir a presença de um contexto subjetivo de desordem, aleatoriedade e imprevisibilidade que o atravessavam no processo de automodelagem do self, quando nada ainda estava definido.

Irei, além disso, me referir aos aspectos distintos sob os quais os momentos, a escrita autobiográfica e as viagens podem ser analisados. Desde uma perspectiva manifesta, decerto constatamos um movimento contínuo de alargamento dos círculos de sociabilidade para o qual as viagens contribuem; contudo, desde o ponto de vista da análise dessa escrita, verificamos que ela cumpre uma função que nos permite pensar aquele alargamento na chave dos riscos que esse self enfrenta no contato com o mundo e que a viagem como metáfora sumariza: a viagem ao Recife e ao Rio de Janeiro, quando enfrenta a vida da metrópole pela primeira vez, a viagem à Itália, quando enfrenta os horrores e os riscos da guerra e as viagens a Paris e à Europa, quando enfrenta o desafio da inserção em um círculo social e intelectual ideologicamente complexo e variado.

Ao falar dessas viagens estamos, enfim, como nos diz Ricardo Benzaquen de Araújo (2019ARAÚJO, Ricardo Benzaquen de. Zigue-zague: ensaios reunidos (1977-2016). Seleção e organização: Carmen Felgueiras, Marcelo Jasmin e Marcos Veneu. Rio de Janeiro: Editora PUC-Rio; São Paulo: Editora Unifesp, 2019., p. 417),

[...] no mais legítimo terreno do idealismo alemão, marcado pela ideia de Bildung, isto é, de um projeto de formação, de aperfeiçoamento da personalidade que exige a intervenção de algo externo e objetivo que, agindo como se fosse um desafio lançado à vida interior, força a subjetividade a se transformar para enfrentá-lo, fazendo com que, por essa rota, ela termine por alcançar um estágio superior, mais cultivado de si mesma.

Viagem e escrita pessoal estarão, portanto, unidas de modo indissociável nessa trajetória dos anos de formação de Celso Furtado.

Diários intermitentes começa com as anotações de Furtado em 26 de julho de 1937, no dia do seu aniversário de 17 anos. Suas preocupações são exclusivamente intelectuais e dizem respeito apenas a si próprio. Recluso em casa, sai à noite para uma conferência e se mete em conversas sobre o individualismo e o socialismo. No dia seguinte cumpre o serviço militar. Afirma não existir o amor para ele - o amor que sentia não era o de toda gente e, por isso, linhas depois se declara apaixonado, escrevendo versos e idealizando afetos platônicos, amando a música mais que nunca. Considerava também incomum a sua autoconfiança nesse dia.

Incomum, dado que relativamente recente. Relatos posteriores da sua infância mais remota revelam o oposto, uma sensibilidade afetada pela ausência de delicadeza e afabilidade da família. Parecem querer transpor a aridez, a secura e a dureza do meio ambiente da região para as relações familiares. A própria alusão à feiura e estupidez da primeira infância reforça o sentimento de isolamento e inadequação de Furtado. Além disso, essas anotações não mencionam que muitas delas serão copiadas nas cartas aos familiares - ao pai, à mãe, à madrinha, a amigos8 8 Conforme aponta Rosa Freire d’Aguiar na “Introdução” do volume 6 dos Arquivos Celso Furtado e que podemos observar na leitura das próprias cartas, as anotações dos diários são ali transcritas literalmente. Sendo assim, correspondência, diário e textos de caráter público assumem um caráter simbiótico. Seria necessário, portanto, uma pesquisa mais aprofundada para distingui-los com propriedade, embora seja lícito supor que as anotações de caráter mais íntimo não tenham sido compartilhadas. Por ora, trabalharemos com a hipótese da precedência e da independência da escrita de Diários . - nem que houvesse interlocução entre eles. Ou seja, a omissão produz o efeito de acentuar um sentimento subjetivo de profunda solidão.

João Pessoa, 18.08.37. [...] Tirei uma conclusão nestes dias que é minha de muito, mas que eu havia desprezado em parte nos últimos tempos: a felicidade só chegou até mim, só se sente atraída por mim nos momentos em que eu consigo me isolar o mais possível dos homens. (FURTADO, 2019FURTADO, Celso. Diários intermitentes: 1937-2002. Organização, apresentação e notas de Rosa Freire D’Aguiar. Prefácio de João Antonio de Paula. São Paulo: Companhia das Letras, 2019., p. 42).

Consequentemente, esse desejo de isolamento o levava a perceber a sociabilidade como perda - “João Pessoa, 1937. [...] o pobre-diabo ficava na obrigação de perder horas e horas alimentando o pior dos assuntos (que geralmente é o escolhido) com uma pessoa medíocre, tendo por cima de se submeter a tudo para ser ‘cavalheiro’” (FURTADO, 2019FURTADO, Celso. Diários intermitentes: 1937-2002. Organização, apresentação e notas de Rosa Freire D’Aguiar. Prefácio de João Antonio de Paula. São Paulo: Companhia das Letras, 2019., p. 42) -, revelando inclusive alguma misantropia e misoginia: João Pessoa, 20.02.38. [...] se o mundo tivesse mesmo de se acabar? [...] Perderia todos os escrúpulos! Vingar-me-ia da sociedade, dos homens, das mulheres - do mundo!” (FURTADO, 2019, p. 45).

Nesse processo de tornar-se pessoa através da literatura e da música, recursos de autoformação em um primeiro momento, Celso Furtado filosofa: “A dor aproxima” (“Nós só nos identificamos com o mundo através da dor” (FURTADO, 2019FURTADO, Celso. Diários intermitentes: 1937-2002. Organização, apresentação e notas de Rosa Freire D’Aguiar. Prefácio de João Antonio de Paula. São Paulo: Companhia das Letras, 2019., p. 45); “O ócio afasta”; “Tolice viver” (no mundo). Frases que possivelmente refletem suas leituras precoces de Schopenhauer9 9 Desde 1931, o autor já estava disponível para o público de língua portuguesa, pois nessa data a editora carioca Livraria H. Antunes publicara Dores do mundo - A metafísica do amor - A morte - A arte - A moral - O homem e a sociedade. . Em contrapartida, tem a ideia de escrever uma História da Civilização Brasileira considerando influências individuais e coletivas. A ambição desse projeto é temperada pela modéstia das anotações de outubro de 1939: “quando penso que outra pessoa é muito ignorante, folheio um livro de cultura variada para os pequenos de dez anos e - mortificante exercício - constato página por página quantas são as coisas que não sei” (FURTADO, 2019, p. 53).

“O que nos surpreende é a novidade” (João Pessoa, novembro de 1939)

Como afirmei logo de início, as viagens relativizam o isolamento em que o jovem Celso Furtado se colocara e resultam em uma intensificação da sociabilidade. Assim, a viagem é coetânea desse processo de autoformação. Retiram-no do seu casulo literário e artístico e o atiram no mundo. Entretanto, esse não é um movimento abrupto. Até a primeira viagem para a Europa, Celso Furtado passará pelo Recife e pelo Rio de Janeiro.

Assim, a ida para Recife, prosseguindo seus estudos secundários no Ginásio Pernambucano, é notável pela transformação que opera no sentido de um alargamento das experiências, ainda que, de imediato, tenha acentuado a sensação de isolamento. Isso é bastante perceptível no tom nostálgico, melancólico e sobretudo ambíguo da anotação em seu quarto de pensão em frente ao Capiberibe, em que percepção de que, se o mundo platônico que criara produzia tédio e tristeza, a destruição desse mundo também lhe causa sofrimento: “Recife, 20.03.38. [...] Eu tinha o meu mundo - aonde as asas imensas de minha personalidade se expandiam e semeavam as ideias fecundas que as tornavam sublimes” (FURTADO, 2019FURTADO, Celso. Diários intermitentes: 1937-2002. Organização, apresentação e notas de Rosa Freire D’Aguiar. Prefácio de João Antonio de Paula. São Paulo: Companhia das Letras, 2019., p. 46).

Nesse momento de indefinição, aproxima-se dos professores. Dá-se conta da mediocridade dos colegas, com os quais se compara. Tanto que trata com o máximo de objetividade possível o comentário do professor Olívio Montenegro sobre o trabalho “Liberalismo econômico”, dos elogios que fez, além das promessas de introduzi-lo no círculo intelectual de prestígio nacional. Não há qualquer acento subjetivo nessa anotação de 26 de outubro de 1938, assim como não ele denota surpresa alguma com o reconhecimento.

A importância da vida em Recife nesse movimento de ampliação dos círculos de sociabilidade do jovem Celso Furtado pode ser dimensionada pela anotação do dia 13 do mês seguinte: “um acontecimento notável veio perturbar a monotonia da minha vida” (FURTADO, 2019FURTADO, Celso. Diários intermitentes: 1937-2002. Organização, apresentação e notas de Rosa Freire D’Aguiar. Prefácio de João Antonio de Paula. São Paulo: Companhia das Letras, 2019., p. 50). Narra em detalhes o incidente em que policiais tomaram a bola e a rede do voleibol que ele e seus colegas jogavam em Olinda. Envolve-se no bate-boca e acaba recebendo voz de prisão. Mas o incidente é a oportunidade para revelar a si próprio (e talvez aos seus) a sua capacidade de estabelecer contatos e de seduzir o seu interlocutor. No caso, o soldado que o conduziu à delegacia e que o convidou para um “festão no colégio de Olinda, das freiras, de noite”. Incidente saboroso, que termina com a exclamação: “Ah! Esta vida...” (FURTADO, 2019, p. 50).

Ou seja, a sequência em que lemos os dois episódios, esse e o anterior sobre o seu desempenho escolar, sugere que a consolidação do êxito acadêmico o fortalece subjetivamente e o induz a experimentar de modo positivo, e não mais como perda de tempo, uma sociabilidade mais ampliada, inclusive com extratos mais populares. Algo que, aliás, se revelará bastante frequente a partir da sua ida para Itália como membro da Força Expedicionária Brasileira (FEB), cuja experiência será relatada nos Diários, em artigos e em alguns dos seus Contos da vida expedicionária, como veremos mais adiante.

O segundo deslocamento é para o Rio de Janeiro em 10 de janeiro de 1940. As provas para o ingresso na Faculdade de Direito (foi o primeiro candidato do Norte) são consideradas como um desafio estimulante, e ele declarará: “Gosto de coisas difíceis”.

Aos 20 anos já possui uma noção bastante precisa da sua inteligência e do seu critério para discriminar o joio do trigo:

Quem me vê tomando café na Cinelândia com Villa-Lobos [...] não dirá nunca que sou um pobre-diabo10 10 Caberia dedicar mais atenção à antinomia que essa expressão de uso relativamente frequente por Furtado parece indicar. Certamente denota uma consciência da sua origem de classe relativamente humilde e provinciana que pretende transcender, mas também pode sugerir uma aspiração de “mundanização”, no sentido de ser como toda gente. Tentarei retomar este ponto mais adiante. ... que não mora em apartamento luxuoso... mas que sabe juntar o dinheiro necessário para aproveitar, tanto quanto os grandes, do bom, e muito mais do que aqueles que mandam em mim e ganham vinte vezes mais do que eu. (FURTADO, 2019FURTADO, Celso. Diários intermitentes: 1937-2002. Organização, apresentação e notas de Rosa Freire D’Aguiar. Prefácio de João Antonio de Paula. São Paulo: Companhia das Letras, 2019., p. 59).

Mas é crítico de Villa-Lobos pela imitação estrangeira e pela sua pecha de “gênio incontestado”, mas sem “personalidade” (FURTADO, 2019FURTADO, Celso. Diários intermitentes: 1937-2002. Organização, apresentação e notas de Rosa Freire D’Aguiar. Prefácio de João Antonio de Paula. São Paulo: Companhia das Letras, 2019., p. 62); em contrapartida, Furtado não hesita em fazer rasgados elogios ao pianista polonês, radicado no Estados Unidos, Arthur Rubinstein. Crítica e elogio não aparecem referidos às disputas em torno da construção de uma cultura nacional em pleno Estado Novo.

Neste ponto, cabe observar que assim como a dimensão da intimidade está ausente da Obra autobiográfica, a vida nacional está praticamente ausente nos relatos dos anos 1937-1948 que vieram à luz nos Diários. Evidentemente, isso não significa que Celso Furtado fosse indiferente aos problemas nacionais; pelo contrário, desde muito cedo, como o atestam os textos jornalísticos e os derivados de sua atividade no serviço público do período 1941-1946, ele estava bastante empenhado em debatê-los, assim como trata de questões teóricas mais gerais, como o seu trabalho de 1938 sobre o liberalismo econômico, no qual fica evidente a sua precocidade intelectual, mesmo para os padrões da época. Ou seja, Furtado estava imerso na atmosfera do período, pois tanto a sua geração quanto a anterior, a do seus mestres, formularam uma autocompreensão de si como portadores de uma missão: seja, no primeiro caso, a de vocalizar os interesses do povo, estabelecendo um nexo entre o povo e a nação, seja, no segundo, a de encontrar no povo os elementos para a sua própria geração organizar a nação11 11 Utilizo aqui a formulação de Daniel Pécaut, mas ciente de que sua proposta não encontra unanimidade entre os principais estudiosos do pensamento social brasileiro. Desde, claro, Sérgio Miceli, com quem Pécaut trava um diálogo áspero, logo no início do seu trabalho, até André Botelho (2019, p. 202), para quem “buscar qualquer unidade para os ensaios de interpretação do Brasil escritos entre 1920 e 1940 constitui, na melhor das hipóteses, um movimento analítico de atribuição e não de inferência de unidade”. Contudo, considero a hipótese generalizadora de Pécaut (formulada através do conceito de “cultura política”, reconhecendo inclusive as diferenças significativas entre os autores dos períodos analisados) produtiva para os objetivos deste trabalho e faço dela um uso apenas pragmático. . É compreensível também que, da mesma forma que a maioria dos que pertenciam a esse estrato, Furtado nem se identificasse com a sua própria classe social nem pretendesse vocalizar os seus interesses12 12 Pelo contrário, todas as referências à sua inserção de classe são profundamente negativas e revelam o seu desejo de transcendê-la. . Está muito nítida a sua autopercepção como alguém “acima da média”, e seu interesse em pensar o Brasil em seus projetos de livro de história e de ficção de modo algum difere em seus propósitos do que constituía principal fonte de legitimação da atividade intelectual desde a década de 1920: o de ser portador de um saber socialmente considerado como relevante.

Em resumo, se para a geração dos intelectuais dos anos 1920, consideradas as especificidades de cada um deles, o propósito fora constituir e organizar a nação partir do “alto”, identificados que estavam com o Estado em um projeto elitista de sociedade, a geração seguinte também prosseguiu em seu viés racionalizador e voluntarista.

Assim, os dois elementos que, a princípio, são coordenadas para a construção a sua própria trajetória intelectual e profissional - o planejamento e a paixão - podem ser identificados no trabalho coletivo de constituição da nacionalidade, a partir do desejo voluntarista que foi o da sua geração. Um mote que elabora aos 24 anos e que é possível supor que levará para o resto da vida.

Mas, nas anotações de 1944, a ênfase do jovem Furtado ainda é, em grande medida, colocada na sua própria subjetividade, vista então como empecilho para a sua vocação de escritor. A pena como alter ego não lhe permitiria transcender o seu próprio eu.

Procura lidar racionalmente com sentimentos depressivos - “A ilusão de que tinha um papel a desempenhar sob o sol fundiu-se em nada” (FURTADO, 2019FURTADO, Celso. Diários intermitentes: 1937-2002. Organização, apresentação e notas de Rosa Freire D’Aguiar. Prefácio de João Antonio de Paula. São Paulo: Companhia das Letras, 2019., p. 62) -, e para isso o caderno é um recurso para “pensar sistematicamente”. Os problemas intelectuais que o ocupam (“afogam”) são variados e inconstantes: a vocação, a vaidade, o papel do sensualismo. Chega, enfim, à conclusão: “tenho várias personalidades, todas diluídas, nenhuma inteiriça. A consciência do tempo perdido dói-me como uma chaga” (FURTADO, 2019, p. 64).

Mais uma vez procura uma saída literária para a sua angústia. O projeto do livro, cujo título seria “Transumância”, revela a sua preocupação, além do seu próprio deslocamento, com a migração interna que começava a ocorrer no país em função dos processos de urbanização e industrialização do sudeste. As figuras centrais viriam do interior e estariam num processo de adaptação da metrópole. É possível, portanto, inferir que as três figuras centrais do romance representam vias ou alternativas que Celso Furtado visualiza para si próprio: em todas elas um ponto de partida de classe e uma saída ou libertação dos valores de sua classe ou do meio em que se insere: a saída pela arte, pelo misticismo ou a saída coletivista.

Se a segunda alternativa não parece ter sido tentada, a primeira é seriamente considerada. Observamos, ao retornarmos às suas anotações do Rio de Janeiro, que em junho de 1944 ele havia sido acometido por “crise de ataraxia”13 13 Independentemente dos significados da palavra ataraxia (um estado de espírito livre de perturbações) nas diferentes escolas do pensamento clássico, o emprego do termo por Celso Furtado tanto indica seu contato com a filosofia estoica como lhe subverte o sentido. Retornarei a isso mais adiante. e que vai superá-la pelo seu interesse numa obra de arte, vista como a porta de entrada para a universalidade no comunicar-se com o mundo.

Entre 18 e 21 de fevereiro de 1945, a bordo do General Meigs, a caminho da Itália, Celso Furtado traça nas páginas de um caderno de capa de cartolina cinza o inventário de sua vida desde então. Nelas refere-se brevemente ao tempo transcorrido na viagem, aos destinos próximos, Gibraltar e Nápoles, a costa da África, e o que a vista alcança. Lugares que parecem funcionar como pontos de apoio metafóricos em uma narrativa da imprecisão e da imprevisibilidade da sua vida, contra as quais se rebela. Começa afirmando que, se pouco pensou nas implicações do seu alistamento, acredita ser porque o seu espírito sempre esteve inclinado a aceitar as situações imprevistas. E conclui que vinha passando desde os seus 14 anos por um longo processo de “desagregação ideológica”, a desagregação de uma vida interior plena, “mas constituída apenas de sonho” (FURTADO, 2019FURTADO, Celso. Diários intermitentes: 1937-2002. Organização, apresentação e notas de Rosa Freire D’Aguiar. Prefácio de João Antonio de Paula. São Paulo: Companhia das Letras, 2019., p. 65). Percebe a biografia de cada homem como uma obra a ser realizada em função de um fim, mas a angústia se revela quando o fim se move como uma miragem no deserto: primeiro a mulher e a natureza, em seguida a cultura e a sabedoria humana, a arte. “A história, a filosofia, a erudição, a literatura, as ciências naturais, a musicologia, a crítica - qualquer desses ramos do conhecimento seria suficiente para me inundar a imaginação, me absorver todo inteiro” (FURTADO, 2019, p. 76). Completa as reflexões do dia com um balanço. Positivo, por um lado: “a minha vida de estudante fora uma progressão de sucessos; as minhas qualidades intelectuais e morais estavam bem acima da média, sabiam todos. Acostumara-me a ver tudo de cima.” (FURTADO, 2019, p. 76). Negativo, por outro: pois também se acostumara, como já vimos, a ser uma criatura só, autossuficiente: “Nunca conhecera o contato de uma criatura humana. A família praticamente não existia para mim” (FURTADO, 2019, p. 77).

Esse balanço é feito com método, da mesma forma com que ele construíra o plano do seu livro a partir da caracterização de seus personagens. Passava a compreender-se através de sua posição em um todo, no qual categorias como marginalidade social e decadência da sociedade tanto conferiam um novo sentido às suas preocupações como apontavam para os limites de uma saída individual. Descrê do homem como “potência autônoma”. Via a necessidade de integrar-se em um “grupo social consistente”14 14 Fugiria aos propósitos deste artigo explorar a questão, mas cabe notar que no “grupo social consistente” a que ele se refere estão excluídas “a comédia da vida dos intelectuais, e a feira da arte, e o meretrício do pensamento!” (FURTADO, 2019, p. 78). , cuja rotina o protegeria contra as angústias existenciais que o acompanharam até aquele momento.

As minhas angústias foram incalculavelmente profundas. Isto porque tinham origem complexa e se alastravam em um espírito onde não restavam pontos de apoio. Considere-se que eu carregava comigo uma segunda personalidade que nada ou pouco devia ser afetada por tudo isso. Acresce que a minha solidão fazia com que a dor se circunscrevesse a mim exclusivamente. (FURTADO, 2019FURTADO, Celso. Diários intermitentes: 1937-2002. Organização, apresentação e notas de Rosa Freire D’Aguiar. Prefácio de João Antonio de Paula. São Paulo: Companhia das Letras, 2019., p. 79).

Pausa

Deixarei, por ora, em suspenso esse balanço autobiográfico de Celso Furtado para efetuar uma pausa na análise a fim de refletir sobre o que está em jogo em sua escrita pessoal a partir de algumas chaves de interpretação. Acredito que, dentre muitas possíveis, duas delas são centrais. Uma, que já vem sendo sugerida, refere-se ao processo de autoformação pela “escrita de si”, na qual o plano de vida assume preponderância; e a outra diz respeito ao tipo de retórica empregado nessa escrita e qual o efeito pretendido por Celso Furtado.

Começando pela primeira chave, cabe citar um trecho do estudo de Foucault de 1983 para resumir o ponto que nos interessa mais de perto neste momento: ou seja, que a escrita de si, tal como aparece em documentos do séculos I e II d.C., funcionava como arma contra a solidão dos ascetas - “o que os outros são para o asceta em uma comunidade, o caderno de notas será para o solitário” (FOUCAULT, 2004FOUCAULT, Michel. Ditos e escritos. V. 5. Ética, sexualidade, política. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2004., p. 145) -, mas também como instrumento de constituição de si - o caderno de notas servia como registro do que se lia e escrevia e, nesse movimento, obrigava o seu autor a se colocar nessa escrita e a constituir a si próprio. Nesse sentido, se, por um lado, a escrita unifica os “fragmentos heterogêneos pela sua subjetivação no exercício da escrita pessoal”, por outro, “o copista cria sua própria identidade através dessa nova coleta de coisas ditas” (FOUCAULT, 2004, p. 152).

Uma sequência de três máximas preenche as páginas do diário em outubro de 1939, antes que ele complete com ironia, praticamente endossando a conclusão do nosso filósofo:

João Pessoa, outubro de 1939. Quando dizem “o homem descende do macaco”, julgam ter feito o resumo completo de Darwin; quando dizem: “tudo é relativo”, Einstein; “o fim justifica os meios”, Machiavel. Por que todos sabem que Machiavel punha “panos reais e curiais” para ler, e ninguém sabe que Buffon, para escrever, punha o colarinho e os punhos de renda? Todos repetem que, se o nariz de Cleópatra tivesse sido menor, a face do mundo seria diferente, e ninguém cita aquela outra frase de Pascal, da mesma forma lapidar, do grãozinho de areia na uretra de Cromwell. (FURTADO, 2019FURTADO, Celso. Diários intermitentes: 1937-2002. Organização, apresentação e notas de Rosa Freire D’Aguiar. Prefácio de João Antonio de Paula. São Paulo: Companhia das Letras, 2019., p. 54).

Creio que a esta altura já tenhamos elementos mínimos para uma comparação com o exercício espiritual desenvolvido pelo jovem Furtado, em seus aspectos de semelhança, mais ou menos evidentes, quando lembramos da relação ambígua com sua condição solitária. De fato, a escrita pode ter funcionado como uma arma contra os perigos da solidão nas primeiras notas, assim como nas anotações em que faz as listas dos livros lidos ou quando sintetiza as suas leituras conferindo a elas a sua singularidade de leitor. Funcionava também como “um guia de vida, um guia de conduta”, sobretudo na medida da ausência de orientação paterna.

Contudo, se é possível reconhecer na escrita pessoal de Furtado os ecos dessa tradição, talvez seja também proveitoso atentar para as diferenças. Uma primeira aparece quando Foucault (2004FOUCAULT, Michel. Ditos e escritos. V. 5. Ética, sexualidade, política. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2004., p. 150) observa que na antiguidade greco-romana a técnica é utilizada contra a stultitia (“a agitação da mente, a instabilidade da atenção, a mudança de opiniões e vontades”) e constitui “o meio pelo qual a alma é afastada da preocupação com o futuro, para desviá-la na direção da reflexão sobre o passado”. Sabemos que na escrita de si de Furtado, se, por um lado, a stultitia é francamente evitada em favor da sapientia, o movimento em direção ao futuro é, por outro lado, incontornável e condiciona a necessidade de planejamento da vida. Mas uma segunda diferença, talvez ainda mais importante, pode ser mencionada. Foucault começa o seu texto mostrando que a Vita Antonii, de Atanásio (296-373 d.C.), é feita em substituição ao “olhar dos companheiros de ascese”, porque “o constrangimento que a presença do outro exerce na ordem da conduta, a escrita o exercerá na ordem dos movimentos interiores da alma, [quando] tratar-se- á de desalojar do interior da alma os movimentos mais escondidos de forma a poder deles se libertar” (FOUCAULT, 2004FOUCAULT, Michel. Ditos e escritos. V. 5. Ética, sexualidade, política. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2004., p. 162) e dar aos monges um modelo digno de imitação. Está evidente, portanto, que o exercício de constituição de si tinha por finalidade o agir e não a formação da personalidade, como sugiro ser o caso de Celso Furtado, reforçando todo um contexto institucional voltado para esse objetivo.

Esse é um ponto que precisa ser expandido antes de prosseguirmos. Conforme escreve Leopoldo Waizbort (2015WAIZBORT, Leopoldo. Formação, especialização, diplomação Da universidade à instituição de ensino superior. Tempo Social - Revista de Sociologia da USP, v. 27, n. 2, 2015, p. 45-74., p. 46), em artigo que trata dos diferentes modelos de universidade adotados na modernidade ocidental, a ideia de formação “é produto do século XIX e está inextricavelmente ligada a um contexto social, histórico, político e cultural particular, que modela o conceito”. Além disso, “formação” está em uma relação de mútua determinação com a “personalidade”. Ou seja,

A ideia de personalidade supunha uma formação, assim como a formação depende da personalidade. Personalidade supunha formação por ser justamente o resultado de um processo formativo, no qual o indivíduo, ao longo do tempo, adquire um patrimônio interior mais amplo, mais diferenciado e mais profundo. Por outro lado, a formação, cujo sujeito e suporte é o indivíduo, depende da personalidade ao mobilizar aquela diferenciação, amplitude e profundidade em uma espécie de conversação coletiva, em um processo complexo de circularidade e de determinação mútuas, em que formação e personalidade vão se incitando e aprofundando uma à outra ao longo do tempo, em um processo sem fim. (WAIZBORT, 2015WAIZBORT, Leopoldo. Formação, especialização, diplomação Da universidade à instituição de ensino superior. Tempo Social - Revista de Sociologia da USP, v. 27, n. 2, 2015, p. 45-74., p. 46).

Mas não se trata, neste contexto, de um processo exclusivamente interno, autoformativo:

A conversação, ou seja, as formas de comunicação que estão no âmago do processo formativo, possibilita que o desenvolvimento da personalidade não se confunda com qualquer espécie de solipsismo ou enclausuramento, mas se abra para a multiplicidade das formas de existência e pensamento e, com isso, “se forme”. (WAIZBORT, 2015WAIZBORT, Leopoldo. Formação, especialização, diplomação Da universidade à instituição de ensino superior. Tempo Social - Revista de Sociologia da USP, v. 27, n. 2, 2015, p. 45-74., p. 46)15 15 As conclusões de Leopoldo Waizbort (2015) apontam para uma falência desse modelo de Bildung na Alemanha e nos Estados Unidos já no início do século XX com o surgimento da figura do especialista, falência já identificada por Max Weber em seu célebre “Ciência como profissão” de 1917. Seguindo com Waizbort, esse modelo humboldtiano de formação é o que fora implantado na criação da Universidade de São Paulo (USP) em 1934, o que nos autoriza a pensar na presença do contexto para o caso de Furtado, assim como sugerir outros desenvolvimentos no sentido de explorar no autor esta dupla inserção cultural, como humanista e como especialista. .

Ou seja, certamente, no que diz respeito a esse processo mais amplo, tanto a escrita como as leituras, as viagens, a universidade, assim como os demais círculos de sociabilidade nos quais Celso Furtado ingressa, todos eles são elementos que concorrem para a formação de sua personalidade. No entanto, em se tratando dos diários, como a ausência de menção ao diálogo epistolar com os familiares e amigos indica, a automodelagem é um processo solitário que antecede qualquer objetivação e é capaz de fornecer os recursos para os seus riscos, dentre os quais a perda de referências. Constitui o principal risco da solidão a stultitia, perder-se de si e do seu projeto de autoformação.

Pois é disso que se trata: em Celso Furtado a escrita de si é solidária com um rigoroso planejamento da vida para o enfrentamento dos riscos que as viagens, metafóricas ou reais, representavam, pois só assim o ideal de aperfeiçoamento poderia estar à altura dos desafios, no sentido de que quanto maiores eles fossem mais a personalidade se formaria e se aperfeiçoaria.

Retomando o balanço de vida a bordo do General Meigs16 16 Também nesse caso, sigo as sugestões de Ricardo Benzaquen de Araújo (2019) para o exame das possibilidades interpretativas da relação entre a escrita de si como uma espécie de inventário da vida até então e a situação na qual nosso autor se encontrava, em um mar que poderia representar a ameaça da indissociação, tal como representado na tradição grega. “O mar, neste caso, costuma ser definido como algo que - simplesmente - não tem caráter. Cabe recordar aqui que caráter, em grego, se relaciona com a ideia de sulco, ou seja, com a possibilidade de que, ao se escrever alguma coisa, se possa manter uma memória indelével do que se escreveu” (ARAÚJO, 2019, p. 353). , vemos que ele anota:

No meio dessa crise eu reuni todas as minhas forças e resolvi disciplinar a vida. Sistematizei uma série de hábitos, submeti-me a um programa de estudo (verdadeiro narcótico para o espírito) e arquitetei um futuro. A rigidez e amplitude desse programa de vida levar-me-ia a um permanente esforço de extroversão e disciplina. (FURTADO, 2019FURTADO, Celso. Diários intermitentes: 1937-2002. Organização, apresentação e notas de Rosa Freire D’Aguiar. Prefácio de João Antonio de Paula. São Paulo: Companhia das Letras, 2019., p. 79).

A observação que Furtado faz no retorno ao Brasil com o fim da guerra é também forte e dramática o bastante para demonstrar essa preocupação permanente em planejar a própria vida:

[...] com a conclusão das operações e a esperança de breve retorno, já se pode pensar um tanto em programa de vida. [...] tudo no Brasil se modificou tanto, desde a minha saída, que se tornou indispensável uma revisão de programa de vida. E eu sem um bom programa sou um homem morto... (FURTADO, 2019FURTADO, Celso. Diários intermitentes: 1937-2002. Organização, apresentação e notas de Rosa Freire D’Aguiar. Prefácio de João Antonio de Paula. São Paulo: Companhia das Letras, 2019., p. 86).

Assim, a expressão “homem morto” parece indicar homem estagnado, parado - justamente aquele da crise de ataraxia - diante das mudanças. Logo, o programa o levaria adiante, em direção não a um futuro incerto, mas a um futuro minimamente controlado. Além disso, trata-se, no caso do nosso autor, de um indivíduo plástico o suficiente para se adaptar à mudanças - como já o vimos dizer, “O meu espírito tem sido sempre inclinado a aceitar as situações imprevistas” (FURTADO, 2019FURTADO, Celso. Diários intermitentes: 1937-2002. Organização, apresentação e notas de Rosa Freire D’Aguiar. Prefácio de João Antonio de Paula. São Paulo: Companhia das Letras, 2019., p. 75) -, mas constitui operação fundamental manter o que já fora consolidado no processo de automodelagem. No entanto, chama a atenção o fato de que, mais que projetos concretos, o que vemos em Diários é uma aspiração, ou seja, a busca do projeto e de sua capacidade de disciplinar uma personalidade excessivamente plástica e adaptável.

Esse conjunto de ideias - o sentido do projeto, unido à escrita pessoal e à ideia de viagem - se encontra precisamente articulado por Marcelo Timotheo da Costa no artigo em que examina, na tradição cristã da escrita de si, os diários do monge trapista americano Thomas Merton e os do intelectual católico brasileiro Alceu de Amoroso Lima17 17 Naturalmente, como é impossível reconstituir aqui os argumentos de Marcelo Timotheo em sua complexidade e sofisticação, atenho-me a apenas alguns pontos selecionados para os fins deste ensaio. . A questão de Marcelo e, sobretudo, a resposta que dá a ela são de certa forma análogas às que nos ocupam. A pergunta é: quais “as razões que moveram Merton a registrar suas memórias e Amoroso Lima a renunciar a tal ação”? (COSTA, 2015, p. 1).

Em primeiro lugar,

[...] os textos autobiográficos de Amoroso Lima e Merton, concluídos ou não, podem ser vistos como relatos de viagem especiais18 18 Relato de viagens no sentido de que, para “o fiel, a vida terrena pode ser representada como um metafísico peregrinar à Jerusalém Celeste, um exercício ascensional” (COSTA, 2005, p. 2). . Exposições públicas de um itinerário maravilhoso, discernível somente pelas lentes da fé, mas testemunhado diante de fiéis e não crentes. Enfim, memórias que revelam identidades e projetos bem nítidos. (COSTA, 2005COSTA, Marcelo Timotheo da. A Montanha dos Sete Patamares e a Casa Azul: escrita de si em Thomas Merton e Alceu Amoroso Lima. In: SIMPÓSIO NACIONAL DE HISTÓRIA - ANPUH, 23. Anais... Londrina, 2005., p. 3 - grifos meus).

Assim, constituindo uma prática que o cristianismo adotou da filosofia estoica e que tem em Santo Agostinho o seu maior expoente, os diários funcionam como espécie de guias de viagem necessários para a disciplinarização do peregrino, uma vez que a pertença ao cristianismo é vista como “opção a ser continuamente confirmada” (COSTA, 2018COSTA, Marcelo Timotheo da: Tapeçarias a escrita de si nos diários mertonianos. In: BINGEMER, Maria Clara (org.). Thomas Merton: a clausura no centro do mundo. Petrópolis: Vozes; Rio de Janeiro: Editora PUC, 2018., p. 104).

A frase de Merton resume o ponto: “Se não houver mudança importante em nossas vidas à medida que seguimos nossos cursos, não há sentido em manter diários”19 19 Ver Run to the mountain, p. 133, 13 de janeiro de 1940 (apud COSTA, 2018, p. 105). . Conforme conclui Marcelo Timotheo: “Enfim, memória e propósito” (COSTA, 2018COSTA, Marcelo Timotheo da: Tapeçarias a escrita de si nos diários mertonianos. In: BINGEMER, Maria Clara (org.). Thomas Merton: a clausura no centro do mundo. Petrópolis: Vozes; Rio de Janeiro: Editora PUC, 2018., p. 105).

Além disso, e este é o nosso segundo ponto, se, de acordo com Costa (2005COSTA, Marcelo Timotheo da. A Montanha dos Sete Patamares e a Casa Azul: escrita de si em Thomas Merton e Alceu Amoroso Lima. In: SIMPÓSIO NACIONAL DE HISTÓRIA - ANPUH, 23. Anais... Londrina, 2005., p.7), Merton procura “disciplinar seu caminhar pela confessio de erros passados [...], Alceu teria modelado e disciplinado seu self através das dezenas de obras que escreveu”. Em outras palavras:

Amoroso Lima torna-se mais franciscano, menos agostiniano. Assim, se Agostinho e o Merton de A Montanha dos Sete Patamares apresentam o mundo como decaído, Alceu, aproximando-se de determinada teologia da alegria advinda das ordens mendicantes da Idade Média, reabilita o século e a matéria. (COSTA, 2005COSTA, Marcelo Timotheo da. A Montanha dos Sete Patamares e a Casa Azul: escrita de si em Thomas Merton e Alceu Amoroso Lima. In: SIMPÓSIO NACIONAL DE HISTÓRIA - ANPUH, 23. Anais... Londrina, 2005., p. 7).

Nesse sentido, podemos inferir que, de forma análoga aos dois intelectuais cristãos, Celso Furtado tanto escreve para enfrentar mudanças e redirecionar o seu curso de ação como, por outro lado, abandona a escrita pessoal e a tematização de si na medida de sua “descida” para mundo. Se no caso de Merton e de Alceu tratava-se de preservar a fé diante dos riscos mundanos, para Furtado trata-se de preservar a sua personalidade, a sua autenticidade e, por que não, a sua liberdade diante dos riscos, dos acidentes e dos acasos. Com a diferença, porém, de que, para os nosso autor, o risco é duplo, quer no sentido ascensional, quando vai ao encontro do seu “pequeno deus”, a sua personalidade autêntica - quando o risco é o aprisionamento em seu próprio self solitário e egoísta -, quer no sentido mundano, o de enfrentar o mundo, quando poderia pôr a perder todo o esforço de autoformação.

A meu ver, esse minucioso trabalho de composição das forças paradoxais de autocentramento e de extroversão começa a ser feito de forma mais intensa na primeira viagem para a Europa, quando a situação da guerra lhe proporciona a experiência da vertigem no contato alternado com o “alto” e com o “baixo”, com certa aristocracia europeia e com o povo italiano.

A guerra

Não esperemos do nosso autor reflexões extensas e profundas sobre a guerra em seus diários20 20 Isso é feito em textos posteriores, sobretudo naquele que, segundo a nota da organizadora, se constituiria em uma palestra que Celso Furtado fez em João Pessoa sobre a sua experiência na FEB. Ver “O tenente na Paraíba” em “Documentos de Celso Furtado. A guerra. 1945-1946” do volume 6 dos Arquivos Celso Furtado. Nesse volume encontramos algumas das anotações que constarão em Diários intermitentes, assim como dois textos manuscritos que antecedem a ida para a Europa, como outros posteriores, além das cartas e cartões-postais enviados à família durante a permanência na Itália (FURTADO, 2014). ; o que temos são apenas comentários pontuais feitos no caminho, nos quais chama a atenção a sensação de inutilidade da participação brasileira, e da sua própria, no conflito, apesar de considerar a enorme importância da luta contra o fascismo. Minimizando as suas emoções, registra algumas cenas do cotidiano da guerra, banal como todo cotidiano pois “Muito cedo nos acostumamos com as destruições”21 21 Boris Schnaiderman (2004), um expedicionário como Furtado, também acentua essa dimensão do cotidiano em seu romance Guerra em surdina . (FURTADO, 2019FURTADO, Celso. Diários intermitentes: 1937-2002. Organização, apresentação e notas de Rosa Freire D’Aguiar. Prefácio de João Antonio de Paula. São Paulo: Companhia das Letras, 2019., p. 83). Essa conclusão tem um quê de desencantamento, pois ficamos sabendo, em um texto manuscrito sobre a sua apresentação, pouco antes da partida para a Europa22 22 Em outro texto manuscrito, datado de 20 de janeiro de 1946, Furtado revela que ao final do período da convocação fora classificado em unidade não expedicionária, mas que, por ingerência de Gilberto Amado, filho, teve essa transferência revogada, o que acaba atrapalhando os seus planos, pois nesse ínterim obtivera a aprovação de uma bolsa de estudos nos Estados Unidos. Ver: Furtado, 2014, p. 253-255. , que se voluntariara na Força Expedicionária - serviria como tenente - pelo espírito da aventura e em razão de uma vontade de superar os seus recalques.

Eu passava a ser desde aquele momento não mais um número dentro da multidão, um empregado público, um simples, uma criatura da parte de baixo da classe média. O simples fato de que minha vida estava em jogo transplantava-me para um plano heroico da vida. (FURTADO, 2014FURTADO, Celso. Anos de formação - 1938-1948: o jornalismo, o serviço público, a guerra, o doutorado. Organização de Rosa Freire D’Aguiar. Rio de Janeiro: Contraponto/Centro Internacional Celso Furtado de Política para o Desenvolvimento, 2014. (Arquivos Celso Furtado 6)., p. 252).

Do fenômeno do fascismo, ou do que vê a partir do contato com a população do norte da Itália, extrai uma análise de classes, cujo ponto central é a corrupção do povo pelo regime. Chamam a sua atenção o enfraquecimento do senso de responsabilidade pela coisa pública das classes médias, a passividade das elites e a ignorância do povo, o que sustenta o seu prognóstico pessimista sobre as possibilidades de um “movimento social renovador” na Itália. Como pontuará em carta à madrinha, “Para a maioria dos brasileiros que aqui estão o italiano se afigura um ser moralmente degenerado; a verdade é que nós estamos em uma sociedade em fase de decomposição. O mal é social - os indivíduos apenas o refletem” (FURTADO, 2014FURTADO, Celso. Anos de formação - 1938-1948: o jornalismo, o serviço público, a guerra, o doutorado. Organização de Rosa Freire D’Aguiar. Rio de Janeiro: Contraponto/Centro Internacional Celso Furtado de Política para o Desenvolvimento, 2014. (Arquivos Celso Furtado 6)., p. 271).

Com efeito, justificando a expressão que tomo de empréstimo para o título deste trabalho, seus comentários em terra, na Itália, são de fato apontamentos de um turista. Pompeia, Florença, Nápoles, a neve, a catedral de Milão, os palácios dos Médici. Dá-se conta da limitação do seu ponto de vista, do seu provincianismo: “é admirável o estado de sedimentação da cultura. Admirável para mim - bicho do mato -, é claro” (FURTADO, 2019FURTADO, Celso. Diários intermitentes: 1937-2002. Organização, apresentação e notas de Rosa Freire D’Aguiar. Prefácio de João Antonio de Paula. São Paulo: Companhia das Letras, 2019., p. 83).

De passagem - “só para constar” - registra o elogio que recebeu, transcrito em boletim, do coronel ajudante do quartel-general (FURTADO, 2019FURTADO, Celso. Diários intermitentes: 1937-2002. Organização, apresentação e notas de Rosa Freire D’Aguiar. Prefácio de João Antonio de Paula. São Paulo: Companhia das Letras, 2019., p. 84), mas redimensiona a sua importância: o brasileiro no norte da Itália é algo desconhecido e exótico e a “minha tez queimada e o meu tipo sertanejo causam aqui uma reação radicalmente diferente da que eu esperava” (FURTADO, 2019, p. 85).

Na densa anotação do retorno ao Brasil, no dia 7 de setembro de 1945, a bordo do Duque de Caxias, Furtado começa falando de Lisboa e do quanto “é admirável como nos sentimos, nós brasileiros, em casa em todo esse mundo latino. Na Itália, na França, em Portugal, todos nos recebem e aceitam como irmãos, e quase sempre como irmãos prendados” (FURTADO, 2019FURTADO, Celso. Diários intermitentes: 1937-2002. Organização, apresentação e notas de Rosa Freire D’Aguiar. Prefácio de João Antonio de Paula. São Paulo: Companhia das Letras, 2019., p. 88 - grifos meus)23 23 Em texto manuscrito de março de 1946, quando já havia retornado ao Rio de Janeiro, Furtado dá mais detalhes sobre a chegada a Nápoles, do seu horror diante da destruição e da “tragédia horrível das crianças famintas que assaltavam o caminhão” e reflete sobre o seu desejo de “universalismo” explicado por uma vontade de se sentir superior, que acreditava ser “um traço da psicologia dos povos de cultura de segundo ou terceiro grau” (FURTADO, 2014, p. 258). . É flagrante, portanto, a oscilação da sua percepção do olhar do estrangeiro, entre o estranhamento e a proximidade. Ou seja, a viagem à Europa no período da guerra tem esse efeito multiplicador, produzindo uma experiência do descentramento, da percepção do seu provincianismo numa sociedade cosmopolita através do contato com uma “cultura” sedimentada. Aliás, a distinção que faz na época entre uma cultura aprendida e outra sedimentada tem por consequência uma percepção da distância praticamente intransponível entre aquele grupo social e os brasileiros que lá estavam, homens do povo.

Essas questões mais gerais são, contudo, ainda mais uma vez contrabalançadas por questões subjetivas que ainda ocupam um bom espaço em suas reflexões desse dia.

Não será que mais vale deixar-se estar na doce solidão de um retiro a meditar na fragilidade e fortaleza das obras humanas, no aperfeiçoamento permanente de si mesmo? Na verdade, há muito de ostentação nessa ânsia de realizar algo que repercuta, que faça eco. A vida do homem é uma obra de arte; estudá-la e realizá-la é trabalho árduo. Mas é esta a primeira obra que cabe a cada um realizar - ela é a porta de acesso a tudo mais. (FURTADO, 2019FURTADO, Celso. Diários intermitentes: 1937-2002. Organização, apresentação e notas de Rosa Freire D’Aguiar. Prefácio de João Antonio de Paula. São Paulo: Companhia das Letras, 2019., p. 88).

Não é demais enfatizar o percurso de Furtado nessa passagem: ele começa com uma breve hesitação - “não será que mais vale deixar-se estar na doce solidão de um retiro”, mas após analisar o que está em jogo no processo de self-fashioning - desejo de ostentação mas também trabalho árduo -, chega rapidamente a uma conclusão: “esta é a primeira obra que cabe a cada um realizar”.

Continua com o sentido de urgência em planejar o seu futuro. A vontade de ser escritor se amplia. Quer escrever sobre política, administração, ciências sociais, além de ficção, entendida como “um dos melhores meios de abordar certos problemas humanos que me apaixonam” (FURTADO, 2019FURTADO, Celso. Diários intermitentes: 1937-2002. Organização, apresentação e notas de Rosa Freire D’Aguiar. Prefácio de João Antonio de Paula. São Paulo: Companhia das Letras, 2019., p. 88). E prossegue na tarefa de disciplinar a vida.

Sobre a chegada a sua terra natal, a nota amarga: “Os meus parentes, todos vivos, embora nenhum estivesse me esperando no aeroporto...” (FURTADO, 2019FURTADO, Celso. Diários intermitentes: 1937-2002. Organização, apresentação e notas de Rosa Freire D’Aguiar. Prefácio de João Antonio de Paula. São Paulo: Companhia das Letras, 2019., p. 69). No balanço do retorno, resume sua vida de sacrifícios nos últimos três anos: a vida militar, a guerra, o trabalho e os estudos.

Interregno

Celso Furtado volta para o Rio em novembro de 1945. Retorno breve, pois viajaria novamente para a Europa um ano e meio depois.

Chama a atenção a adjetivação das anotações do dia 20 de novembro de 1945, que revela a medida do estranhamento do seu próprio país, sobretudo para quem acabara de chegar de uma Europa devastada. Sofre com a visão torturante da “cidade antipática” de Recife; deplora as mulheres vaidosas e fúteis e os homens cheios de problemas; no geral, lamenta a vida complicadíssima, a angustiante falta d’água, e os transportes deficientes da cidade carioca. Mas surge uma perspectiva nova, a de voltar à Europa para estudar questões de planificação econômica e social, pois “no Brasil é impossível levar avante estes estudos. (FURTADO, 2019FURTADO, Celso. Diários intermitentes: 1937-2002. Organização, apresentação e notas de Rosa Freire D’Aguiar. Prefácio de João Antonio de Paula. São Paulo: Companhia das Letras, 2019., p. 69).

Enquanto não sai do país, suporta a monotonia do verão do Rio de Janeiro e os obstáculos postos pelo “governo de magistrados” ao seu projeto de reforma na administração estadual. O desânimo com a vida política o leva ao estudo de alemão: “Sendo um estudo muito difícil, eu o levo muito a sério como exercício de educação da vontade” (FURTADO, 2019FURTADO, Celso. Diários intermitentes: 1937-2002. Organização, apresentação e notas de Rosa Freire D’Aguiar. Prefácio de João Antonio de Paula. São Paulo: Companhia das Letras, 2019., p. 71).

Vida de estudante

Um ano depois da viagem de John Steinbeck e Robert Capa para a então União Soviética, e que daria origem, em 1948, a Um diário russo (STEINBECK, 2003STEINBECK, John. Um diário russo. São Paulo: Cosac&Naify, 2003.), Jorge Amado segue para o mesmo destino e publica, em 1951AMADO, Jorge. O mundo da paz: União Soviética e democracias populares. Rio de Janeiro: Editorial Vitória, 1951., O mundo da paz: União Soviética e democracias populares. Na mesma época, Celso Furtado é outro que tem os seus olhos voltados para lá.

O escritor americano e o fotógrafo húngaro foram movidos pela pura curiosidade:

Foi então que nos ocorreu que havia outras coisas que ninguém mencionava sobre a Rússia, e era bem isso o que mais nos interessava. Que tipo de roupa os russos estavam usando? O que comiam no jantar? Como eram as suas festas, se é que havia alguma? Como eles namoravam, e como morriam? Sobre que conversavam? Eles dançavam, cantavam e representavam? As crianças iam à escola? Nos pareceu uma boa ideia investigar tudo isso, fotografar essas coisas e escrever sobre elas. (STEINBECK, 2003STEINBECK, John. Um diário russo. São Paulo: Cosac&Naify, 2003., p. 8).

Jorge Amado, pelo interesse em divulgar os ideais socialistas, diria em O mundo da paz:

Escrevi estas páginas pensando no meu povo brasileiro, sobre o qual uma imprensa reacionária e vendida ao imperialismo ianque vomita, quotidianamente, infâmias e calúnias sobre a URSS e as democracias populares. O povo brasileiro não deseja a guerra e luta contra os que a querem provocar. (AMADO, 1951AMADO, Jorge. O mundo da paz: União Soviética e democracias populares. Rio de Janeiro: Editorial Vitória, 1951., Nota).

Já Celso Furtado pretendia estudar o planejamento russo. Conforme analisaria posteriormente,

Imaginara poder estender minhas incursões à Europa do Leste, em particular à União Soviética, cuja experiência em planificação econômica me parecia ser algo que não devia ignorar. [...] Em realidade, meu interesse pela planificação ia mais longe que a economia. Estava convencido de que o fascismo era uma ameaça que pairava permanentemente sobre as sociedades democráticas. Como ignorar que as economias de mercado eram intrinsecamente instáveis e que essa instabilidade tendia a agravar-se? [...] Cabia prevenir as crises e neutralizar os efeitos sociais da instabilidade inerentes às economias de mercado. (FURTADO, 1997, p. 98-9).

Nesse mesmo livro, pois não há anotações nos Diários sobre o episódio, Furtado diz ter sido demovido do projeto por uma jovem russa, filha do embaixador da União Soviética no Brasil, que encontra na Biblioteca Nacional. Pouco depois, fica sabendo que sua única chance seria entrar no partido comunista, o que o faz desistir definitivamente da ideia, pois “colocava a minha liberdade acima de tudo” (FURTADO, 1997, p. 101). Decide-se pela Europa, como oportunidade única para “testemunhar a gestação de toda uma geração”, pois concluíra que este mundo “seria moldado pelas forças que viessem a prevalecer no processo de reconstrução da Europa” (FURTADO, 1997, p. 96).

Chega a Paris, sua terceira opção (a segunda fora Londres), em 15 fevereiro de 1947. Apesar de longa, a viagem não o cansa, sofre menos com o frio que na Itália, o quarto tem uma boa relação custo-benefício. O comentário - “por enquanto nada excedeu aos meus planos” (FURTADO, 2019FURTADO, Celso. Diários intermitentes: 1937-2002. Organização, apresentação e notas de Rosa Freire D’Aguiar. Prefácio de João Antonio de Paula. São Paulo: Companhia das Letras, 2019., p. 91) - dá uma ideia precisa do significado do planejamento para certa noção de conforto que a previsibilidade lhe proporciona. Mas escapam às suas previsões a monotonia, o frio e não poder nunca falar a própria língua.

Inicia as anotações de 15 de junho de 1947 com a blague: Journal Intime. Se há autoironia, a escrita de si se faz, contudo, sob o mote da infelicidade que vem da certeza de jamais conseguir superar a estreiteza de certa condição primária.

Ou seja, a despeito desse sentimento, nosso autor prossegue na tentativa de superação das dificuldades. Por um lado, começa a ver Paris e outras cidades europeias com olhos mais críticos. A atividade cultural é intensa, mas provinciana; o método histórico e a imensa erudição das pesquisas carecem “do ar novo da pesquisa sociológica”. Mas há pontos positivos: relata com entusiasmo o que viu nos estúdios da Radiodiffusion Française, assim como passa a ter uma percepção mais matizada da cultura francesa, o que aparece no comentário sobre a aparente a indiferença mútua das pessoas, vista como uma consequência do individualismo e um elemento da liberdade pessoal. “Mas liberdade não significa isolamento” (FURTADO, 2019FURTADO, Celso. Diários intermitentes: 1937-2002. Organização, apresentação e notas de Rosa Freire D’Aguiar. Prefácio de João Antonio de Paula. São Paulo: Companhia das Letras, 2019., p. 96), conclui. Tem uma opinião bastante desfavorável da sociedade londrina e aproveita para inverter o mote do Brasil colonizado: “Vindo aqui é que se percebe que há duas Inglaterras: uma de exportação - para brasileiro ver - e outra de verdade” (FURTADO, 2019, p. 108).

Além disso, se um filme e uma peça o fazem pensar na “escravidão do homem a certas contingências que lhe independem” (FURTADO, 2019FURTADO, Celso. Diários intermitentes: 1937-2002. Organização, apresentação e notas de Rosa Freire D’Aguiar. Prefácio de João Antonio de Paula. São Paulo: Companhia das Letras, 2019., p. 95), seu tour pela Europa do pós-guerra dá maior concretude a essas reflexões e à urgência na busca de soluções.

Nesse verão europeu, integra-se como voluntário em um grupo de 80 jovens de várias nacionalidades para a construção de uma estrada de ferro na Bósnia Central. Espanta-se com a atividade braçal das mulheres e conclui que ali se pode compreender que “quando os homens se unem por ideais superiores e comungam o mesmo sacrifício no trabalho se elevam acima da média comum” (FURTADO, 2019FURTADO, Celso. Diários intermitentes: 1937-2002. Organização, apresentação e notas de Rosa Freire D’Aguiar. Prefácio de João Antonio de Paula. São Paulo: Companhia das Letras, 2019., p. 101). A frase tem um alcance universal, mas, como já podemos perceber, se aplica também a sua própria aspiração. E é satisfeito que ele prossegue registrando, desde a Itália até a Bósnia, os episódios em que chama a atenção por ser brasileiro, como se o fato do exotismo o retirasse automaticamente dessa “média comum”.

A partir de uma sensível mudança de perspectiva em direção às questões coletivas, é possível perceber que em 1948 as questões subjetivas e existenciais parecem rarear dos seus diários. Começaria, a partir daí, a “descida” do nosso autor para o povo, assumindo claramente uma identidade de esquerda - “Paris, 28.06.1947. Estou comprando toda a bibliografia essencial marxista em francês” (FURTADO, 2019FURTADO, Celso. Diários intermitentes: 1937-2002. Organização, apresentação e notas de Rosa Freire D’Aguiar. Prefácio de João Antonio de Paula. São Paulo: Companhia das Letras, 2019., p. 97) -, que se manifesta desde logo em suas análises da conjuntura francesa, das posições políticas das classes sociais francesas e do contexto brasileiro. É crítico das declarações moralistas de Aldous Huxley no contexto do pós-guerra, quando já não havia mais riscos para o escritor inglês, que se refugiara na Califórnia (FURTADO, 2019, p. 98).

O tema do socialismo será, portanto, um dos meios pelos quais a Obra autobiográfica se voltará para uma análise da sua juventude, diálogo a que já me referi no início deste trabalho. No centro, a questão do individualismo. Em avaliação posterior da experiência na Bósnia, Furtado declara ter sido necessária a revisão do seu pensamento: “Dava voltas às minhas ideias e me inclinava a fazer aparas em minhas convicções individualistas” (FURTADO, 1997, p. 108); refere-se ao artigo que escreveu na época para a revista Panfleto, no qual reforça essa mudança:

Esse relativismo histórico, que eu utilizava como porta de saída, exumava de alguma forma o paternalismo com que meu companheiros franceses observavam esse “povo balcânico” [...] também anunciava uma evolução que se daria em meu espírito, no sentido do abrandamento da tendência a sobrepor o individual ao social. (FURTADO, 1997, p. 108)24 24 Contudo, constatamos na Obra autobiográfica uma nova revisão: “Mas, como separar o marxismo da experiência soviética, onde a asfixia do indivíduo contrapunha-se ao que havia de mais nobre e permanente na cultura europeia - essa ideia de que cada indivíduo leva em si um destino pessoal?” (FURTADO, 1997, p. 105). .

As memórias de seu doutoramento na Sorbonne são outro exemplo desse “diálogo” e também bastante expressivas da diferença entre as anotações feitas em Diários intermitentes e na Obra autobiográfica.

Como já se tornara sua marca, as vitórias seriam matizadas pelas dificuldades. A vida como uma sucessão de perdas e ganhos: perderá o Congresso Mundial dos Intelectuais pela Paz (para o qual fora convidado por Jorge Amado), mas receberá a mention très bien na sua defesa de tese de doutorado.

Em Diários intermitentes, ele dirá, na sequência da perda do Congresso: “Realizou-se ontem minha soutenance de thèse. A atitude de todos os professores, suas palavras, suas atenções, seus elogios e a mention très bien me deixaram completamente flatté. Atravessei o boulevard Saint-Michel, hoje, montado numa nuvem” (FURTADO, 2019FURTADO, Celso. Diários intermitentes: 1937-2002. Organização, apresentação e notas de Rosa Freire D’Aguiar. Prefácio de João Antonio de Paula. São Paulo: Companhia das Letras, 2019., p. 117).

Por outro lado, na autobiografia, uma conversa com Paulo Emílio Salles Gomes é lembrada, se não para minimizar os seus feitos, para pelo menos reenquadrá-los no contexto francês. “Não tome a coisa assim a sério. Hoje, o rayonnement da cultura francesa consiste em distribuir títulos aos estrangeiros que passam por aqui. Como nós, metecos, não concorremos com eles [...], nos afogam em facilidades” (FURTADO, 1997, p. 113). Em algumas páginas anteriores, Furtado já havia racionalizado essa experiência: “A verdade é que na, época, em nada me atraíam os títulos, particularmente os universitários” (FURTADO, 1997, p. 102), isso porque

Não me atraía ser um “profissional”, uma peça que busca ajustar-se numa engrenagem.[...] Se minha preocupação houvesse sido agir diretamente sobre o mundo, teria permanecido em meu torrão natal, pois a política requer o máximo de inserção na comunidade. O que me motivava era o desejo de conhecer o mundo, o vasto mundo, convencido de que os reformadores são movidos por ideias de pensadores que a eles se antecipam. (FURTADO, 1997, p. 102).

Furtado continuava redimensionando o seu lugar no mundo nessa segunda temporada na Europa, que vê como um intervalo entre a logique du système francês e a burocracia brasileira. Após diagnosticar a situação sem saída do capitalismo - “Um país como este não pode funcionar a menos que a classe capitalista faça bons lucros; ora, esses bons lucros serão sacrificados se se procura melhorar a situação dos trabalhadores” -, segue com “enquanto isso, eu faço minha vida como bom estudante do Quartier Latin [...] até o dia em que eu não volte a ser um burocrata de Niterói” (FURTADO, 2019FURTADO, Celso. Diários intermitentes: 1937-2002. Organização, apresentação e notas de Rosa Freire D’Aguiar. Prefácio de João Antonio de Paula. São Paulo: Companhia das Letras, 2019., p. 116). Com amargura, dá-se conta, apesar da sua ambição, da estreiteza dos limites da dimensão do seu arbítrio individual.

Contudo, na volta, no navio lotado (“formidavelmente cheio”), Celso Furtado já havia encontrado seu lugar. “[S]into-me de alguma forma irmão de toda essa gente que vai enfrentar o desconhecido: seja no sofrimento, seja na coragem, descubro neles um resto de dignidade humana que é completamente alheia aos pobres de espírito permanentemente em busca de prazeres fáceis que povoam o salão da primeira” (FURTADO, 2019FURTADO, Celso. Diários intermitentes: 1937-2002. Organização, apresentação e notas de Rosa Freire D’Aguiar. Prefácio de João Antonio de Paula. São Paulo: Companhia das Letras, 2019., p. 119).

Essa passagem condensa praticamente todas as chaves analíticas envolvidas no processo de automodelagem do self que vêm sendo trabalhadas até agora neste ensaio - a opção franciscana pelos pobres, os riscos da viagem, o enfrentamento do desconhecido pela adesão e pela afirmação, através da escrita, dos valores universais. Viajara para Paris em 1947 e retornava ao seu torrão natal após um ano e meio. No entanto, o “Brasil” se lhe figurava tão desconhecido como o era para os imigrantes, posto que seu tempo não se contava em dias, meses ou anos. “O passado recente se afigura ainda de tal forma tumultuoso que me é realmente impossível olhar para o futuro tomando-o como base” (FURTADO, 2019FURTADO, Celso. Diários intermitentes: 1937-2002. Organização, apresentação e notas de Rosa Freire D’Aguiar. Prefácio de João Antonio de Paula. São Paulo: Companhia das Letras, 2019., p. 117). Mais que nunca, planejar era preciso.

A retórica dos Diários

Por fim, a já referida segunda chave de interpretação diz respeito ao modo como a escrita de si de Celso Furtado - vista até aqui em função dos seus propósitos - é realizada ao longo do período tratado neste ensaio. Suponho que a investigação acerca do estilo empregado nos Diários possa fornecer indicações importantes para o que estava em jogo nessa escrita em termos de certa seleção dos temas substantivos que lhe eram caros.

Nesse sentido, para que me seja possível lançar algumas hipóteses sobre os recursos estilísticos utilizados por Furtado em sua escrita de si, dentro dos limites que o tempo e o espaço me impõem, além do fato de que a teoria literária constitui domínio cuja profundidade e sofisticação estou longe de dominar, recorrerei ao seminal ensaio de Erich Auerbach (2012AUERBACH, Erich. Ensaios de literatura ocidental. São Paulo. Duas Cidades, Editora 34, 2012.), “Sermo humilis” sobre a constituição da retórica cristã na Antiguidade tardia.

Tomando como tema as variações nas formas tradicionais de retórica, a pergunta central de Auerbach, que na verdade é dupla, será: em que medida as formas tradicionais foram transformadas, a partir adaptação operada, em função dos seus propósitos, pela retórica cristã e, em contrapartida, até que ponto essa retórica ainda pode ser considerada parte daquelas?

A reconstituição da longa resposta do autor, em que afirma tanto a adaptação quanto a permanência das formas retóricas, escapa aos nossos propósitos neste momento. Caberia apenas enfatizar alguns pontos. O primeiro é o uso pragmático da retórica pelos autores cristãos, principalmente Santo Agostinho, e que tem como fundamentos o gosto pela oratória no mundo antigo, quando se julgava um discurso pelo efeito sonoro das palavras, e da retórica acadêmica, a de Cícero, cuja concepção dos três níveis tradicionais de estilos (o sublime, o médio e o baixo) esses autores adotam.

Entretanto, diz Auerbach, os pressupostos de uma outra forma são completamente diferentes. Ao contrário da definição ciceroniana, para a qual existem temas substantivamente baixos, médios e altos, cuja hierarquia subordinava a retórica, pois temas e modos de expressão deveriam concordar quanto à dignidade, o “orador cristão não reconhece graus absolutos separando os temas possíveis; somente o contexto e a intenção (conforme seu objetivo seja instruir, admoestar, comover passionalmente) determinam qual nível de estilo utilizar” (AUERBACH, 2012AUERBACH, Erich. Ensaios de literatura ocidental. São Paulo. Duas Cidades, Editora 34, 2012., p. 38).

Ou seja, os temas da literatura cristã são todos igualmente elevados e sublimes, mas, e nisto está o seu pragmatismo, a tripartição dos estilos conserva sua utilidade para o orador cristão, visto que a doutrina cristã, além de ser sublime, permanece obscura e difícil para o seu público (AUERBACH, 2012AUERBACH, Erich. Ensaios de literatura ocidental. São Paulo. Duas Cidades, Editora 34, 2012., p. 43).

O outro ponto a ser enfatizado é que Auerbach considera que a principal inversão feita pela retórica cristã foi em relação à semântica do termo humilis, que entre os clássicos tinha um sentido predominantemente pejorativo. Na retórica cristã, humilis torna-se o termo mais importante para designar a Encarnação, assim como a condição social e espiritual dos seus destinatários, e constitui o estilo da Sagrada Escritura. Ou seja, os autores cristãos da Antiguidade tardia reconheciam a “‘baixeza’ do estilo bíblico e descobriam nele uma nova forma de sublime” (AUERBACH, 2012AUERBACH, Erich. Ensaios de literatura ocidental. São Paulo. Duas Cidades, Editora 34, 2012., p. 53).

Simplificando ao máximo o argumento, esses delineamentos de Auerbach nos permitem pensar tanto nas diferenças entre os principais sistemas retóricos, a partir da maneira como concebem a relação entre forma e conteúdo, como as possibilidades de modificações e adaptações entre eles.

Assim, em um primeiro momento, vemos de modo muito claro a tentativa do jovem Furtado de recorrer, provavelmente a partir dos seus estudos de latim, a uma retórica alta, caracterizada pela exaltação e pela paixão e correspondente, na tradição clássica, a temas de grande dignidade.

Oh, o mundo, como é engraçado! (FURTADO, 2019FURTADO, Celso. Diários intermitentes: 1937-2002. Organização, apresentação e notas de Rosa Freire D’Aguiar. Prefácio de João Antonio de Paula. São Paulo: Companhia das Letras, 2019., p. 45).

Vivi: Fui feliz e sofri. (FURTADO, 2019FURTADO, Celso. Diários intermitentes: 1937-2002. Organização, apresentação e notas de Rosa Freire D’Aguiar. Prefácio de João Antonio de Paula. São Paulo: Companhia das Letras, 2019., p. 44).

Vingar-me-ei da sociedade, dos homens, das mulheres - do mundo! (FURTADO, 2019FURTADO, Celso. Diários intermitentes: 1937-2002. Organização, apresentação e notas de Rosa Freire D’Aguiar. Prefácio de João Antonio de Paula. São Paulo: Companhia das Letras, 2019., p. 45).

O ócio fere-me a alma. (FURTADO, 2019FURTADO, Celso. Diários intermitentes: 1937-2002. Organização, apresentação e notas de Rosa Freire D’Aguiar. Prefácio de João Antonio de Paula. São Paulo: Companhia das Letras, 2019., p. 45).

Há tédio na cidade de Platão, há tristeza no mundo que eu criei. Eu hoje choro essa tristeza sublime. Choro meu mundo com a tristeza de Deus se o universo ruísse. (FURTADO, 2019FURTADO, Celso. Diários intermitentes: 1937-2002. Organização, apresentação e notas de Rosa Freire D’Aguiar. Prefácio de João Antonio de Paula. São Paulo: Companhia das Letras, 2019., p. 46).

A ilusão de que tinha um papel a desempenhar sobre o sol fundiu-se em nada. (FURTADO, 2019FURTADO, Celso. Diários intermitentes: 1937-2002. Organização, apresentação e notas de Rosa Freire D’Aguiar. Prefácio de João Antonio de Paula. São Paulo: Companhia das Letras, 2019., p. 62).

É terrível a minha indisciplina mental. (FURTADO, 2019FURTADO, Celso. Diários intermitentes: 1937-2002. Organização, apresentação e notas de Rosa Freire D’Aguiar. Prefácio de João Antonio de Paula. São Paulo: Companhia das Letras, 2019., p. 63).

É que eu ainda não esvaziei o copo que me cabe sorver. (FURTADO, 2019FURTADO, Celso. Diários intermitentes: 1937-2002. Organização, apresentação e notas de Rosa Freire D’Aguiar. Prefácio de João Antonio de Paula. São Paulo: Companhia das Letras, 2019., p. 80).

Ou seja, é com esse estilo alto que o jovem Furtado expressa aquilo que lhe era mais caro naquele momento, a sua subjetividade e a formação de sua personalidade.

Por outro lado, confirma certa aproximação do modelo clássico o modo como deplora os temas baixos, aos quais irá associar toda experiência cotidiana. Se é com alguma ironia que se refere à sua própria condição humilde, a de um pobre-diabo, evita sempre que possível qualquer referência mais minuciosa aos acontecimentos de sua vida privada. Creio que o relato de sua primeira infância, em que alude à sua “estupidez” e ao fato de urinar na cama, é o máximo ao qual chega o seu emprego de uma retórica baixa, com seu “realismo vivo e um tom fortemente popular” (AUERBACH, 2012AUERBACH, Erich. Ensaios de literatura ocidental. São Paulo. Duas Cidades, Editora 34, 2012., p. 41).

Contudo, se o tema e o estilo baixo são bastante infrequentes na totalidade dos escritos nos diários, as frases de estilo grandiloquente citadas acima se encerram a bordo do navio que o levará à Itália.

O que acontece a partir de então? Primeiro, Celso Furtado se recusa a conferir à guerra uma dignidade através de uma retórica alta. A perspectiva de uma experiência heroica esboroara-se no cotidiano infame. Como parece não encontrar a retórica adequada, o estilo médio descritivo25 25 Curiosamente, Rubem Braga (1986, p. 157), de quem seria de esperar o emprego da retórica informativa e descritiva, recorre com frequência ao estilo alto, grandiloquente, em suas Crônicas da guerra na Itália, como por exemplo na frase “Os homens precisam de chão livre, para andar. E é uma grande e solene coisa - andar”, em que exalta a liberdade como valor supremo. mais adequado talvez a esse tipo de experiência refugia-se na ficção, escrevendo o que viria a ser o livro Contos da vida expedicionária, no qual destaca a bravura dos pequenos e a arrogância dos grandes. Se o tema da humildade sempre esteve presente, mas de forma subordinada, a partir desse momento passa a adquirir novo estatuto.

Ou seja, estou supondo que em um primeiro momento seu estilo alto estava referido à sua própria subjetividade e aos elementos que a compunham no processo de self-fashioning: essencialmente a literatura e a música. A partir do seu contato com a guerra e com o marxismo, os temas da humanidade e do público se dignificam a partir de uma lógica próxima da cristã, na junção do humilis-sublimis (AUERBACH, 2012AUERBACH, Erich. Ensaios de literatura ocidental. São Paulo. Duas Cidades, Editora 34, 2012., p. 48).

A propósito, vale a pena citar novamente e em nova chave as anotações de 12 de julho de 1948, a bordo do Jamaïque:

Passo sempre algum tempo observando essa feira curiosa que é o tombadilho de terceira classe [...] há famílias numerosas em torno dessas mulheres, verdadeiras heroínas, que passam o dia estendendo roupa no tombadilho [...] há todos esses orientais que misturam no olhar a estultice e o sensualismo e que nos parecem sempre sujos. Às vezes olho lá para a ponte de primeira (até hoje não tive a curiosidade de passar por lá) e me sinto melhor aqui embaixo. Sinto-me de alguma forma irmão de toda essa gente que vai enfrentar o desconhecido: seja no sofrimento, seja na coragem, descubro neles um resto de dignidade humana que é completamente alheia aos pobres de espírito permanentemente em busca de prazeres fáceis que povoam o salão da primeira. (FURTADO, 2019FURTADO, Celso. Diários intermitentes: 1937-2002. Organização, apresentação e notas de Rosa Freire D’Aguiar. Prefácio de João Antonio de Paula. São Paulo: Companhia das Letras, 2019., p. 119).

Contra a hierarquia clássica dos temas, ainda que a retórica empregada não fosse mais a alta, mas a média, a experiência dos humildes se tornara sublime na escrita dos Diários. A dissociação entre forma e conteúdo finalmente ocorrera. Ou seja, seria possível tratar das coisas cotidianas e humildes com uma retórica mais elevada, no caso, uma retórica média, um estilo comedido e descritivo, posto que tais coisas foram alçadas aos altos temas do coletivo e do universal.

Ou seja, no decorrer do tempo, Celso Furtado assume no discurso uma retórica média cada vez menos exaltada e sublime, onde não cabe falar de si, da sua subjetividade, que enquanto coisa meramente privada se tornara menos digna, mas do coletivo.

E daqui por diante, a forma dos escritos de Celso Furtado terá que atender a esse esforço de falar para todos.

“Esta guerra foi, para mim, pouco mais do que uma viagem de turismo”

Antes de embarcar de volta para o Brasil, Celso Furtado “consegue permissão, veículo e combustível para uma ‘tocha’ - uma escapada, no jargão militar - à França” (D’AGUIAR, 2019D’AGUIAR, Rosa Freire. Apresentação. In: FURTADO, Celso. Diários intermitentes: 1937-2002. Organização, apresentação e notas de Rosa Freire D’Aguiar. Prefácio de João Antonio de Paula. São Paulo: Companhia das Letras, 2019, p. 7-12., p. 74). É a essa escapada, assim como à visita a algumas cidades italianas, que ele se refere como sua experiência “turística”. O tom algo inapropriado no contexto em que fora formulada, dias depois da vitória dos aliados, provocou alguns poucos comentários finais desse trabalho.

Como podemos constatar, a frase manifesta claramente o seu descontentamento em relação à participação dos brasileiros, e a sua própria, na Segunda Guerra Mundial. Não é o caso de voltar agora aos relatos de Furtado sobre o período, mas vale a pena especular sobre o sentido de inutilidade, além do descontentamento, como o sentimento forte daquela experiência. E, se isso for verdade, guerra e turismo já não se oporiam na frase aparentemente irônica de Furtado. Com certeza, o turismo como degradação da viagem não escapava à percepção do jovem Furtado.

Entretanto, a máscara de turista lhe convém. Afinal, de que outra maneira justificaria seu tour por cidades europeias naquele momento? Não se tratava de viagens de aventura, muito menos de exploração. Não cabia dizer que viajava com fins científicos ou culturais. O grand tour já estava em desuso26 26 Tratei da prática do grand tour em meu artigo “Lua e estrela: experiência e universalidade nas viagens de Afonso Arinos de Melo Franco” (FELGUEIRAS, 2013). . Recorrer ao modelo clássico da viagem, quando o herói se fortalece em contato com os perigos que enfrenta, talvez soasse um tanto ridículo aos seus ouvidos, particularmente porque, embora o contexto da guerra o favorecesse, seu heroísmo fora rebaixado ao cumprimento de rotinas pouco arriscadas.

Paul Fussel, em livro no qual alia erudição e humor no estudo do fenômeno do turismo, traça distinções e características básicas das várias modalidades de viagens que considero valiosas para esta interpretação do turista Celso Furtado. A começar pelos termos “traveler”, “explorer” e “tourist”. Em primeiro lugar, dirá que cada categoria pertence tipicamente a determinadas épocas históricas: “exploration belongs to the Renaissance, travel to the bourgeois age, tourism to our proletarian moment” (FUSSEL, 1980FUSSEL, Paul. Abroad: British literary traveling betwen the wars. New York-Oxford: Oxford University Press, 1980., p. 38).

Em seguida, distingue seus objetivos:

All three make journeys, but the explorer seeks the undiscovered, the traveller that which has been discovered by the mind working in history27 27 A definição de “travel” de Fussel, embora ele não o diga de modo explícito, seguramente se refere às viagens de formação. , the tourist that has been discovered by the entrepreneurship and prepared for him by the arts of mass publicity. The genuine traveller is, or used to be, in the middle between the two extremes. If the explores moves toward the risks of the formless and the unknown, the tourists move toward the security of pure cliché. (FUSSEL, 1980FUSSEL, Paul. Abroad: British literary traveling betwen the wars. New York-Oxford: Oxford University Press, 1980., p. 39).

E finaliza com o que é central para os nossos fins, com as motivações dessas três categorias de viajantes. Ainda que haja certo constrangimento em admiti-lo, o turista teria a secreta pretensão de elevar o próprio status e, portanto, reduzir certa ansiedade em relação a ele, assim como buscaria realizar fantasias de liberdade erótica; e o que Fussel julga mais importante: derivava um prazer secreto de se colocar momentaneamente como um membro de uma classe social superior a sua própria.

É possível que esses motivos inconfessáveis rondassem a consciência de Furtado para fazer um uso tão pejorativo do termo. Mas lembremos que o emprego é posterior à experiência e de certo modo a define. Nesse sentido, o que pode ter lhe desagradado tanto? Acredito que passagens pouco exploradas até agora de Contos da vida expedicionária possam nos dar uma via de interpretação.

Desse conjunto, o conto “Um intelectual em Florença” é exemplar. Nele o personagem, o brasileiro Mário, aceita o convite de um americano de origem grega para uma recepção num dos mais tradicionais solares florentinos.

Mário estava ansioso por ouvir aquela gente falar, emitir opiniões. Não sabia se devia iniciar a conversa pela Galeria Uffizi ou se pelos Magasins du Louvre. Torneava na mente uma frase sobre Dante e uma citação de Virgílio, e logo vinha o rubor da ostentação pedante. Tudo o que ele dissesse revelaria o estrangeiro - o estrangeiro que espia a cultura pelo lado de fora... (FURTADO, 1997, p. 38).

Várias outras passagens do conto poderiam ser citadas, mas todas elas apoiam a conclusão de que o turismo surge como justificativa, como desculpa, para a superficialidade com que, tal como o personagem, Furtado absorvia a alta cultura europeia, para a inutilidade dos seus esforços de participação igualitária nessa sociedade, e que revelavam a sua origem modesta.

Como diz Fussel, é difícil ser um snob e um turista ao mesmo tempo. O único modo de combinar os dois papéis é ser um “antiturista”: aquele que, embora tente evitar o rótulo, pelo preconceito derivado da autoconsciência da origem plebeia e proletária da prática do turismo, cai no ridículo pela impostura. Esse não seria, definitivamente, o caso de Furtado. Apesar do desgosto de saber que o hiato cultural era intransponível, seu personagem enlaçou e beijou a belíssima e iconoclasta italiana “que se inclinava para ele e lhe oferecia os lábios de maneira quase suplicante. Sabia-se vencido. Mas sentia-se mais forte” (FURTADO, 1997, p. 42).

Referências

  • AMADO, Jorge. O mundo da paz: União Soviética e democracias populares. Rio de Janeiro: Editorial Vitória, 1951.
  • ARAÚJO, Ricardo Benzaquen de. Zigue-zague: ensaios reunidos (1977-2016). Seleção e organização: Carmen Felgueiras, Marcelo Jasmin e Marcos Veneu. Rio de Janeiro: Editora PUC-Rio; São Paulo: Editora Unifesp, 2019.
  • AUERBACH, Erich. Ensaios de literatura ocidental. São Paulo. Duas Cidades, Editora 34, 2012.
  • BOTELHO, André. O retorno da sociedade: política e interpretações do Brasil. Petrópolis: Vozes, 2019.
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  • CENTRO Internacional Celso Furtado de Políticas para o Desenvolvimento. Disponível em: http://www.centrocelsofurtado.org.br Acesso em: 10 ago. 2020.
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  • COSTA, Marcelo Timotheo da. A Montanha dos Sete Patamares e a Casa Azul: escrita de si em Thomas Merton e Alceu Amoroso Lima. In: SIMPÓSIO NACIONAL DE HISTÓRIA - ANPUH, 23. Anais... Londrina, 2005.
  • COSTA, Marcelo Timotheo da. Nenhum dia sem escrita: da experiência do cristão e de seu registro - os casos de Alceu Amoroso Lima e Thomas Merton. In: TRINDADE, Maurício; ARDUINI, Guilherme (org.). Coletânea Ciclo Tristão de Athayde: Alceu Amoroso Lima. São Paulo: Sesc, v. 1, 2017.
  • COSTA, Marcelo Timotheo da: Tapeçarias a escrita de si nos diários mertonianos. In: BINGEMER, Maria Clara (org.). Thomas Merton: a clausura no centro do mundo. Petrópolis: Vozes; Rio de Janeiro: Editora PUC, 2018.
  • D’AGUIAR, Rosa Freire. Introdução - Os anos de formação. In: FURTADO, Celso. Anos de formação - 1938-1948: o jornalismo, o serviço público, a guerra, o doutorado. Organização de Rosa Freire D’Aguiar. Rio de Janeiro: Contraponto/Centro Internacional Celso Furtado de Política para o Desenvolvimento, 2014, p. 7- 28. (Arquivos Celso Furtado 6).
  • D’AGUIAR, Rosa Freire. Apresentação. In: FURTADO, Celso. Diários intermitentes: 1937-2002. Organização, apresentação e notas de Rosa Freire D’Aguiar. Prefácio de João Antonio de Paula. São Paulo: Companhia das Letras, 2019, p. 7-12.
  • FELGUEIRAS, Carmen. Lua e estrela: experiência e universalidade nas viagens de Afonso Arinos de Melo Franco. Sociologia & Antropologia [online], v.3, n. 6, 2013, p. 579-603.
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  • FURTADO, Celso. A fantasia desfeita. In: FURTADO, Celso. Obra autobiográfica. Tomo II. Organização de Rosa Freire d’Aguiar. São Paulo: Paz e Terra, 1997e.
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  • FURTADO, Celso. Diários intermitentes: 1937-2002. Organização, apresentação e notas de Rosa Freire D’Aguiar. Prefácio de João Antonio de Paula. São Paulo: Companhia das Letras, 2019.
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  • PÉCAUT, Daniel. Os intelectuais e a política no Brasil: entre o povo e a nação. São Paulo: Ática, 1990.
  • SCHNAIDERMAN, Boris. Guerra em surdina. São Paulo: Cosac&Naify, 2004.
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  • VELHO, Gilberto. Memória, identidade e projeto. In: VELHO, Gilberto. Projeto e metamorfose: antropologia das sociedades complexas. Rio de Janeiro: Zahar, 1994.
  • WAIZBORT, Leopoldo. Formação, especialização, diplomação Da universidade à instituição de ensino superior. Tempo Social - Revista de Sociologia da USP, v. 27, n. 2, 2015, p. 45-74.
  • 2
    Remeto aqui o leitor ao site do Centro Internacional Celso Furtado de Políticas para o Desenvolvimento, que reúne e disponibiliza grande parte da bibliografia sobre Celso Furtado, facilitando enormemente o trabalho dos pesquisadores. Sobre a trajetória do Celso Furtado economista, cito o excelente artigo de Afrânio Garcia Jr. (2019).
  • 3
    A lista que reproduzo aqui é longa e certamente incompleta. Além dos livros positivistas que herdara do tio, lia A filosofia da vida, de Will Durant, Schopenhauer, o médico eugenista Renato Kehl, os estudos literários de Agripino Grieco e um romance de Pearl Buck. Em 1940, lê O Guarany e Diva, de Alencar, Casa-Grande e Senzala, de Freyre, Memórias de Braz Cubas e Quincas Borba, de Machado, Joseph Fouché , de Zweig. No ano seguinte, lerá Confúcio, Platão, Graça Aranha, Kepler, Tennyson, Wilde, Bergson, Proudhon, Coulanges, Rosseau” (D’AGUIAR, 2014, p. 15).
  • 4
    Naturalmente, o conjunto de publicações dos escritos de Celso Furtado como Anos de formação e Diários intermitentes, organizado por Rosa Freire D’Aguiar, viúva de Celso, além da Obra autobiográfica, publicada em vida do autor com a colaboração de Rosa, são o principal lastro desse interesse e dessa importância.
  • 5
    Nísia Trindade Lima (1999), em valioso trabalho sobre os sentidos atribuídos pelos intelectuais brasileiros às categorias de “sertão” e “litoral”, sumariza o debate travado nos anos 1990 acerca de uma periodização que estabelece continuidades e descontinuidades entre o ensaísmo das primeiras décadas do século XX e o surgimento de uma fase científica na investigação social no Brasil com a fundação da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da USP em 1933 e da Escola Livre de Sociologia e Política. Como não é o caso de retomar aqui este debate, adoto, juntamente com Nísia e outros, a periodização de Daniel Pécaut e principalmente a perspectiva da relevância do vínculo entre os intelectuais e o projeto de nação, no caso brasileiro.
  • 6
    Para a diferença entre identidades socialmente já dadas e outras adquiridas em função de opções e escolhas, remeto ao artigo de Gilberto Velho (1994), “Memória, identidade e projeto”, publicado em Projeto e metamorfose: antropologia das sociedades complexas .
  • 7
    Esses contos foram publicados originalmente em 1946, com o título De Nápoles a Paris (Contos da vida expedicionária) e republicados nessa edição da Obra autobiográfica por insistência de Rosa Freire d’Aguiar.
  • 8
    Conforme aponta Rosa Freire d’Aguiar na “Introdução” do volume 6 dos Arquivos Celso Furtado e que podemos observar na leitura das próprias cartas, as anotações dos diários são ali transcritas literalmente. Sendo assim, correspondência, diário e textos de caráter público assumem um caráter simbiótico. Seria necessário, portanto, uma pesquisa mais aprofundada para distingui-los com propriedade, embora seja lícito supor que as anotações de caráter mais íntimo não tenham sido compartilhadas. Por ora, trabalharemos com a hipótese da precedência e da independência da escrita de Diários .
  • 9
    Desde 1931, o autor já estava disponível para o público de língua portuguesa, pois nessa data a editora carioca Livraria H. Antunes publicara Dores do mundo - A metafísica do amor - A morte - A arte - A moral - O homem e a sociedade.
  • 10
    Caberia dedicar mais atenção à antinomia que essa expressão de uso relativamente frequente por Furtado parece indicar. Certamente denota uma consciência da sua origem de classe relativamente humilde e provinciana que pretende transcender, mas também pode sugerir uma aspiração de “mundanização”, no sentido de ser como toda gente. Tentarei retomar este ponto mais adiante.
  • 11
    Utilizo aqui a formulação de Daniel Pécaut, mas ciente de que sua proposta não encontra unanimidade entre os principais estudiosos do pensamento social brasileiro. Desde, claro, Sérgio Miceli, com quem Pécaut trava um diálogo áspero, logo no início do seu trabalho, até André Botelho (2019, p. 202), para quem “buscar qualquer unidade para os ensaios de interpretação do Brasil escritos entre 1920 e 1940 constitui, na melhor das hipóteses, um movimento analítico de atribuição e não de inferência de unidade”. Contudo, considero a hipótese generalizadora de Pécaut (formulada através do conceito de “cultura política”, reconhecendo inclusive as diferenças significativas entre os autores dos períodos analisados) produtiva para os objetivos deste trabalho e faço dela um uso apenas pragmático.
  • 12
    Pelo contrário, todas as referências à sua inserção de classe são profundamente negativas e revelam o seu desejo de transcendê-la.
  • 13
    Independentemente dos significados da palavra ataraxia (um estado de espírito livre de perturbações) nas diferentes escolas do pensamento clássico, o emprego do termo por Celso Furtado tanto indica seu contato com a filosofia estoica como lhe subverte o sentido. Retornarei a isso mais adiante.
  • 14
    Fugiria aos propósitos deste artigo explorar a questão, mas cabe notar que no “grupo social consistente” a que ele se refere estão excluídas “a comédia da vida dos intelectuais, e a feira da arte, e o meretrício do pensamento!” (FURTADO, 2019, p. 78).
  • 15
    As conclusões de Leopoldo Waizbort (2015) apontam para uma falência desse modelo de Bildung na Alemanha e nos Estados Unidos já no início do século XX com o surgimento da figura do especialista, falência já identificada por Max Weber em seu célebre “Ciência como profissão” de 1917. Seguindo com Waizbort, esse modelo humboldtiano de formação é o que fora implantado na criação da Universidade de São Paulo (USP) em 1934, o que nos autoriza a pensar na presença do contexto para o caso de Furtado, assim como sugerir outros desenvolvimentos no sentido de explorar no autor esta dupla inserção cultural, como humanista e como especialista.
  • 16
    Também nesse caso, sigo as sugestões de Ricardo Benzaquen de Araújo (2019) para o exame das possibilidades interpretativas da relação entre a escrita de si como uma espécie de inventário da vida até então e a situação na qual nosso autor se encontrava, em um mar que poderia representar a ameaça da indissociação, tal como representado na tradição grega. “O mar, neste caso, costuma ser definido como algo que - simplesmente - não tem caráter. Cabe recordar aqui que caráter, em grego, se relaciona com a ideia de sulco, ou seja, com a possibilidade de que, ao se escrever alguma coisa, se possa manter uma memória indelével do que se escreveu” (ARAÚJO, 2019, p. 353).
  • 17
    Naturalmente, como é impossível reconstituir aqui os argumentos de Marcelo Timotheo em sua complexidade e sofisticação, atenho-me a apenas alguns pontos selecionados para os fins deste ensaio.
  • 18
    Relato de viagens no sentido de que, para “o fiel, a vida terrena pode ser representada como um metafísico peregrinar à Jerusalém Celeste, um exercício ascensional” (COSTA, 2005, p. 2).
  • 19
    Ver Run to the mountain, p. 133, 13 de janeiro de 1940 (apud COSTA, 2018, p. 105).
  • 20
    Isso é feito em textos posteriores, sobretudo naquele que, segundo a nota da organizadora, se constituiria em uma palestra que Celso Furtado fez em João Pessoa sobre a sua experiência na FEB. Ver “O tenente na Paraíba” em “Documentos de Celso Furtado. A guerra. 1945-1946” do volume 6 dos Arquivos Celso Furtado. Nesse volume encontramos algumas das anotações que constarão em Diários intermitentes, assim como dois textos manuscritos que antecedem a ida para a Europa, como outros posteriores, além das cartas e cartões-postais enviados à família durante a permanência na Itália (FURTADO, 2014).
  • 21
    Boris Schnaiderman (2004), um expedicionário como Furtado, também acentua essa dimensão do cotidiano em seu romance Guerra em surdina .
  • 22
    Em outro texto manuscrito, datado de 20 de janeiro de 1946, Furtado revela que ao final do período da convocação fora classificado em unidade não expedicionária, mas que, por ingerência de Gilberto Amado, filho, teve essa transferência revogada, o que acaba atrapalhando os seus planos, pois nesse ínterim obtivera a aprovação de uma bolsa de estudos nos Estados Unidos. Ver: Furtado, 2014, p. 253-255.
  • 23
    Em texto manuscrito de março de 1946, quando já havia retornado ao Rio de Janeiro, Furtado dá mais detalhes sobre a chegada a Nápoles, do seu horror diante da destruição e da “tragédia horrível das crianças famintas que assaltavam o caminhão” e reflete sobre o seu desejo de “universalismo” explicado por uma vontade de se sentir superior, que acreditava ser “um traço da psicologia dos povos de cultura de segundo ou terceiro grau” (FURTADO, 2014, p. 258).
  • 24
    Contudo, constatamos na Obra autobiográfica uma nova revisão: “Mas, como separar o marxismo da experiência soviética, onde a asfixia do indivíduo contrapunha-se ao que havia de mais nobre e permanente na cultura europeia - essa ideia de que cada indivíduo leva em si um destino pessoal?” (FURTADO, 1997, p. 105).
  • 25
    Curiosamente, Rubem Braga (1986, p. 157), de quem seria de esperar o emprego da retórica informativa e descritiva, recorre com frequência ao estilo alto, grandiloquente, em suas Crônicas da guerra na Itália, como por exemplo na frase “Os homens precisam de chão livre, para andar. E é uma grande e solene coisa - andar”, em que exalta a liberdade como valor supremo.
  • 26
    Tratei da prática do grand tour em meu artigo “Lua e estrela: experiência e universalidade nas viagens de Afonso Arinos de Melo Franco” (FELGUEIRAS, 2013).
  • 27
    A definição de “travel” de Fussel, embora ele não o diga de modo explícito, seguramente se refere às viagens de formação.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    03 Maio 2021
  • Data do Fascículo
    Jan-Apr 2021

Histórico

  • Recebido
    01 Set 2020
  • Aceito
    15 Dez 2020
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