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Representação política e participação: reflexões sobre o déficit democrático

Political representation and participation: reflection on the democratic deficit

Resumos

Este artigo analisa o instituto da representação política buscando identificar os limites e as possibilidades que oferece para o aprofundamento da democracia. A partir da reconstrução do debate político de fins do século 18, que introduz o princípio representativo como instrumento-chave para as democracias modernas, o texto levanta os principais argumentos favoráveis e contrários, problematizando as origens do instituto. Em seguida, contextualiza o debate no âmbito das sociedades contemporâneas, discutindo aspectos centrais que permeiam a qualidade da representação, como a vinculação e o controle dos representantes, o papel da deliberação pública e a relação com os mecanismos de democracia direta e semidireta. O artigo conclui que o déficit democrático, calcado na aplicação estrita da representação política, pode ser sanado com a combinação de institutos participativos, como o plebiscito, o referendo, a iniciativa popular de lei, os conselhos gestores de políticas públicas e o orçamento participativo.

representação política; participação; democracia; controle social


This article analyzes the institution of political representation seeking to identify the limits and possibilities that it offers to deepening democracy. Based on a reconstruction of the political debate of the late 18th century, which introduced the representative principle as a key tool for modern democracies, the text raises the principal arguments for and against representation and analyzes the origins of the institute. It then contextualizes the debate in contemporary societies by discussing central factors that permeate the quality of representation, such as the ties to and control of representatives, the role of public deliberation and the relationship with the mechanisms of direct and semidirect democracy. The article concludes that the democratic deficit, based on the close application of political representation, can be remedied with the combination of participative tools, such as the plebiscites, referendums, popular legislative initiatives, public policy management councils and participative budget processes.

political representation; democracy; social control


PESQUISA TEÓRICA

Representação política e participação: reflexões sobre o déficit democrático

Political representation and participation: reflection on the democratic deficit

Denise Cristina Vitale Ramos Mendes

Universidade Católica do Salvador (UCSAL)

RESUMO

Este artigo analisa o instituto da representação política buscando identificar os limites e as possibilidades que oferece para o aprofundamento da democracia. A partir da reconstrução do debate político de fins do século 18, que introduz o princípio representativo como instrumento-chave para as democracias modernas, o texto levanta os principais argumentos favoráveis e contrários, problematizando as origens do instituto. Em seguida, contextualiza o debate no âmbito das sociedades contemporâneas, discutindo aspectos centrais que permeiam a qualidade da representação, como a vinculação e o controle dos representantes, o papel da deliberação pública e a relação com os mecanismos de democracia direta e semidireta. O artigo conclui que o déficit democrático, calcado na aplicação estrita da representação política, pode ser sanado com a combinação de institutos participativos, como o plebiscito, o referendo, a iniciativa popular de lei, os conselhos gestores de políticas públicas e o orçamento participativo.

Palavras-chave: representação política, participação, democracia, controle social.

ABSTRACT

This article analyzes the institution of political representation seeking to identify the limits and possibilities that it offers to deepening democracy. Based on a reconstruction of the political debate of the late 18th century, which introduced the representative principle as a key tool for modern democracies, the text raises the principal arguments for and against representation and analyzes the origins of the institute. It then contextualizes the debate in contemporary societies by discussing central factors that permeate the quality of representation, such as the ties to and control of representatives, the role of public deliberation and the relationship with the mechanisms of direct and semidirect democracy. The article concludes that the democratic deficit, based on the close application of political representation, can be remedied with the combination of participative tools, such as the plebiscites, referendums, popular legislative initiatives, public policy management councils and participative budget processes.

Key words: political representation, democracy, social control.

Introdução

Nos últimos anos, sobretudo a partir da década de 1990, o debate sobre a questão democrática no Brasil voltou-se, em grande parte, para as novidades abertas pela Constituição de 1988, em particular os mecanismos institucionais de participação popular na definição e no controle de políticas públicas. Não apenas a Carta de 1988 (BRASIL, 1988, art. 1º, parágrafo único) afirmou o princípio da democracia semidireta como um princípio fundamental da república, como associou, de forma inequívoca, a cidadania ativa às políticas sociais.

Áreas como educação, saúde, assistência social, criança e adolescente, cultura, meio ambiente, por exemplo, devem atender, em sua organização e funcionamento, ao princípio da democracia participativa, incorporando, diretamente, formas consultivas ou deliberativas na tomada de decisões. É nesse sentido que uma série de estudos sobre os conselhos gestores de políticas públicas e sobre experiências de orçamento participativo ganha espaço e consolida um importante campo temático nas ciências sociais1 1 Sobre o tema, indica-se Avritzer e Navarro (2003); Dagnino (2002); Vitale (2004). .

Em paralelo ao caminho fecundo aberto por esses espaços, os tradicionais mecanismos da representação política, que nos últimos 200 anos têm sido o principal elemento das democracias modernas, entram em crise, revelando fissuras profundas que afetam a legitimidade e a eficácia da democracia. Esta crise torna-se ainda mais aguda quando os institutos de participação popular, antes mencionados, estruturam-se em consonância com o sistema representativo, e não em substituição a ele. Tendo em vista a centralidade que a reflexão sobre o instituto da representação política exige hoje para o aprofundamento dos regimes democráticos, este artigo pretende oferecer uma contribuição, discutindo aspectos centrais que permeiam a qualidade da representação, como a vinculação e o controle dos representantes, o papel da deliberação pública e a relação com os mecanismos de democracia direta e semidireta.

Representação política e democracia: as origens do debate

O debate sobre representação política, seus limites e potencialidades, remonta às origens da modernidade, momento de gênese e de afirmação desse instituto. É na Era Moderna que a democracia volta a ser uma característica central dos regimes políticos no Ocidente. A Revolução Industrial Inglesa e a Revolução Francesa estabeleceram um novo contexto econômico, político e social, que passou a exigir instituições diferentes daquelas do Antigo Regime para a condução da coisa pública. A ascensão burguesa, impulsionada pelas forças das duas revoluções – o liberalismo econômico da primeira e o liberalismo político da segunda – era incompatível com o absolutismo e pressupunha mobilidade no exercício do poder. À luz das novas condições, a idéia de democracia é resgatada e adaptada aos novos parâmetros da realidade.

O resgate, contudo, somente será consolidado como um valor positivo no século 20, sobretudo após a Segunda Guerra Mundial (COUTINHO, 1999; MANIN, 1997). A renovação institucional proposta nas últimas décadas do século 18 e ao longo do século 19 introduziu a idéia de representação como superior e distinta do regime democrático2 2 Para Tocqueville (1981, p. 100), porém, as cidades da Nova Inglaterra já se encontravam, desde 1650, constituídas e regidas por uma vida política real, ativa, democrática e republicana, embora ainda submetidas à metrópole inglesa. O contraste com a sociedade européia absolutista era ainda maior quando no governo local sequer a representação era admitida, sendo os assuntos de interesse geral decididos em praça pública, " como ocorria em Atenas." . Assim, até o século 20, não se verificou o estabelecimento de democracias representativas, mas, mais precisamente, de governos representativos3 3 A idéia de representação política origina-se na Idade Média, como um instituto de governos monárquicos e aristocráticos. Segundo Robert Dahl (1989), os monarcas ou os nobres medievais convocavam assembléias, com representantes de cada estrato social, para decidir questões importantes de Estado, como guerras e sucessões reais. . Ainda no século 18, James Madison e Emmanuel Siéyès assinalaram essa distinção em termos semelhantes e assumiram um papel decisivo na defesa dos modernos institutos de representação.

Madison (MADISON; HAMILTON; JAY, 1999, p. 46, 49) parte do argumento de que as democracias são favoráveis ao estabelecimento de facções, motivadas por paixões ou interesses, contrárias aos direitos dos demais cidadãos ou aos interesses permanentes da comunidade. Para ele, " uma democracia pura, isto é, uma sociedade constituída por um número pequeno de cidadãos, que se reúnem em assembléias e administram o governo pessoalmente, não admite nenhuma cura para os danos da facção" . Ao contrário, " uma república, isto é, um governo marcado pelo esquema da representação, abre uma diferente perspectiva e promete a cura para o que estamos procurando."

Para Madison, a eleição de poucos governantes, cuja sabedoria, patriotismo e amor à justiça podem melhor discernir o interesse público e universal dos interesses parciais e temporários, institui um mecanismo de mediação necessário para ampliar e refinar as visões públicas em questão. A intermediação de representantes apresenta-se, de acordo com esse ponto de vista, como uma estrutura superior, à medida que " a voz pública, pronunciada pelos representantes do povo, poderá estar em maior consonância com o bem público do que se pronunciada pelo próprio povo, reunido para esse propósito" (MADISON; HAMILTON; JAY, 1999, p. 50).

Por outro lado, a existência de grandes extensões territoriais e de um elevado número de cidadãos a serem governados permite que esse instituto – o da representação – demonstre um melhor desempenho na sua função mediadora. É precisamente a presença da ampla pluralidade revelada em largos territórios, formada por diversos interesses e partidos, que permite o melhor desempenho da estrutura representativa, ao possibilitar maior diversidade na composição da maioria e maior respeito aos direitos das minorias (MADISON; HAMILTON; JAY, 1999).

Assim, a instituição do mecanismo representativo está, para Madison, diretamente ligada à idéia de federalismo e à necessidade de criar uma estrutura de governo para a constituição de um novo Estado no continente americano. A república federalista e representativa surge como a fórmula ideal para se governar os Estados Unidos da América, que então se tornavam soberanos.

Com o federalismo, assegura-se a igualdade e a reciprocidade entre os Estados federados, bem como a manutenção de um sistema aberto à expansão territorial, por meio da inclusão de novos Estados-membros. Assegura-se, ainda, uma feliz combinação entre interesses gerais, deliberados em nível nacional, e interesses particulares, tratados nos legislativos estaduais.

Com a representação, marcada pela liberdade dos representantes em deliberar acerca do interesse geral, garante-se a formação de uma idéia de bem comum, a partir da interpretação que um seleto número de representantes faz dos fragmentados interesses presentes na sociedade, evitando-se que uma determina facção se torne majoritária. Controlada pela política de freios e contrapesos, esperava-se prevenir a representação da tirania da maioria ou da traição dos representantes da vontade popular. Juntos, os dois mecanismos – federalismo e representação evitariam – a ascensão de facções e interesses parciais, abrindo caminho para a síntese da diversidade e pluralidade presentes no Novo Mundo (MADISON; HAMILTON; JAY, p. 354, 276-281).

O francês Emmanuel Sieyès também parte da distinção entre democracia e governo representativo para afirmar a superioridade do segundo sobre o primeiro e estabelecer o princípio da representação como um ponto central da formação das nações modernas. Partindo do princípio de que todos os cidadãos têm o direito de produzir as leis, já que são todos igualmente obrigados a cumpri-las, Sieyès (1993a, p. 211) identifica duas maneiras para o exercício desse direito: a forma mediata, por meio da representação, e a forma imediata, por meio da participação direta. Embora a forma imediata caracterize, em seu entendimento, a " verdadeira democracia" , " para o bem da utilidade comum" , devem ser " nomeados representantes muito mais capazes do que eles mesmos [os cidadãos], de conhecer o interesse geral e de interpretar a este respeito sua própria vontade." Nesse sentido, Sieyès defende também a necessidade de que os representantes possam deliberar livremente, não sendo apenas portadores de votos (SIEYÈS, 1993b).

O argumento de Sieyès a favor da representação apresenta um duplo fundamento: o melhor preparo intelectual dos representantes e a viabilidade prática de estabelecer-se a vontade de todos os cidadãos. Ao refletir sobre a natureza e a forma dos Estados Gerais, atendendo ao célebre Acordo do Conselho do Rei, de julho de 1788, Sieyès reconhece que o aumento do número de associados exige modificações no Poder Legislativo.

Assim como Madison e Sieyès, Montesquieu também distingue o governo representativo do democrático, afirmando as vantagens do primeiro. Montesquieu (1979, p. 131) parte de uma classificação das formas de governo, identificando três espécies: a monarquia, a república e o despotismo. Situa a democracia como uma das subespécies da república, cuja característica principal é a atribuição da soberania ao povo, ao contrário da aristocracia, (outra subespécie de república) na qual a soberania pertence apenas a uma parte do povo.

Uma segunda e importante distinção feita por Montesquieu (1979) refere-se ao modo de seleção dos governantes: na democracia, a seleção dá-se por sorteio, ao passo que, na aristocracia, por escolha. Defende, porém, que a soberania seja exercida por meio da eleição de representantes, cuja escolha o povo tem total capacidade para fazer. Mas não acredita que o povo seja capaz de conduzir diretamente os negócios públicos, de conhecer as leis e as oportunidades. A vantagem da representação estaria justamente no exercício da gestão pública por homens capazes e preparados para tanto.

Da mesma forma que Madison e Sieyès, e contrapondo-se a um elemento chave do pensamento grego, Montesquieu parte da premissa de que a competência política exige competência técnica. Daí sua justificativa para defender eleições, e não sorteio. Nos três autores, porém, a defesa da representação não tem caráter meramente instrumental, decorrente da suposta inviabilidade da democracia direta nas sociedades modernas. Há, também, um caráter normativo, na medida em que o sistema representativo é visto como mecanismo mais adequado para a condução da coisa pública, seja na interpretação do bem comum, seja na garantia dos direitos individuais.

Se Madison, Sieyès e Montesquieu assinalam a distinção entre governos representativos e governos democráticos para defender a superioridade dos primeiros em relação aos segundos, Rousseau estabelece um ponto de partida diferente. Seja qual for a forma de governo adotada – democracia, aristocracia ou monarquia, cuja escolha deve ser feita em cada caso, levando-se em conta as características de cada Estado –, a representação do soberano é sempre inadmissível (ROUSSEAU, 1989a).

Para Rousseau (1989a, p. 259), a defesa da participação direta dos cidadãos na elaboração das leis é incontestável e a idéia de representação, inconcebível. Na construção do pacto social, " cada um de nós coloca em comum sua pessoa e todo seu poder sob a suprema direção da vontade geral; e recebemos ainda cada membro como parte indivisível do todo." A alienação de cada associado, com todos os seus direitos, a toda a comunidade, faz-se sem reservas. A força da união reside no fato de cada um alienar integralmente suas liberdades individuais, de modo que o peso da força particular se neutralize, passando da dependência pessoal para a dependência da lei. Como a elaboração das leis é feita pelos próprios indivíduos, estes se mantêm livres e independentes, pois obedecem apenas a si mesmos.

Rousseau, assim como os gregos, entende que a liberdade só é possível na vida pública, na condição de cidadania, com os indivíduos produzindo diretamente as próprias leis. Daí a observação sobre o povo inglês que, embora se julgue livre, só o é durante a eleição dos membros do Parlamento. Assim que os representantes são eleitos, o povo torna-se escravo. O contrato social implica o reconhecimento de uma soberania individual, que afirma cada um, singularmente, como um legislador universal.

A vontade geral, entendida como uma síntese das vontades particulares na busca de um interesse comum – e não a mera soma delas –, expressa-se por meio de leis. Daí a impossibilidade de ser representada no campo legislativo. Assim, " toda lei que o povo não ratificar pessoalmente é nula; não é sequer uma lei" (ROUSSEAU, 1989a, p. 321)4 4 Joshua Cohen (1996) argumenta que a defesa da participação direta em Rousseau é central, pois consiste no principal instituto para a manutenção da vontade geral. . O ente soberano, formado pela assembléia popular, deve possibilitar que todos os indivíduos manifestem sua vontade a fim de que emane a vontade geral.

É preciso notar, porém, que aqui não há um processo de discussão pública que preceda e auxilie a formação da tomada de decisão. Ao contrário: os cidadãos devem fazer seu julgamento individualmente, sem se comunicar uns com os outros, pois é a partir do julgamento de cada um que será encontrada a vontade geral. Assim, em Rousseau, a participação política é concebida como direta e não deliberativa5 5 Como nota Cohen (1996, p. 291-292, nota 16), a preocupação com a falta de comunicação nas assembléias decisórias deve-se a um temor de que a troca de argumentos levasse à formação de facções e à divisão da sociedade. É interessante perceber que esse mesmo temor é alegado por Madison para defender o oposto de Rousseau: a representação no lugar da democracia direta. . Por outro lado, admite-se a representação no campo do Executivo, pois neste caso não se trata de identificar e expressar a vontade geral, mas apenas de aplicá-la estritamente.

Vinculação e controle dos representantes

Apesar das idéias de Rousseau, o instituto da representação política afirmou-se como a grande inovação institucional moderna. Embora concebida como contraposta à democracia, a defesa de governos representativos reintroduziu premissas democráticas fundamentais, como a existência de um governo das leis, a igualdade perante a lei, o princípio da publicidade e a participação no poder. Em consonância com a idéia moderna de indivíduo, calcada na percepção deste como um ente anterior ao Estado e dotado de direitos inalienáveis, tais premissas contribuíram para a consolidação da idéia de um Estado de direito.

A problemática público versus privado, já presente nos gregos, foi retomada nos últimos dois séculos, diferenciando e delimitando novamente os dois espaços, mas a partir de uma configuração distinta da do mundo grego. O retorno dessas premissas, cujo efeito imediato foi o fim da hereditariedade do poder, significou um avanço na realidade política do Antigo Regime, aproximando os governos representativos mais dos ideais democráticos do que dos princípios absolutistas. O ponto central de diferenciação centrou-se, porém, no modo de exercício do poder, divisor de águas entre uma possível democracia moderna e o legado democrático grego.

É nesse sentido que a discussão ganha relevância. A disputa entre defensores da representação, de um lado, e da participação direta, de outro, ou do mandato independente e do mandato imperativo, ganha dimensão histórica crucial para o estabelecimento e a consolidação das instituições políticas modernas.

A questão impõe reconhecer que o modo de acesso e exercício do poder não é um aspecto isolado e desconectado dos demais princípios democráticos, como a liberdade e a igualdade. No caso da democracia antiga, em particular a polis grega, a liberdade se definia pela vida ativa, justamente pela participação política direta na cidade. Era somente por meio da vida pública que os cidadãos obtinham alguma condição de igualdade, assumindo um mesmo status político.

Ora, por mais complexa e diferenciada que a sociedade moderna se apresente e por mais distinta que seja do mundo grego, a relação entre o modo de exercício do poder e os princípios informadores da democracia – ou de uma república – permanece presente. É preciso observar, pois, em que medida a representação política moderna contém um potencial emancipatório e igualitário. Em outras palavras, é preciso avaliar se o desenho institucional da representação política realiza os princípios democráticos de liberdade e igualdade. Trata-se de um ponto bastante complexo que ensejou, nos últimos 200 anos, uma série de interpretações divergentes.

Antes de entrar especificamente na controvérsia sobre os caminhos da representação, cabe notar que o método de eleições para a determinação da representação assumiu, desde o início, papel central e quase inquestionável. Bernard Manin (1997) argumenta que, embora a adoção do sufrágio universal e a abertura a qualquer candidatura tenham ampliado a possibilidade de participação popular nos governos representativos, as fronteiras entre estes e os regimes democráticos permaneceram por dois fatores: o primeiro refere-se ao fato dos governos representativos não atribuírem papel institucional às assembléias populares. O segundo, raramente observado, diz respeito ao total desprezo atribuído às formas de sorteio, tão comuns na democracia ateniense.

Para Manin, se o tamanho e a complexidade das sociedades modernas em certa medida inviabilizam a realização de assembléias diretas, não justificam a ausência do uso do sorteio, método que sempre poderá selecionar um pequeno número de pessoas para atuar por muitas. Exemplo disso é sua aplicação excepcional nos Tribunais de Júri. A opção praticamente consensual da representação por meio de eleições chama a atenção, sobretudo se levarmos em conta que o mecanismo do sorteio não foi utilizado apenas na democracia grega, mas também em várias cidades italianas, como Veneza e Florença, na Baixa Idade Média e início da Era Moderna, formando uma tradição republicana calcada no sorteio como forma usual de seleção dos administradores.

Contudo, se o contratualismo do século 18 pressupôs o consenso como fonte de legitimação política6 6 Se a fonte da legitimidade política está na aprovação consentida dos cidadãos, não há espaço para o sorteio, pois este não pode ser percebido como uma expressão direta do consenso (MANIN, 1997). Indiretamente, porém, o sorteio, ou qualquer outro método, pode ser resultado do consenso sobre o procedimento adotado. , a complexização social, impulsionada pelo advento do capitalismo industrial e da crescente divisão do trabalho, exigiu especialização também no campo da política. Juntos, esses dois fatores inverteram a sistemática grega, fazendo das eleições o método usual de seleção de lideranças e, indiretamente, dos administradores públicos, reservando ao sorteio quase nenhuma função7 7 Vale mencionar a proposta de Robert Dahl (1990), de introduzir o sorteio como método de seleção de conselheiros para representantes eleitos. Contudo, para Dahl, o sorteio não poderia ser o método de escolha dos próprios representantes, pois os critérios de competência, escolha pessoal e economia não recomendariam a opção. .

Para o exercício da maior parte dos cargos públicos, organizou-se uma máquina burocrática especializada, rompendo a distinção, tão cara aos gregos, entre competência política e competência técnica. A extensão do voto universal admitiu a competência de todos os cidadãos para votar na escolha dos representantes, mas não para deliberar diretamente sobre decisões político-administrativas ou para exercer cargos da Administração Pública8 8 Uma das conclusões de Manin é que a preferência das eleições ao sorteio deixou em segundo plano o problema da justiça distributiva na alocação de funções políticas. Com efeito, no sistema administrativo ateniense, todos os cidadãos guardados os requisitos de idade e idoneidade poderiam apresentar-se para o exercício das funções públicas, tendo todos a mesma chance. Já na seleção por eleições, não há um princípio de justiça a priori, já que a chance de assumir uma função pública dependerá da escolha popular. Nesse caso, é preciso que se assegure justiça no processo de concorrência entre partidos e candidatos nas campanhas eleitorais. Medidas como horário político gratuito, financiamento público de campanha, são exemplos de instrumentos a serem adotados. .

Deixando de lado a questão do sorteio, que não se coloca como um problema na modernidade, um dos principais debates que procurou clarear as possibilidades da representação política centrou-se em torno das condições da representação, sobretudo dos graus de vinculação e controle que os representados deveriam ter com os representantes.

Para os defensores do mandato imperativo, se a representação fosse imprescindível, do ponto de vista técnico, que fosse então exercida da maneira mais restrita possível, vinculando estritamente representantes e representados, assim como ocorria no Direito Privado. Quanto maior a proximidade e o vínculo entre representantes e representados, mais a vontade popular estaria sendo respeitada. Os representantes seriam, dessa forma, apenas delegados, mandatários da vontade popular, com o mínimo de liberdade para agir fora das determinações populares. O próprio Rousseau, em suas Considerações sobre o governo da Polônia (1989b, p. 448), defende o instituto do mandato imperativo nos grandes Estados, onde " o poder legislativo não pode manifestar-se por si mesmo, podendo agir apenas por deputação" .

Diante da grande extensão territorial dos Estados nacionais da Era Moderna, o problema da inviabilidade da elaboração direta das leis pelos cidadãos deveria ser corrigido sujeitando-se os representantes a seguire exatamente suas instruções. Da mesma forma que o argumento geral de Rousseau, em favor do exercício direto da soberania popular, a proposta do mandato imperativo foi derrubada pelos revolucionários franceses, logo após a queda da Bastilha, deixando de ser objeto de discussão. Nos Estados Unidos, embora o mandato imperativo tenha sido amplamente utilizado até a primeira década pós-independência, decidiu-se pela não-adoção do instituto. Os eleitores seriam livres para dar instruções, mas estas não teriam força legal (MANIN, 1997).

Assim, sob o argumento originalmente sustentado na Inglaterra do século 18, de que os representantes deveriam representar toda a nação, e não interesses de regiões ou eleitores particulares, o modelo da representação política que então se consolidava – e que foi adotado por praticamente todos os regimes representativos até hoje – pressupunha a livre deliberação dos representantes (SARTORI, 1972)9 9 Segundo Sartori, as seguintes Constituições proíbem o mandato imperativo: Bélgica, 1831; Itália, 1848 e 1948; Prússia, 1850; Suécia, 1866; Áustria, 1867, 1920 e 1945; Alemanha, 1871 e 1949; Holanda, 1887; Dinamarca, 1915. . Ademais, a idéia de que os representantes diferenciavam-se dos representados em função de maior sabedoria e de um espírito público mais elevado implicava, necessariamente, atribuição de uma significativa liberdade de ação (MILL, 1998).

Se a condução dos negócios públicos exige a escolha de indivíduos especialmente treinados e preparados, não faz sentido prescindir dessa qualidade no momento da deliberação. Se o representante for apenas um delegado, com instruções a seguir, não requer nenhuma qualidade especial. John Stuart Mill acentua essa preocupação com o preparo dos representantes justamente porque vê na deliberação coletiva – e no mandato independente – um dos pontos mais importantes do sistema representativo.

Inicialmente, Mill (1998) defende o governo representativo diante da impossibilidade técnica da participação direta em cidades maiores. Parte, portanto, de um argumento pragmático, pois, ao mesmo tempo em que distingue graus diferentes de preparo político, concebe a participação direta dos cidadãos na política como o ideal máximo.

Uma vez estabelecido o governo representativo, porém, era fundamental que se mantivesse o princípio da deliberação pública, isto é, a existência de um espaço onde as opiniões pudessem ser expressas e debatidas livremente (MILL, 1998). Para que essa liberdade fosse plena, afastava-se também a possibilidade do controle mais estrito a posteriori, por meio do recall, isto é, da instituição de mandatos revogáveis a qualquer momento em caso de não-cumprimento da vontade do representado. A derrota histórica dos dois institutos que visavam maior controle dos representados – mandato imperativo e recall – e, em contrapartida, a afirmação de mandatos livres e independentes, correspondeu à consolidação dos ideais liberais na esfera política.

Um breve parêntese ocorreu durante a Comuna de Paris (1871), quando os dois institutos foram implementados e suas potencialidades foram vislumbradas para contextos maiores e mais complexos. Aos olhos de Karl Marx, a Comuna de Paris " serviria, certamente, como um modelo para todos os grandes centros industriais franceses" (MARX, 1998, p. 84). As comunas rurais de cada distrito deveriam administrar as tarefas públicas por uma assembléia de delegados na cidade central, que enviaria deputados para a delegação nacional em Paris. Cada delegado seria " revogável a qualquer tempo e limitado pelo 'mandat impératif' (instruções formais) de seus constituintes." A combinação desses dois institutos permitiria que o sufrágio universal fosse utilizado para servir ao povo, que, até então, limitava-se " a decidir uma vez em três ou seis anos qual membro da classe dominante deveria representá-lo no Parlamento" (MARX, 1998, p. 85).

É claro que, para Marx, embora os dois institutos fossem de enorme importância, o ponto crucial da Comuna de Paris estava no fato de ser um governo da classe trabalhadora, que pretendia a transformação dos meios de produção e o fim do próprio sistema capitalista. Contudo, na experiência da Comuna, seria justamente por meio do exercício mais direto da soberania popular que esses fins seriam alcançados. A partir daí, a defesa do mandato imperativo tornou-se uma reivindicação histórica do marxismo, que o concebia como instrumento de emancipação popular.

Com um outro argumento, a defesa do mandato imperativo é feita no século 20 por Hans Kelsen, em sua Teoria Geral do Direito e do Estado. Partindo da identificação de diferentes graus de exercício democrático, Kelsen (1961) vê a democracia direta como o mais alto grau de exercício democrático, ainda que, de seu ponto de vista, fosse viável apenas em comunidades pequenas, e sob condições sociais relativamente simples.

A representação surge, para Kelsen (1961, p. 289) como algo substitutivo, devendo os representantes refletir o desejo do povo e prestar contas de suas ações. Em uma democracia, os representantes devem ser " legalmente obrigados a executar a vontade dos representados" , garantindo-se juridicamente o cumprimento dessa obrigação.

Para Kelsen (1961), o recall, como sanção legal e não apenas política ao não-cumprimento da vontade popular, e o mandato imperativo, como forma de estreitar o vínculo entre representantes e representados, são instituições que garantem maior democracia. A defesa do mandato independente é uma ficção política, pois mantém a ilusão de que o legislador é o eleitorado, enquanto este, na verdade, restringe-se à escolha do órgão legislador. A independência legal do Parlamento significa mais uma adaptação ao princípio da divisão do trabalho do que a realização democrática10 10 Dez anos mais tarde, em seu Foundations of Democracy, Kelsen parece menos crítico à problemática do mandato independente. Nas considerações sobre o procedimento democrático, não faz novas referências à eventual superioridade da democracia direta, ou à deficiência da representação. Segundo ele, " o termo [democracia] designa um governo no qual as pessoas direta ou indiretamente participam [...] A participação no governo e na criação e aplicação das normas gerais e individuais da ordem social que constitui a comunidade deve ser considerada como a característica essencial da democracia. Se esta participação é direta ou indireta, isto é, se há uma democracia direta ou representativa trata-se, em ambos os casos, de um procedimento, um método específico de criação e aplicação da ordem social que constitui a comunidade" (KELSEN, 1955, p. 2-4). .

Ao desenvolver o conceito de representação política, Hannah Pitkin assume uma posição intermediária sobre a vinculação dos representantes aos representados. Para ela (1972, p. 219-220), a defesa do mandato imperativo não atende às exigências do sentido da representação, por envolver " uma maior complexidade e pluralidade de determinantes" , tais como: a) o representante político representa não apenas uma pessoa, mas toda uma coletividade, o que torna a determinação dos interesses muito complexa; b) trata-se de um político profissional, envolvido em uma estrutura mais ampla de instituições políticas; c) como um ser político também tem seus interesses, opiniões e visões de mundo; d) os temas tratados são geralmente relacionados com outros, o que possivelmente o levará a abrir mão de uns em prol de outros.

Para Pitkin (1972, p. 153), porém, os representantes não podem ser persistentemente contrários aos representados, pois isso significaria uma separação completa entre eles. Assim, na fórmula conciliadora, " ser representante significa estar presente de certa forma, ao mesmo tempo que não estar literal ou totalmente presente." O representante deve ser dotado de capacidade de ação e julgamento, com certo grau de liberdade para deliberar, mas não pode estar em oposição aos desejos do representado.

Há, assim, dois limites a serem respeitados, que permitem, todavia, um amplo espectro de possibilidades. A opção por um grau maior ou menor de proximidade de um ou outro limite depende da " metapolítica" de cada autor, isto é, de sua visão de mundo e posição política (PITKIN, 1972, p. 166-167). Do ponto de vista da dinâmica de seu funcionamento, a representação constitui, para Pitkin, um processo público e institucional, definido por arranjos sistemáticos de longo prazo.

Nessa sistemática, a conciliação entre os dois limites dá-se não pela resposta contínua de ações dos representantes, mas por uma atividade constante de " responsividade" , ou seja, de prontidão potencial de resposta. Em outras palavras, é preciso existir arranjos institucionais para que os representados possam exigir uma resposta sempre que se sentirem lesados na condução de sua vontade (PITKIN, 1972, p. 233). Mais do que o exercício direto do poder, é preciso haver acesso ao poder.

Representação, deliberação e accountability

A posição intermediária defendida por Pitkin apresenta um caminho fecundo para pensar a potencialidade da representação. Ao considerar tanto o caráter pragmático da atividade política, que implica uma margem razoável de liberdade para os representantes, quanto o objetivo genuíno da representação, que impõe limites para a não-contrariedade da vontade dos representados, é possível manter a conexão essencial entre representantes e representados, abrindo-se a possibilidade para a representação funcionar sem perder de vista sua finalidade original (YOUNG, 2000).

É certo que, nas condições impostas pela modernidade, marcada por alto grau de complexidade e padrões de diferenciação funcional cada vez maiores, a representação parece constituir solução indispensável. A aplicação do sufrágio até seu caráter universal e as mudanças sociais e econômicas do século 20, que transformaram as democracias modernas em democracias de massa, exigiram que, no quadro geral da representação, fossem criadas outras formas de mediação mais específicas, capazes de organizar e traduzir em linhas programáticas as opiniões, interesses e vontade dos cidadãos (URBINATI, 2000). O estabelecimento de partidos políticos orientados ideologicamente foi uma resposta a esse processo. Nesse contexto, o mandato deve ser concebido como independente, em relação à vontade individual de cada representado, mas vinculado ao projeto do partido ao qual os representantes são filiados.

Apesar dessas condições normativas, sob as quais o mecanismo da representação deve vigorar, vários limites marcam a aplicação da representação política11 11 Para um diagnóstico mais amplo dessas deficiências, recomenda-se ver Hirst (1990); Gargarella (1998) e Campilongo (1988). . Entre eles, dois temas destacam-se: a existência de um déficit de controle da representação a questão da prestação pública de contas (accountability)12 12 A definição de Przeworski e Cheibub (1999, p. 225) parece apropriada. Segundo os autores, " os governos prestam contas de seus atos quando os cidadãos podem discernir se os governos estão agindo no seu melhor interesse e sancioná-los adequadamente, de modo que aqueles que satisfizerem os cidadãos permaneçam no governo e aqueles que não o fizerem percam o cargo. A prestação pública de contas ( accountability) é um mecanismo retrospectivo, vez que as ações dos governantes são julgadas ex post por seus efeitos." e a necessidade dos representantes guiarem-se por um processo deliberativo por meio do qual justifiquem suas decisões com base em argumentos racionais13 13 O rol de autores que defende essas duas questões como centrais na reforma institucional é bastante extenso. Sobre o problema da accountability ver, por exemplo, Hirst (1990); Manin, Przeworski e Stokes (1999); Young (2000); Gutmann e Thompson (1996). Sobre a questão da deliberação, os trabalhos de Habermas são centrais. . As duas questões relacionam-se diretamente com um princípio basilar da democracia, o da publicidade, que requer a maximização da transparência nos atos dos representantes e das instituições políticas14 14 John Dunn (1999, p. 339) sintetiza a importância da publicidade: " A demanda por privacidade no governo é um ataque à essência da constituição de um Estado democrático: virtualmente, uma confissão de interesses sinistros da parte de seus governantes" . .

A grande atenção dada a esses dois temas justifica-se tanto normativa como empiricamente. Pois, embora assumam papel essencial na qualificação do instituto representativo, têm sido, na maioria dos regimes democráticos, negligenciados na dinâmica das instituições criadas. Se o momento inicial de autorização da representação tem sido relativamente bem constituído, apesar de uma série de problemas que ainda persistem15 15 A ausência de financiamento público de campanhas e de maior fidelidade partidária parecem ser, no caso brasileiro, dois grandes problemas do momento da autorização (COHEN, 1999, p. 424-426). , o momento posterior de controle mostra-se demasiado incipiente.

Embora os representantes devam relembrar o processo de discussão que levou à sua autorização e antecipar o momento de prestar contas àqueles que representam (YOUNG, 2000), quase não há instituições que garantam essa antecipação. O controle permanece restrito à sanção política, já que os eleitores, se quiserem, podem não reeleger determinado representante.

No entanto, as eleições não são um mecanismo suficiente para assegurar a realização da vontade popular. Os mandatos, legislativo ou executivo, são períodos longos durante os quais os cidadãos ficam desprovidos de meios de avaliação, controle e sanção das ações de seus representantes. Ao longo de cada mandato, enquanto os governos tomam milhares de decisões que afetam a vida dos cidadãos, estes não têm nenhuma forma de controlar os representantes, restando apenas a possibilidade de não-reeleição e de alteração no próximo mandato (MANIN; PRZEWORSKI; STOKES, 1999)16 16 No mesmo sentido, os autores lembram que o problema da accountability vai além dos representantes eleitos, estendendo-se, por exemplo, à própria máquina burocrática, já que não há formas de controle direto dos cidadãos sobre a burocracia. .

Assim, o mandato independente não poderia significar a desconexão entre representantes e representados. O elo entre eles deve ser interpretado como um ato contínuo, renovado em períodos mais curtos ou a cada debate, ação ou política mais relevante encaminhada pelos representantes, e não apenas no julgamento final de um pacote de milhares de decisões referentes a todo um mandato. Não se trata de paralisar a dinâmica da representação exigindo o controle de cada passo dos representantes. Mas se trata, essencialmente, de criar mecanismos e instituições que permitam selecionar publicamente os debates e decisões mais importantes, que exijam acompanhamento e controle por parte dos representados. Nesse sentido, é preciso construir instituições que facilitem aos cidadãos recompensar ou punir os responsáveis17 17 Esse controle a posteriori deve ser associado a mecanismos de controle a priori, como o requisito da fidelidade partidária e programática aos projetos do partido a que se filiam os representantes. Esta é uma condição para preservar a conexão entre o eleitorado e seus eleitos. Na análise dos déficits de controle, Manin, Przeworski e Stokes (1999) assinalam um problema crucial: a ausência de meios legais para compelir os representantes a seguirem sua plataforma eleitoral. Segundo os autores, as ações dos cidadãos contra governos que traíram promessas específicas da campanha têm sido rejeitadas pelos tribunais de vários países. .

Democracia participativa e a qualificação do princípio representativo

É nesse sentido que os institutos de democracia semidireta ou participativa, amparados pela Constituição Federal de 1988 e a legislação complementar ganham força e assumem papel decisivo, seja na definição das políticas públicas, seja no controle dos representantes. Instrumentos como o plebiscito, o referendo e a iniciativa popular de lei, no âmbito do Legislativo, e os conselhos gestores de políticas públicas e o orçamento participativo, no campo do Executivo, possibilitam manter um canal permanente de deliberação pública, fazendo da prática política um exercício contínuo.

Participação e representação são compreendidos como instrumentos complementares que, nas condições contemporâneas, pressupõem-se mutuamente. As formas de prestação de contas devem, assim, ser ampliadas e exercidas por procedimentos adicionais, por meio dos quais os cidadãos possam discutir uns com os outros, e com os representantes, as políticas que têm sido defendidas (YOUNG, 2000).

A idéia central é a de que, embora a representação – e a reforma de seus mecanismos – seja um instrumento importante na democracia moderna, a participação direta não pode ser restrita ao momento do voto. Sem contar com um conjunto de instrumentos de participação popular direta, a representação mostra-se insuficiente para realizar a democracia em sua dimensão mais profunda. Daí a importância dos conselhos setoriais, associações civis, orçamentos participativos e outros espaços que podem vir a ser criados, pautados pelo debate de questões morais e éticas, pela discussão e proposição de novas políticas públicas e pelo controle e fiscalização das políticas implementadas, bem como pelos princípios da publicidade, deliberação pública e prestação de contas permanente, que devem informar os governos democráticos.

O segundo elemento que tem merecido destaque no debate político – a exigência de uma política deliberativa – desempenha, do ponto de vista procedimental, um papel decisivo. Pois, a legitimidade das decisões políticas, tomadas no âmbito institucional ou na rede informal, bem como o exercício de seu controle, devem resultar de um amplo debate público, calcado na razão discursiva18 18 Sobre este tema, indica-se Habermas (1997). .

Em síntese, se o instrumento da representação pretende ser um dos eixos centrais não apenas dos governos modernos, mas dos governos democráticos modernos, é preciso que seja repensado, de modo a atender aos princípios e valores antes considerados. Em outras palavras, para que a democracia representativa não seja apenas definida em termos minimalistas, é preciso que ela signifique, em certa medida, menos uma ruptura e mais uma continuidade do ideário grego.

A modernidade deve afirmar o resgate democrático que estabeleceu a partir do constante aprofundamento dos princípios elementares da democracia ateniense – liberdade, igualdade e participação no poder. Assim, a idéia de um resgate da vida democrática poderia significar não propriamente uma oposição entre a democracia dos antigos e a democracia dos modernos, mas uma relação de aperfeiçoamento e adaptação da primeira à realidade encontrada a partir de fins do século 18 (GOYARD-FABRE, 1998). Esse aperfeiçoamento, por sua vez, refere-se tanto ao grande divisor de águas dos dois sistemas, o modo de exercício do poder e as potencialidades da representação, como também aos significados dos princípios da liberdade e da igualdade nas democracias contemporâneas.

Notas

Recebido em 16.04.2007. Aprovado em 28.05.2007.

Denise Cristina Vitale Ramos Mendes

Bacharel e Doutora em Direito pela Universidade de São Paulo (USP)

Professora e pesquisadora do Mestrado em Políticas Sociais e Cidadania da Universidade Católica do Salvador (UCSAL)

Superintendência de Pesquisa e Pós-Graduação

Mestrado em Políticas Sociais e Cidadania

Avenida Anita Garibaldi, 2981

Rio Vermelho

Salvador - Bahia

CEP: 41940-450

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  • 1
    Sobre o tema, indica-se Avritzer e Navarro (2003); Dagnino (2002); Vitale (2004).
  • 2
    Para Tocqueville (1981, p. 100), porém, as cidades da Nova Inglaterra já se encontravam, desde 1650, constituídas e regidas por uma vida política real, ativa, democrática e republicana, embora ainda submetidas à metrópole inglesa. O contraste com a sociedade européia absolutista era ainda maior quando no governo local sequer a representação era admitida, sendo os assuntos de interesse geral decididos em praça pública, " como ocorria em Atenas."
  • 3
    A idéia de representação política origina-se na Idade Média, como um instituto de governos monárquicos e aristocráticos. Segundo Robert Dahl (1989), os monarcas ou os nobres medievais convocavam assembléias, com representantes de cada estrato social, para decidir questões importantes de Estado, como guerras e sucessões reais.
  • 4
    Joshua Cohen (1996) argumenta que a defesa da participação direta em Rousseau é central, pois consiste no principal instituto para a manutenção da vontade geral.
  • 5
    Como nota Cohen (1996, p. 291-292, nota 16), a preocupação com a falta de comunicação nas assembléias decisórias deve-se a um temor de que a troca de argumentos levasse à formação de facções e à divisão da sociedade. É interessante perceber que esse mesmo temor é alegado por Madison para defender o oposto de Rousseau: a representação no lugar da democracia direta.
  • 6
    Se a fonte da legitimidade política está na aprovação consentida dos cidadãos, não há espaço para o sorteio, pois este não pode ser percebido como uma expressão direta do consenso (MANIN, 1997). Indiretamente, porém, o sorteio, ou qualquer outro método, pode ser resultado do consenso sobre o procedimento adotado.
  • 7
    Vale mencionar a proposta de Robert Dahl (1990), de introduzir o sorteio como método de seleção de conselheiros para representantes eleitos. Contudo, para Dahl, o sorteio não poderia ser o método de escolha dos próprios representantes, pois os critérios de competência, escolha pessoal e economia não recomendariam a opção.
  • 8
    Uma das conclusões de Manin é que a preferência das eleições ao sorteio deixou em segundo plano o problema da justiça distributiva na alocação de funções políticas. Com efeito, no sistema administrativo ateniense, todos os cidadãos guardados os requisitos de idade e idoneidade poderiam apresentar-se para o exercício das funções públicas, tendo todos a mesma chance. Já na seleção por eleições, não há um princípio de justiça
    a priori, já que a chance de assumir uma função pública dependerá da escolha popular. Nesse caso, é preciso que se assegure justiça no processo de concorrência entre partidos e candidatos nas campanhas eleitorais. Medidas como horário político gratuito, financiamento público de campanha, são exemplos de instrumentos a serem adotados.
  • 9
    Segundo Sartori, as seguintes Constituições proíbem o mandato imperativo: Bélgica, 1831; Itália, 1848 e 1948; Prússia, 1850; Suécia, 1866; Áustria, 1867, 1920 e 1945; Alemanha, 1871 e 1949; Holanda, 1887; Dinamarca, 1915.
  • 10
    Dez anos mais tarde, em seu
    Foundations of Democracy, Kelsen parece menos crítico à problemática do mandato independente. Nas considerações sobre o procedimento democrático, não faz novas referências à eventual superioridade da democracia direta, ou à deficiência da representação. Segundo ele, " o termo [democracia] designa um governo no qual as pessoas direta ou indiretamente participam [...] A participação no governo e na criação e aplicação das normas gerais e individuais da ordem social que constitui a comunidade deve ser considerada como a característica essencial da democracia. Se esta participação é direta ou indireta, isto é, se há uma democracia direta ou representativa trata-se, em ambos os casos, de um procedimento, um método específico de criação e aplicação da ordem social que constitui a comunidade" (KELSEN, 1955, p. 2-4).
  • 11
    Para um diagnóstico mais amplo dessas deficiências, recomenda-se ver Hirst (1990); Gargarella (1998) e Campilongo (1988).
  • 12
    A definição de Przeworski e Cheibub (1999, p. 225) parece apropriada. Segundo os autores, " os governos prestam contas de seus atos quando os cidadãos podem discernir se os governos estão agindo no seu melhor interesse e sancioná-los adequadamente, de modo que aqueles que satisfizerem os cidadãos permaneçam no governo e aqueles que não o fizerem percam o cargo. A prestação pública de contas (
    accountability) é um mecanismo retrospectivo, vez que as ações dos governantes são julgadas ex post por seus efeitos."
  • 13
    O rol de autores que defende essas duas questões como centrais na reforma institucional é bastante extenso. Sobre o problema da
    accountability ver, por exemplo, Hirst (1990); Manin, Przeworski e Stokes (1999); Young (2000); Gutmann e Thompson (1996). Sobre a questão da deliberação, os trabalhos de Habermas são centrais.
  • 14
    John Dunn (1999, p. 339) sintetiza a importância da publicidade: " A demanda por privacidade no governo é um ataque à essência da constituição de um Estado democrático: virtualmente, uma confissão de interesses sinistros da parte de seus governantes" .
  • 15
    A ausência de financiamento público de campanhas e de maior fidelidade partidária parecem ser, no caso brasileiro, dois grandes problemas do momento da autorização (COHEN, 1999, p. 424-426).
  • 16
    No mesmo sentido, os autores lembram que o problema da
    accountability vai além dos representantes eleitos, estendendo-se, por exemplo, à própria máquina burocrática, já que não há formas de controle direto dos cidadãos sobre a burocracia.
  • 17
    Esse controle
    a posteriori deve ser associado a mecanismos de controle
    a priori, como o requisito da fidelidade partidária e programática aos projetos do partido a que se filiam os representantes. Esta é uma condição para preservar a conexão entre o eleitorado e seus eleitos. Na análise dos déficits de controle, Manin, Przeworski e Stokes (1999) assinalam um problema crucial: a ausência de meios legais para compelir os representantes a seguirem sua plataforma eleitoral. Segundo os autores, as ações dos cidadãos contra governos que traíram promessas específicas da campanha têm sido rejeitadas pelos tribunais de vários países.
  • 18
    Sobre este tema, indica-se Habermas (1997).
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      21 Dez 2007
    • Data do Fascículo
      Dez 2007

    Histórico

    • Aceito
      28 Maio 2007
    • Recebido
      16 Abr 2007
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