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Região, regionalismo e outros espaços: deslocamentos

Literatura, crítica literária, sociolinguística, semântica, lexicologia, cinema, história e sociologia, em interconexão com tantas outras áreas do conhecimento, perpassam os dez artigos publicados neste número da Revista do Instituto de Estudos Brasileiros. (Re)visitam-se desde as viagens de Johann Baptist von Spix e Carl Friedrich Philipp von Martius, ao Reino Unido de Portugal, Brasil e Algarves, até a biografia de Maria Christina Russi da Matta Machado e o impacto de sua obra, em plena ditadura militar, entre os militantes de esquerda.

Em seus últimos números, a RIEB levou a seus leitores dossiês sobre uma diversidade de temáticas e questões - Mulheres, arquivos e memórias; Samba: 1917-2017; Antropologia: desafios cosmopolíticos contemporâneos -, como também artigos outros que trazem reflexões sobre o Brasil a partir de múltiplas áreas do saber.

O impacto da produção de dossiês se fez evidente nos últimos anos, andando pari passu com um sempre crescente interesse, por parte de pesquisadores do Brasil e do exterior, em publicar suas reflexões na revista. Assim, buscando incentivar ambas as iniciativas, os editores e seu corpo técnico acharam por bem, sendo a revista quadrimestral, reservar um dos números anuais à publicação de artigos sobre temáticas e perspectivas variadas, estimulando assim a produção de textos a partir de um olhar interdisciplinar. Temos certeza de que este número cumpre integralmente essa proposta, levando aos leitores um conjunto de artigos que trazem uma boa amostra das novas searas de pesquisa nas áreas que, desde sua criação, marcam a RIEB e a própria história do Instituto de Estudos Brasileiros. Não obstante, a seção Documentação traz um dossiê sobre a literatura de cordel, recentemente reconhecida como patrimônio imaterial brasileiro. O IEB, como depositário de um rico acervo de cordel, não poderia fugir ao seu compromisso. E, ao final, brindamos os leitores com mais um dossiê.

Willi Bolle e Eckhard E. Kupfer, respectivamente professor titular de Literatura Alemã da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo e diretor do Instituto Martius-Staden de Ciências, Letras e Intercâmbio Cultural Brasileiro-Alemão, juntamente com dois cineastas, refizeram parte do trajeto da viagem de Spix e Martius pelo Brasil, entre 1817 e 1820. Seguindo o percurso dos naturalistas pelos sertões de Minas Gerais, os autores, no artigo “Travessia do Sertão: refazendo a viagem de Spix e Martius em 1818”, buscaram não só “observar as continuidades e as mudanças ocorridas durante esses 200 anos”, como também aquilatar a contribuição de Spix e Martius para o conhecimento dessas regiões.

A região, ou mais propriamente o regionalismo, aparece como questão central no texto de Fernando Cerisara Gil, professor de Literatura Brasileira na Universidade Federal do Paraná, “Sobre a ausência e o surgimento da noção de regionalismo na literatura brasileira: notas para repensar o problema”. Partindo da produção literária brasileira das últimas décadas do século XIX, da crítica coeva e da historiografia sobre o período, o autor busca entender o porquê desse conceito - regionalismo - ter se tornado corrente apenas no século XX.

Em “Regionalismo e variação linguística: uma reflexão sobre a linguagem caipira nos causos de Geraldinho”, Luana Nunes Martins de Lima, professora do curso de Geografia da Universidade Estadual de Goiás, e Julienni Lopes de Sousa, bacharel em Letras com pós-graduação lato sensu em Cultura, Identidade e Região pela Universidade Estadual de Goiás, se propõem a discutir a questão das variações linguísticas, com foco na “típica linguagem caipira goiana”. Partindo da análise da fala caipira evidenciada nos causos de Geraldinho (Geraldo Policiano Nogueira, 1918-1993), elas descortinam o preconceito existente em relação a variantes da língua portuguesa; as relações entre regionalismo, linguagem caipira e imagens do sertanejo/caipira; e, finalmente, a importância das variações linguísticas, juntamente com outros elementos da cultura, como instrumento identitário.

Greize Alves da Silva, professora adjunta do curso de Letras da Universidade Federal do Tocantins, e Patrícia Andréa Borges, mestranda no Instituto de Estudos da Linguagem da Universidade Estadual de Campinas, em “Presença vs ausência de traços de ruralidade no léxico tocantinense”, dedicam-se a refletir sobre o “desaparecimento” do léxico rural no mundo contemporâneo. Considerando o fenômeno das migrações de áreas rurais para centros urbanos, com foco no estado do Tocantins, as autoras recolocam a questão, buscando “verificar os processos de mudança linguística em curso, a adoção de novas variantes e os desusos de formas linguísticas”.

A mudança do universo rural para a realidade urbana é também tratada por Bernardo Buarque de Hollanda e Regiane Matos, em seu artigo “Cidade, história e segregação socioespacial no romance O moleque Ricardo, de José Lins do Rego”. Nesse caso, o professor do Centro de Pesquisa e Documentação em História Contemporânea do Brasil da Fundação Getúlio Vargas e a doutoranda em História, Política e Bens Culturais da mesma instituição se dedicam a analisar o quarto romance publicado por José Lins do Rego que, diferentemente dos anteriores, não se desenrolava no “cenário quase isolado e decadente dos engenhos de cana-de-açúcar”. Ricardo, saído de um engenho localizado na Paraíba, muda-se para o Recife. Na cidade grande enfrenta desafios que lhe são desconhecidos - considerando-se sua criação em um ambiente rural -, levando-o a acompanhar seus colegas numa greve e, finalmente, no degredo para a ilha de Fernando de Noronha.

Marcelo Diego, professor do Departamento de Ciência da Literatura da Universidade Federal do Rio de Janeiro, se debruça sobre o poema “Caso do vestido”, de Carlos Drummond de Andrade, e o folhetim Meu destino é pecar, escrito por Nelson Rodrigues sob o pseudônimo de Suzana Flag, ambos publicados no periódico O Jornal, do Rio de Janeiro, em 1944. Diego, em “‘Essa dona tão perversa’: Carlos Drummond de Andrade, Nelson Rodrigues e as figurações da perversão na imprensa carioca da década de 1940”, considerando a coincidência temporal e “o circuito relativamente fechado da imprensa carioca”, dedica-se a identificar e problematizar um possível diálogo entre o poema e o folhetim, especialmente no que tange às personagens femininas criadas por seus autores. Também nesse caso a abordagem peculiar do espaço a partir de uma perspectiva de gênero, na então cosmopolita capital federal, não configuraria uma abordagem regionalista?

Imprensa e poesia, ainda que sob a ótica da crítica literária, estão também no cerne do artigo “Leituras da poesia de Dante Milano: Sérgio Milliet e Sérgio Buarque de Holanda”, de Vanessa Moro Kukul, doutora em Letras e com pós-doutorado em Teoria Literária e Literatura Comparada da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo. A autora recupera e compara textos de Sérgio Milliet e Sérgio Buarque de Holanda sobre a poesia de Dante Milano, publicados ambos na grande imprensa carioca. Sempre atentando para as particularidades dos autores, a pesquisadora deslinda as similaridades que permeiam as críticas de Milliet e Buarque de Holanda à poesia de Milano.

Os versos de outro poeta são o objeto de análise no artigo “O sagrado e o profano na poesia de Mário de Andrade”, de Caion Meneguello Natal, pós-doutorando no Instituto de Estudos Brasileiros da Universidade de São Paulo. Partindo de seis poemas, o pesquisador busca compreender a relação do “eixo sagrado-profano” com outras dualidades presentes na produção de Mário de Andrade, demonstrando que, para o autor, “a religião conectaria o alto e o baixo à medida que intensificasse estados anímicos no aqui-agora da experiência - quando o poeta escolhesse imergir na vida comunal”. Tanto nos bondes da São Paulo “arlequinal”, como no carnaval carioca, quintessência da brasilidade.

Linda Kogure e Milton Esteves Junior, respectivamente pós-doutoranda em Arquitetura e Urbanismo na Universidade Federal do Espírito Santo e doutor em História da Arquitetura e História da Cidade pela Universidade Politécnica da Catalunha, acompanham Caio Fernando de Abreu “Pela noite”. Atentando para os fios narrativos e a jornada de seus personagens, os pesquisadores buscam aquilatar (e compreender) o papel do cinema, da indústria cultural e da vida na grande metrópole. O leitor segue então o narrador, as personagens Santiago e Pérsio, mas também Kogure e Esteves, noite adentro em São Paulo pelas lentes, pelo retrovisor, pelos olhos de Caio Fernando de Abreu.

Chegamos então ao artigo de Luiz Bernardo Pericás, “Uma intérprete do cangaço: Maria Christina Russi da Matta Machado”, que desloca para um outro espaço um tema clássico das leituras “regionalistas”. Pericás, professor de História Contemporânea da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo, recupera a biografia de Matta Machado, sua atuação acadêmica e produção intelectual, hoje pouco lembradas na academia. Sem deixar de lado a crítica à obra da autora, o historiador lembra aos leitores sua importância em finais da década de 1960 e princípios da década seguinte, quando, em plena ditadura militar, em razão de seu livro As táticas de guerra dos cangaceiros, constituiu-se leitura obrigatória para os militantes de esquerda.

O presente número conta ainda com uma alentada resenha do livro Enigma do disforme: neoliberalismo e biopoder no Brasil global, de Giuseppe Cocco e Bruno Cava, escrita por Leonardo Octavio Belinelli de Britto (doutorando em Ciência Política na Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP), intitulada “Michel Foucault, o paradigma da formação e junho de 2013: uma interpretação sobre a (de)formação nacional”, bem como, em sua seção Documentação, com um dossiê sobre Cordel e Patrimônio. Como bem coloca o professor do IEB Paulo Teixeira Iumatti em sua apresentação ao dossiê, trata-se de inestimável contribuição de agentes diretamente envolvidos na elaboração de instrumentos teóricos relativos aos acervos de literatura de cordel, aqui e no exterior, como da publicização de material que resultou no “reconhecimento da literatura de cordel como patrimônio brasileiro”. Ao leitor são dados a conhecer textos de Ulpiano T. Bezerra de Meneses (professor emérito da Universidade de São Paulo), Rosilene Alves de Melo (professora da Universidade Federal de Campina Grande), Antonio Gilberto Ramos Nogueira (professor da Universidade Federal do Ceará), Michel Riaudel (professor da Universidade de Paris IV, Sorbonne) e Ivone da Silva Ramos Maya (professora aposentada da Universidade Federal Fluminense). Se o texto resenhado destrincha as deformações do espaço mundializado, hierarquizado e desigual, sob uma perspectiva nacional, os textos da seção Documentação sobre a literatura de cordel, um gênero inicialmente fincado em uma realidade regional, nos revelam como por meio dos acervos podemos ultrapassar fronteiras.

O mestre Milton Santos (2017SANTOS, Milton. A natureza do espaço. 4. ed. 9. reimp. São Paulo: Edusp, 2017., p. 21) - na sua definição sintética do espaço como “um conjunto indissociável de sistemas de objetos e de sistemas de ações” - delimitou e precisou o objeto da geografia. O presente número da RIEB sugere que somos todos, em alguma medida, um pouco geógrafos.

Editores

REFERÊNCIA

  • SANTOS, Milton. A natureza do espaço. 4. ed. 9. reimp. São Paulo: Edusp, 2017.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    10 Jun 2019
  • Data do Fascículo
    Jan-Apr 2019
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