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As lutas feministas e sua articulação pelas mídias digitais: percepções críticas

Feminist struggles and their articulations by digital media: critical perceptions

Resumo

Este artigo é uma reflexão sobre as potencialidades do uso das Tecnologias de Informação e Comunicação (TICs) destacando as mídias digitais como instrumento das lutas feministas. Estas plataformas virtuais ampliam o alcance das discussões das pautas feministas, paradoxalmente permitem ataques de movimentos e manifestações contrárias. O que ressaltamos é a importância fundamental do uso destes instrumentos de comunicação para o processo de mobilização popular, estratégia indispensável para a luta política, em que pesem as diferentes formas de comunicação possibilitadas pela Internet, sua visibilidade e seu alcance. Os desdobramentos podem ser percebidos mediante as frequentes manifestações sociais brasileiras materializando as articulações estabelecidas por essas linguagens digitais.

Palavras-chave:
Feminismo; Mídias Digitais; Lutas Sociais

Abstract

This work looks upon the different possibilities of Information and Communication Technologies (ICT) highlighting the social media as tools for the feminist movement. Those virtual tools broad the horizon and reach of the feminist agenda but, also, allow attacks from the opposite direction. We emphasize the fundamental importance of these social tools as engaging instruments for the popular mobilization, they are imperative for the political fight, considering the massive visibility and reach the Internet has. The developments can be seen through the frequent Brazilian social manifestations materializing the articulations established by these digital languages.

Keywords:
Feminism; Digital Media; Social Struggles

Introdução

Entendemos urgente e necessário articular a temática das mídias sociais e o Serviço Social, visto que a ação profissional tem como principal instrumento de seu exercício a linguagem e, portanto, a comunicação. Além disso, é importante buscar compreender a relação estabelecida na contemporaneidade entre as ferramentas digitais e sua apropriação pelos sujeitos coletivos. Percebendo essa ampla possibilidade de análise e pensando na forma de articulação das lutas coletivas contemporâneas, propomos e temos como intenção apontar a articulação da temática, mídias digitais à forma da luta feminista na atualidade.

Destacando a particularidade brasileira, nosso objetivo é perceber como essa articulação pode indicar avanços, mas também apresentar desafios para a luta de mulheres. Avanços que se expressam por meio da ampliação das discussões propostas pela pauta feminista e a divulgação de suas ações. Quanto aos desafios, podemos indicar o estabelecimento de confrontos de grupos contrários e conservadores ao movimento feminista expresso em opiniões e ações preconceituosas, que resultam em reações patriarcais violentas contra seus corpos e vidas. Esse conservadorismo sobretudo, se materializa na política formal. Aludimos às ações do poder legislativo brasileiro e suas formulações em relação ao cerceamento dos direitos das mulheres; sexuais, reprodutivos e trabalhistas. A agenda política que reforça estigmas patriarcais como o Estatuto do Nascituro (BRASIL, 2007), o Estatuto da Família (BRASIL, 2013b) o veto ao Programa Escola sem Homofobia (BRASIL, 2004) são alguns exemplos.

Asseguramos a importância da análise conjuntural, onde o avanço do conservadorismo vem ganhando proporções que demandam articulações diversas da classe trabalhadora. E percebendo no movimento feminista um projeto emancipador das mulheres da classe trabalhadora, e que mesmo diante do avanço conservador tem se fortalecido. Buscamos problematizar as formas pelas quais esse ativismo tem se constituído mediado pelas novas ferramentas de comunicação associadas às novas tecnologias e potencializadas pelas mídias digitais e sociais. Concretizaremos a análise através de experiências atuais registradas em artigos e livros sobre a temática feminista.

Não queremos aqui desvincular o conceito de gênero da materialidade das relações sociais e da dimensão contraditória entre capital e trabalho. Entendemos que a condição de classe é o determinante para experienciar as opressões vivenciadas pelos sujeitos. Nesse sentido, não só a condição de gênero será lida por este trabalho de forma historicamente determinada e articulada, mas também os mecanismos utilizados em suas lutas. As formas de comunicação contemporâneas, pois ambas são determinadas nas e pelas relações sociais contraditórias da produção e reprodução social do modo capitalista de produzir.

A possibilidade de potencializar e dar ressonância as luta coletivas tem tornado as Novas Tecnologias de Informação e Comunicação (TICs) importantes ferramentas de lutas coletivas. O desafio na contemporaneidade, no entanto, é estabelecer o diálogo e não o confronto mediante sentimentos raivosos que se travestem em indignação contra as instituições tradicionais da democracia representativa. Encontrar formas e instrumentos que ampliem os processos de participação popular e que minimizem os impactos de uma sociedade que convive com os atrasos e as restrições a uma democracia participativa são os objetivos dos apontamentos que se seguem.

Nesse sentido, metodologicamente buscamos investigar as estratégias comunicativas digitais por meio de uma perspectiva dialética e materialista. Organizamos o presente artigo da seguinte forma: inicialmente apresentamos algumas considerações teóricas sobre o conceito de gênero e a configuração das lutas feministas. Num segundo momento realizamos considerações sobre algumas experiências de mobilizações feministas que lançaram mão das mídias digitais e, por fim, estabelecemos uma reflexão sobre as possibilidades e potencialidades da articulação entre TICs e o ativismo feminista como estratégia de articulação da luta política.

Lutas Feministas

É na década de 1960 que o movimento feminista se configura como potência no enfrentamento e na análise crítica e ativista das relações entre homens e mulheres, numa perspectiva centrada nas mulheres e nas relações de gênero. E é no quadro do desenvolvimento intelectual das feministas acadêmicas, em meados dos anos 1970, que o conceito de gênero ganha contornos para explicar as desigualdades em relação às diferenças biológicas de sexo entre homens e mulheres. Esse conceito, no entanto, é dotado de diversas perspectivas que ligadas ao contexto histórico representava riscos ao próprio movimento feminista, visto as influências da teoria pós-moderna. A crise dos paradigmas, como aponta Cisne (2015CISNE, M. Gênero, divisão sexual do trabalho e serviço social. São Paulo: Outras Expressões, 2015., p. 86), demarca os riscos das análises das relações sociais baseadas no surgimento do conceito de gênero “ao enfatizar as relações de poder em detrimento da busca das determinações da dominação/exploração”.

Nesse sentido, Cisne (2014CISNE, M. Relações sociais de sexo, “raça”/etnia e classe: uma análise feminista-materialista. Temporalis, Brasília, DF, ano 14, n. 28, p. 133-149, jul./dez. 2014. Disponível em: http://periodicos.ufes.br/temporalis/article/view/7886. Acesso em: 20 jun. 2019.
http://periodicos.ufes.br/temporalis/art...
, p. 136) destaca a diferença entre os conceitos de gênero e relações sociais de sexo. O segundo advindo da escola feminista francesa tem seu significado atribuído à tradução da própria língua francesa, “o conceito de rapports sociaux de sexe é diretamente fundamentado no de relações sociais de classe”, visto que rapports em sua tradição diz respeito a relações mais amplas ao contrário da palavra relations que significa relações mais pessoais. De acordo com a autora:

Outra dimensão importante que merece destaque no conceito de rapports sociaux de sexe é que ele surge no início dos anos 1980, diretamente vinculado e em estreita conexão com os estudos sobre a divisão sexual do trabalho, categoria muito cara para os estudos feministas marxistas. Assim, podemos afirmar que a utilização do conceito de rapports sociaux de sexe, além de sublinhar a dimensão antagônica das classes, assegura o não esquecimento da centralidade do trabalho para os estudos feministas, como defende Kergoat (2008, 2010). Já com relação ao conceito de gênero, não podemos afirmar a mesma coisa, tendo em vista que, por vezes, sua utilização é destituída da noção de hierarquia entre os sexos e da de outras desigualdades estruturantes, como as de classe (CISNE, 2014CISNE, M. Relações sociais de sexo, “raça”/etnia e classe: uma análise feminista-materialista. Temporalis, Brasília, DF, ano 14, n. 28, p. 133-149, jul./dez. 2014. Disponível em: http://periodicos.ufes.br/temporalis/article/view/7886. Acesso em: 20 jun. 2019.
http://periodicos.ufes.br/temporalis/art...
, p. 137).

Para Saffioti (2015SAFFIOTI, H. Gênero, patriarcado, violência. São Paulo: Expressão Popular, 2015.), a utilização da categoria gênero apresenta limites pela extensão de seus significados, ou seja, ela não explicitaria diretamente a relação de opressão do sexo feminino:

Este conceito não se resume a uma categoria de análise, como muitas estudiosas pensam, não obstante apresentar muita utilidade enquanto tal. Gênero também diz respeito a uma categoria histórica, cuja investigação tem demandado muito investimento intelectual. Enquanto categoria histórica, o gênero pode ser concebido em várias instâncias: como aparelho semiótico (LAURETIS, 1987); como símbolos culturais evocadores de representações, conceitos normativos como grade de interpretação de significados, organizações e instituições sociais, identidade subjetiva (SCOTT, 1988); como divisões e atribuições assimétricas de característicos e potencialidades (FLAX, 1987); como, numa certa instância, uma gramática sexual, regulando não apenas relações homem-mulher, mas também relações homem-homem e relações mulher- mulher (SAFFIOTI, 1992, 1997b; SAFFIOTI; ALMEIDA, 1995) etc. Cada feminista enfatiza determinado aspecto do gênero, havendo um campo, ainda que limitado, de consenso: o gênero é a construção social do masculino e do feminino. O conceito de gênero não explicita, necessariamente, desigualdades entre homens e mulheres. Muitas vezes, a hierarquia é apenas presumida (SAFIOTTI, 2004, p. 44-45).

Pensando que uma análise crítica deve perpassar categorias como sexo, corpo, identidade, raça, nacionalidade e classe, esta reflexão pretende perceber a mulher nesta sociedade, portanto, é fundamental percebê-las em sua condição de subordinação e exploração na sociedade capitalista e que aponta para “a enorme necessidade de organização dessas mulheres para lutarem por uma nova ordem societária” (CISNE, 2015CISNE, M. Gênero, divisão sexual do trabalho e serviço social. São Paulo: Outras Expressões, 2015., p. 92).

O movimento feminista, portanto, deve abarcar em suas lutas e militância a mobilização política que contribua no sentido da construção da consciência da condição de vida de mulheres trabalhadoras, pois são elas as que mais sofrem neste modelo de sociedade com duplas jornadas de trabalho e em suas formas precarizadas, com as variadas formas de violência, entre outras. De outro modo:

É certo que o gênero não possui apenas sexo, mas possuiu raça, etnia, orientação sexual, idade etc. Essas diferenças e especificidades devem ser percebidas. No entanto, dentro desta sociedade, não podem ser vistas isoladas de suas macrodeterminações, pois, por mais que o gênero una as mulheres, a homossexualidade una gays e lésbicas, a geração una as(os) ou jovens etc., a classe irá dividi-las(os) dentro da ordem do capital. Em outras palavras, a classe irá determinar como essas mais variadas expressões de opressões irão ser vivenciadas por esses sujeitos. Com certeza, de modo bastante diferenciado entre a classe trabalhadora e a dominante (CISNE, 2015CISNE, M. Gênero, divisão sexual do trabalho e serviço social. São Paulo: Outras Expressões, 2015., p. 95-96).

É necessário fazer a separação do feminismo liberal apresentado pela grande parte da mídia tradicional e que se perpetua nas novas formas de comunicação digital e o verdadeiro feminismo. De acordo com o Manifesto: Feminismo para os 99% (2019), o feminismo liberal é parte do problema, em que um pequeno número de mulheres privilegiadas conseguiria escalar a hierarquia corporativa, e propõe uma visão de igualdade baseada no mercado. Segundo o manifesto, “o feminismo liberal se recusa firmemente a tratar das restrições socioeconômicas que tornam a liberdade e o empoderamento impossíveis para uma ampla maioria de mulheres” (ARRUZZA; BHATTACHARYA; FRASER, 2019ARRUZZA, C.; BHATTACHARYA, T.; FRASER, N. Feminismo para os 99%: um manifesto. São Paulo: Boitempo, 2019. , p. 37).

A proposta desse feminismo liberal estabelece uma igualdade frente a homens e mulheres de mesma classe, somente ascendem hierarquicamente mulheres que já possuem certa vantagem social, cultural e econômica. Esta perspectiva conforma com a estrutura crescente desigualdade e a perpetua, o feminismo liberal terceiriza a opressão. Sheryl Sandberg, diretora de operações do Facebook, representa exatamente esse feminismo corporativo a serviço do capitalismo:

[…] Sandberg e sua laia veem o feminismo como serviçal do capitalismo. Querem um mundo onde a tarefa de administrar a exploração no local de trabalho e a opressão no todo social seja compartilhada igualmente por homens e mulheres da classe dominante. Esta é uma visão notável da dominação com oportunidades iguais: aquela que pede que pessoas comuns, em nome do feminismo, sejam gratas por ser uma mulher, não um homem […]. (ARRUZZA; BHATTACHARYA; FRASER, 2019ARRUZZA, C.; BHATTACHARYA, T.; FRASER, N. Feminismo para os 99%: um manifesto. São Paulo: Boitempo, 2019. , p. 26).

O capitalismo se reproduz pela exploração do trabalho humano, sendo assim ele em sua estrutura produz e reproduz a opressão de gênero. De outra forma, essa opressão se configura na medida em que o capital necessita de força de trabalho, e a forma de produzir pessoas se liga ao papel da mulher, onde ela biologicamente cria a vida e mantém a capacidade vital dos membros familiares por meio de atividades do que chamamos reprodução social.

Nas sociedades capitalistas, o papel de fundamental importância da reprodução social é encoberto e renegado. Longe de ser valorizada por si mesma, a reprodução de pessoas é tratada como mero meio para gerar lucro. Como o capital evita pagar por este trabalho, na medida do possível, ao mesmo tempo que trata o dinheiro como essência e finalidade supremas, ele relega quem realiza o trabalho de reprodução social a uma posição de subordinação - não apenas para os proprietários do capital, mas também para trabalhadores e trabalhadoras com maior remuneração, que podem descarregar suas responsabilidades em relação a esse trabalho sobre outras pessoas. Essas “outras pessoas” são, em grande medida, do sexo feminino. Pois, na sociedade capitalista, a organização da reprodução social se baseia no gênero: ela depende dos papeis de gênero e entrincheira-se na opressão de gênero. A reprodução social é, portanto, uma questão feminista. No entanto, é permeada, em todos os pontos, pelas diferenças de gênero, raça, sexualidade e nacionalidade. (ARRUZZA; BHATTACHARYA; FRASER, 2019ARRUZZA, C.; BHATTACHARYA, T.; FRASER, N. Feminismo para os 99%: um manifesto. São Paulo: Boitempo, 2019. , p. 52, 53).

A proposta do feminismo não se relaciona com a busca por oportunidades iguais, mas se relaciona à luta anticapitalista:

Esse feminismo não se limita às “questões das mulheres” como tem sido tradicionalmente definido. Defendendo todas as pessoas que são exploradas, dominadas e oprimidas, ele tem como objetivo se tornar um fonte de esperança para a humanidade. É por isso que o chamamos feminismo para os 99% (ARRUZZA; BHATTACHARYA; FRASER, 2019ARRUZZA, C.; BHATTACHARYA, T.; FRASER, N. Feminismo para os 99%: um manifesto. São Paulo: Boitempo, 2019. , p. 26).

Uma análise dialética do movimento feminista na contemporaneidade deve articular os aspectos econômicos, políticos e sociais dessas lutas. É situando o movimento de mulheres e suas lutas no bojo das contradições entre capital e trabalho, das contradições entre as classes sociais e do jogo de forças daí resultantes, e que se expressa nas desigualdades sociais, é que perceberemos sua significativa importância para o processo de emancipação humana. Nesse sentido, apontamos como significativo a análise sobre a forma como as lutas de mulheres se articula na contemporaneidade. Principalmente sobre a forma expressiva que a mobilização de mulheres tem se desenvolvido através dos instrumentos de comunicação digital.

Mídias Digitais

Com o advento da tecnologia móvel é inegável que necessitamos de análises críticas sobre as formas tecnológicas utilizadas em nosso cotidiano, assim como análises sobre o emprego das novas tecnologias como ferramentas para reivindicações e articulações dos sujeitos em seus movimentos sociais. Atentando para seus limites e possibilidades em relação aos próprios sujeitos e em relação à sociedade. Entender sobre a dinâmica do uso da comunicação pela Internet é urgente visto os desdobramentos políticos e sociais desde o golpe institucional de 2016 e as estratégias de campanhas políticas que se estabeleceram por meio de mensagens e conteúdos digitais falsos.

Atualmente alguns instrumentos de comunicação, tais como sites, redes sociais, blogs, enfim, toda forma de comunicação que se estabeleça por conteúdo transitado pelo uso da Internet possibilita e amplia as formas de acesso a conteúdo e a trocas de informações. As chamadas Tecnologias de Informação e Comunicação (TICs) alteram a forma de comunicação pública, visto a capacidade de maior agilidade e maior amplitude de usuários conectados em rede. Estas novas formas de comunicação protagonizam o consumo de informações e desinformações que sustentam e mantém a lógica das hegemonias midiáticas tradicionais, mas, ao mesmo tempo, possibilitam espaço para que os sujeitos as utilizem como ferramentas que potencializem as lutas sociais.

Sem dúvida, a presença das lutas feministas por meio desses canais e instrumentos de informação asseguram uma maior e melhor visibilidade do movimento no mundo. No entanto, ressaltamos um duplo movimento presente na contradição mesma do uso destes meios, a ampliação do conservadorismo e negação/resistência ao movimento. A estratégia da utilização das mídias sociais pelos movimentos sociais, mesmo percebendo seus limites não diminui a importância da análise do fenômeno, visto seu potencial mobilizador e articulador.

É necessário perceber as potencialidades do uso das mídias sociais na contemporaneidade, onde as relações de comunicação se tornam mais dinâmicas, dadas suas características de interatividade e massividade. Elas amplificam experiências e abordagens, no entanto, devemos considerar todo o fenômeno por uma perspectiva de análise crítica:

[…] a abordagem da questão das “redes sociais” deve considerar os nexos existentes, a fim de percebê-la numa totalidade, decifrando as forças políticas em presença no debate sobre comunicação pública, principalmente no que tange à regulação da internet no Brasil e no mundo. Não há dúvidas, como aponta Bianco (2005), de que a revolução tecnológica tem alterado a experiência de mundo, assim como a Revolução Industrial modificou as relações técnicas de produção, modificando as relações sociais e de poder (FIGUEIREDO, 2013FIGUEIREDO, K. A. Serviço Social, linguagem e comunicação pública: desafios na contemporaneidade. In: RODA DE CONVERSA SERVIÇO SOCIAL E COMUNICAÇÃO, REDES SOCIAIS, LINGUAGEM E POLÍTICA, 2013, Minas Gerais. Anais [...]. Minas Gerais: CRESS, 2013. p. 01-10., p. 6).

A rede de computadores conhecida como Internet, e que possibilita estas formas de interação, está sobre o controle e regulação de países específicos e que possuem grande desenvolvimento tecnológico, como Estados Unidos1 1 “Atualmente, a Internet está controlada pela empresa da Califórnia ICANN (Internet Corporation for Assigned Names and Numbers), a qual administra a Rede e atribui, por exemplo, os nomes de domínio (o .es da Espanha). Desde novembro de 1998 essa empresa está sob a tutela do Departamento de Comércio norte-americano, segundo consta em um acordo assinado entre o ICANN e o Governo dos Estados Unidos [...]”. (RAMONET, 2005). e União Europeia (RAMONET, 2005RAMONET, I. Quem controla a Internet? Carta Maior, [S.l.], 09 out. 2005. Disponível em: https://www.cartamaior.com.br/?/Coluna/ Quem-controla-a-Internet-/20001. Acesso em: 14 jun. 2019.
https://www.cartamaior.com.br/?/Coluna/ ...
). É importante destacar que as informações veiculadas pela Internet são estratégicas, visto que seu controle perpassa por um número pequeno de grandes conglomerados que atendem a interesses comerciais e que conferem privilégios aos interesses do grande capital. Ter essa percepção é fundamental para pensar a democratização da comunicação digital como estratégia de luta da classe trabalhadora2 2 “Quanto ao acesso de mulheres à rede, segundo Ferreira (2015), dados do IBGE de 2013 mostraram que a proporção de internautas mulheres, no país, passou de 49,2%, em 2012, para 50,1%, em 2013. Ainda de acordo com a pesquisa de Ferreira, as mulheres representam 51,9% do total de internautas e, quanto maior a idade, maior são as diferenças de acesso a favor das mulheres”. (COELHO, 2016, p. 220). .

A revolução que a Internet proporciona no âmbito da comunicação reconfigurou, contudo, a percepção do espaço e as características geopolíticas desta sociedade. A teoria de Harvey (2017HARVEY, D. Condição pós-moderna. São Paulo: Edições Loyola, 2017.) nos auxilia a refletir sobre as novas experiências relacionadas ao tempo e ao espaço o que ele denomina de um novo ciclo de compressão do tempo-espaço na organização do capitalismo. As categorias de tempo e espaço para o autor são essenciais para entendermos as relações humanas nesse estágio do capitalismo, especialmente no que concerne aos efeitos da acumulação flexível que fragmenta e dispersa o processo produtivo, que descarta a mão de obra humana em favor da tecnologia e que suprime fronteiras espaciais e temporais, mudanças que denominou de compressão espaço tempo.

Entendemos que essa forma de comunicação reduz ainda mais as distâncias que já haviam sido reduzidas com a televisão e o telefone, e que elas criam ao mesmo tempo, possibilidades mesmo que virtuais de aproximação entre os sujeitos. E que só entendendo o espaço pela forma de sua produção

material, podemos perceber tensões e contradições frente ao conceito de ciberespaço3 3 “O termo ciberespaço foi criado pelo escritor de ficção científica William Gibson, sendo projetado em seu livro Neuromancer, de 19845. Nesse, o autor trata de um real que se constitui por meio do engendramento de um conjunto de tecnologias, enraizadas de tal forma na vida em sociedade que lhe modifica as estruturas e princípios, transformando o próprio homem, que de sujeito histórico torna-se objeto de uma realidade virtual que os conduz e determina” (GONTIJO et al., 2007, p. 3). “ ambiente virtual que utiliza dos aparatos de comunicação para o estabelecimento de relações virtuais em contraposição ao de território.

Tendo o espaço como categoria de análise social, compreendemos o conceito de território como o lócus que abriga todos os homens e instituições, e se distingue quanto ao seu uso e interesse. O território se configura como uma categoria mediadora das conjunturas históricas e onde se afirma o homem lento, categoria políticofilosófica criada pelo geógrafo Milton Santos (1994 apud RIBEIRO, 2005RIBEIRO, A. C. T. Território usado e humanismo concreto: o mercado socialmente necessário. In: SILVA, C. A. et al. Formas em crise: utopias necessárias. Rio de Janeiro: Arquimedes, 2005.). Para este autor, o homem lento é aquele que desvenda os recursos indispensáveis à vida. Este conceito diz respeito ao homem comum, ao homem do cotidiano, porém, para Ribeiro (2005RIBEIRO, A. C. T. Território usado e humanismo concreto: o mercado socialmente necessário. In: SILVA, C. A. et al. Formas em crise: utopias necessárias. Rio de Janeiro: Arquimedes, 2005., p. 5) repousam nele “as potencialidades mediadoras do território” é a ele que se abrem as possibilidades de resistir a fragmentação identitária imposta globalmente por meio da “ação espontânea “ organizada pela reiteração de valores “ que, com frequência, sustenta lutas de apropriação do território”.

Ressaltamos que as lutas sociais só podem ser compreendidas frente à densidade da vida social que se apresenta nos territórios concretos, local de produção e reprodução da vida. Ao contrário da observação da crescente valorização do ciberespaço como lócus de uma nova política. Afirmamos, no entanto, que é na rua, nos territórios onde se desdobram as vivências dos sujeitos e suas possibilidades de ação políticas que encontramos o lócus legítimo de desenvolvimento das lutas sociais.

O que não torna menor a identificação e análise das formas de participação, organização, mobilização e conscientização estabelecidas pelas redes da Internet. Logo, para mobilizar para as lutas, os movimentos sociais fazem uso das redes sociais e das mídias digitais. O que ressaltamos nesta reflexão é a importância fundamental para o processo de mobilização popular, através do uso destes instrumentos de comunicação. Estratégia indispensável para a luta política, em que pesem as diferentes formas de comunicação possibilitadas pela Internet, assim como pelo seu alcance. Os desdobramentos do uso desses instrumentos podem ser facilmente percebidos mediante as frequentes manifestações contemporâneas na sociedade brasileira que materializam as articulações estabelecidas por essas linguagens digitais.

Primeiramente é necessário um aprofundamento sobre como é estabelecido o uso da Internet na nossa particularidade. O poder executivo brasileiro apresentou um projeto de lei à Câmara em 2011 e teve aprovação no ano de 2014 sob a Lei de nº 12.965/2014, o chamado Marco Civil da Internet, que regula o uso, estabelece princípios, garantias, direitos e deveres para os usuários da rede, assim como estabelece diretrizes para as formas de atuação do Estado (BRASIL, 2014). O fundamento da Lei tem como determinante o respeito à liberdade de expressão, porém, trata também da neutralidade, privacidade, responsabilização civil a usuários e provedores e trata da função social da rede (BRASIL, 2014). Acreditamos que essa função social, estabelecida na legislação como a transmissão de conhecimento, se estabeleça mediante as diversas formas de linguagem comunicacional que a rede proporciona.

Como ferramenta de acesso ao conhecimento o debate em relação às redes e mídias sociais deve perpassar a discussão do próprio acesso à rede, a qualidade da linguagem existente e as reais possibilidades de acesso a elas. Pois na realidade este acesso pode cada vez mais se estabelecer pela capacidade financeira. As diferenças e desigualdades já existentes na fronteira virtual, a chamada desigualdade digital se aprofundaria mediante os recursos disponíveis dos sujeitos.

Pensar as formas de comunicação na Internet é pensar sua mediação pela linguagem, portanto, como cultura. A comunicação que se estabelece por meio do uso do computador redefine a linguagem, essa que surge como forma de interação entre o homem e seu meio, e como forma e estratégia de sobrevivência dos mesmos. Perceber essa forma de mediação do uso da Internet permite entender que este ambiente se configura como âmbito de confronto de interesse, de representação social, de manifestações simbólicas de reprodução de valores. Dialogam e expressam a configuração da conjuntura histórica, refletindo as relações de classe e dos grupos sociais.

A defesa da comunicação como direito e sua democratização perpassa a análise do movimento, do conteúdo e das linguagens estabelecidas pelo veículo Internet. Assim como as formas de uso pelos sujeitos que estabelecem experiências positivas que ultrapassem o ciberespaço e ganham as ruas e o espaço público concreto.

Ciberfeminismo

A reflexão que nos propomos diz respeito às formas de organização, articulação e mobilização das lutas feministas contemporâneas que de forma intensa fazem uso de linguagens digitais para denunciar, divulgar e ampliar sua plataforma de lutas e reivindicações das desigualdades estabelecidas pelo patriarcado. Perceber como a Internet é um veículo e instrumento essencial que estabelece a mediação para as lutas e ativismo que ganha impulso com as novas tecnologias e ganha potencialidade através das mídias sociais, possibilita visualizar como essas táticas de militância feministas foram potencializadas em escala global.

Antes de prosseguirmos cabe uma diferenciação em relação às plataformas de conteúdo digital: As redes sociais, entendidas como redes de indivíduos em ambiente ou plataformas on-line que facilitam a interação entre pessoas, são exemplos de redes sociais o Facebook, Twitter, LinkedIn, Instagram e YouTube; as mídias sociais on-line são as formas de propagação e difusão de conteúdos informativos de massa, conteúdo que geralmente é criado através das redes sociais ou divulgado por elas, têm objetivo de disseminar conteúdos e proporcionar interação com o que foi transmitido. São exemplos de mídias sociais, as redes sociais, os sites, blogs e Wikipédia. Elas se relacionam com a tecnologia através das plataformas on-line, banners e anúncios eletrônicos, dizem respeito também a conteúdos pagos e se relacionam com todas as formas e meio de comunicação digital. Assim:

[…] As redes sociais são simplesmente mais um forma de relações entre as pessoas, que, “na internet, [...] são as relações interpessoais mediadas pelo computador, e acontecem através da interação social em busca da comunicação.” (FREITAS, 2010, p. -). Já as mídias sociais abrangem muito mais, e são típicas da Web 2.0, pois, segundo Kaplan e Haenlein (2010, p. -) as mídias sociais são “um grupo de aplicações para Internet, construídas com base nos fundamentos ideológicos e tecnológicos da Web 2.0, e que permitem a criação e troca de Conteúdo Gerado pelo Utilizador”, ou seja, as redes sociais na Internet são automaticamente consideradas mídias sociais uma vez que proporcionam trocas de informações, ideias e interesses. Já o termo mídias digitais é muito mais abrangente e designa qualquer meio de comunicação que se utilize de tecnologia digital, ou seja, toda rede social é uma mídia social que, por sua vez, também é uma mídia digital. (SCHNEIDER; SILVA; VIEIRA, 2010SCHNEIDER, H.; SILVA, A; VIEIRA, E. O uso das redes sociais como método alternativo de ensino para jovens: análise de três projetos envolvendo comunidades virtuais. In: Colóquio Internacional “Educação e contemporaneidade”, 4., 2010, São Cristóvão. Anais eletrônicos [...]. São Cristóvão: EDUCON, 2010. Disponível em: http://educonse.com.br/2010/. Acesso em: 31 out. 2018.
http://educonse.com.br/2010...
, p. 3-4).

Com a popularização das redes sociais tornou-se comum seu uso nos processos de mobilização política e de lutas sociais. Segundo Costa (2018COSTA, C. Rede. In: HOLLANDA, H. B. Explosão feminista: arte, cultura, política e universidade. São Paulo: Companhia das Letras, 2018.):

O Twitter, por exemplo, foi criado explicitamente para a militância. Teve início com o programa TXTMob, criado nos Estados Unidos para, através do celular, organizar manifestações contra a convenção nacional do Partido Republicano de 2004. Seu desdobramento, o Twitter tal como o conhecemos, foi lançado dois anos mais tarde e manteve esse DNA ativista, tendo sido o principal instrumento das manifestações iranianas de 2009 e nas inglesas de 2011.

Outra forma de plataforma digital importante e que articula ações políticas representacionais é a Avaaz criada em 2007, que duplicou o número de membros no Brasil logo após junho 2013, funcionando por meio de recolhimento de assinaturas “para pressionar autoridades, de forma que, além do resultado imediato de trazer visibilidade a uma causa e levantar debate sobre ela, ainda mantém um foco nos efeitos da esfera política representativa” (COSTA, 2018COSTA, C. Rede. In: HOLLANDA, H. B. Explosão feminista: arte, cultura, política e universidade. São Paulo: Companhia das Letras, 2018., p. 44).

Retomando os objetivos deste texto de articular as lutas femininas aos instrumentos existentes na Internet que amplificam essa lutas, ressaltamos o que Costa (2018COSTA, C. Rede. In: HOLLANDA, H. B. Explosão feminista: arte, cultura, política e universidade. São Paulo: Companhia das Letras, 2018., p. 47) identifica no que diz respeito à linguagem que o feminismo explora através das redes on-line, para a autora o movimento encontrou “um modelo de comunicação efetivamente contagioso”:

Em primeiro lugar, está o investimento pesado nas perspectivas abertas para as muitas experimentações possíveis entre o pessoal e o público, como já mencionado. É um território complexo, no qual as interdições e violências vividas pelas mulheres são atualizadas. Na sequência, vem a exploração meticulosa da força mobilizadora dos relatos pessoais, um dos principais instrumentos políticos de feminismo em rede. É descoberta, aqui, uma chave importante. As experiências em primeira pessoa, tornadas públicas na rede, passam a afetar o outro (COSTA, 2018COSTA, C. Rede. In: HOLLANDA, H. B. Explosão feminista: arte, cultura, política e universidade. São Paulo: Companhia das Letras, 2018., p. 46-47).

As narrativas pessoais4 4 Campanhas promovidas através de hashtags, ferramenta muito utilizada pelo movimento feminista de distribuição de conteúdo se ligam as formasde narrativas pessoais, tais como: #PrimeiroAssédio, #AgoraÉQueSãoElas, #MeuAmigoSecreto, #NãoMereçoSerEstuprada, #PeloFimDaCulturaDoEstupro, #NãoÉNão. Segundo Lara et al. (2016 apud COELHO, 2016, p. 221), o resultado “quantitativo, das campanhas e hashtags foi o aumento em 40% do número de denúncias no disk 180, Canal de Atendimento à Mulher da Secretaria de Políticas para as Mulheres da Presidência da República. são a chave para desvendar o alcance das campanhas promovidas por mulheres na contemporaneidade, retomando a ideia do pessoal é político 5 5 Expressão advinda do texto clássico da feminista da segunda onda, anos 70, Carol Hanish, que questiona o argumento de que o feminismo não seriapolítico por tratar temas como o corpo e a sexualidade. (HANISCH, 1970). . Através do conceito de experiência em Thompson (1981THOMPSON, E. P. A miséria da teoria ou um planetário de erros: uma crítica ao pensamento de Althusser. Rio de Janeiro: Zahar, 1981., p. 112), entendemos que ele expressa a cultura e a vida cotidiana; é um termo que diz sobre “o ser social e a consciência social: é a experiência [...] que dá cor à cultura, aos valores e ao pensamento”. Para esse autor as pessoas experimentam sua existência através das experiências “como sentimento e lidam com esses sentimentos na cultura, como normas, obrigações familiares e de parentesco, e reciprocidades, como valores ou (através de formas mais elaboradas) na arte ou nas convicções religiosas”. (THOMPSON, 1981THOMPSON, E. P. A miséria da teoria ou um planetário de erros: uma crítica ao pensamento de Althusser. Rio de Janeiro: Zahar, 1981., p. 189).

Trata-se, portanto, da permanência material da cultura (THOMPSON, 1981THOMPSON, E. P. A miséria da teoria ou um planetário de erros: uma crítica ao pensamento de Althusser. Rio de Janeiro: Zahar, 1981., p. 195) onde essas narrativas pessoais produzem laços concretos que elaboram uma expressiva percepção comum entre mulheres.

[…] A narrativa, sem se tornar impessoal, passa a integrar experiência do grupo, que assume coletivamente a voz individual: “Mexeu com uma, mexeu com todas”. […] Está em jogo a percepção de um problema comum. Em vez de apagar a diferença entre as histórias de vida ali se apresentam, a repetição por todas serve como fator de sensibilização com essas diferenças, como fator de aproximação e criação de laços (BOGADO, 2018BOGADO, M. Rua. In: HOLLANDA, H. B. Explosão feminista: arte, cultura, política e universidade. São Paulo: Companhia das Letras, 2018., p. 36-37).

Em sua diversidade, o movimento de mulheres constitui-se tendo as tecnologias da informação como importantes ferramentas de divulgação, de renovação e diálogo. Essas novas formas de diálogo e de estratégias de fala, no entanto, são significativas criando certa visibilidade e espaços para a ampliação de suas pautas, mas é necessário ressaltar as forças estruturais de poder que ainda encontram terreno sólido na realidade.

Acreditamos que o movimento de mulheres vem configurando um ativismo utilizando as redes da Internet de forma significativa. Várias iniciativas de grupos, coletivos e mulheres de forma individual inundaram as redes nessa quarta onda feminista. Essa forma ultrapassa a articulação virtual e ganha o espaço da rua, dos territórios, onde indicamos é lócus do acontecer político.

No ano de 2015 assistimos ao que ficou conhecido como a Primavera Feminista. Presenciamos em várias cidades brasileiras e ao redor o mundo, manifestações de mulheres referentes aos seus direitos, sobre a violência sofrida em seus corpos, dentre outras.

Em 2015, as mulheres protagonizaram com rapidez impressionante uma reação diante do retrocesso que significou a aprovação do Projeto de Lei (PL) 5069/2013 (BRASIL, 2013a), apresentado por Eduardo Cunha, cujo objetivo era dificultar o acesso de vítimas de estupro a cuidados médicos essenciais. Por todo o Brasil, eclodiram mobilizações semanais com fortes protestos que culminaram em um ato nacional pelo Fora, Cunha!, no dia 13 de novembro. Nas ruas, vozes femininas ressoavam palavras de ordem como: O Cunha sai, a pílula fica, Meu útero não é da Suíça para ser da sua conta. As puta, as bi, as trava, as sapatão, tá tudo organizada pra fazer revolução e O Estado é laico, não pode ser machista, o corpo é nosso, não da bancada moralista (BOGADO, 2018BOGADO, M. Rua. In: HOLLANDA, H. B. Explosão feminista: arte, cultura, política e universidade. São Paulo: Companhia das Letras, 2018., p. 29).

Nos anos seguintes, destacamos o ano de 2016 a Marcha, Nem Uma a Menos contra a violência de gênero em diversas cidades da Argentina, Chile e Uruguai. E a Greve Internacional de Mulheres em 08 de março de 2017 que teve como inspiração a greve de mulheres realizada na Polônia. Ações como consequência da articulação em rede on-line de diversas militantes feministas.

Embora só em 2015 a quarta onda feminista tenha alcançado maior amplitude, capaz de atingir diferentes setores da sociedade, desde o início da década de 2010 ela já vinha mostrando sua força em manifestações públicas. Um exemplo é a Marcha das Vadias, criada em 2011, em Toronto, no Canadá, que se tornou um marco desse processo. Quando, após uma série de estupros ocorridos na Universidade de York, um policial afirmou que as mulheres haviam sido agredidas por se vestirem como “vadias”, uma onda de protestos correu o mundo. A marcha chegou ao Brasil no mesmo ano e já está em sua sétima edição, organizada por coletivos em pelo menos quarenta cidades do país (BOGADO, 2018BOGADO, M. Rua. In: HOLLANDA, H. B. Explosão feminista: arte, cultura, política e universidade. São Paulo: Companhia das Letras, 2018., p. 33).

A marcha das Vadias pode ser uma importante fonte de análise do que se estabelece como significativo nesta reflexão, a relação das lutas feministas e as mídias digitais. A organização inicial foi estabelecida pela rede social Facebook, a convocação para o ato se estabeleceu pela criação de um evento neste meio virtual, o Slut Walk. Milhares de pessoas marcaram presença no evento virtual que se tornou concreto e tomou as ruas de Toronto no Canadá, e foi além, se configurando como uma manifestação anual em diversos países.

A sensibilização e mobilização por meio das mídias digitais contribui para a articulação das lutas feministas na medida em que cria uma identidade mínima entre mulheres. No entanto, destacamos seus limites frente à percepção da luta de classes. Destacando as particularidades como: os índices de feminicídio no Brasil e as próprias contradições estabelecidas pela Internet, onde o acesso ainda é desigual. E onde as ideias contrárias e a desinformação por meio de notícias falsas, as fake news, são uma constante.

Considerações finais

É notável a diversidade de manifestações que utilizam a organização por meio da Internet para impulsionar e divulgar protestos por todo o mundo. A ocupação das ruas ganhou novos contornos mediante o uso e propagação das mídias digitais, lembramos os eventos ocorridos no Brasil em junho de 2013 referentes ao preço da passagem de ônibus e que mobilizou e levou às ruas milhares de pessoas por todo o País.

A existência e força do uso das TICs não desconsidera a relevância, principalmente na sociedade brasileira do monopólio e hegemonia da grande mídia, da mídia de massa, sobretudo a televisão. Ela ainda determina o espaço que define a opinião pública. Em outros termos, falamos de processos de publicizar opiniões no debate público. Nesse sentido, a televisão não é um espaço permeado por debates que envolvam o interesse público, outras formas de mídia no Brasil dificultam ou até mesmo impossibilitam a expressão de opiniões diversas existentes na sociedade brasileira. Soma-se o fato de configurarmos no País uma cultura política que desqualifica as instituições políticas e seus atores, os políticos.

A participação só pode se dar de forma democrática por meio de acesso à informação e as possibilidades de democratização e publicização da mesma. Portanto, a importância em se atentar aos instrumentos que abrem novos canais de participação popular como as TICs. As mídias digitais ainda representam uma vantagem de difusão de conteúdos em relação às formas de comunicação tradicionais, tais como a televisão. Elas possibilitam uma articulação e veiculação de conteúdos e posicionamentos que impulsionam formas de resistência e lutas que extrapolam o ambiente virtual e ganham o âmbito público.

No entanto, para que essa participação se efetive, as formas de comunicação tanto das mídias já estabelecias quanto das TICs devem prever em seus objetivos a formação da opinião pública e a capacidade de agregar a diversidade de opiniões no debate público. As possibilidades das plataformas digitais nesse sentido, se destacam, pois as vozes e opiniões ganham amplitude e escala cada vez maiores através de ferramentas como as mídias sociais, visto que elas não são mediadas pelas mídias tradicionais de comunicação. Nesse sentido, compreendemos que as tecnologias participam dos processos de construção da realidade social, intermediadas pelos sujeitos que nesse processo alteram a maneira de participação social, logo, de se fazer política.

É preciso reconhecer as potencialidades das mídias digitais, no entanto, é necessário perceber suas limitações. Esses mecanismos tecnológicos por si mesmos não são capazes de fazer as transformações sociais necessárias ou até mesmo de estabelecer a qualidade da democracia, o que se coloca importante é reconhecer seu papel histórico na articulação de movimentos sociais populares. Perceber e compreender as formas criativas e inovadoras de articulação desses movimentos auxilia a compreensão e estímulo à participação social organizada.

O cenário das lutas sociais na conjuntura Brasileira exige um esforço de análise crítica sobre suas formas e amplitude. A crise política e econômica nacional aprofunda as desigualdades, os ataques às conquistas e aos direitos trabalhistas e sociais conduzem a classe trabalhadora a retrocessos avassaladores. O governo que se estabeleceu de forma golpista em 2016 reafirma a cada dia o aprofundamento da crise e do avanço conservador no Estado Brasileiro. É urgente a articulação das lutas da classe trabalhadora com vistas à emancipação dos sujeitos.

Consideramos que as lutas de frentes diversas, para além daquela representada pelo capital versus trabalho, ganham contornos e fortalecimento mediante o uso das mídias digitais. Os problemas enfrentados por essa diversidade de lutas, feministas, negros, LGBTs, moradia não são pontuais. São decorrência de um modo de produzir e de desenvolvimento baseado na exploração do trabalho e na concentração da riqueza. Quando essas lutas encontram canais de expressão de suas opiniões que representam uma pauta bastante heterogênea e que, no entanto, são demandas concretas e objetivas, se faz urgente identificar as formas pelas quais se constroem e organizam essas lutas.

Percebendo o recrudescimento do conservadorismo que atinge potencialmente as mulheres, destacamos o empenho do movimento feminista na articulação de novas formas de linguagem comunicacional digital e na utilização das redes e mídias digitais como instrumento de reação à lógica de violência estruturante desse modelo de sociabilidade.

Mulheres sempre estiveram presentes na cena pública denunciando a violação de seus direitos. As ondas de reivindicações históricas que culminaram em avanços e direitos conquistados pela luta de mulheres é hoje fortemente percebido na sociedade. Vivemos um momento histórico de relevância e efervescência da militância feminina muito se tem produzido academicamente e as pautas políticas de mulheres têm permeado o debate contemporâneo da sociedade brasileira e mundial. O que indicamos neste texto é iniciar um debate necessário sobre a potencialidade catalisadora da utilização das TICs, mais especificamente das mídias digitais por mulheres, como ferramenta articuladora e organizadora de suas lutas e protestos.

Vivemos em uma sociedade extremamente marcada pelas relações fundadas sob o patriarcado. A resistência frente à luta de mulheres ainda se mostra efetiva. No entanto, elas resistem através da reelaboração das formas de suas lutas, principalmente como visto aqui, através do uso das redes sociais e digitais onde ultrapassam o momento de mobilização e articulação virtual e estabelecem uma conexão real com o território e com a presença de seus corpos no espaço público.

O que destacamos é a potencialidade do uso da Internet e suas plataformas como catalisadora, multiplicadora e articuladora de interesses das lutas feministas e de seus desdobramentos reais percebidos na luta deste sujeito político. No entanto, a análise de sua potencialidade não suprime seu paradoxo, as possibilidades de manifestações antifeministas. As experiências construídas por mulheres no âmbito digital são parte essencial para a compreensão de suas estratégias de resistência, expandindo e apontando caminhos e possibilidades de organização da luta política.

Agradecimentos

Para as mulheres que se articulam em diversas frentes e abrem novos caminhos para as lutas feministas.

Referências

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  • THOMPSON, E. P. A miséria da teoria ou um planetário de erros: uma crítica ao pensamento de Althusser. Rio de Janeiro: Zahar, 1981.

Notas

  • 1
    “Atualmente, a Internet está controlada pela empresa da Califórnia ICANN (Internet Corporation for Assigned Names and Numbers), a qual administra a Rede e atribui, por exemplo, os nomes de domínio (o .es da Espanha). Desde novembro de 1998 essa empresa está sob a tutela do Departamento de Comércio norte-americano, segundo consta em um acordo assinado entre o ICANN e o Governo dos Estados Unidos [...]”. (RAMONET, 2005).
  • 2
    “Quanto ao acesso de mulheres à rede, segundo Ferreira (2015), dados do IBGE de 2013 mostraram que a proporção de internautas mulheres, no país, passou de 49,2%, em 2012, para 50,1%, em 2013. Ainda de acordo com a pesquisa de Ferreira, as mulheres representam 51,9% do total de internautas e, quanto maior a idade, maior são as diferenças de acesso a favor das mulheres”. (COELHO, 2016, p. 220).
  • 3
    “O termo ciberespaço foi criado pelo escritor de ficção científica William Gibson, sendo projetado em seu livro Neuromancer, de 19845. Nesse, o autor trata de um real que se constitui por meio do engendramento de um conjunto de tecnologias, enraizadas de tal forma na vida em sociedade que lhe modifica as estruturas e princípios, transformando o próprio homem, que de sujeito histórico torna-se objeto de uma realidade virtual que os conduz e determina” (GONTIJO et al., 2007, p. 3).
  • 4
    Campanhas promovidas através de hashtags, ferramenta muito utilizada pelo movimento feminista de distribuição de conteúdo se ligam as formasde narrativas pessoais, tais como: #PrimeiroAssédio, #AgoraÉQueSãoElas, #MeuAmigoSecreto, #NãoMereçoSerEstuprada, #PeloFimDaCulturaDoEstupro, #NãoÉNão. Segundo Lara et al. (2016 apud COELHO, 2016, p. 221), o resultado “quantitativo, das campanhas e hashtags foi o aumento em 40% do número de denúncias no disk 180, Canal de Atendimento à Mulher da Secretaria de Políticas para as Mulheres da Presidência da República.
  • 5
    Expressão advinda do texto clássico da feminista da segunda onda, anos 70, Carol Hanish, que questiona o argumento de que o feminismo não seriapolítico por tratar temas como o corpo e a sexualidade. (HANISCH, 1970).
  • Aprovação por Comitê de Ética e consentimento para participação

    Não se aplica.
  • Agência financiadora

    Não se aplica.
  • Consentimento para publicação

    Consentimento da autora.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    16 Out 2020
  • Data do Fascículo
    Sep-Dec 2020

Histórico

  • Recebido
    20 Nov 2019
  • Aceito
    03 Mar 2020
  • Revisado
    12 Jun 2020
Programa de Pós-Graduação em Serviço Social e Curso de Graduação em Serviço Social da Universidade Federal de Santa Catarina Universidade Federal de Santa Catarina , Centro Socioeconômico , Curso de Graduação em Serviço Social , Programa de Pós-Graduação em Serviço Social, Campus Universitário Reitor João David Ferreira Lima, 88040-900 - Florianópolis - Santa Catarina - Brasil, Tel. +55 48 3721 6524 - Florianópolis - SC - Brazil
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