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O futuro passado da antropofagia: tempo e história nos ensaios filosóficos de Oswald de Andrade

The future past of anthropophagy: time and history in the philosophical essays of Oswald de Andrade

RESUMO

O trabalho examina a produção ensaística de Oswald de Andrade e explora as articulações entre os usos da história e a formulação de uma utopia ético-política da emancipação. Argumenta-se que o pensamento de Oswald se vale de um regime de temporalidade dual, que combina formas cíclicas e lineares do tempo histórico, em que as imagens de um remoto matriarcado se mesclam e se fundem à esperança progressista de um futuro hipertecnológico.

PALAVRAS-CHAVE
Oswald de Andrade; teoria da história; pensamento brasileiro.

ABSTRACT

This paper examines Oswald de Andrade’s essayistic production and explores the intersections between the uses of history and the formulation of an ethical-political utopia of emancipation. The argument centers on the proposition that Oswald’s thought employs a dual temporality regime, combining cyclical and linear forms of historical time, where images of a remote matriarchy intertwine and merge with the progressive hope for a hyper-technological future

KEYWORDS
Oswald de Andrade; theory of history; Brazilian thought.

Entre 1930 e 1954, Oswald de Andrade escreveu um conjunto de textos na forma de ensaios, teses para concursos universitários, artigos para a imprensa, palestras, conferências e depoimentos nos quais retoma e reelabora insights de sua poética antropofágica dos anos 1920. Destacam-se entre esses trabalhos “A antropofagia como visão de mundo” (1930), “A arcádia e a Inconfidência” (1945), “A crise da filosofia messiânica” (1950), “O antropófago: sua marcha para a técnica, revolução e progresso” (1952-1953), “Um aspecto antropofágico da cultura brasileira: o homem cordial” (1950) e uma série de artigos escritos para o jornal O Estado de S. Paulo (1950), posteriormente reunidos sob o título “A marcha das utopias”, publicado postumamente em 1966.

O presente artigo pretende examinar essa produção ensaística de Oswald e contribuir para os debates sobre seu pensamento partindo de questões que interessam mais especificamente ao campo da teoria da história e da teoria política. Trata-se de lançar luz sobre o lugar do discurso historiográfico na elaboração da crítica oswaldiana à civilização e de seu projeto ético-político de emancipação. Assim, a leitura aqui empreendida enfatizará a construção de um discurso historiográfico, com o objetivo de explicitar a dimensão temporal dos conceitos e as articulações entre as categorias de passado, presente e futuro.

A hipótese de leitura sugere que os ensaios de Oswald de Andrade expressam um regime de temporalidade dual, que combina formas cíclicas e lineares do tempo histórico. A dimensão cíclica do tempo se manifesta na imagem de um futuro configurado em torno de valores resgatados de uma remota época matriarcal e antropofágica, uma idade de ouro primitiva fundada no elogio ético-político do ócio, do lúdico e do comunal. Já a dimensão linear ou progressista do tempo se evidencia na crença de que a difusão global da automação industrial realizará, no futuro, a utopia prometeica de uma sociedade emancipada do fardo do trabalho alienado. Nesse regime de historicidade híbrido, as imagens do passado neomatriarcal se mesclam e se fundem à esperança progressista de um inédito futuro hipertecnológico.

A recepção da obra de Oswald de Andrade na segunda metade no século XX priorizou a dimensão estético-literária da poética antropofágica, concedendo espaço menor aos seus textos ensaísticos (CAMPOS, 1971aCAMPOS, Haroldo. Miramar na mira. In: ANDRADE, Oswald. Obras completas - 2. Memórias sentimentais de João Miramar; Serafim Ponte Grande. São Paulo: Civilização Brasileira, 1971a, p. xi-xlv., 1971bCAMPOS, Haroldo. Serafim: um grande não-livro. In: ANDRADE, Oswald. Obras completas - 2. Memórias sentimentais de João Miramar; Serafim Ponte Grande. São Paulo: Civilização Brasileira, 1971b, p. 99-128.; 1974CAMPOS, Haroldo. Uma poética da radicalidade. In: Andrade, Oswald. Obras completas - 4. Poesias reunidas. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1974.; 2015aCAMPOS, Augusto de. [1992]. Oswald, livro livre. In: CAMPOS, Augusto de. Poesia antipoesia antropofagia & cia. São Paulo: Companhia das Letras, 2015a.; 2015bCAMPOS, Haroldo. [2011]. Pós-Walds. In: CAMPOS, Augusto de. Poesia antipoesia antropofagia & cia. São Paulo: Companhia das Letras, 2015b.; GEORGE, 1985GEORGE, David. S. Teatro e antropofagia. São Paulo: Global, 1985.; NAVES, 1998NAVES, Santuza Cambraia. O violão azul: modernismo e música popular. Rio de Janeiro: Editora Fundação Getulio Vargas, 1998.; VELOSO, 1997VELOSO, Caetano. Verdade tropical. São Paulo: Companhia das Letras, 1997.; HERKENSHOFF, 1998HERKENHOFF, Paulo. Ensaio de diálogo. In: XXIV Bienal de São Paulo, volume 3. Representações Nacionais. São Paulo: Fundação Bienal de São Paulo, 1998, p. 28 (catálogo de exposição).; FUNDAÇÃO BIENAL, 1998FUNDAÇÃO Bienal de São Paulo. XXIV Bienal de São Paulo: antropofagia e histórias de canibalismos. Curadores Paulo Herkenhoff e Adriano Pedrosa. São Paulo: A Fundação, 1998.; CASTRO, 2002CASTRO, Eduardo Viveiros de. A inconstância da alma selvagem. 1 ed. São Paulo: Cosac Naify, 2002.; 2008CASTRO, Eduardo Viveiros de. “O perspectivismo é a retomada da Antropofagia oswaldiana em novos termos”, por Luísa Elvira Belaunde. Publicada originalmente na revista Amazonía Peruana, em 2007. In: SZTUTMAN, Renato (Org.). Eduardo Viveiros de Castro. Rio de Janeiro: Beco do Azougue Editorial, 2008, p. 114-129. (Coleção Encontros).; 2015CASTRO, Eduardo Viveiros de. Metafísicas canibais: elementos para uma antropologia pós-estrutural. 1. ed. São Paulo: Cosac Naify, 2015.). Exceções notáveis, ainda na década de 1970, são os trabalhos do filósofo belenense Benedito Nunes, “Antropofagia ao alcance de todos” (1972) e Oswald canibal (1979), que tratam sistematicamente de alguns desses ensaios. E, mais recentemente, trabalhos acadêmicos têm explorado, especialmente a partir do campo da crítica literária e da sociologia da cultura, a proposta antropofágica de Oswald em suas dimensões filosóficas, sociais e políticas (NODARI, 2007NODARI, Alexandre. ‘a posse contra a propriedade’: pedra de toque do Direito Antropofágico. Dissertação de Mestrado. Universidade Federal de Santa Catarina, 2007.; TORRE, 2012TORRE, Bruna Della. Vanguarda do atraso ou atraso da vanguarda? Oswald de Andrade e os teimosos destinos do Brasil. Dissertação (Mestrado). Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, 2012.; VALLE, 2017VALLE, Ulisses do. A filosofia da história de Oswald de Andrade. Remate de Males. Campinas-SP, (37.1), jan.-jun. 2017, p. 232-344.; SALLES 2018SALLES, Christian Bruno Alves. A utopia antropofágica: rastos e horizontes. Sociol. Antropol. Rio de janeiro, v. 08.01, jan.-abr. 2018, p. 273-295.; SALLES, 2019SALLES, Christian Bruno Alves. O caos preclaro: identidade nacional e resistência simbólica na antropofagia oswaldiana. Rio de Janeiro: 7 Letras/Faperj, 2019.; RICUPERO, 2018RICUPERO, Bernardo Ricupero. O “original” e a “cópia” na antropofagia. In: Sociol. Antropol. Rio de Janeiro, v.08.03, set.-dez., 2018, p. 875-912. https://doi.org/10.1590/2238-38752018v836.
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).

A leitura aqui empreendida pretende contribuir com essas novas linhas interpretativas da produção ensaística de Oswald - para além, portanto, de sua dimensão estético-literária- -explorando especificamente questões do campo da teoria da história e do pensamento político. De Reinhart Koselleck (2006KOSELLECK, Reinhart. [1979]. Futuro passado: contribuição à semântica dos tempos históricos. Rio de Janeiro: Contraponto/PUC, 2006.; 2010KOSELLECK, Reinhart. [1975]. história/História. Trad. Antonio Gómes Ramos. Madrid: Editorial Trotta, 2010.) mobilizo as categorias meta-históricas de espaço de experiência e horizonte de expectativas e a postulação de que todo discurso historiográfico se vale de algum tipo de relação entre espaço de experiência e horizonte de expectativa, isto é, inscreve-se na tensão entre o que foi e o que pode vir a ser, entre o experimentado e o esperado. A noção de “regimes de historicidade” formulada por François Hartog (2019)HARTOG, François. Regimes de historicidade: presentismo e experiências do tempo. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2019., em diálogo com semântica histórica de Koselleck, também nos auxilia aqui para lançar luz sobre o caráter contingente e mutável das formas de representação do tempo. A tese de Hartog é que a contemporaneidade se caracteriza pelo declínio do regime de historicidade futurocêntrico que caracterizou o iluminismo e a modernidade ocidental, e que tal declínio seria paralelo à difusão de formas presentistas de figuração do tempo, como indicam os protagonismos dos temas da memória e da conservação do patrimônio, de um lado, e da reversão das utopias, de outro (HARTOG, 2019HARTOG, François. Regimes de historicidade: presentismo e experiências do tempo. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2019.). Um “regime de historicidade” designa uma dada forma de articulação do passado, presente e futuro, isto é, um modo pensar e experimentar o tempo. Meu argumento é que o pensamento de Oswald configura um regime de historicidade híbrido ou ambivalente, que se vale das formas cíclicas e progressistas. Valho-me ainda, para empreender essa leitura dos ensaios de Oswald de Andrade, da profícua categoria de “tradições eletivas”, formulada por Javier Sebastián (2014)SEBASTIÁN, Javier Fernández. Tradiciones electivas. Cambio, continuidad y ruptura en historia intelectual. Almanack. Guarulhos, n. 7, 1º sem/2014, p. 5-26. http://dx.doi.org/10.1590/2236-463320140701.
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, para pensar os modos de produção deliberada “de passados” como recurso para estabelecer filiações intelectuais e legitimar a ação política.

Na primeira seção do artigo, retomo alguns conceitos e linhas argumentativas de Oswald sobre a história, com ênfase nos pares conceituais matriarcado/patriarcado, antropofagia/messianismo, colônia/metrópole, reforma/contrarreforma. Na segunda parte, exploro o diagnóstico do tempo presente como crise terminal da civilização e as expectativas de futuro contidas na utopia de um neomatriarcado.

Deglutindo passados: as tradições eletivas da antropofagia

A filosofia da história elaborada nos ensaios de Oswald se organiza em torno de dois pares conceituais - matriarcado/patriarcado e antropofagia/messianismo - que abrangem uma estrutura temporal de longa duração temporal e larga abrangência espacial, incorporando, no limite, a história universal. Em ensaio escrito para o concurso da cadeira de filosofia da Universidade de São Paulo (USP) em 1950, intitulado “A crise da filosofia messiânica”, Oswald sustenta que tanto as civilizações pré-colombianas na América quanto a Grécia pré-homérica compartilham um passado caracterizado pela antropofagia, por relações de parentesco matrilineares, pela propriedade comum da terra e pela ausência de classes sociais (ANDRADE, 1970cANDRADE, Oswald de. [1950]. A crise da filosofia messiânica. In: ANDRADE, Oswald. Obras completas. V. VI. Do Pau-Brasil à antropofagia e às utopias. São Paulo: Civilização Brasileira, 1970c, p. 75-139., p. 80)2 2 Deve-se registrar que a hipótese do matriarcado universal, contudo, já era desacreditada pela antropologia no momento em que Oswald escrevia seus ensaios (PINTO, 2022, p. 16; NUNES, 1972, p. XLII). Sztutman (2007, p. 11), afirma que os ensaios de Oswald faziam uso de “conceitos antropológicos obsoletos e equivocados - por exemplo, o de ‘matriarcado’, como figura em Morgan e Bachofen -, importados de um conjunto de teorias evolucionistas, presas a projeções incessantes de noções ocidentais-modernas sobre o universo indígena”. Contudo, nos interessa aqui menos discutir menos a validação empírica de tal conceito do que lançar luz sobre sua função retórica na crítica da civilização patriarcal e na elaboração de uma utopia emancipatória. .

Nesse passado primitivo universal, a prática ritual da antropofagia se define como um “modo de pensar” e uma “visão de mundo totalizante” que transforma “tabu em totem” e “o valor desfavorável em valor favorável” (ANDRADE, 1970cANDRADE, Oswald de. [1950]. A crise da filosofia messiânica. In: ANDRADE, Oswald. Obras completas. V. VI. Do Pau-Brasil à antropofagia e às utopias. São Paulo: Civilização Brasileira, 1970c, p. 75-139., p. 77). Desse modo, a antropofagia configura uma forma social baseada na abertura e incorporação do outro e na inversão cotidiana dos valores.

Apesar da hipótese da incidência universal das formas de sociedades matriarcal-antropofágicas em um passado remoto da humanidade, Oswald argumenta que elas foram há muito derrotadas e praticamente banidas. A vitoriosa “revolução patriarcal” e “messiânica”, identificada com o surgimento da civilização, teria dado lugar a uma nova forma de sociedade, baseada no direito do filho de direito paterno, na propriedade privada do solo e no estado de classes (ANDRADE, 1970cANDRADE, Oswald de. [1950]. A crise da filosofia messiânica. In: ANDRADE, Oswald. Obras completas. V. VI. Do Pau-Brasil à antropofagia e às utopias. São Paulo: Civilização Brasileira, 1970c, p. 75-139., p. 80-81).

O documento que melhor registra essa revolução é encontrado na história da dramaturgia, mais especificamente na obra Oréstia, de Ésquilo. Na referida tragédia, o protagonista matricida é absolvido de seu crime pelo voto de Minerva, expressão, segundo Oswald, do novo sistema de valores e do “novo direito” do patriarcado. O tema do filho matricida, argumenta, torna-se um cânone da literatura e da dramaturgia ocidentais, cujo êxito se explica pela convergência temática com as fobias próprias da civilização vencedora:

Nos caminhos do patriarcado, o destino trágico do Príncipe Hamlet, que é o mesmo de Orestes, repete-se por milênios. De Electra, de Sófocles, a Electra, de O’Neill, passando por Eurípedes, Racine, Goethe e Ibsen, é sempre o drama da inconformação dos filhos ante a constante liberdade dos pais amorosos. É o drama da herança e da propriedade privada. (ANDRADE, 1970cANDRADE, Oswald de. [1950]. A crise da filosofia messiânica. In: ANDRADE, Oswald. Obras completas. V. VI. Do Pau-Brasil à antropofagia e às utopias. São Paulo: Civilização Brasileira, 1970c, p. 75-139., p. 90).

O messianismo, por sua vez, designa propriamente o regime simbólico ou religioso coetâneo ao patriarcado e que teria surgido no seio das religiões abraâmicas. Em contraste com o ritual antropofágico e sua abertura mundana para o outro, o messianismo promoveria uma visão de mundo configurada por hierarquias duais, uma ontologia binária e maniqueísta do Ser cindido entre imanência e transcendência, bem e mal, certo e errado, arte e vida, razão e intuição, verdadeiro e falso, deus e homem, natureza e cultura. Embora seu surgimento tenha uma localização histórica precisa - as religiões monoteístas - o messianismo transcende o plano propriamente religioso e teria se desenvolvido também em versões secularizadas, tornando-se o paradigma dominante da filosofia ocidental, especialmente em sua linhagem metafísica e idealista e, mais recentemente, explorada de maneiras distintas pelas ideologias políticas do comunismo e do fascismo3 3 De acordo com Valle, Oswald se baseia na distinção entre as formas de conhecimento da filosofia ocidental, caracterizada pelo silogismo e abstração, e a visão de mundo animista antropofágica, fundamentada na analogia e na metáfora: “a passagem do pensamento analógico para o silogista corresponde à separação essencial das duas visões de mundo: uma metafórica, livremente criativa, no sentido de que está pronta a oferecer sempre um novo ordenamento das coisas, entre elas e seus significados, e a outra analítica, cuja representação do mundo e das coisas está orientada para a subsunção do particular ao geral, sob um rígido controle que visa ao enquadramento do maior número de objetos particulares num mesmo conceito geral e almeja, assim, uma rede de semelhanças que despoje as coisas de seu potencial sempre renovável de significação, de suas diferenças intrínsecas e de suas semelhanças menos extensivas que permitiriam outras conexões que não aquelas do silogismo” (VALLE, 2017, p. 331). .

Como se nota, a história universal se divide esquematicamente entre um momento primitivo ou natural e um momento civilizado. Importa notar a esse respeito que, no vocabulário oswaldiano, os conceitos de matriarcado e antropofagia, além de uma dimensão histórico-etnográfica, adquirem um inequívoco sentido normativo-político. Como nota Nunes (1972NUNES, Benedito. Antropofagia ao alcance de todos. In: ANDRADE, Oswald. Obras completas. V. VI. Do pau-brasil à antropofagia e às utopias. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1972., p. XXVI), matriarcado e antropofagia se associam negativamente a uma rebeldia nativa primordial dirigida contra os interditos e tabus dos colonizadores e sua cultura patriarcal e messiânica. Positivamente, esses conceitos exprimem valores, práticas e instituições configuradas em torno do ócio, do lúdico e do comunal. Nesse sentido, parece pertinente ler a construção da narrativa dessa história universal como uma tentativa de promover a constelação ético-política do matriarcado/antropofagia, instrumentalizando-a para a crítica da civilização patriarcal messiânica.

Cabe destacar também que o gênero de historiografia necessário para levar a cabo esse resgate do passado matriarcal-antropofágico não poderia ser o da história empírica, uma vez que os documentos disponíveis ao historiador desapareceram com o próprio advento da civilização. Com efeito, o discurso historiográfico assume a forma de uma “ciência do vestígio errático”, uma “paleontologia social” equipada para assimilar um passado hipotético que escapa ao registro da história documental-empírica (ANDRADE, 1970cANDRADE, Oswald de. [1950]. A crise da filosofia messiânica. In: ANDRADE, Oswald. Obras completas. V. VI. Do Pau-Brasil à antropofagia e às utopias. São Paulo: Civilização Brasileira, 1970c, p. 75-139., p. 88-89). O programa oswaldiano, nesse aspecto, aproxima-se à história hipotética de Rousseau, cuja investigação da natureza humana implica um afastamento dos fatos, isto é, do domínio da experiência histórica propriamente dita (ROUSSEAU, 1987ROUSSEAU, Jean-Jacques. [1755]. Discurso sobre a origem e os fundamentos da desigualdade entre os homens. Trad. Lourdes Santos Machado. São Paulo: Nova Cultural, 1987, p. 19-123. (Os Pensadores - Rousseau II).; JASMIN, 1998JASMIN, Gantus Marcelo. Racionalidade e história na teoria política. Belo Horizonte: Editora UFMG, 1998.). Em ambos os autores, há uma desconfiança da história e da antropologia empíricas que, aprisionadas nos documentos da civilização, ecoariam acriticamente os valores e vieses da cultura vencedora do patriarcado e do messianismo.

O interesse de Oswald pelas utopias humanistas dos séculos XVI e XVII está relacionado a essa crítica da civilização e à busca do que ele chamava uma “ciência do vestígio errático”. Em vários momentos de sua produção ensaística, o autor se debruça sobre a experiência e as consequências da colonização europeia nas Américas. Um dos argumentos recorrentemente trabalhados pelo autor é que o encontro entre europeus e ameríndios, embora violento e traumático, teria resultado em uma contestação inédita das crenças do patriarcado e do messianismo no coração do próprio Ocidente. As obras de pensadores como Thomas Morus, Tomaso Campanella, François Rabelais, Erasmo de Roterdã e, especialmente, Michel Montaigne, testemunhariam a recepção dos valores das culturas ameríndias pelo pensamento humanista europeu do fim do medievo4 4 A tese tem vários pontos de contato com aquela defendida por Afonso Arinos de Melo Franco (1973), em O índio e a Revolução Francesa, publicado originalmente em 1937. Porém não encontrei referências diretas que permitam verificar se essa fonte foi utilizada para a composição do argumento de Oswald de Andrade. .

Assim, Montaigne teria sido o primeiro a reconhecer o valor das “reivindicações do homem instintivo, abrindo brecha no patrimônio cultural do homem fáustico, até aí atordoado de escolástica, de moral romana e de pré-cristianismo grego” (ANDRADE, 2022ANDRADE, Oswald de. [1930]. A antropofagia como visão de mundo. In: ANDRADE, Oswald de. Diários confessionais. São Paulo: Companhia das Letras, 2022, p. ?-?., p. 526-527). Inspirado pelos relatos sobre as formas de vida ameríndias, o pensamento humanista teria conferido uma nova dignidade ao riso e ao lúdico, colocando fim à “sinistra seriedade medieval” (ANDRADE, 1970eANDRADE, Oswald de. [1953]. A Marcha das Utopias. In: ANDRADE, Oswald. Obras completas. V. VI. Do Pau-Brasil à antropofagia e às utopias. São Paulo: Civilização Brasileira, 1970e, p. 147-228., p. 169). São os indígenas americanos, afinal identificados com o matriarcado e a antropofagia, que fazem do século XVI um momento “libertino e revolucionário” (OSWALD, 1970e, p. 170).

Note-se aqui que Oswald atribui protagonismo aos povos ameríndios na construção da narrativa da história da civilização europeia. A força disruptiva do humanismo e das novas filosofias do contrato social e da igualdade política possui um impagável débito com as culturas ameríndias colonizadas. Assim, dois movimentos contrastantes caracterizam a chamada “conquista” europeia das Américas: de um lado, a força e a violência da imposição da cultura dos colonizadores contra os povos autóctones; de outro, a introdução da cosmologia ameríndia no próprio imaginário dos europeus colonizadores, produzindo fissuras de longo prazo naquela cultura, criando as condições para sua superação. O patriarcado messiânico sofreria sua primeira desestabilização com o sopro renovador e bárbaro vindo das matas tropicais quando “um homem sem pecado nem redenção, sem teologia e sem inferno, produziria não só os sonhos utópicos [...] mas um abalo geral na consciência e na cultura da Europa” (ANDRADE, 1970eANDRADE, Oswald de. [1953]. A Marcha das Utopias. In: ANDRADE, Oswald. Obras completas. V. VI. Do Pau-Brasil à antropofagia e às utopias. São Paulo: Civilização Brasileira, 1970e, p. 147-228., p. 165)5 5 Para uma crítica contemporânea dos limites desse projeto de descolonização mental empreendida por Oswald, ver os comentários de Diniz (2020) sobre a arte indígena de Jaider Esbell e Denilson Baniwa. .

Com efeito, o ciclo das utopias humanistas interessa a Oswald porque ele localiza ali o prenúncio de uma revolta contra a civilização, em geral, e a civilização europeia, em particular. As utopias contestam a cosmovisão teocêntrica do medievo e denunciam de forma precoce das desigualdades da nascente sociedade burguesa. Além disso, os humanistas e os antropófagos dos anos 1920 possuiriam fortes afinidades na medida em que ambos os movimentos se nutriam da “descoberta do primitivo”, formando uma tradição vinculada pela disposição em promover o “destroçamento das boas maneiras do ‘branco, adulto e civilizado’” e resgatar as figuras estigmatizadas da “criança, do doido e do primitivo” (ANDRADE, 1970cANDRADE, Oswald de. [1950]. A crise da filosofia messiânica. In: ANDRADE, Oswald. Obras completas. V. VI. Do Pau-Brasil à antropofagia e às utopias. São Paulo: Civilização Brasileira, 1970c, p. 75-139., p. 192).

Em outro texto, a “A arcádia e a Inconfidência”, tese escrita em 1945 para o concurso da Cadeira de Literatura da USP, Oswald explora outro tópico da questão colonial e suas consequências. O texto empreende um relato histórico-literário dos eventos que conduziram à Inconfidência e sua posterior repressão pela Coroa portuguesa. Portugal é descrito sob o signo do parasitismo e da decadência, uma nação provinciana, refratária às luzes da Aufklärung e reduzida à cultura cortesã de “prelados, cônegos, acólitos e mestres de cerimônia” (ANDRADE, 1970bANDRADE, Oswald de. [1945]. A arcárdia e a Inconfidência. In: ANDRADE, Oswald. Obras completas. V. VI. Do Pau-Brasil à antropofagia e às utopias. São Paulo: Civilização Brasileira, 1970b, p. 31-74., p. 39). Mesmo na condição de metrópole e potência marítima, a nação ibérica estaria aquém de seu próprio tempo, marcado pela emergente “era da máquina” e a “primeira cultura burguesa”, das “manufaturas da Saxônia e do Lancashire” (ANDRADE, 1970bANDRADE, Oswald de. [1945]. A arcárdia e a Inconfidência. In: ANDRADE, Oswald. Obras completas. V. VI. Do Pau-Brasil à antropofagia e às utopias. São Paulo: Civilização Brasileira, 1970b, p. 31-74., p. 39).

O absolutismo português e a fragilidade econômica e cultural da metrópole são contrastados com o dinamismo e a liberdade presentes nas colônias. Oswald endossa a tese de Sombart ao afirmar que Vila Rica, no século XVIII, desempenhou um papel de destaque na configuração do capitalismo mundial moderna: “sem as jazidas brasileiras, ‘não teríamos o homem econômico moderno’”, argumenta. Da mesma forma que a cultura indígena tinha reconfigurado o pensamento europeu, dando origem a um ciclo de utopias humanistas, a atividade econômica das Minas teria criado as condições materiais para o surgimento do novo modo de produção capitalista global.

No entanto, é na esfera intelectual e literária que o contraste entre colônia e metrópole se torna mais evidente. O cenário literário lusitano é descrito por Oswald como monótono e conformista. O arcadismo português teria se limitado a uma incorporação passiva do programa “francelho” de Nicolas Boileau em sua devoção formal e temática aos modelos clássicos greco-romanos. Oswald não poupa comentários sardônicos a respeito da figura de Antônio Diniz da Cruz e Silva, autor de Hissope e futuro juiz responsável pela condenação dos inconfidentes. Cruz e Silva aparece como o emblema maior da condição subserviente do intelectual português submetido ao absolutismo monárquico.

Enquanto em Portugal a situação no século XVIII era de “atonia intelectual” e “terror absolutista”, na colônia havia uma efervescência cultural contestadora e revolucionária. Embora os principais escritores brasileiros do arcadismo, como Cláudio Manuel da Costa, Tomás Antônio Gonzaga, Inácio José de Alvarenga Peixoto e Silva Alvarenga, tivessem se formado em Coimbra e incorporado ali os padrões “decadentes” do gosto português, Oswald argumenta que, ao retornarem às Minas, esses escritores teriam abandonado os padrões estéticos decadentes da metrópole e desenvolvido um original “sentimento de nacionalidade” (ANDRADE, 1970bANDRADE, Oswald de. [1945]. A arcárdia e a Inconfidência. In: ANDRADE, Oswald. Obras completas. V. VI. Do Pau-Brasil à antropofagia e às utopias. São Paulo: Civilização Brasileira, 1970b, p. 31-74., p. 51). Sátiras como Cartas chilenas e Reino da estupidez e poemas como Marília de Dirceu ou Ode à Vila Rica indicam essa nova sensibilidade e uma atitude política mais contestadora.

A história da Inconfidência, como lida por Oswald, é o momento de floração de um sentimento de nacionalidade e do advento de uma literatura emancipada das formas poéticas arcadistas obsoletas e da opressão política do absolutismo metropolitano. Ainda que tenham sido abortadas pela ação tirânica da Coroa portuguesa, tais experiências intelectuais passadas configuraram o substrato de uma cultura autônoma e moderna brasileira.

Cabe ressaltar aqui de que modo essas qualidades estético-políticas atribuídas aos inconfidentes prefiguram aquelas que Oswald identificava no próprio movimento modernista, especialmente em sua vertente antropofágica. Inconfidentes e antropófagos compartilhariam o mesmo espírito de contestação estética e política contra o status quo lusitano e bacharelesco; ambos os movimentos levariam a cabo um tipo de literatura revolucionária, engajada na desconstrução da mentalidade colonial e decadente. Tudo se passa como se, nessa autointerpretação, Oswald buscasse na experiência da Inconfidência os antecedentes de um tipo de artista estético modernista revolucionário e iconoclasta.

Embora a crítica da civilização ocidental constitua um dos motes mais frequentes e reiterados no discurso historiográfico de Oswald, há nuances e ambivalências nas avaliações concretas feitas pelo autor sobre o legado da civilização. Assim, a postura anti-iberista, presente desde os manifestos dos anos 1920 até suas teses sobre a Inconfidência em meados dos anos 1940, é relativizada em análises específicas sobre a Reforma e a Contrarreforma e suas implicações no processo colonial global, de modo que vale a pena explorar com mais vagar esse tópico.

O protestantismo, segundo Oswald, configura uma doutrina religiosa que promove um “conceito árido e desumano” de homem e uma concepção de vida orientada por um “utilitarismo mercenário e mecânico” (ANDRADE, 1970eANDRADE, Oswald de. [1953]. A Marcha das Utopias. In: ANDRADE, Oswald. Obras completas. V. VI. Do Pau-Brasil à antropofagia e às utopias. São Paulo: Civilização Brasileira, 1970e, p. 147-228., p. 153). Em contraste, a Contrarreforma, especialmente a teologia jesuítica, exprimiria uma abordagem “mais plástica e compreensiva” das culturas e uma “concepção humana e igualitária da vida” (ANDRADE, 1970eANDRADE, Oswald de. [1953]. A Marcha das Utopias. In: ANDRADE, Oswald. Obras completas. V. VI. Do Pau-Brasil à antropofagia e às utopias. São Paulo: Civilização Brasileira, 1970e, p. 147-228., p. 152; p. 180). Os jesuítas seriam os “maometanos de Cristo” (ANDRADE, 1970eANDRADE, Oswald de. [1953]. A Marcha das Utopias. In: ANDRADE, Oswald. Obras completas. V. VI. Do Pau-Brasil à antropofagia e às utopias. São Paulo: Civilização Brasileira, 1970e, p. 147-228., p. 152; p. 157), epíteto que reforça o elemento árabe - isto é, não europeu - e o ímpeto exógeno e miscigenador da Ordem fundada por Inácio de Loyola.

Em consonância com essas apreciações, Oswald analisa o conflito entre lusitanos e holandeses no Brasil do século XVII e destaca a superioridade da cultura ibérica e católica diante de seus inimigos protestantes. A “poderosa Holanda” teria sido derrotada por uma aliança de índios, negros, luso-brasileiros, uma coalizão multiétnica comprometida com “uma compreensão lúdica e amável da vida, em face dum conceito utilitário e comerciante” promovido pelos protestantes (ANDRADE, 1970eANDRADE, Oswald de. [1953]. A Marcha das Utopias. In: ANDRADE, Oswald. Obras completas. V. VI. Do Pau-Brasil à antropofagia e às utopias. São Paulo: Civilização Brasileira, 1970e, p. 147-228., p. 184).

Segundo Oswald, os ritos católicos populares desempenharam importante papel naquele conflito, atuando como instrumento de coesão social. Em contraste com a ascese individualista do protestantismo, os ritos católicos comporiam o tecido da comunicação com as populações autóctones, constituindo uma evidente vantagem para o colonizador lusitano em face das pretensões batavas. Nesse sentido, conclui o autor, “em Pernambuco, foram as ladainhas que derrotaram a iluminação interior e a ascese” (ANDRADE, 1970eANDRADE, Oswald de. [1953]. A Marcha das Utopias. In: ANDRADE, Oswald. Obras completas. V. VI. Do Pau-Brasil à antropofagia e às utopias. São Paulo: Civilização Brasileira, 1970e, p. 147-228., p. 188).

Ora, a contundente crítica de Oswald à civilização patriarcal e messiânica e à colonização europeia nas Américas convive com o elogio de aspectos específicos da colonização ibérica. Pode-se sustentar que se trata de uma postura axiológica ambivalente em relação ao legado ibérico, que ora denuncia seus aspectos conformistas e autoritários (como vimos acima, na ação da Coroa sobre os inconfidentes mineiros), ora faz o elogio das formas culturais abertas à comunicação (como na expulsão dos holandeses no século XVII), associando o iberismo a um programa mais comunitarista.

Mais uma vez, a análise oswaldiana do processo colonizador europeu nas Américas pode ser como uma construção ativa de tradições eletivas, no sentido proposto por Javier Sebastián (2014)SEBASTIÁN, Javier Fernández. Tradiciones electivas. Cambio, continuidad y ruptura en historia intelectual. Almanack. Guarulhos, n. 7, 1º sem/2014, p. 5-26. http://dx.doi.org/10.1590/2236-463320140701.
http://dx.doi.org/10.1590/2236-463320140...
. O discurso historiográfico e político procura identificar no passado “predecessores”, “signos” e “valores” que são resgatados e traduzidos para o tempo presente. Matriarcado, antropofagia, colônia, ibéria e jesuitismo opõem-se no vocabulário oswaldiano aos conceitos de patriarcado, messianismo, metrópole, Europa do Norte e protestantismo. A estes últimos são atribuídos valores negativos, como servidão, subserviência, egoísmo, culpa, materialismo vulgar, em suma, uma expressão degradada do humano. Em contraste, aos primeiros são atribuídas virtudes como liberdade, ócio, ludicidade, igualdade, criatividade e felicidade. O discurso oswaldiano sobre o passado se configura como lugar de embate entre duas constelações ético-políticas antagônicas.

A “tradição eletiva” funciona precisamente para produzir identificação entre o passado e o presente, articulando certa leitura das experiências com as expectativas de futuro. No caso de Oswald, as sociedades primitivas, o humanismo e as utopias do século XVI e XVII, a Contrarreforma e o movimento dos inconfidentes configuram os passados escolhidos por um historiador engajado e funcionam para tecer fios de continuidade e de legitimação de um dado programa ético-político a ser realizado no futuro. Na próxima seção, veremos como se dá essa articulação entre o diagnóstico do presente e as expectativas futuras.

O futuro passado da antropofagia

A contemporaneidade é descrita nos ensaios de Oswald como momento de uma vasta crise epocal da civilização e dissolução progressiva das crenças e das práticas do messianismo patriarcal que, como vimos na seção anterior, a organizaram há milênios. Expressões como um “verdadeiro limiar da história”, um mundo em “próspera decomposição” (ANDRADE, 1992aANDRADE, Oswald de. [1948]. “O sentido do interior”. Conferência proferida em Bauru em 31 de julho de 1948. . In: ANDRADE, Oswald de. Estética e política. Pesquisa, organização, introdução, notas e estabelecimento de texto de Maria Eugênia Boaventura (Org.). São Paulo: Globo, 1992a., p. 200), uma “tremenda quebra dos velhos padrões de fé e de filosofia” (ANDRADE, 1992fANDRADE, Oswald de. [1945]. A lição da Inconfidência. Conferência realizada em Piracicaba em 1945. In: ANDRADE, Oswald de. Estética e política. Pesquisa, organização, introdução, notas e estabelecimento de texto de Maria Eugênia Boaventura (Org.). São Paulo: Globo, 1992f., p. 199), aparecem com frequência na prosa do autor para indicar essa percepção de um tempo transicional e intervalar.

Semelhante percepção de ruptura epocal e de crise terminal da civilização se desenvolve no diagnóstico de um descompasso entre, de um lado, as formas e potencialidades contidas na técnica moderna da indústria e da automação e, de outro, a constelação de valores, práticas e instituições herdadas da milenar cosmovisão de mundo do messianismo patriarcal. Diante desse descompasso, Oswald aposta num futuro habitado por um novo paradigma civilizacional, capaz de combinar o ethos e as instituições do matriarcado antropofágico com as potencialidades emancipatórias da “era máquina”.

O resgate do primitivo, nesse quadro, exprime uma das principais linhas de continuidade entre os manifestos modernistas dos anos 1920 e os ensaios dos anos 1940 e 1950 (NUNES, 1970; 1979). As metáforas do “homem nu” e do “antropófago”, as teses sobre o “matriarcado” primordial são mobilizadas para contestar a razão e os valores da civilização, entendidos como repressivos e castradores das potências criativas humanas. Com efeito, como sugere Viveiros de Castro, a antropofagia oswaldiana fornece uma “arma de combate contra a sujeição cultural da América Latina, índios e não-índios confundidos, aos paradigmas europeus e cristãos” (CASTRO, 2008CASTRO, Eduardo Viveiros de. “O perspectivismo é a retomada da Antropofagia oswaldiana em novos termos”, por Luísa Elvira Belaunde. Publicada originalmente na revista Amazonía Peruana, em 2007. In: SZTUTMAN, Renato (Org.). Eduardo Viveiros de Castro. Rio de Janeiro: Beco do Azougue Editorial, 2008, p. 114-129. (Coleção Encontros)., p. 129). Esse retorno ao primitivo contém, portanto, um marcado conteúdo político de denúncia da função ideológica das instituições e produtos culturais que endossam e justificam a opressão histórica do civilizado, branco, adulto, macho, cristão.

Tal movimento de valorização cultural do universo de valores e práticas associados ao primitivo não implica, contudo, como uma leitura apressada pode sugerir, a recusa do que entendemos por civilização em sua totalidade, isto é, na negação das conquistas da modernidade ocidental em favor de uma utopia nostálgica da pureza ou de uma essência da identidade primitiva ou ameríndia. Ao contrário, as técnicas industriais, da robótica à energia atômica, do petróleo à indústria cinematográfica, são reiteradamente louvadas por Oswald e indicam o otimismo do modernista em relação às potencialidades emancipadoras da técnica. Com efeito, essa atitude do nosso modernista contrasta em boa medida com o clima intelectual do pós-guerra, marcado por uma atmosfera de “desorientação e mal-estar existencial”, na qual o desenvolvimento tecnológico era visto como prenúncio da catástrofe civilizacional e de formas cada vez mais intensas de domínio e opressão (GUMBRECHET, 2014, p. 61)6 6 Uma sugestiva análise dessa atmosfera intelectual do imediato pós-guerra pode ser encontrada em Gumbrecht (2014). Na Europa, esse pessimismo tecnológico é formulado sob as mais variadas tradições intelectuais, e remonta à experiência da Primeira Guerra Mundial, sendo intensificada após os horrores da Segunda. Essa percepção difusa pode ser encontrada nas mais diversas tradições intelectuais. Ver: Freud (2009); Benjamin (1987); Adorno (1985); Marcuse (1982); Arendt (2005a; 2005b); Gunther Anders (2007); Hans Jonas (2006). .

Na perspectiva adotada por Oswald, a efetiva liberação do potencial emancipador da técnica dependeria da exorcização da instituições patriarcais e dos valores messiânicos que configuram a história da civilização. A figura do “homem natural tecnizado” (ANDRADE, 1970cANDRADE, Oswald de. [1950]. A crise da filosofia messiânica. In: ANDRADE, Oswald. Obras completas. V. VI. Do Pau-Brasil à antropofagia e às utopias. São Paulo: Civilização Brasileira, 1970c, p. 75-139., p. 79), emblema da utopia antropofágica, exprime esse duplo movimento, de um lado, retorno ao código ético-político das sociedades primitivas e tradições comunitaristas ibero-americanas e, de outro, intensificação do progresso técnico das sociedades industriais. Em outras palavras, trabalha com um regime de historicidade dual, em que a filosofia do progresso técnico e a noção de futuro aberto se combinam com uma história cíclica definida como retorno à constelação cultural do matriarcado antropofágico primitivo.

Como vimos na seção anterior, o paradigma ético-político vitorioso na modernidade ocidental se baseia na sacralização do negócio, do trabalho, do individualismo e da acumulação. Embora reconheça, em consonância com as teses weberianas, ter havido um vínculo histórico entre a ética protestante e o capitalismo ocidental, tal constelação cultural estaria hoje em contradição com as formas contemporâneas de desenvolvimento tecnológico e das expectativas sociais. O mundo contemporâneo, argumenta, viveria uma transição entre a ética do trabalho e da acumulação, para uma nova ética do ócio, a substituição da “economia do haver” pela “economia do ser” (ANDRADE, 1970cANDRADE, Oswald de. [1950]. A crise da filosofia messiânica. In: ANDRADE, Oswald. Obras completas. V. VI. Do Pau-Brasil à antropofagia e às utopias. São Paulo: Civilização Brasileira, 1970c, p. 75-139., p. 118).

Indícios desse processo podem ser notados no novo lugar ocupado pelo entretenimento e pelo turismo nas sociedades contemporâneas. Os “estádios gigantescos”, a televisão, o rádio ou “turismo a prestações”, seriam os espaços e meios nos quais os assalariados usufruiriam do ócio historicamente privilégio de uma pequena casta de sacerdotes e nobres. O ócio começa a ser regulamentado por leis sociais e trabalhistas que ampliam o tempo livre das classes trabalhadoras. Pela primeira vez na história, o ócio deixa de ser monopólio de nobres e sacerdotes e converte-se, graças à técnica, em um bem democratizável e virtualmente extensível às massas (ANDRADE, 1970eANDRADE, Oswald de. [1953]. A Marcha das Utopias. In: ANDRADE, Oswald. Obras completas. V. VI. Do Pau-Brasil à antropofagia e às utopias. São Paulo: Civilização Brasileira, 1970e, p. 147-228., p. 209).

A apreciação oswaldiana das transformações do tempo presente e sua relação com o passado ameríndio também se manifestam na análise da reestruturação das relações familiares e de gênero. O reconhecimento do direito ao divórcio e a configuração de um regime de proteção social da infância por meio das creches e da escola pública seriam, segundo Oswald, os primeiros indícios de uma nova era das relações familiares, marcada pela emancipação feminina e fim dos grilhões morais da monogamia e da família nuclear burguesa. O casamento monogâmico e a ordem jurídica baseada no direito paterno e na propriedade privada estariam em declínio na contemporaneidade, que experimentava novos códigos legais e morais abertos à poligamia e à liberação das mulheres da submissão doméstica. Oswald identifica nessas tendências o ressurgimento na contemporaneidade de práticas próprias dos povos primitivos matriarcais, como aquelas que responsabilizavam a coletividade - e não a mãe/mulher individualmente - pelo cuidado e formação de crianças. Como nas tribos, o novo sistema de seguridade do estado de bem-estar compreenderia “a infância mais no corpo social do que ao grupo familiar”, de modo que a criança passava a ser “considerada como filho da sociedade” (ANDRADE, 1970eANDRADE, Oswald de. [1953]. A Marcha das Utopias. In: ANDRADE, Oswald. Obras completas. V. VI. Do Pau-Brasil à antropofagia e às utopias. São Paulo: Civilização Brasileira, 1970e, p. 147-228., p. 205; p. 204).

A América do pós-New Deal e o experimento socialista da União Soviética indicam o sentido das novas tendências socializantes do tempo presente. A despeito da polarização ideológica da Guerra Fria, Oswald identifica em ambos os regimes um movimento comum, um “imperativo da socialização” em que o proletariado deixa progressivamente de ser uma massa formada por despossuídos e miseráveis e se converte em uma respeitável “classe de engenheiros e de técnicos” (ANDRADE, 1992cANDRADE, Oswald de. [1949]. Novas dimensões da poesia. Conferência realizada no Museu de Arte Moderna de São Paulo, 19 de maio de 1949. In: ANDRADE, Oswald de. Estética e política. Pesquisa, organização, introdução, notas e estabelecimento de texto de Maria Eugênia Boaventura (Org.). São Paulo: Globo, 1992c., p. 211). Estaríamos, nas palavras do autor, diante do advento de um novo “período” histórico “cujo caráter é eminentemente social” (ANDRADE, 1970aANDRADE, Oswald de. [1944]. Meu testamento. In: ANDRADE, Oswald. Obras completas. V. VI. Do Pau-Brasil à antropofagia e às utopias. São Paulo: Civilização Brasileira, 1970a, p. 21-31., p. 25).

Outro aspecto lembrado pelo autor é o planejamento urbano do pós-guerra. A construção massiva de habitações e espaços de socialização e lazer para a classe operária estava a criar uma nova “cidade planificada e moderna”, promotora do “benefício social do habitante, aos seus cuidados higiênicos, ao seu transporte, à sua vida lúcida como seu rendimento produtivo”. Em contraste com as imagens da distopia manchesteriana da cidade operária do século XIX, Oswald enaltece simultaneamente a “magnífica planificação das cidades socialistas” e as recentes conquistas do operariado americano que hoje pode “gozar os veraneios da Pensilvânia com lagos, teatros e hotéis” (ANDRADE, 1992cANDRADE, Oswald de. [1949]. Novas dimensões da poesia. Conferência realizada no Museu de Arte Moderna de São Paulo, 19 de maio de 1949. In: ANDRADE, Oswald de. Estética e política. Pesquisa, organização, introdução, notas e estabelecimento de texto de Maria Eugênia Boaventura (Org.). São Paulo: Globo, 1992c., p. 211-212).

Embora caracterize essas tendências da integração dos trabalhadores e a configuração de uma sociedade do ócio como um movimento global, como o demonstram as experiências soviéticas e estadunidenses, Oswald se esforça por mostrar como o imperativo da socialização possui afinidades com as tradições culturais dos povos da chamada “faixa equatorial”, especialmente o Brasil. Em um texto intitulado “Um aspecto antropofágico da cultura brasileira: o homem cordial”, apresentado em 1950 no Congresso Brasileiro de Filosofia, Oswald afirma que o homem cordial congrega os traços atávicos das culturas ameríndias e matriarcais, dotado de um ethos orientado pelos sentimentos de alteridade e comunalidade. A cordialidade evoca o conceito rousseauniano de pitié, uma empatia natural pelo outro, que seria um dos componentes nucleares tanto do código ético dos povos ameríndios, quanto da cultura brasileira do presente histórico7 7 Evocação que, por outro lado, deve ser relativizada, pois, ao contrário de Rousseau, o instinto de compaixão não elimina seu oposto, isto é, a inclinação à agressividade e à inimizade. Nas circunstâncias tribais, porém essas inclinações se manifestariam apenas dirigidas ao exterior, isto é, aos que não fazem parte da tribo. Assim, a “cultura primitiva” é um “duplo sistema moral” em que existe “boa vontade, amor, auxílio, mas tudo aplicável aos membros do próprio clã, da tribo ou da comunidade; mas, de outro lado há aversão, inimizade, roubo e assassínio a se aplicar contra o resto do mundo” (BRINTON apud ANDRADE, 1970d, p. 143). . Assim, o homem cordial se caracteriza por uma disposição cultural de “ver-se o outro em si”, pela inclinação para “constatar-se em si o desastre, a mortificação ou a alegria do outro” (ANDRADE, 1970dANDRADE, Oswald de. [1950]. Um aspecto antropofágico da cultura brasileira: o homem cordial. In: ANDRADE, Oswald. Obras completas. V. VI. Do Pau-Brasil à antropofagia e às utopias. São Paulo: Civilização Brasileira, 1970d, p. 141-144., p. 141). Trata-se de um personagem dotado de potente inclinação comunitarista, produto da combinação do legado ameríndio com o ritualismo do catolicismo popular e orientado pela solidariedade e coesão social8 8 Paralelos a essa leitura oswaldiana acerca das possibilidades de modernidades alternativas ao paradigma anglo-americano podem ser encontrados em Morse (1988), Sebastián (2021) e Barboza Filho (2000), que exploram, a partir de diferentes perspectivas, a especificidade do moderno no contexto do mundo ibero-atlântico. . Em contraste com a ascese individualista puritana e com o egoísmo das éticas do homem possessivo, o homem cordial habita um mundo de fortes vínculos sociais e promove uma forma cultural aberta para o lúdico e a festa.

Cabe ainda retomar outro aspecto das mutações contemporâneas, especificamente aquelas que operam no âmbito da religião e do simbólico. Ávido leitor de obras ligadas à tradição existencialista, especialmente autores como Kierkegaard, Nietzsche, Heiddeger, Scheller, Sartre, Simone de Beauvoir, Camus, Lèfebvre, Karl Jaspers e Chestov (NUNES, 1979NUNES, Benedito. Oswald canibal. São Paulo: Perspectiva, 1979., p. 39), Oswald procura nessa corrente filosófica instrumentos conceituais para tratar da crise das religiões da salvação no Ocidente contemporâneo. A despeito da incisiva crítica ao messianismo patriarcal, que, em consonância com a fórmula nietzschiana, seria promotor de uma moralidade servil e repressiva, nosso autor endossa a tese de que a condição humana se configura por um “sentimento órfico”, a rigor, universal e atemporal (ANDRADE, 1992iANDRADE, Oswald de. [1954]. A reabilitação do primitivo. Comunicação escrita para o Encontro dos Intelectuais, realizado no Rio de Janeiro em 1954, e enviada a Di Cavalcanti para ser lida. In: ANDRADE, Oswald de. Estética e política. Pesquisa, organização, introdução, notas e estabelecimento de texto de Maria Eugênia Boaventura (Org.). São Paulo: Globo, 1992i., p. 287-288). Em contraste com perspectivas marxistas, psicanalíticas ou nietzschianas, que identificam a autonomia e a emancipação com o triunfo de uma razão laica, Oswald argumenta que a busca por sentidos que escapam ao domínio do racional ou à explicação lógica é da ordem da própria condição humana. Em outras palavras, haveria uma disposição humana “natural” para a crença e para a religião como forma de enfrentamento da solidão cósmica e da carência de sentido (VALLE, 2017VALLE, Ulisses do. A filosofia da história de Oswald de Andrade. Remate de Males. Campinas-SP, (37.1), jan.-jun. 2017, p. 232-344., p. 327).

Embora o sentimento órfico se caracterize pela universalidade, há, segundo Oswald, diferentes maneiras de lidar com a carência de sentido primordial que apavora o homem. A história da civilização, identificada por Oswald com o predomínio do messianismo nas religiões da salvação, seria o exemplo mais emblemático de como a religião pode ser manipulada por sacerdotes e mobilizada para promover a servidão e o egoísmo (ANDRADE, 1991b, p. 234 et seq.). A própria tradição da filosofia idealista ocidental, de origem socrático-platônica, se configurara como negação da existência e dos aspectos comunitários da vida, incentivando uma volta da consciência sobre si própria na forma do silogismo e do diálogo interior9 9 Argumento, aliás, similar ao de Hannah Arendt (2005), para quem a filosofia política ocidental surge da derrota da pólis e do espaço público para a vivência da liberdade, enfim, do declínio da comunidade política (ARENDT, 2005a, p. 191 et seq.). . Já “a concepção messiânica da vida” em sua versão puritana faz do “indivíduo objeto de graça, de eleição, de imortalidade e de sobrevivência, se desolidarizam [sic], produzindo o egotismo do mundo contemporâneo” (ANDRADE, 1970dANDRADE, Oswald de. [1950]. Um aspecto antropofágico da cultura brasileira: o homem cordial. In: ANDRADE, Oswald. Obras completas. V. VI. Do Pau-Brasil à antropofagia e às utopias. São Paulo: Civilização Brasileira, 1970d, p. 141-144., p. 143).

Com efeito, o fenômeno contemporâneo da “descristianização” do Ocidente não implica, para Oswald, o desaparecimento do que ele denomina “sentimento órfico”, mas apenas sua canalização para expressões mundanas, como o culto a lideranças políticas, “estrelas” de cinema, ídolos do esporte ou da música popular. O fascismo e o Estado soviético, por exemplo, explorariam uma versão secularizada desse elemento irracional por meio da propaganda e do culto aos seus líderes e partidos oficiais.

Diante da diversidade desses encaminhamentos do “sentimento órfico”, Oswald sugere uma afinidade entre a reflexão filosófica moderna, especialmente sua vertente existencialista e as sociedades matriarcal-antropofágicas. Segundo ele, os existencialistas, ao enfrentar o tema da carência de sentido e do “medo ancestral”, reivindicam uma “concepção matriarcal do mundo sem Deus” (ANDRADE, 1970dANDRADE, Oswald de. [1950]. Um aspecto antropofágico da cultura brasileira: o homem cordial. In: ANDRADE, Oswald. Obras completas. V. VI. Do Pau-Brasil à antropofagia e às utopias. São Paulo: Civilização Brasileira, 1970d, p. 141-144., p. 143), uma disposição cultural aberta para modalidades livres de expressão do sentimento órfico, como a criação artística ou a festa ritual como momento de integração coletiva. A configuração de um novo regime simbólico anunciado pela filosofia existencialista e pelo declínio da civilização patriarcal-messiânica e seu código moral sacerdotal maniqueísta e opressor possibilitariam um “elo efetivo e afetivo do indivíduo com os outros e com o mundo” (NUNES, 1979NUNES, Benedito. Oswald canibal. São Paulo: Perspectiva, 1979., p. 48). Mais uma vez, a resposta para os impasses contemporâneos e a esperança de um mundo pós-metafísico envolvem um retorno ao primitivo matriarcal e antropofágico.

Considerações finais

Os ensaios filosóficos de Oswald de Andrade são profícuos em eventos, exemplos, experiências que compõem a história da civilização e que são resgatados e manipulados para superar os impasses de um tempo presente experimentado como tempo transicional. Esse trabalho de ressignificação de experiências passadas, como vimos, é indissociável da confecção dos futuros esperados e das projeções de um futuro neomatriarcal.

Ao reescrever a história a partir do ponto de vista “do homem do equador”, Oswald coloca em xeque as pretensões de universalidade e, por consequência, de domínio dos povos do Atlântico Norte. Mais do que isso, sugere que a tradição cultural dos povos ameríndios, identificados com a antropofagia e o matriarcado, inspira respostas originais para os impasses da sociedade tecnológica contemporânea, oferecendo um paradigma cultural inspirado no cultivo do comunal, do ócio e do lúdico. Assim, a consciência do presente como tempo transicional e intervalar se manifesta como um regime de historicidade híbrido, que combina a crença em um novo início, pensado como progresso da era da máquina e como retorno ao primitivo.

O horizonte de expectativas da antropofagia oswaldiana nasce, assim, do encontro, de um fervor dirigido ao passado matriarcal-antropofágico e uma esperança em relação a um futuro que incorpora as conquistas civilização industrial, instrumentalizando-as no sentido da emancipação humana. E desse insólito encontro de passado e futuro configura-se a utopia do novo homem reconciliado consigo mesmo.

  • 2
    Deve-se registrar que a hipótese do matriarcado universal, contudo, já era desacreditada pela antropologia no momento em que Oswald escrevia seus ensaios (PINTO, 2022PINTO, Manuel da Costa. Apresentação. In: ANDRADE, Oswald de. Diário confessional Organização Manuel da Costa Pinto. São Paulo: Companhia das Letras, 2022., p. 16; NUNES, 1972NUNES, Benedito. Antropofagia ao alcance de todos. In: ANDRADE, Oswald. Obras completas. V. VI. Do pau-brasil à antropofagia e às utopias. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1972., p. XLII). Sztutman (2007, p. 11), afirma que os ensaios de Oswald faziam uso de “conceitos antropológicos obsoletos e equivocados - por exemplo, o de ‘matriarcado’, como figura em Morgan e Bachofen -, importados de um conjunto de teorias evolucionistas, presas a projeções incessantes de noções ocidentais-modernas sobre o universo indígena”. Contudo, nos interessa aqui menos discutir menos a validação empírica de tal conceito do que lançar luz sobre sua função retórica na crítica da civilização patriarcal e na elaboração de uma utopia emancipatória.
  • 3
    De acordo com Valle, Oswald se baseia na distinção entre as formas de conhecimento da filosofia ocidental, caracterizada pelo silogismo e abstração, e a visão de mundo animista antropofágica, fundamentada na analogia e na metáfora: “a passagem do pensamento analógico para o silogista corresponde à separação essencial das duas visões de mundo: uma metafórica, livremente criativa, no sentido de que está pronta a oferecer sempre um novo ordenamento das coisas, entre elas e seus significados, e a outra analítica, cuja representação do mundo e das coisas está orientada para a subsunção do particular ao geral, sob um rígido controle que visa ao enquadramento do maior número de objetos particulares num mesmo conceito geral e almeja, assim, uma rede de semelhanças que despoje as coisas de seu potencial sempre renovável de significação, de suas diferenças intrínsecas e de suas semelhanças menos extensivas que permitiriam outras conexões que não aquelas do silogismo” (VALLE, 2017VALLE, Ulisses do. A filosofia da história de Oswald de Andrade. Remate de Males. Campinas-SP, (37.1), jan.-jun. 2017, p. 232-344., p. 331).
  • 4
    A tese tem vários pontos de contato com aquela defendida por Afonso Arinos de Melo Franco (1973), em O índio e a Revolução Francesa, publicado originalmente em 1937. Porém não encontrei referências diretas que permitam verificar se essa fonte foi utilizada para a composição do argumento de Oswald de Andrade.
  • 5
    Para uma crítica contemporânea dos limites desse projeto de descolonização mental empreendida por Oswald, ver os comentários de Diniz (2020)DINIZ, Clarissa. Street fight, vingança e guerra: artistas indígenas para além do “produzir ou morrer”. Espaço Ameríndio, Porto Alegre, v. 14, n. 1, jan.-jul. 2020, p. 68-88. sobre a arte indígena de Jaider Esbell e Denilson Baniwa.
  • 6
    Uma sugestiva análise dessa atmosfera intelectual do imediato pós-guerra pode ser encontrada em Gumbrecht (2014)GUMBRECHT, Hans Ulrich. Depois de 1945: latência como origem do presente. Trad. Ana Isabel Soares. São Paulo: Editora Unesp, 2014.. Na Europa, esse pessimismo tecnológico é formulado sob as mais variadas tradições intelectuais, e remonta à experiência da Primeira Guerra Mundial, sendo intensificada após os horrores da Segunda. Essa percepção difusa pode ser encontrada nas mais diversas tradições intelectuais. Ver: Freud (2009)FREUD, Sigmund [1915]. Considerações actuais sobre a guerra e a morte. Trad. Artur Morão. In: FREUD, Sigmund. Escritos sobre a guerra e a morte. Covilhã: LusoFia Press, 2009, p. 4-31 Disponível em https://tinyurl.com/yc8v55s5. Acesso em: 16 mar. 2023.
    https://tinyurl.com/yc8v55s5...
    ; Benjamin (1987)BENJAMIN, Walter. [1940]. Sobre o conceito de história. In: BENJAMIN, Walter. Obras escolhidas. V. 1. Magia e técnica, arte e política: ensaios sobre literatura e história da cultura. São Paulo: Brasiliense, 1987.; Adorno (1985)ADORNO, Theodor. [1944]. Dialética do esclarecimento: fragmentos filosóficos. Trad. Guido Antonio de Almeida. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1985.; Marcuse (1982)MARCUSE, Herbert. [1964]. A ideologia da sociedade industrial: o homem unidimensional. Tradução de Giasone Rebuá. Rio de Janeiro: Zahar, 1982.; Arendt (2005aARENDT, Hannah. [1954]. Que é liberdade?. In: ARENDT, Hannah. Entre o passado e o futuro. São Paulo: Perspectiva, 2005a.; 2005bARENDT, Hannah. [1958]. A condição humana. Rio de Janeiro. Forense Universitária, 2005b.); Gunther Anders (2007)ANDERS, Günther. [1960]. Le temps de la fin. Paris: L’Herne, 2007.; Hans Jonas (2006)JONAS, Hans. [1979]. O princípio responsabilidade: ensaio de uma ética para a civilização tecnológica. Rio de Janeiro: Contraponto/Editora PUC-Rio, 2006..
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    Evocação que, por outro lado, deve ser relativizada, pois, ao contrário de Rousseau, o instinto de compaixão não elimina seu oposto, isto é, a inclinação à agressividade e à inimizade. Nas circunstâncias tribais, porém essas inclinações se manifestariam apenas dirigidas ao exterior, isto é, aos que não fazem parte da tribo. Assim, a “cultura primitiva” é um “duplo sistema moral” em que existe “boa vontade, amor, auxílio, mas tudo aplicável aos membros do próprio clã, da tribo ou da comunidade; mas, de outro lado há aversão, inimizade, roubo e assassínio a se aplicar contra o resto do mundo” (BRINTON apud ANDRADE, 1970dANDRADE, Oswald de. [1950]. Um aspecto antropofágico da cultura brasileira: o homem cordial. In: ANDRADE, Oswald. Obras completas. V. VI. Do Pau-Brasil à antropofagia e às utopias. São Paulo: Civilização Brasileira, 1970d, p. 141-144., p. 143).
  • 8
    Paralelos a essa leitura oswaldiana acerca das possibilidades de modernidades alternativas ao paradigma anglo-americano podem ser encontrados em Morse (1988)MORSE, Richard. O espelho de próspero: cultura e ideias nas Américas. São Paulo: Companhia das Letras, 1988., Sebastián (2021)SEBASTIÁN, Javier Fernández. Historia conceptual en el Atlántico ibérico: linguajes, tiempos, revoluciones. Madrid: FCE, 2021. e Barboza Filho (2000)BARBOZA FILHO, Rubem. Tradição e artifício: iberismo e barroco na formação americana. Belo Horizonte: Ed. UFMG; Rio de Janeiro: Iuperj, 2000., que exploram, a partir de diferentes perspectivas, a especificidade do moderno no contexto do mundo ibero-atlântico.
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    Argumento, aliás, similar ao de Hannah Arendt (2005), para quem a filosofia política ocidental surge da derrota da pólis e do espaço público para a vivência da liberdade, enfim, do declínio da comunidade política (ARENDT, 2005aARENDT, Hannah. [1954]. Que é liberdade?. In: ARENDT, Hannah. Entre o passado e o futuro. São Paulo: Perspectiva, 2005a., p. 191 et seq.).

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    05 Jan 2024
  • Data do Fascículo
    Sep-Dec 2023

Histórico

  • Recebido
    10 Jul 2023
  • Aceito
    01 Nov 2023
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