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A questão fundiária do mundo agrário e urbano atual

Compreender a questão fundiária do mundo agrário e urbano atual é um enorme desafio; contém rugosidades cujas marcas são expostas pelas análises dos paradigmas da questão agrária e urbana e do capitalismo agrário e urbano. Agrário e urbano são espaços contínuos com questões que se encontram e se colidem revelando diferentes modelos de desenvolvimento. Envolvem corporações, interessadas na especulação imobiliária, e também pessoas comuns, que querem apenas um lugar para viver e trabalhar. No Brasil esses são exemplos das marcas do passado gravadas nos territórios do campo e da cidade, como a permanência da estrutura fundiária concentrada e controlada pelas corporações capitalistas, constituindo-se em secular modelo hegemônico, além da persistência das lutas camponesas e populares, cunhando suas pequenas unidades de produção e de espaços de vida por meio do milenar modelo alternativo. O hegemônico e o alternativo são modelos de desenvolvimento agropecuário e de moradias que disputam territórios. Os respectivos modelos, problemas e disputas, são analisados pelo debate paradigmático entre posições antagônicas e posições combinadas. A incompatibilidade dos modelos pode ser compreendida ao se analisar as relações sociais que os produzem e determinam suas escalas, tecnologias, ordenamento territorial e relações com a natureza. Por se constituírem em relações sociais capitalistas, comunitárias e familiares, produzem diferentes territórios e, portanto, distintas territorialidades.

Paradigmas são modelos interpretativos compostos por tendências. Promover o debate paradigmático é um procedimento para analisar suas diferenças, relações e proposições. A construção do conhecimento por meio de elaborações teóricas constituem visões de mundo, sendo, portanto, uma opção política para se desenvolver os modelos alternativos e/ou o hegemônico. O paradigma da questão agrária e urbana entende que as relações capitalistas produzem desigualdades que provocam a destruição do campesinato e das experiências populares, portanto o problema está no sistema que, pela concentração fundiária, mantém há séculos o modelo hegemônico de produção monocultora em grande escala para exportação e na produção homogênea dos territórios de controle nas cidades. O paradigma do capitalismo agrário e urbano defende que o problema não está em suas relações, mas na agricultura camponesa, que não é competitiva, embora haja uma fração, em torno de 10%, que pode parcialmente estar subordinada ao agronegócio. Desde a visão do paradigma do capitalismo agrário seria necessário desterritorializar 90% dos camponeses brasileiros, de modo que o agronegócio ou modelo hegemônico possa se apropriar desses territórios, intensificando a concentração fundiária.

Nas cidades, as experiências populares de luta pela moradia, ocupando edifícios e terrenos, desafiam o modelo corporativo de produção monocultora de moradias. A desterritorialização dos camponeses pode significar o crescimento das lutas por moradias nas cidades, encontros e colisões de espaços em disputas transformados em frações de territórios. As interpretações dos fatos são produzidas pela ciência e tornam-se referências para a elaboração de políticas públicas que compõem o debate paradigmático.

Este é o debate que expressa disputas por modelos de desenvolvimento no campo: o agronegócio como criação das corporações capitalistas e da agroecologia como (re)criação das organizações camponesas. O poder hegemônico do agronegócio e os discursos de seus ideólogos não conseguem impedir a emergência e a insurgência da agroecologia, distintos modelos de desenvolvimento territorial em que para cada um o uso da terra e do território é pensado e planejado de modo diferente. São visões de mundo que apontam para direções opostas e, em parte, sobrepostas, com perspectivas antagônicas em que a natureza e a sociedade são compreendidas como mercadoria e como vida, onde se destrói e se constrói, onde o produto pode ser commodity ou comida. Nesse debate a ideia de consenso não contém o sentido da harmonia, mas do avesso, do embate gerado pela conflitualidade. Na cidade, as corporações e os movimentos socioterritoriais de luta pela moradia disputam territórios de permanências e de mudanças, preservando e transformando, criando territorialidades distintas pelas conflitualidades permanentes.

A conflitualidade é um conceito essencial para compreender as disputas territoriais por modelos de desenvolvimento e as políticas que os produzem. A superação do atual Brasil agrário e urbano não acontecerá por consenso porque os modelos são antagônicos e qualquer acordo possível significa mudar ambos. A conflitualidade permite compreender que os conflitos gerados não são empecilhos, pois são imprescindíveis para que as mudanças aconteçam, mudanças em escalas micro e macro na construção de tecnologias, de recursos, de políticas públicas etc. Conflitualidade é um constante processo de enfrentamento produzido pelas contradições e desigualdades do sistema capitalista, evidenciando a necessidade do debate permanente nos planos teóricos e práticos, referentes às disputas dos modelos de desenvolvimento e dos territórios. Estas disputas se manifestam por um conjunto de conflitos no campo das ideias, na construção de conhecimentos, na elaboração de políticas de desenvolvimento, na correlação de forças para a implementação dos modelos e em seus resultados. A conflitualidade se manifesta: pelo posicionamento das classes ante os efeitos da globalização capitalista produtora de desigualdades que ameaçam a consolidação da democracia; pela complexidade das relações sociais construídas de formas diversas e contraditórias, produzindo espaços e territórios heterogêneos; pela historicidade e espacialidade dinamizadoras e não determinadas; pela possibilidade persistente da construção política das classes sociais em trajetórias divergentes de diferentes estratégias de reprodução territorial; pelo reconhecimento da polarização regra/conflito como contradição em oposição à ordem e ao consenso; pela disputa por definições de conteúdos dos conceitos, das teorias, dos sentidos e das direções em que as oposições e incompatibilidades serão expostas.

As desigualdades do Brasil agrário e urbano foram bem analisadas neste excelente número da Revista Katálysis. As disputas territoriais estão cartografadas na sobreposição das agriculturas camponesas e no agronegócio, inclusive com a predominância de cada modelo pelo território brasileiro, como é o caso das regiões Nordeste e Centro-Oeste. Ambos territorializam-se em direção à fronteira agrícola na Amazônia, onde se concentra o maior número de conflitos violentos contra os trabalhadores rurais. Para superar a intensificação das desigualdades será preciso enfrentar questões como: impacto territorial da monocultura em grande escala para exportação, concentração fundiária, reforma agrária, preservação das florestas, qualificação do trabalho, soberania alimentar, qualidade dos alimentos, tecnologias apropriadas, modos de produção e diferentes tipos de mercados.

A superação não acontecerá com políticas agrárias homogêneas, pois a agropecuária é diversa. A luta pela terra é expressão da conflitualidade nas disputas por modelos de desenvolvimento. A superação da questão fundiária do mundo agrário e urbano atual será possível com a participação efetiva da população. Não somente a população diretamente envolvida, como os sem-terra e os sem-teto, mas todas as cidadãs e cidadãos devem se preocupar com o desenvolvimento do campo e da cidade, pois comer e morar são condições essenciais da qualidade de vida. Superar a persistente concentração fundiária não é impossível para quem quer construir um Brasil mais democrático, justo e promissor. Para isso, as pessoas têm que pensar a comida e a moradia como questões de direitos e não somente como mercadorias. Estas são, sem dúvidas, posturas paradigmáticas que projetam modelos de desenvolvimento.

Bernardo Mançano Fernandes, setembro de 2016.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Jul-Sep 2016
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