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A interdisciplinaridade em Paulo Freire: aproximações político-pedagógicas para a educação ambiental crítica

Interdisciplinarity in Paulo Freire: Political-pedagogical approximations for critical environmental education

Resumo

O artigo trata da contribuição pedagógica do educador brasileiro Paulo Freire na questão interdisciplinar e sua convergência para a Educação Ambiental (EA) Crítica. Reitera o pensamento de Paulo Freire como educador interdisciplinar. Em seguida aborda a radicalidade política do conceito de libertação e reflete sobre a relevância da dimensão interdisciplinar, educativa e política. Por fim, indica a relação constitutiva da interdisciplinaridade Freireana para a EA crítica partindo de categorias como totalidade, contradição, práxis, dialética, dialógica. A leitura Freireana sobre a interdisciplinaridade instrumentaliza para o amadurecimento da EA Crítica como ação político-educativa visando à superação das relações sociais alienadas no capitalismo.

Palavras-chave:
Educação Ambiental Crítica; Interdisciplinaridade; Paulo Freire

Abstract

This article addresses the pedagogical contribution of Brazilian educator Paulo Freire to interdisciplinarity and its relevance for Critical Environmental Education. It reiterates the thinking of Paulo Freire as an interdisciplinary educator. It then addresses the radical political nature of the concept of liberation and reflects on educational and political interdisciplinarity. Finally, it indicates the relationship of Freire's thinking with critical environmental education, based on categories such as totality, contradiction, praxis, dialectics and dialogical. The Freirian reading of interdisciplinarity supports the maturing of critical environmental education as educational-political action, seeking to overcome alienated social relations under capitalism.

Keywords:
Critical environmental education; Interdisciplinarity; Paulo Freire.

Introdução

O Artigo trata da contribuição pedagógica do educador brasileiro Paulo Freire na questão interdisciplinar e sua convergência para a Educação ambiental (EA) crítica. Há grande quantidade de pesquisas em educação ambiental espalhadas em vários programas de pós-graduação, de diferentes áreas do conhecimento, que reconhecem a diversidade social, cultural e o diálogo de saberes como condição para se tratar da questão interdisciplinar. Paulo Freire neste sentido tem muito a contribuir. Scucoglia (2000, p. 32-33) distingue assim duas formas de interpretação do pensamento político-educativo freireano:

Histórico, no sentido de pesquisarmos o pensamento do autor sob o prisma relativo à sua produção discursiva, buscando contextualizar sua prática e sua teoria em cada um dos vários momentos componentes de sua trajetória nas três últimas décadas. Como homem do seu tempo, Freire exige dos estudiosos da sua obra a apreensão das suas propostas político-educativas com tempo e espaço determinados (no Brasil, no Chile, nos Estados Unidos, na Europa, na África - antes, durante e depois do exílio - e a volta ao Brasil, com a anistia de 1979) podem dimensionar com clareza a construção de seu pensamento. (...). Dialético, na busca da compreensão das 'totalidades' e das 'contradições' internas do discurso freireano. Um discurso que, ao falar de pedagogia do oprimido, denuncia a opressão, ao denunciar a educação 'bancária', propõe a educação 'problematizadora'; ao colocar as dificuldades dos subalternos se organizarem como classe, mostra as dificuldades dos opressores em ser classe no próprio exercício de direção/dominação. Um discurso que, ao falar da necessidade da ação dialógica como matriz da pedagogia do oprimido, não se esquece do autoritarismo e da precariedade de grande parte de nossas escolas que, ao excluírem milhares de crianças todos os anos, tornam-se fábricas de analfabetos jovens e adultos.

Paulo Freire situa-se na origem de um novo paradigma educacional que surge na América Latina (AL) e se afirmou no processo de desenvolvimento, na reinvenção nas variadas experiências de luta social e organização das classes populares. Freire em seus registros feitos na obra Pedagogia da Esperança (1994) indicava a relevância da Pedagogia do Oprimido (1970) transformar-se num projeto coletivo enquanto obra daqueles que lutam juntos e se solidarizam por um mundo mais justo e mais humanizado para todos (STRECK; REDIN; ZITKOSKI, 2010______. Paulo Freire: uma breve cartografia intelectual. In: STRECK, D; REDIN, Euclides; ZITKOSKI, J. (Orgs.). Dicionário Paulo Freire. Belo Horizonte: Autêntica, 2010. p. 15-22.). Sua obra dialoga com muitos pesquisadores que se dedicaram à construção de fundamentos teórico-metodológicos para uma educação libertadora. Freire não repete as estruturas da tradição filosófica, mas inova ao partir do desafio da realidade social em diálogo com a análise da reflexão teórica. Há uma síntese entre o pensamento fenomenológico e a dialética, como ele mesmo expõe: "minha perspectiva é dialética e fenomenológica. Eu acredito que daqui temos que olhar para vencermos esse relacionamento oposto entre teoria e práxis: superando o que não deve ser feito num nível idealista" (FREIRE apudTORRES, 1998TORRES, C. Da Pedagogia do oprimido à luta continua: A Pedagogia política de Paulo Freire. In: McLAREN, P; LEONARD, P; GADOTTI, M (Orgs.). Paulo Freire: poder, desejo e memórias da libertação. Porto Alegre: Artmed, 1998. , p. 82). Para Streck, Redin e Zitkoski (2010______. Paulo Freire: uma breve cartografia intelectual. In: STRECK, D; REDIN, Euclides; ZITKOSKI, J. (Orgs.). Dicionário Paulo Freire. Belo Horizonte: Autêntica, 2010. p. 15-22., p. 17-18):

Tal síntese não é mera construção teórica, mas é a criatividade de seu pensar crítico tendo como compromisso central a realidade (social, cultural, histórica e política) latino-americana. Uma educação humanista-libertadora, na perspectiva freireana, precisa ter como ponto de partida os fenômenos concretos que constituem o universo existencial de nosso povo. E, a partir desse universo, o desafio dialógico-crítico para a luta em prol das transformações sociais necessárias e imprescindíveis para atingirmos uma vida mais digna, principalmente para os setores sociais que mais sofrem a opressão ou exclusão.

Freire se constitui a partir de uma posição política em favor dos oprimidos. Neste viés, o ponto de partida de sua reflexão é a realidade social opressora. Estabelece dialeticamente a denúncia de um mundo no qual se ampliam as formas de opressão destacando a relevância e a viabilidade do processo educativo humanizador e sua relação com a práxis social transformadora. Freire (1994, p. 102) elabora a distinção entre pensar certo e pensamento ingênuo ou antidialético. O pensar certo é crítico e esperançoso frente o futuro que não se fecha diante das condições históricas que nos desumanizam: "para a dialética, a importância da consciência está em que, não sendo a fazedora da realidade, não é, por outro lado (...) puro reflexo seu. É exatamente nesse ponto que se coloca a importância fundamental da educação enquanto ato de conhecimento, não só de conteúdo, mas da razão de ser dos fatos". "A visão de mundo que reforça o valor do sonho e a utopia numa perspectiva histórica como possibilidade é coerente com a forma de pensar a educação como um caminho para a emancipação dos oprimidos" (STRECK; REDIN; ZITKOSKI, 2010______. Paulo Freire: uma breve cartografia intelectual. In: STRECK, D; REDIN, Euclides; ZITKOSKI, J. (Orgs.). Dicionário Paulo Freire. Belo Horizonte: Autêntica, 2010. p. 15-22., p. 18). Dizer não ao fatalismo e às posturas sectárias já é comprometer-se com uma nova forma de pensar a educação e agir enquanto sujeitos, pois Freire entende o ser humano como ser histórico-social. Para Streck, Redin e Zitkoski (2010______. Paulo Freire: uma breve cartografia intelectual. In: STRECK, D; REDIN, Euclides; ZITKOSKI, J. (Orgs.). Dicionário Paulo Freire. Belo Horizonte: Autêntica, 2010. p. 15-22., p. 19):

É importante nos desafiarmos a ler Freire a partir de novos cenários, principalmente os que emergiram nos anos 90 em relação à realidade latino-americana. Por exemplo: Que perspectivas se desenham para os movimentos sociais na América Latina? Que lugar nós ocupamos no atual contexto da geopolítica mundial? Como o mundo, principalmente os países hegemônicos, nos veem? E qual nosso olhar sobre nós mesmos? Assim, a obra de Freire nos ajuda a ter mais clareza sobre estas questões, pois seu pensamento dialoga com outras leituras de mundo que convergem para uma perspectiva crítica e humanizadora das sociedades atuais.

Freire não se dedicou especificamente ao estudo da questão ambiental, mas suas amplas reflexões abrem possibilidades para refletirmos as relações sociedade-natureza a partir de suas teorias do conhecimento e de seu método pedagógico. Não por acaso, foi o próprio Freire o nome consensual para a abertura da I Jornada Internacional de Educação Ambiental, evento de destaque na área, realizado durante a Rio 92 (LOUREIRO, 2012LOUREIRO, C. F. B. Trajetória e fundamentos da educação ambiental. São Paulo: Cortez , 2012.). A opção por Freire justifica-se, não por ser o autor mais citado no campo da educação ambiental no Brasil, mas porque podemos encontrar em sua obra os pressupostos teóricos para subsidiar esta discussão, pois seu pensamento tem muito a dialogar com a EA crítica vista na sua totalidade (TOZONI-REIS, 2006TOZONI-REIS, M. Temas ambientais como "temas geradores": contribuições para uma metodologia ambiental, crítica, transformadora e emancipatória. Educar, Curitiba, n. 27, 2006. p. 93-110. ). Do mesmo modo, afirma Andreola (2000______. A Interdisciplinaridade na obra de Paulo Freire: uma pedagogia da simbiogênese e da solidariedade. In: STECK, D. et al (Orgs.). Paulo Freire: ética, utopia e educação. Rio de Janeiro: Vozes, 2000., p. 68):

A aventura de compreender os segredos da vida não pode se reduzir, por isso, a uma tarefa solitária ou ao empreendimento paralelo e estanque das diferentes ciências. A visão do todo, a perspectiva da totalidade impõe como necessidade. A interdisciplinaridade é, pois, um compromisso ético com a vida e uma exigência ontológica, antes ainda de se impor como imperativo epistemológico e metodológico. Quanto mais leio os escritos de Freire, tanto mais o vejo como um pensador interdisciplinar, sob vários pontos de vista, que eu sintetizaria em quatro: a) preocupação interdisciplinar permanente em Freire e trabalho interdisciplinar em equipe. b) dimensões interdisciplinares na pedagogia do oprimido. c) Diálogo interdisciplinar em torno do binômio opressão/libertação. d) Recriação interdisciplinar da proposta epistemológico-política de Freire.

A questão ambiental e a educação são eminentemente políticas e implicam em construir pela participação radical dos sujeitos na vida social e pela permanente problematização da realidade, ações necessárias à ação transformadora da sociedade. Trata-se de uma ontologia político-educativa que parte da certeza de que vivemos numa sociedade excludente e desigual, resultado dos caminhos históricos que fizemos ao estabelecermos as relações sociedade-natureza. Freire auxilia no debate da interdisciplinaridade na EA crítica, entendendo a educação ambiental como ação educativa que permite ultrapassar a tendência de tratá-la como disciplina ou programa vinculado ao ensino de ciências ou áreas afins, para inseri-la num contexto mais amplo, como a educação (TOZONI-REIS, 2006TOZONI-REIS, M. Temas ambientais como "temas geradores": contribuições para uma metodologia ambiental, crítica, transformadora e emancipatória. Educar, Curitiba, n. 27, 2006. p. 93-110. ). Freire é uma das referências mais citadas nas propostas curriculares e nas publicações brasileiras sobre EA (LAYRARGUES, 2014LAYRARGUES, P. Prefácio: A dimensão freireana na Educação Ambiental. In: LOUREIRO, C.F.B; TORRES, J. (Orgs.). Educação Ambiental: dialogando com Paulo Freire. São Paulo: Cortez , 2014. p. 7-12.).

O Significado e o alcance político do pensamento de Freire

Para fins de recorte metodológico, abordaremos seu pensamento de forma delimitada pelo eixo educação-política, pois se trata de um pensamento ancorado em dois polos inseparáveis (SCOCUGLIA, 2000SCOCUGLIA, A. A construção da história das idéias de Paulo Freire. In: STECK, D., et al (Orgs.). Paulo Freire: ética, utopia e educação. Rio de Janeiro: Vozes , 2000. p. 29-51., p. 40):

um, predominantemente psicopedagógico (cuja parte mais elaborada aparece na Pedagogia do Oprimido) e, outro (construído basicamente a partir das reflexões de Ação cultural para a liberdade...), radicalmente político-pedagógico. Nos múltiplos caminhos nuclearizados por esses dois pólos, os amálgamas teóricos se reconstroem com autocríticas das ingenuidades e com a percepção de aspectos idealistas. A mais notória das reconstruções corre a partir das aproximações às idéias de 'Marx-gramscianas' - predominantemente 'culturais', com o rechaço do economicismo (da vulgata) marxista.

A descoberta da politicidade da educação à luz de aspectos políticos vistos na Pedagogia do Oprimido, se deu pela dialeticidade dos atos educativos com os atos políticos, articulada em nível teórico pela inserção de preceitos marxistas e por uma aproximação a alguns temas gramscianos. Não podemos apontar que Marx, Engels e Gramsci, entre outros teóricos, determinaram a superação de Freire das posições liberalizantes, nacionalistas e desenvolvimentistas e populistas dos anos 50 e 60. Como assinala Scocuglia (2000SCOCUGLIA, A. A construção da história das idéias de Paulo Freire. In: STECK, D., et al (Orgs.). Paulo Freire: ética, utopia e educação. Rio de Janeiro: Vozes , 2000. p. 29-51., p. 42), "ele não foi trabalhar com os grupos populares por causa de Marx, ao contrário, foi procurar auxílio nos marxismos (não ortodoxos) para compreender esses grupos". O pensamento de Freire sofreu a influência e muitas incorporações ao longo de sua trajetória, o que indica que:

percebeu-se uma incorporação aberta de certos parâmetros políticos e ideológicos propostos pelos clássicos socialistas, especialmente Marx - destacando-se várias referências a escritos como A Sagrada Família, A ideologia alemã e Teses sobre Feuerbach, relativos à denominada superestrutura. Na Pedagogia do Oprimido já aparecem classes no contexto de opressão social, embora não constituam, ainda, categorias centrais da construção do seu discurso. Em Ação cultural para a liberdade (...) a educação começa a ser efetivamente pensada no interior do conflito de classes, como ato de conhecimento 'de classe' em busca da mobilização/organização dos oprimidos enquanto 'ação cultural' que constrói a 'consciência de classe' - e esta só seria conquistada no conflito, na luta pela mudança estrutural da sociedade. Aqui, Goldman-Lukács-Hobsbawn contribuem de modo fundamental (SCOCUGLIA, 2000SCOCUGLIA, A. A construção da história das idéias de Paulo Freire. In: STECK, D., et al (Orgs.). Paulo Freire: ética, utopia e educação. Rio de Janeiro: Vozes , 2000. p. 29-51., p. 42).

Contudo, os incrementos dos vários marxismos cedem lugar para a categoria teórica infra-estrutural, vista em vários escritos de Freire. Outra categoria notável é o trabalho visto que, o que antes era pensado via dialética senhor-escravo, de Hegel, subsidia-se em O Capital de Marx, e aparece como contexto político-educativo no qual a produção é constatada enquanto limitadora dos conteúdos programáticos e da própria alfabetização dos adultos. É constatada a apropriação de alguns postulados gramsciano, tais como novos intelectuais e o partido como intelectual-coletivo.

Sua opção política em direção aos trabalhadores (como classe política) é acompanhada por uma evolução pedagógica. Este fato fica claro no momento que traz a passagem do oprimido como categoria central e a denúncia da desumanização opressora como caminho político da emancipação. A consciência da opressão e o consequente combate à ideologia da opressão hospedada na ingenuidade da consciência oprimida mudam o enfoque analítico:

O 'diálogo', admitido de início como possibilidade de mediação 'interclasses', é rechaçado como tal e entendido como ação entre os iguais e os diferentes, mas contra os antagônicos nos conflitos sociais. A 'conscientização' engendrada, com a contribuição de Vieira Pinto e dos isebianos, em 'estágios crescentes de consciência' (ingênua, transitiva, crítica), desloca-se, gradativamente, para a consciência de classe, lukacsiana. Com efeito, a adoção das 'classes-na-luta-de-classes', antes ausente ou colocada de forma 'nebulosa', constitui importante deslocamento da sua análise social, às vezes, de forma repetitiva (talvez em função das críticas aos seus primeiros escritos, nos quais a aproximação com o nacionalismo desenvolvimentista-populista eclipsava tais conflitos) e, por outras vezes, exagerada. Importante: Freire não admite em seus escritos a 'luta de classes como motor da História' que (inexoravelmente) desembocaria no socialismo e no comunismo como o faz Marx (SCOCUGLIA, 2000SCOCUGLIA, A. A construção da história das idéias de Paulo Freire. In: STECK, D., et al (Orgs.). Paulo Freire: ética, utopia e educação. Rio de Janeiro: Vozes , 2000. p. 29-51., p. 44).

Freire evidencia a educação de resistência que não tolera a exploração dos subalternos. Educação para a autonomia e para a capacidade de dirigir ou, como aponta Gramsci, para a contra-hegemonia dos subalternos. Educação cidadã que enfrenta as verdades ideológicas da economia liberal globalizada, responsável pela miséria social. Educação que seja capaz de reinventar o mundo. Freire reivindica seu papel de educador-educando-popular contribuindo para superar determinismos ortodoxos.

A radicalidade política da libertação em Paulo Freire

Libertação é práxis, ou seja, "ação e a reflexão dos homens sobre o mundo para transformá-lo" (FREIRE, 1970, p. 79). A conscientização exerce um papel no processo libertador, pois a educação libertária tem sua razão de ser "no seu impulso inicial conciliador. Daí que tal forma de educação implique a superação da contradição educador-educandos, de tal maneira que se façam ambos, simultaneamente educadores e educandos" (FREIRE, 1970, p. 72). Freire (1985______. The politics of education: culture, power e liberation. Westport, CT: Bergin e Garvey. 1985. , p. 128) associa libertação com os oprimidos, os revolucionários, a educação e a Igreja. Acredita que o futuro dos oprimidos é a "realização de sua libertação - sem a qual eles não podem ser". A libertação lhes permite "denunciar a ordem que os esmaga, transformando essa ordem na práxis. Só eles podem anunciar um novo mundo, um mundo que está constantemente sendo recriado e renovado". Este "novo mundo" somente poderá ser realizado quando as pessoas não estão isoladas do mundo, na medida em que "a libertação ocorrem sua práxis histórica quando implica uma consciência crítica da sua relação implícita entre consciência e mundo". Por sua vez, "a educação libertadora é um processo pelo qual o educador convida os educandos a reconhecer e desvelar a realidade criticamente; não há sujeitos que libertam e objetos que são libertados, já que não há dicotomia entre sujeito e objeto. O libertar é dialógico" (FREIRE, 1985, p. 102). Os oprimidos não podem vir-à-ser verdadeiramente porque são negados em suas dimensões fundamentais e constitutivas de sua humanidade. Torna-se evidente que os oprimidos vão buscar se libertar lutando contra quem os desumaniza. Mas a luta pela libertação deve ser a luta pela recuperação da humanidade: "A pedagogia do oprimido, nas trilhas da teoria da dependência, se fundamenta na visão da América Latina como lugar dependente, mas também de possibilidades" (STRECK, 2010______. Paulo Freire: uma breve cartografia intelectual. In: STRECK, D; REDIN, Euclides; ZITKOSKI, J. (Orgs.). Dicionário Paulo Freire. Belo Horizonte: Autêntica, 2010. p. 15-22., p. 330). A superação desta situação dependente será possível mediante uma dupla ruptura: externa, trazendo para a sociedade o centro das decisões; e interna, superando a sociedade cindida pelas classes:

Paulo Freire representa um momento de consolidação de um pensamento pedagógico latino-americano. Suas obras constituem o núcleo de um movimento educativo que na segunda metade do século 20 passou a ser conhecido como Educação Popular (...). Trata-se de um momento de ruptura que é também um momento de libertação da pedagogia. Os teólogos haviam defendido a tese de que a teologia da libertação implica a libertação da teologia, no sentido de que ela vai muito além do ensino de conteúdos, mas se refere ao próprio processo de fazer teologia; para um grupo de filósofos, não poderia haver filosofia da libertação sem a libertação da filosofia. Em Freire temos um exercício de libertação da pedagogia. Em primeiro lugar, ela se torna uma pedagogia do outro, do oprimido (STRECK, 2010______. Paulo Freire: uma breve cartografia intelectual. In: STRECK, D; REDIN, Euclides; ZITKOSKI, J. (Orgs.). Dicionário Paulo Freire. Belo Horizonte: Autêntica, 2010. p. 15-22., p. 331).

O desafio para os oprimidos é realizar uma libertação que evite uma simples inversão dos polos da situação opressora. Sendo assim, faz-se necessária a superação da própria contradição opressor-oprimido que acontece, segundo Freire (1993aFREIRE, P. Pedagogia do Oprimido. São Paulo: Paz e Terra, 1993a. , p. 46), na luta dos oprimidos pela sua libertação: "Os opressores, violentando e proibindo que os outros não sejam igualmente ser; os oprimidos, lutando por ser, ao retirar-lhes o pode de oprimir e de esmagar, lhes restauram a humanidade de que haviam perdido no uso da opressão". Logo, as tentativas de libertação que venham dos opressores jamais passarão de falsa generosidade, uma vez que, sua suposta generosidade implica na permanência da injustiça e na existência da pobreza diante a situação de necessidade. Entendemos que a verdadeira generosidade incide na luta pela restauração da plena humanidade na situação dos oprimidos e na superação destas generosidades desiguais (BOUFLEUER, 1991BOUFLEUER, P. Pedagogia latino-americana: Freire e Dussel. Ijuí: UNIJUÍ, 1991. ). Consequentemente, o oprimido é o interessado na transformação da sociedade, pois é ele que sente os efeitos de sua condição. Sua libertação resultará da práxis de libertação que, partindo da reflexão em torno da opressão e suas causas, visam engajar os oprimidos na luta pela recuperação de sua condição humana.

A concepção política de Freire é o que dá sentido à utopia de construção da nova sociedade livre, solidária e humanista. Tal projeto impele uma pedagogia da luta política a ser elaborada no processo da luta libertadora que os oprimidos tratam historicamente. Por essa razão é que não há receitas prontas e previsões de como acontecerá o processo político libertador, porém, existe a exigência radial do cultivo da dialogicidade para que juntos, possam superar as práticas que reproduzem a opressão por uma nova cultura essencialmente humanizadora (ZITKOSKI, 2007ZITKOSKI, J. A Pedagogia freireana e suas bases filosóficas. In: GHIGGI, Gomercindo, SILVEIRA, Fabiane; PITANO, Sandro. (Orgs.). Leituras de Paulo Freire. Pelotas: Seiva, 2007. p. 229-248. ). Além de uma política pedagógica dos oprimidos, a união dos diferentes é exigida na luta contra os antagonismos (FREIRE, 1995b______. A sombra desta mangueira. São Paulo: Olho d'água, 1995b. ). Essa estratégia precisa ser fundamental na luta política de libertação e superação da opressão e dominação existentes nas relações de gênero, vivências étnicas e, atualmente, na situação de desigualdade social reproduzida na questão ambiental, gerando injustiças diante do direito ao ambiente como bem comum (LOUREIRO, 2012LOUREIRO, C. F. B. Trajetória e fundamentos da educação ambiental. São Paulo: Cortez , 2012.a). Segundo Zitkoski (2007ZITKOSKI, J. A Pedagogia freireana e suas bases filosóficas. In: GHIGGI, Gomercindo, SILVEIRA, Fabiane; PITANO, Sandro. (Orgs.). Leituras de Paulo Freire. Pelotas: Seiva, 2007. p. 229-248. , p. 242):

a luta política dos oprimidos deve ser radicalmente solidária com todos os segmentos e, para que as diferentes luta de cada setor da sociedade se converta em uma articulação comum a todos rumo à transformação da sociedade, faz-se necessária uma leitura dialética (crítica e problematizadora) dos diferentes momentos do embate prático que incide contra as estruturas sociais opressoras.

Frente o jogo de forças do processo político histórico que produz o embate entre elites e classes populares, manutenção dos interesses das classes dominantes ou redemocratização do acesso aos direitos, surgirão novos contextos que exigirão novas lutas antagônicas da vida em sociedade. O que está em jogo é a permanente luta de classes historicamente determinada:

O que acontece é que luta é uma categoria histórica e social. Tem, portanto, historicidade. Muda de tempo-espaço. A luta não nega a possibilidade de acordos, de acertos entre as partes antagônicas (...). Há momentos históricos em que a sobrevivência do todo social, que interessa às classes sociais, lhes coloca a necessidade de se entenderem, o que não significa estarmos vivendo um novo tempo, vazio de classes e conflitos (FREIRE, 1994______. Pedagogia da Esperança. São Paulo: Paz e Terra, 1994., p. 43).

Existe uma ideia essencial que perpassa a análise das condições necessárias para o compromisso libertador: o trabalho de libertação não pode se inspirar em métodos que produziram a consciência alienada, a opressão. Para isso Freire indica a necessidade que a liderança libertadora estabeleça um diálogo crítico com os oprimidos. "O diálogo para Freire, implica na combinação da reflexão e da ação. Ele é a práxis pronunciante do mundo, com a qual os homens o transformam, ao mesmo tempo em que se humanizam" (BOUFLEUER, 1991BOUFLEUER, P. Pedagogia latino-americana: Freire e Dussel. Ijuí: UNIJUÍ, 1991. , p. 115).

A dimensão interdisciplinar

Os referenciais mais significativos que Freire nos deixou para a interdisciplinaridade apontam para:

- uma relação de interioridade entre política e educação; - a educação como produto de uma relação histórica e socialmente instituída e, portanto, politicamente alterável; - a introdução do conceito de educação dialógica, que se opõe à educação bancária e indica que o processo educacional não conduz necessariamente à reprodução do poder dominante; - a educação dominante como resultado das lutas políticas e sociais; - o educador e o educando como posições não-essenciais, não-inamovíveis e, portanto, suscetíveis de ser ocupadas por sujeitos sociais distintos; - o estudo das particularidades do tecido político-pedagógico como objetos de interesse para toda pedagogia democrática (PUIGGRÓS, 2000PUIGGRÓS, A. Paulo Freire do ponto de vista da interdisciplinaridade. In: STECK, D., et al (Orgs.). Paulo Freire: ética, utopia e educação. Rio de Janeiro: Vozes , 2000. p. 95-111. , p. 109).

Numa conversa com alunos da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), em 1995, Freire assinalou: "Dizem que eu sou pesquisador, dizem que eu sou educador, dizem que eu sou filósofo, que eu sou isso, sou aquilo. No fundo, eu sou um pouco essas coisas todas" (FREIRE, 1995a, p. 20). Fica constado que o autor não se considerava um especialista nesses e noutros campos do saber. Embora, sua frase realizada de forma modesta possui duas verdades: primeira, Freire sempre foi um leitor rigoroso de várias obras de distintos campos do pensamento que lhe deram luzes para sua prática político-pedagógica; e segunda, sempre foi preocupado com as dimensões psicológicas, antropológicas, ontológicas, econômicas, políticas e pedagógicas vistas em sua Pedagogia do Oprimido (ANDREOLA, 2000______. A Interdisciplinaridade na obra de Paulo Freire: uma pedagogia da simbiogênese e da solidariedade. In: STECK, D. et al (Orgs.). Paulo Freire: ética, utopia e educação. Rio de Janeiro: Vozes, 2000.). A interdisciplinaridade como prática foi uma preocupação de Freire desde os tempos do Recife, até seus trabalhos como Secretário de Educação de São Paulo, pois o posicionamento interdisciplinar do currículo escolar e de todo o processo de conhecimento foi um dos elementos centrais durante a sua gestão. A Educação na cidade (1995a, p. 37) expõe que todo o planejamento enquanto gestor público foi realizado por meio de equipes interdisciplinares: "A interdisciplinaridade é estabelecida por Freire, como requisito para uma visão social da realidade" (ANDREOLA, 2010, p. 229).

Em Pedagogia do Oprimido, a metodologia de investigação dos temas geradores seria realizada por equipes interdisciplinares: "A sua última etapa se inicia quando os investigadores, terminadas as decodificações nos círculos, dão começo ao estudo sistemático e interdisciplinar de seus achados" (FREIRE, 1993aFREIRE, P. Pedagogia do Oprimido. São Paulo: Paz e Terra, 1993a. , p. 114). Noutra obra, Educação como prática de liberdade, ao descrever a investigação do universo vocabular como etapa previa à alfabetização, Freire reitera que o trabalho deve ser realizado por uma equipe de educadores e cientistas sociais, em aproximação com os alfabetizandos, num trabalho interdisciplinar. Na metodologia interdisciplinar surgiram experiências inovadoras em diferentes contextos culturais e geográficos, como a pesquisa do Instituto Oecuménique au service du Développement des Peuples (INODEP) de Paris e a experiência de pesquisa e de currículo interdisciplinar (ANDREOLA, 2010ANDREOLA, B. Interdisciplinaridade. In: STECK, D; REDIN, E; ZITKOSKI, J. (Orgs.). Dicionário Paulo Freire. São Paulo: Autêntica, 2010. p. 229-230. ), descrita no livro Vivendo e aprendendo: experiências do IDAC em educação popular. É um curso de 150 horas, fruto da luta social do movimento operário italiano, e realizado com a colaboração do IDAC de Genebra. Seus temas geradores constituem um paradigma interdisciplinar para a pesquisa, para a integração dos diferentes campos científicos e para a organização dos currículos escolares. A metodologia, os temas geradores e a concepção interdisciplinar surgiram da luta dos trabalhadores e da discussão dos educadores não sendo um pacote, cuja ideia havia sido recusada por Freire (1983, p. 26-27) naquela ocasião e pela equipe do curso ao afirmarem a interdisciplinaridade para a pesquisa na perspectiva dos temas geradores, o que segundo a equipe:

favorece uma aquisição interdisciplinar de conhecimentos, tocando tanto matérias que pertencem ao currículo da escola secundária (como a história, a geografia e as ciências) quanto matérias que não constam no currículo, mas são de grande interesse dos trabalhadores (como a economia, a sociologia, o direito, noções básicas de saúde etc.). A atividade de pesquisa permite, ainda, a utilização de especialistas em diferentes setores externos à escola (sindicatos, professores e estudantes universitários, economistas, historiadores, juristas etc.).

Segundo Freire (1993aFREIRE, P. Pedagogia do Oprimido. São Paulo: Paz e Terra, 1993a. ) a interdisciplinaridade é o processo metodológico de construção do conhecimento pelo sujeito com base em sua relação com o contexto, com a realidade, com sua cultura. Busca-se a expressão dessa interdisciplinaridade pela caracterização de dois movimentos dialéticos: a problematização da situação pela qual se desvela a realidade e a sistematização dos conhecimentos de forma integrada. A interdisciplinaridade pensada por Freire é:

requisito para uma visão da realidade das perspectivas da unidade, da globalidade e da totalidade. (...). Tanto na dimensão histórica (tempo) quanto na geográfica (espaço), os temas surgem da concretude de situações limite, ligadas a aspectos específicos da realidade (sociais, econômicos, psicológicos, culturais, políticos etc.), cuja compreensão não pode ser dada apenas através do conhecimento restrito da subárea específica (ANDREOLA, 2000______. A Interdisciplinaridade na obra de Paulo Freire: uma pedagogia da simbiogênese e da solidariedade. In: STECK, D. et al (Orgs.). Paulo Freire: ética, utopia e educação. Rio de Janeiro: Vozes, 2000., p. 71).

Não podemos denominar a construção de Freire como uma pedagogia pura, nem como um recorte sociológico, nem como uma filosofia. Ele está situado em outro lugar teórico, num lugar teórico de múltiplas articulações (PUIGGRÓS, 2000PUIGGRÓS, A. Paulo Freire do ponto de vista da interdisciplinaridade. In: STECK, D., et al (Orgs.). Paulo Freire: ética, utopia e educação. Rio de Janeiro: Vozes , 2000. p. 95-111. ). Freire não chega a uma posição interdisciplinar de forma artificial, porém quer desvelar os problemas fundantes da posição interdisciplinar que é das categorias que ele mesmo traz para explicar suas propostas pedagógicas. De acordo com Puiggrós (2000PUIGGRÓS, A. Paulo Freire do ponto de vista da interdisciplinaridade. In: STECK, D., et al (Orgs.). Paulo Freire: ética, utopia e educação. Rio de Janeiro: Vozes , 2000. p. 95-111. , p. 110), Freire produziu um campo interdisciplinar de duas formas:

colocando como centro do problema e priorizando a análise crítica em relação à escolha de categorias. Na operação freireana, está última passou a ser resultado de uma busca precisamente para resolver problemas. Essa era uma posição rara há duas décadas, quando os intelectuais seguiam de modo geral o caminho inverso: buscar problemas que se adaptassem às categorias constituídas dos modelos que não admitiam alteração.

Sendo assim, podemos compreender a relação Freire e interdisciplinaridade desta maneira:

O elemento decisivo na opção interdisciplinar de Freire, entretanto, é a centralidade que atribui ao sujeito da educação e sua compreensão do caráter complexo desse sujeito. (...). Freire compreendeu que o trabalhador rural brasileiro não era uma condensação de suas múltiplas condições de existência e que sua consciência, longe de ser um campo plano e suscetível de adaptar-se a conteúdos estranhos, era constituída por mecanismos provenientes da própria raiz político-cultural. Para Freire, a relação pedagógica torna-se uma situação em que a produção de articulações entre a cultura do educador e a do educando é conflituosa, necessariamente conflituosa. E Freire nos deixa pensando nas enormes virtudes desse conflito, do fato de que a transmissão sempre encontre obstáculos e que sua completude seja impossível, para garantir uma das mais profundas raízes da democracia, a saber, que cada geração seja capaz de negar parte do legado que recebe e de produzir algo novo (PUIGGRÓS, 2000PUIGGRÓS, A. Paulo Freire do ponto de vista da interdisciplinaridade. In: STECK, D., et al (Orgs.). Paulo Freire: ética, utopia e educação. Rio de Janeiro: Vozes , 2000. p. 95-111. , p. 110-111).

Aproximações político-pedagógicas da interdisciplinaridade freireana para a EA Crítica

Educação Ambiental Crítica é aquela que:

em síntese, busca pelo menos três situações pedagógicas: a) efetuar uma consistente análise da conjuntura complexa da realidade a fim de ter os fundamentos necessários para questionar os condicionantes sociais historicamente produzidos que implicam a reprodução social e geram a desigualdade e os conflitos ambientais; b) trabalhar a autonomia e a liberdade dos agentes sociais ante as relações de expropriação, opressão e dominação próprias da modernidade capitalista; c) implantar a transformação mais radical possível do padrão societário dominante, no qual se definem a situação de degradação intensiva da natureza e, em seu interior, da condição humana (LOUREIRO; LAYRARGUES, 2013LOUREIRO, C.F.B; LAYRARGUES, P. Ecologia Política, Justiça e Educação Ambiental Crítica: perspectivas de aliança contra-hegemônica. Trab.Educ. Saúde, Rio de Janeiro,v.11 n.1,p.53-71,jan./abr.2013., p. 64).

A contribuição político-pedagógica da interdisciplinaridade de Freire oferece importantes elementos que se relacionam com a Educação Ambiental Crítica:

o pensamento pedagógico freiriano é um legado que inspira diferentes experiências de educação progressista, que buscam trabalhar na perspectiva da emancipação social a partir dos oprimidos. Nesse sentido, a Pedagogia do Oprimido é uma obra coletiva. Não é mais um escrito só de Freire, mas um pensamento que corporifica no processo histórico dos povos em suas lutas de libertação. É uma pedagogia engajada nos processos de emancipação social e, como tal, provoca reações e retaliações no status quo vigente (STRECK; REDIN; ZITKOSKI, 2010______. Paulo Freire: uma breve cartografia intelectual. In: STRECK, D; REDIN, Euclides; ZITKOSKI, J. (Orgs.). Dicionário Paulo Freire. Belo Horizonte: Autêntica, 2010. p. 15-22., p. 19).

Ao destacar à práxis educativa, crítica e dialógica, é necessário estruturar processos participativos que favoreçam a superação das relações de poder consolidadas e garantir o exercício da cidadania, principalmente daqueles que se encontram em situação de maior vulnerabilidade socioambiental. É neste ponto que a pedagogia de Freire tem muito a contribuir para uma compreensão emancipatória destes processos sociais. Tendo por base a pedagogia de Freire, a abordagem ambiental sob o enfoque da justiça ambiental e da educação ambiental crítica na América Latina não pode ignorar sua crítica à sociedade capitalista, como também a defesa do respeito aos povos, países e regiões cujas populações vivem em condições subumanas. Segundo Porto-Gonçalves (2012, p. 26-27):

Muito embora correntes hegemônicas da esquerda marxista tivessem, de início, criticado o ecologismo, o fato é que diferentes movimentos sociais, sobretudo na América Latina, começaram a assimilar a questão ambiental à sua agenda política. Junto com esses movimentos se desenvolveram importantes correntes teórico-políticas no campo ambiental: a "ecologia popular", o 'ecologismo dos pobres' e o eco-socialismo - onde se destacaram intelectuais como o líder seringueiro Chico Mendes, assim como o epistemólogo mexicano Enrique Leff, o economista catalão Joan Martinez Alier que tem fortes ligações com movimentos sociais latino-americanos, o antropólogo colombiano Arturo Escobar, o biólogo e antropólogo mexicano Victor Toledo, o sociólogo marxista brasileiro Michel Löwy, entre tantos. Essa contribuição teórica-política é tão importante para compreender os complexos processos sócio-históricos que estão curso como são, ainda hoje, as teses de José Carlos Mariátegui elaboradas nos anos vinte do século passado, a Teoria da Dependência, sobretudo em sua vertente marxista (Rui Mauro Marini e Theotonio dos Santos), a Pedagogia do Oprimido (Paulo Freire), a Teologia da Libertação (Frei Beto, Leonardo Boff, Enrique Dussel), assim como o Pensamento Descolonial (desde Franz Fanon e Aimé Cesaire, ambos caribenhos, até o mexicano Pablo González Casanova, a aymara-boliviana Silvia Rivera Cusicanqui e o peruano Aníbal Quijano).

A EA crítica considera de modo integrado as relações sociais e ecológicas. Suas bases éticas e antropológicas colaboram e cimentam a negação da opressão como "naturalização das relações" (PERALTA; RUIZ, 2004PERALTA, J; RUIZ, J. Educação popular ambiental. Para uma pedagogia da apropriação do ambiente. In: LEFF, E. (Coord.). A complexidade ambiental. São Paulo: Cortez , 2004. p. 241-280.), entendendo que as relações sociais alienadas no capitalismo determinam as relações de estranhamento com a natureza e a ideologia que prega a cisão sociedade-natureza. É o contexto social e econômico que determina as formas de expropriação e dominação, sendo possível transformá-lo, mas com a condição de que cada sujeito e grupo social se transformem em sujeitos históricos conscientes de sua real condição de alienação no marco de uma sociedade desigual e constituída, portanto, em classes.

Dentro dessas premissas básicas que situam o debate ambiental na América Latina, cabe o questionamento: qual a contribuição efetiva de Freire? A leitura e compreensão do mundo elaborada por este pensador é a possibilidade de tomar o destino nas próprias mãos. É a possibilidade de construir outro projeto societário, por meio da educação.

As bases político-pedagógicas da interdisciplinaridade em Freire (1993aFREIRE, P. Pedagogia do Oprimido. São Paulo: Paz e Terra, 1993a. ), para a educação ambiental crítica, auxiliam na adoção de estratégias políticas dirigidas à emancipação/libertação inscritas nos marcos de um processo de radicalização da questão social, sendo contrários a lógicas neoliberais hegemônicas, próprias da feição que o capitalismo assume na América Latina em sua matriz colonial. Sua contribuição põe em evidência os fundamentos filosófico-políticos na sua teoria do conhecimento e ação no mundo, a denominada educação libertadora, educação como atividade em que os sujeitos, educadores e educandos, mediatizados pelo mundo educam-se em comunhão (TOZONI-REIS, 2006TOZONI-REIS, M. Temas ambientais como "temas geradores": contribuições para uma metodologia ambiental, crítica, transformadora e emancipatória. Educar, Curitiba, n. 27, 2006. p. 93-110. ). É a conscientização, o processo de conhecimento da realidade vivida, real e concretamente vivida pelos sujeitos os quais têm as possibilidades de emergir no conhecimento de sua própria condição, de sua própria vida. Para Freire (1993a), a educação não é a garantia das transformações sociais, mas as transformações são impossíveis sem ela, sem uma visão crítica da realidade.

Freire, num dos subtítulos do primeiro capítulo de sua Pedagogia do Oprimido (1993, p. 52), revela que: "Ninguém liberta ninguém, ninguém se liberta sozinho: os homens se libertam em comunhão". A Pedagogia da Libertação e sua expressão Ética Universal do Ser Humano surgem de um processo histórico de libertação dos povos latino-americanos, expresso também em outras formulações teórico-metodológicas, como a Filosofia da Libertação ou Ética da Libertação, a Teologia da Libertação, o Teatro do Oprimido de Augusto Boal e dos Movimentos de Educação e de Cultura Popular (ANDREOLA, s/d). A Pedagogia do Oprimido de Freire tem seu projeto histórico-político, pertencente à humanidade, dada a sua universalização. Dessa forma, a Pedagogia do oprimido é um projeto coletivo que se assumido com liberdade e criatividade visa um projeto de emancipação. É um projeto pedagógico de libertação, uma práxis revolucionária em um projeto baseado na conscientização que toma conotação eminentemente política, transformando-se numa relação que deve ser superada. A libertação social e política estão dialeticamente relacionadas, sendo compreendidas no processo de vir-a-ser superado na contradição opressor-oprimido. Nesse sentido, a Pedagogia do oprimido colabora no debate interdisciplinar por ser uma pedagogia do ser humano nas mais diversas e complexas relações. Isto é, o educador tem de agir na práxis, e para tal precisa ser educado/educar/educar-se, não lhe sendo suficiente o simples contato distanciado com aqueles aos quais se destina sua tarefa. E é nesse horizonte que o pensamento de Freire possui reconhecimento em suas premissas políticas que se tornam essenciais para a educação ambiental:

Educação Ambiental é dimensão da educação, é atividade intencional da prática social, que imprime ao desenvolvimento individual um caráter social em sua relação com a natureza e com os outros seres humanos, com o objetivo de potencializar essa atividade humana, tornando-a mais plena de prática social e de ética ambiental. Essa atividade exige sistematização através de metodologia que organize os processos de transmissão/apropriação crítica de conhecimentos, atitudes e valores políticos, sociais e históricos. Assim, se a educação é mediadora na atividade humana, articulando teoria e prática, a educação ambiental é mediadora da apropriação, pelos sujeitos, das qualidades e capacidades necessárias à ação transformadora responsável diante do ambiente em que vivem. Podemos dizer que a gênese do processo educativo ambiental é o movimento de fazer-se plenamente humano pela apropriação/transmissão crítica e transformadora da totalidade histórica e concreta da vida dos homens no ambiente (TOZONI-REIS, 2004______. Educação ambiental: natureza, razão e história. Campinas, São Paulo: Autores Associados, 2004. , p. 147).

Nestes termos, em nenhuma das aproximações com a EA crítica Freire pode ser assumido de forma fragmentada e desconexa da realidade. O tema central de sua reflexão para a EA crítica é a educação numa perspectiva político-social de totalidade, na ótica de um projeto global de transformação de uma nova sociedade. Igualmente, a interdisciplinaridade na EA crítica não é somente uma preocupação acadêmica. Se nos isolamos na especificidade dos diferentes campos, o real resultará fragmentado, e a totalidade enquanto pressuposto primordial do método crítico e a compreensão ontologicamente dialética da unidade sociedade-natureza se esvaziam na práxis educativa:

a fidelidade à concretude do existencial, do singular, do histórico, do situado e datado, do cotidiano do mundo vivido foi uma preocupação de Freire, em toda a sua práxis político-pedagógica e em toda a sua obra escrita. Isto ele o expressou na teoria e metodologia dos temas geradores. Por outro lado, porém, levado pela sua vocação ontológica, existencial e histórica para o diálogo, buscou sempre, na metodologia do trabalho intelectual e pedagógico, bem como na sua estratégia política de construção do novo, viver pessoalmente e estabelecer, como um dos eixos de sua obra, a abertura curiosa a e comunicação séria, respeitosa e amorosa com todas as formas e todos os campos do saber (ANDREOLA, 2000______. A Interdisciplinaridade na obra de Paulo Freire: uma pedagogia da simbiogênese e da solidariedade. In: STECK, D. et al (Orgs.). Paulo Freire: ética, utopia e educação. Rio de Janeiro: Vozes, 2000., p. 88).

Considerações Finais

A pedagogia freireana tem seu ponto de partida radical para não cair em históricas traições do processo de libertação que acabam em posturas reformistas e que não transformam a lógica de dominação. Relacionar a EA crítica e a interdisciplinaridade dentro deste horizonte significa pontuar que "Nenhuma pedagogia realmente libertadora pode ficar distante dos oprimidos, quer dizer, pode fazer deles seres desditados, objetos de um 'tratamento' humanitarista, para tentar, através de exemplos retirados de entre os opressores, modelos para a sua 'promoção'. Os oprimidos hão de ser os exemplos para si mesmos, na luta por sua redenção (FREIRE, 1993aFREIRE, P. Pedagogia do Oprimido. São Paulo: Paz e Terra, 1993a. , p. 41). Freire se constitui como um dos grandes pensadores não apenas para o diálogo ambiental crítico a partir da premissa interdisciplinar, mas também do diálogo intercultural à luz da realidade de exclusão vivenciada pelos povos da América Latina. Trata-se de um conhecimento que resulta numa interação humana planetária e ecológica. Planetária como criação e patrimônio de todos; Ecológica enquanto ciência da casa destinada a reconstruir o planeta não como uma bolsa de valores, porém como a casa humana onde à mesa que é posta ninguém seja excluído na hora de servir o alimento.

Para uma interdisciplinaridade elaborada a partir do pensamento freireano para a EA crítica assinalamos que ela deve partir das situações reais dos próprios oprimidos que lutam e vivenciam sua sobrevivência no projeto societário capitalista em busca de construção de outra sociedade, engajando na lua de humanização do mundo e da natureza. Desse modo, os aspectos político-pedagógicos de Freire para a EA crítica são amplas, pois trouxe o debate para o campo educacional apoiado em categorias como totalidade, contradição, práxis, dialética, dialógica, e numa reflexão intensamente crítica sobre a sociedade capitalista. Pensou a dominação de modo complexo e trabalhou no desenvolvimento de uma pedagogia que superasse as relações sociais vigentes pelo processo de conscientização, construção coletiva e intersubjetiva do conhecimento, ação dialógica e política com as classes populares.

Por fim, insistimos que a interdisciplinaridade de Freire é uma referência fundamental para a EA crítica porque constitui uma porta de entrada teórica para quem se inicia no campo, em função da dimensão problematizadora cujo potencial de rompimento definitivo com o senso comum já cristalizado de uma Educação Ambiental conteudista, normativa, acrítica e ideologicamente neutra. E porque oportuniza a EA que reconheça no pensamento freireano as possibilidades de enfrentamento e superação das formas de opressão, controle e poder autoritário, as condições político pedagógicas para o adensamento das forças sociais progressistas. "Sua simpatia pela educação ambiental, seu amor pela vida, seu conceito de educação tornam a pedagogia freireana um marco de referência para os educadores ambientais de todas as matrizes inseridas no campo crítico e emancipatório" (LOUREIRO, 2006______. Educação Ambiental e "Teorias críticas". In: GUIMARÃES, M (Org.). Caminhos da educação ambiental. Campinas: Papirus, 2006. p. 51-86. , p. 60).

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Jan-Apr 2017

Histórico

  • Recebido
    18 Jul 2016
  • Aceito
    13 Out 2016
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