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E nos sonhos que fui sonhando, as visões se clareando: hegemonia e luta pela terra no Brasil

Resumo

O objetivo do presente artigo é, a partir da experiência do Movimento dos(as) Trabalhadores(as) Rurais Sem Terra (MST) no Ceará, identificar os rebatimentos da mediação da política na vida dos sujeitos envolvidos na luta pela terra, especialmente na visão de mundo, apontando as contradições e os impasses na construção de uma nova hegemonia. Trata-se de um estudo analítico de base qualitativa subsidiado pela pesquisa bibliográfica, observação de campo, análise documental e entrevistas semiestruturadas. Os procedimentos teórico-metodológicos foram desenvolvidos à luz da análise crítica e os resultados obtidos representam uma tentativa de aproximação da realidade que é histórica e processual.

Palavras-chave:
Hegemonia; Política; MST

Abstract

The purpose of this article is to use the experience of the Landless Farmworkers Movement (MST) in the state of Ceará to identify the consequences of political mediation in the lives of subjects involved in the struggle for land, especially for their world view, indicating the contradictions and impasses in the construction of a new hegemony. It is an analytical and qualitative study supported by bibliographic research, field observation, document analysis and semi-structured interviews. The theoretical-methodological procedures were conducted with a critical analysis and the results obtained represent an attempt to approach the historical and procedural reality.

Keywords:
Hegemony; Politics; MST

Introdução

O desenvolvimento capitalista é permeado por contradições que (re)produzem condições de hegemonia do capital como também fissuras que podem apontar para sua superação. Desta forma, "a questão da hegemonia [...] significa, por um lado, a crítica prático-teórica da estruturação das formas de dominação e, por outro, a condição de possibilidade de alterar as regras já dadas" (DIAS, 2006DIAS, E. F. Política brasileira: embate de projetos hegemônicos. São Paulo: Ed. Instituto José Luís e Rosa Sundermann, 2006., p. 23). Sob tais circunstâncias, constituiu-se e desenvolveu-se a formação social brasileira em que "a passagem para o capitalismo ocorre sem alterações na estrutura agrária. Em lugar de uma autêntica revolução, de baixo para cima, realizam-se arranjos de cúpula, de cima para baixo" (IANNI, 2004IANNI, O. Pensamento social no Brasil. São Paulo: EDUSC, 2004., p. 231), mediante a exploração desenfreada da classe trabalhadora combinando "duas táticas calculistas por parte do patronato: a do paternalismo e a da repressão". (GORENDER, 1982GORENDER, J. A Burguesia Brasileira. São Paulo: Ed. Brasiliense, 1982., p. 49). A constituição da hegemonia capitalista no Brasil está atrelada à questão agrária, tomando dimensões particulares, especialmente frente às recentes transformações no padrão de acumulação cuja marca, dentre outras, é a reestruturação territorial e produtiva (HARVEY, 2013HARVEY, D. Os limites do capital. Tradução Magda Lopes. São Paulo: Boitempo, 2013.). O fenômeno de expulsão e do assalariamento dos(as) trabalhadores(as) do campo e o adensamento dos centros urbanos e de suas regiões periféricas repercutem também no agravamento dos conflitos, rotineiramente atravessados pela violência, que, em alguns casos, são canalizados para a organização política no campo e na cidade. Contestado, Canudos, Caldeirão, Anoni, Eldorado dos Carajás, entre outros, mostram como a história do Brasil apresenta muitas resistências dos setores populares do campo, demonstrando "o grande peso do mundo agrário na formação social capitalista brasileira, e a persistência de complexos e drásticos antagonismos no campo" (IANNI, 2004, p. 92). Em contraponto, "a velha oligarquia agrária recompõe-se, moderniza-se economicamente, refaz alianças para se manter no bloco do poder, influenciando decisivamente as bases conservadoras da dominação burguesa no Brasil" (IAMAMOTO, 2007_____. Serviço Social em tempo de capital fetiche: capital financeiro, trabalho e questão social. São Paulo: Cortez, 2007., p. 135). Nesse processo, constituem-se algumas organizações representativas dos interesses desse setor, como a Associação Brasileira do Agronegócio (ABAG) que, inclusive, vem atuando como um verdadeiro partido do agronegócio, valorizando, difundindo a sua imagem e inserindo "seus intelectuais orgânicos no interior da Sociedade Política, ocupando espaços em ministérios, secretarias, comissões, agências, instituições públicas de pesquisa" (SILVA, 2014SILVA, M. "Partido do agronegócio" invade escolas brasileiras. 2014. Disponível em: <http://www.mst.org.br/2014/11/14/partidodo-agronegocio-invade-escolas-brasileiras.html>. Acesso em: 14 nov. 2014.
http://www.mst.org.br/2014/11/14/partido...
).

As condições socioespaciais influenciam diretamente as relações de (re)produção, dinamizando e regionalizando a luta de classes (HARVEY, 2013HARVEY, D. Os limites do capital. Tradução Magda Lopes. São Paulo: Boitempo, 2013.). Essa dinâmica vem se reconfigurando no período em que o capital expande sua face financeira, aprofundando as disparidades econômicas, sociais e regionais na medida em que favorece a concentração de riquezas. Tais condições são naturalizadas por intermédio de estratégias de manutenção de hegemonia. Isso ocorre de forma particular no campo, agudizando a questão agrária como expressão da questão social. Segundo a Comissão Pastoral da Terra (CPT, 2015), o último período é marcado pelo desmonte dos órgãos públicos responsáveis pela "política de reforma agrária", pela apropriação cada vez mais privada dos recursos naturais - sendo ainda o Brasil líder em consumo mundial de agrotóxicos -, pelo crescimento da violência no campo e pela persistente marca de condições de trabalho análogas ao trabalho escravo. Por outro lado, há também iniciativas de resistência política por parte das organizações de camponeses e indígenas. Nesse quadro, o Nordeste se destaca especialmente diante de uma redefinição da divisão regional do trabalho no país que reforça o papel da região de "reserva do exército industrial de reserva" (OLIVEIRA, 2008OLIVEIRA, F. Elegia para uma re(li)gião: Sudene, Nordeste. Planejamento e conflitos de classes. São Paulo: Boitempo , 2008.), refletindo historicamente sobre o processo migratório. Atualmente a região possui o maior número de ocorrências de conflitos agrários e, particularmente, a realidade cearense continua sendo marcada pelo fenômeno social e geográfico da seca: "Apesar da importante redução da mortalidade humana, da fome e dos saques, em razão de programas públicos exigidos pelo povo sertanejo, o nordestino continuou sofrendo severos impactos diante da prioridade dos Governos aos grandes empreendimentos e ao latifúndio". A despeito desse quadro, a migração para outras regiões reduziu no último ano, o que, para muitos(as), tem relação com o pouco que se conquistou no âmbito das ações voltadas para a convivência no semiárido e para as áreas consideradas de reforma agrária. "Contudo, tais iniciativas sofreram cortes drásticos em 2015" (CPT, 2015).

Assim, priorizamos neste artigo1 1 This article uses some of the reflections and conclusions presented in the master's dissertation, Cooperação e hegemonia na dinâmica do capitalismo contemporâneo: a cooperação agrícola e organização política dos trabalhadores rurais na Lagoa do Mineiro/Ceará, [Cooperation and Hegemony in the Dynamics of Contemporary Capitalism: Agricultural cooperation and political organization of rural workers in the Lagoa do Mineiro of Ceará] supervised by professor Zélia Maria Pereira da Silva, and presented to the graduate program in social service at UFPE in 2011. The title - And in My Dreams the Visions Cleared, was taken from the song "Disparada", written by Geraldo Vandré and Théo de Barros in 1966. a realidade do campo brasileiro e cearense com o foco no maior movimento social do país, o Movimento dos(as) Trabalhadores(as) Sem-Terra (MST), elegendo um dos assentamentos de referência em organização produtiva e política no Ceará: o Lagoa do Mineiro, localizado na região Norte do estado, fundado oficialmente em 1986 com a emissão de posse intermediada pelo Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (INCRA). Trata-se de uma área desapropriada para fins da reforma agrária onde foram cadastradas, inicialmente, 153 famílias. A terra é bastante valorizada, sofrendo fortes consequências da especulação imobiliária e do desenvolvimento do agronegócio devido, em parte, a sua localização e o alto índice de produtividade da terra, especialmente para a produção de côco, mandioca e caju, principais culturas trabalhadas pelos(as) agricultores(as).

Com objetivo de analisar a mediação da organização política na vida dos(as) trabalhadores(as) e desvendar sua implicação na concepção de mundo desses sujeitos como também seus reflexos na construção de uma nova hegemonia nos limites da sociabilidade capitalista, recorremos a pesquisa bibliográfica, construindo um diálogo com a realidade empírica mediante dados e informações coletadas através da observação de campo, análise documental e entrevistas semiestruturadas2 2 The interviews were conducted with a sample of the population selected with the following criteria: participation in the collective activities of the political and productive organization in the settlement and within the MST in Ceará; connection to one of the seven locations within the settlement, which were given equal consideration in the study; men and women, youth, adults and the elderly, to maintain parity in the approach. These criteria were applied to all of the eighteen people interviewed. . Estas foram realizadas junto aos(as) representantes do assentamento como também da direção estadual do MST do Ceará, mediante anuência, aprovação em comitê de ética e utilização do Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE) junto aos(as) entrevistados(as), observando e respeitando os parâmetros éticos da pesquisa com seres humanos, conforme as resoluções vigentes. Os procedimentos teórico-metodológicos foram desenvolvidos à luz da análise crítica, visando superar o dualismo entre sujeito e objeto na construção do conhecimento. Os resultados representam uma tentativa de aproximação da realidade que é histórica e processual.

1 Entre a benevolência e a insurgência: caminhos da luta pela terra na realidade brasileira e cearense

Mediante as particularidades da formação da sociedade brasileira e cearense, a trajetória do MST é marcada por um conjunto de mudanças, incompreensíveis sem que tomemos nota da profunda relação existente com as condições conjunturais e estruturais do desenvolvimento desigual e combinado do capitalismo (TROTSKY, 1977TROTSKY, L. A história da revolução russa. Tradução E. Huggins. Rio de Janeiro: Paz e Terra , 1977.). No Ceará, foi em 1988 que trabalhadores(as) rurais passaram a se somar à luta do MST e iniciaram esforços na sua construção. O sindicalismo rural, mesmo com diversos problemas, representava a maior e principal força política no campo até então. Talvez, por conta disso, as alianças com os sindicatos rurais tiveram, inicialmente, considerável importância na história do MST no Ceará. Diniz (2008DINIZ, A. S. Trilhando caminhos: a resistência dos camponeses no Ceará em busca de sua libertação. São Paulo: USP, 2008., p. 58; 178) ressalta que a "conquista da maioria dos assentamentos passou principalmente pela resistência de moradores contra a sua expulsão das terras e pela sua ocupação massiva", expressando marcas de um passado não tão longínquo onde, no sertão cearense, predominavam relações sociais sustentadas no apadrinhamento e na troca de favores, "como proteção [...] e na gratidão, respeito e fidelidade por parte do camponês [...]. Esta relação [...] encobria interesses divergentes e antagônicos, como uma relação demarcada pela afetividade". Nesse contexto, a família e a tradição perpassam o poder político e a relação entre as classes de forma fulcral e singular. No entanto, a insuficiência da proteção paternalista e as demais transformações na economia cearense e mundial, especialmente na primeira metade do no século 20, fomentaram o aviltamento das condições de vida para os(as) trabalhadores(as) rurais, inclusive com a grande escassez de alimentos, forçando milhares de famílias a migrarem para as cidades, acirrando os conflitos sociais e os movimentos de carestia, consagrando a seca e seus flagelos como expressão da questão social no Ceará. Tal situação passa a demandar uma ação mais incisiva por parte do Estado, a exemplo das políticas de desenvolvimento e planejamento regional com a criação de instituições como a Superintendência do Desenvolvimento do Nordeste (SUDENE) que, incorporadas "ao conjunto das relações de poder em torno do semiárido", passam a ser controladas por setores cuja característica será a fusão entre a "velha" oligarquia e o "novo" empresariado (NEVES, 2004NEVES, F. C. A seca na história do Ceará. In: SOUSA, S. de (Org.). Uma nova história do Ceará. Fortaleza: Ed. Demócrito Rocha, 2004., p. 97). Como fruto desse processo ocorre o adensamento da questão social na sua dimensão regional, tendo como expressão outros diversos episódios em períodos distintos da história cearense, tais como: o fenômeno do cangaceirismo, de movimentos messiânicos e outras experiências cujas condições internas ancoram-se no monopólio da terra e na necessidade de luta coletiva pela terra, como o Caldeirão de Santa Cruz do Deserto (FACÓ, 1963FACÓ, R. Cangaceiros e Fanáticos. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1963.); o surgimento de organizações vinculadas a Igreja Católica, a exemplo dos Círculos Operários Católicos, em aliança com a Maçonaria; a luta por reformas de base, dentre elas a reforma agrária; iniciativas empresariais e mudancistas da burguesia local que marcam a Era Tasso Jereissate e influenciaram a configuração da política cearense até os nossos dias (TEIXEIRA, 1995TEIXEIRA, F. J. S. CIC: A "razão esclarecida" da FIEC. Fortaleza: IMOPEC, 1995.).

Diante dessa realidade, é possível sinalizar dois processos diferenciados que caracterizam a conquista da terra no estado: o primeiro é motivado pela reivindicação em torno da renda justa ou pela resistência em sair da terra a mando do(a) proprietário(a) e que, com o acirramento do conflito, o sindicato, a igreja e/ou o movimento social exerceram um importante papel; já o segundo processo é caracterizado por ser fruto de uma organização política, a exemplo do MST, passando por diversas etapas no processo de organização e luta. Neste caso, o espaço de luta e resistência é o próprio acampamento e é construído quando o movimento torna pública a situação, ao ocupar um latifúndio (DINIZ, 2008DINIZ, A. S. Trilhando caminhos: a resistência dos camponeses no Ceará em busca de sua libertação. São Paulo: USP, 2008.). Os assentamentos passam a ser instituídos por intermédio de uma proposta política de organização com a perspectiva de garantir o "controle do território, defesa da biodiversidade e recursos naturais, e contribuir para a organicidade das famílias" (MST, 2009, p. 20).

No âmbito das estratégias e da organização do MST, ocorreram transformações bastante relevantes, principalmente a partir de 1990, impulsionadas, dentre outros fatores, pela adoção por parte do Estado brasileiro do modelo de reforma agrária de mercado. Foi um período em que, segundo Fernandes e Stédile (2005FERNANDES, B. M; STÉDILE, J.P. Brava gente: a trajetória do MST e a luta pela terra no Brasil. São Paulo: Ed. Fundação Perseu Abramo, 2005., p. 36-54), os(as) Sem Terra tiveram que se voltar para dentro da organização, implicando em avanços especialmente no âmbito da concepção de luta e estratégia política:

sabíamos que não estávamos lutando contra um grileiro. Estávamos lutando contra uma classe [...]. Os nossos inimigos são os latifundiários e o Estado, que não democratiza as relações sociais no campo [...]. E crescia em nós a convicção de que a reforma agrária somente iria avançar se houvesse ocupação, luta de massas [...] não dava para ficar esperando pela boa vontade das autoridades.

Internamente, o movimento criou uma prática política diferenciada. A prática política, a estrutura organizativa3 3 Since the 1990s, the MST has been discussing and implementing a set of organizational mechanisms and principles in the settlements and encampments. The proposal consists in creating base nuclei, formed by approximately 10 families, each with a man and woman coordinator who will compose the coordination of a brigade. The objectives include: "to give greater organic strength to the Movement and to the settlement/ encampment; to strengthen the internal democracy; to create spaces for education; create spaces for cooperation (...). The discussions about the settlement are not conducted in general assemblies with the presence of all the families in the encampment or the settlement in the nucleus. The general coordination of the settlement proposes the points for the agenda. This coordination is constituted by the direction of the residents' association, by the male and female coordinators of the nuclei, as well as the coordinators of the sectors that the settlement has (education, gender, healthcare etc.). The coordinators of the nuclei in turn, return to the nuclei with the points of the agenda to be discussed with the 10 families, At the time of the general assembly, each nuclei expresses its decision in relation to the issues discussed, having considered the position of the majority of the families. In this way, the decision of the majority of the nuclei is that which defines if the previously discussed proposals are approved or not" (MELO, 2007, p.62-63). , as reivindicações e a própria concepção de movimento social foram construídas também por meio de um circuito organizativo e formativo, tendo os encontros e congressos nacionais como espaços centrais de deliberação coletiva. Esse processo, desde sua gênese, é implicado por vários fatores (econômicos, culturais, políticos etc.) que não podem nem devem ser desprendidos da situação dada na correlação de forças sociais de cada período da política brasileira e mundial. As transformações no campo brasileiro, com o avanço do agronegócio, especialmente a partir dos anos 2000, conjugadas às mudanças no padrão de produção, obrigou os(as) trabalhadores(as) rurais a "tentar resistir no campo e buscar outras formas de luta pela terra nas próprias regiões onde viviam" (FERNANDES; STÉDILE, 2005FERNANDES, B. M; STÉDILE, J.P. Brava gente: a trajetória do MST e a luta pela terra no Brasil. São Paulo: Ed. Fundação Perseu Abramo, 2005., p. 22).

Outro aspecto importante é que o Movimento tem a direção político-ideológica conformada por algumas organizações que fizeram (ou ainda fazem) parte de sua história, algumas com maior incidência. Dentre estas, o trabalho pastoral desenvolvido pelas Igrejas Católica e Luterana, em especial pela CPT. Outra força política que exerceu um papel central, influenciando diretamente a conformação da direção política não apenas do MST como também das diversas organizações populares originárias da década de 1980 foi o Partido dos Trabalhadores (PT). Desde então, mesmo travando algumas alianças com o sindicalismo rural, a exemplo da Confederação Nacional dos Trabalhadores na Agricultura (CONTAG), o Movimento colocavase como organização diferenciada em método de organização e natureza política em relação aos sindicatos. De acordo com Fernandes e Stédile (2005FERNANDES, B. M; STÉDILE, J.P. Brava gente: a trajetória do MST e a luta pela terra no Brasil. São Paulo: Ed. Fundação Perseu Abramo, 2005.), as divergências entre os instrumentos políticos, desde a década de 1990, se aprofundam em decorrência tanto do processo de crescimento de uma burocracia sindical como da repercussão na realidade brasileira mais recente de exemplos muitos semelhantes à caracterização, feita por Gramsci (2007GRAMSCI, A. Cadernos do Cárcere. Tradução Carlos Nelson Coutinho. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira , v. 2, 2007.), do fenômeno do transformismo, envolvendo organizações como o PT. Nos últimos anos a realidade brasileira vem apresentando uma redefinição da política de composição de classes ainda sob a marca da família, a exemplo dos Ferreira Gomes, no Ceará. Esse processo, segundo Nobre (2010NOBRE, M. C. Q. Cercas e secas na história do Ceará: expressões da "questão social". XII ENCONTRO NACIONAL DE PESQUISADORES EM SERVIÇO SOCIAL, 06 a 10 de dezembro de 2010.), é atrelado às condições em que a política é também condicionada às atuais necessidades do capital, requerendo maior flexibilidade,controle sobre a força de trabalho e novos mecanismos deconsenso. Em tais circunstâncias é importante reiterar a política como mediação fundamental para a conformação de estratégias dos diferentes sujeitos que, na disputa de projetos, podem abrir caminho para a construção de uma nova hegemonia. Afinal, "recusar as atuais formas de fazer política é" apontar a "possibilidade da construção de uma nova civilitá. Permanecer nos seus horizontes é aceitar a subalternidade das classes trabalhadoras como 'destino manifesto'" (DIAS, 2006DIAS, E. F. Política brasileira: embate de projetos hegemônicos. São Paulo: Ed. Instituto José Luís e Rosa Sundermann, 2006., p. 23). Diante desse contexto, adotou-se a concepção de que o movimento deveria ser independente, manter sua autonomia, o que não deixou de implicar (nem poderia) em uma forte influência das organizações políticas que, entre renovações e continuísmos, incidem no Estado e na realidade brasileira como um todo, expressando o arco que compõe atualmente as alianças políticas do MST e a constante luta também institucional travada pela militância. Dessa forma, uma conjuntura que aponta para a recomposição do capital na sua fase neoliberal avança desfavoravelmente sob a organização desses setores, fragilizando seu projeto político e favorecendo a rearticulação de setores antipopulares e antidemocráticos, desnudando o lastro histórico ainda pulsante da formação social do Brasil.

As políticas públicas voltadas para o campo continuam apresentando características próprias da contrarreforma com disparidades enormes entre os financiamentos disponibilizados ao agronegócio, ao mercado de commodities e à agricultura familiar e demais iniciativas no âmbito da reforma agrária, que responde por cerca de 70% dos alimentos consumidos no Brasil (MDA, 2015). Isso sem falar no caráter mercadológico da política de acesso a crédito que não oferece condições de sustentabilidade aos(as) trabalhadores(as), endividando-os(as):

Em consequência desse quadro, as desapropriações de terras foram drasticamente prejudicadas com o corte de 15,1% [...]. O Ministério do Desenvolvimento Agrário sofreu, em termos absolutos, uma redução de 49% do montante previsto inicialmente na Lei Orçamentária Anual de 2015. O Incra, que possuía um orçamento inicial da ordem de R$ 1,65 bilhão, atuou em 2015 com metade deste valor: R$ 874,37 milhões (CPT, 2015).

Vale destacar também que as áreas desapropriadas são incorporadas ao patrimônio do Estado até a sua emancipação, situação denominada institucionalmente ao assentamento que conquista sua autossuficiência, conforme o Programa de Consolidação e Emancipação de Assentamentos do INCRA. Mesmo com o processo de titulação de terras, existe a sujeição e o controle direto por parte do Estado, sendo priorizados os regulamentos legais de uso e ocupação da terra que se referenciam na divisão de lotes individuais a partir da propriedade particular e familiar, destoando da proposta de divisão mais coletiva do MST na perspectiva da cooperação agrícola (MST, 2008). Tudo isso vem incidindo sobre a autonomia dos(as) trabalhadores(as) assentados(as), cujo próprio nome já faz referência a intenção.

O desenvolvimento do capitalismo no país tem apontado ao MST algumas mudanças importantes que repercutem em seu campo estratégico. Para o Movimento, ao contrário do que ocorreu em diversos países, não há viabilidade histórica para a realização da reforma agrária clássica no Brasil, o que torna necessária a luta por uma reforma agrária popular (MST, 2009). Esse processo tem repercutido em mudanças também no nível de compreensão da realidade, favorecendo tanto uma combinação entre as pautas econômicas e a luta política como a ampliação do arco de alianças que vai para além dos setores ligados ao campo. Tudo isso em busca de dialogar com a heterogeneidade e particularidade da classe trabalhadora brasileira e com suas reivindicações históricas, sem perder de vista o internacionalismo e a relação dessas pautas com a perspectiva revolucionária, através da unidade em torno de um projeto político mais amplo, de classe: o Projeto Popular para o Brasil. Daí o entendimento de que hoje a Reforma Agrária não depende mais do MST, depende de um debate da sociedade brasileira e não se separa da luta contra a lógica do capital (MAURO, 2011MAURO, G. Entrevista Balanço 2010 e lutas 2011. Disponível em: <http://www.mst.org.br/multimidia>. Acesso em: 12 jan. 2011.
http://www.mst.org.br/multimidia...
).

2 MST e hegemonia do capital: projetos em disputa e desafios na construção de uma nova visão de mundo

A construção de hegemonia na sociedade capitalista representa a capacidade de uma classe ser, ao mesmo tempo, dominante e dirigente, devemos levar em consideração que um processo de organização política com a perspectiva de uma nova hegemonia de classe demanda mudanças não apenas no âmbito da estrutura econômica, mas uma consequente transformação na esfera da política e "no nível da moral, do conhecimento, da filosofia", então "uma reforma intelectual e moral não pode deixar de estar ligada a um programa de reforma econômica" (GRAMSCI, 2007GRAMSCI, A. Cadernos do Cárcere. Tradução Carlos Nelson Coutinho. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira , v. 2, 2007., p. 19). Porém, tais transformações não se dão por decreto. É das entranhas do velho que o novo pode surgir. Tratando-se de um processo de continuidade e descontinuidade, Freire (1981FREIRE, P. Ação cultural para a liberdade e outros escritos. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1981., p. 31-32) alerta para o seguinte equívoco:

Incidindo sobre a estrutura do latifúndio, transformando-a noutra, transitória, a do 'assentamento', a reforma agrária exige um permanente pensar crítico em torno da ação transformadora [...]. Um desses equívocos, por exemplo, pode ser o de reduzir a ação transformadora a um ato mecânico, através do qual a estrutura do latifúndio cederia seu lugar à do 'asentamiento', como quando alguém, mecanicamente, substitui uma cadeira por outra.

No âmbito do MST, o marco crucial que firma a adesão a um projeto político e uma identidade coletiva, de classe - o ser Sem Terra - incidindo sobre a visão de mundo dos(as) trabalhadores(as) é exatamente a desapropriação da terra e todo processo de organização e resistência política demandado em ocasião da luta pela terra. Sobre isso, vejamos o seguinte depoimento: "As principais mudanças que ocorreram [...] foi o nível de consciência das pessoas. As pessoas tiveram a consciência da luta. Tiveram coragem para lutar pelo pedaço de terra. E após essa luta, elas também estão tendo a consciência de que só lutar pela terra não basta" (Entrevistada 03). Os interesses divergentes passam a dar uma nova autoimagem às pessoas, que até então só se identificavam como "moradores(as)". A figura do patrão e/ou da empresa, de um lado, e dos(as) produtores(as), de outro, visibiliza a conformação de classes com interesses inconciliáveis. É, portanto, no acirramento das lutas sociais, na medida em que as classes antagônicas tentam defender seus interesses, que se amplia o elemento da política. Também porque "a luta pela terra se transforma em luta pela reforma agrária e, em consequência, num projeto político dos trabalhadores se estes, na sua luta, adquirirem consciência social para mudar a sociedade" (FERNANDES; STÉDILE, 2005FERNANDES, B. M; STÉDILE, J.P. Brava gente: a trajetória do MST e a luta pela terra no Brasil. São Paulo: Ed. Fundação Perseu Abramo, 2005., p. 119). Embora ainda haja muitas dificuldades, é unânime entre os(as) entrevistados(as) que, após a desapropriação, ocorreram mudanças positivas extremamente importantes para qualidade de vida nas comunidades, tais como: maior proximidade entre os(as) próprios(as) trabalhadores(as); acesso às políticas públicas, mesmo que ainda escassas, e às infraestruturas, como estradas e habitações; maior grau de decisão e participação política, antes inexistente e impensável; avanços no exercício de práticas comunitárias, de organização e gestão coletivas. Sobre isto, observemos a explicitação que o trecho abaixo faz da relação intrínseca entre a dimensão econômica e política para mudanças efetivas na vida das pessoas:

Toda vez que a gente investia na capacitação, na escolarização das pessoas, as pessoas aprendiam, falavam, participavam e tudo. Só que quando era na época das eleições as pessoas votavam nos coronéis lá, né? Votava no cara que era um fazendeiro da região e eu dizia "mas por quê?" E eles me respondiam: "é o seguinte, se eu não votar nele, ele me bota pra fora, eu sou morador dele, então eu tenho obrigação". Então não adianta pensar na conscientização das pessoas se eles não têm motivo pra se libertar. Então, pra mim, essa história do MST de conquistar a terra libertava as pessoas. [...] o Movimento que me deu uma outra visão disso (Entrevistada 01).

As condições objetivas propiciam maior autonomia e menor dependência pessoal: "a política atravessa todas as esferas do ser social, tornando-se sinônimo de 'catarse', processo pelo qual certa classe se eleva a uma dimensão universal, ao superar seus interesses econômico-corporativos" (COUTINHO apudRAMOS, 2005RAMOS, S. R. A mediação da organização política na (re)construção do projeto profissional: o protagonismo do Conselho e Federal de Serviço Social. Recife, UFPE, 2005., p. 48-49). Trata-se, portanto, de uma relação bastante estreita entre o conflito direto na luta pela terra, a necessidade concreta e as mudanças concebidas no âmbito da visão de mundo. Segundo Gramsci (2006_____. Cadernos do Cárcere. Tradução Carlos Nelson Coutinho. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, v. 1, 2006., p. 93), é preciso "demonstrar que todos os homens são 'filósofos', definindo os limites e as características desta 'filosofia espontânea'", da filosofia que, por exemplo, está contida no senso comum, no bom senso, "em todo o sistema de crenças, superstições, opiniões, modos de ver e de agir". Entretanto, há que se passar a um segundo momento, o da crítica, o que implica refletir sobre o seguinte: "é preferível 'pensar' sem disto ter consciência crítica, de uma maneira desagregada e ocasional [...] ou [...] elaborar a própria concepção do mundo de uma maneira consciente e crítica [...] participar ativamente na produção da história do mundo?". A política é a forma elementar de assegurar a relação entre a filosofia superior e o senso comum. Trata-se de tornar crítica uma atividade já existente. Senso comum, religião e filosofia estão em conexão, porém, não podem se confundir, tendo em vista que "a filosofia é a crítica e a superação da religião e do senso comum e, nesse sentido, coincide com o 'bom senso'" (GRAMSCI, 2006_____. Cadernos do Cárcere. Tradução Carlos Nelson Coutinho. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, v. 1, 2006., p. 96).

Nesse âmbito, a concepção da cerca, do latifúndio, se expande. Há também um cerceamento do conhecimento, da condição de sujeito histórico, sustentado em barreiras que impedem a socialização da política (NETTO, 1990NETTO, J. P. Democracia e transição socialista: escritos de teoria e política. Belo Horizonte: Oficina de Livros, 1990.). Contraditoriamente, os(as) trabalhadores(as) vinculados(as) ao MST, junto a um conjunto de profissionais, têm desenvolvido algumas importantes experiências na esfera da formação dos(as) Sem Terra com o objetivo de também "romper as cercas do saber" e formar profissionais na perspectiva da Educação do Campo (CALDART, 2012CALDART, R. S. Educação do Campo. In: Dicionário da Educação do Campo. Rio de Janeiro, São Paulo: Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio, Expressão Popular, 2012.). Mesmo diante do desafio permanente de enfrentar o grau de analfabetismo e desistência escolar ainda latente no país, especialmente na zona rural, iniciativas como o Programa Nacional de Educação na Reforma Agrária (PRONERA), criado em 1998, apesar das constantes ameaças e dificuldades, representa uma conquista importante dos movimentos sociais do campo. Conforme a II Pesquisa Nacional de Educação na Reforma Agrária (PACHECO, 2015PACHECO, I. Mais de 164 mil assentados foram atendidos pelo Programa de Educação na Reforma Agrária. 2015. Disponível em: <http://www.mst.org.br/2015/06/18/precisamos-avancar-com-o-pronera-para-que-o-povo-tenha-uma-educacao-libertadora.html>. Acesso em: 30 jan. 2016.
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), o Programa atendeu 164.894 moradores(as) de assentamentos desde sua criação até 2011, o que, para muitos(as), somada a outras inciativas, comprova a hipótese de que o MST tem contribuído para uma reforma moral e intelectual, formando também seus intelectuais orgânicos, "por isso, constrói a hegemonia da fração de classe camponesa e não de toda a classe trabalhadora" (MILITÃO, 2010MILITÃO, M. S. R. Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra: observações sobre a reforma intelectual e moral gramsciana. São Paulo, UNESP, 2010., p. 215). Todavia, a classe dominante têm acionado mecanismos, próprios da função de hegemonia, no intuito de criminalizar e deslegitimar as lutas dos(as) subalternos(as). De acordo com Neves (2005NEVES, L. M. W. (org.). A nova pedagogia da hegemonia: estratégias do capital para educar o consenso. São Paulo: Xamã, 2005. , p. 16), consideramos que, "como estratégia de legitimação social da hegemonia burguesa, o Estado brasileiro, enquanto Estado educador, redefine suas práticas, instaurando, por meio de uma pedagogia da hegemonia, uma nova relação entre aparelhagem estatal e sociedade civil"4 4 One example of this was the initiative by the judiciary to criminalize the MST in an attempt to charge its leaders under the National Security Law. Meanwhile in the national congress, a parliamentary investigative commission (CPI) was established to investigate and punish popular organizations, at the same time as it assured "total impunity to the company organizations" (MST, 2009). This goes beyond the more recent mechanisms such as the "antiterrorism" bill proposed to the national congress, supporting Wacquant's (2013) concept about the expansion of the penal role of the state in consonance with welfare-type actions. Another example of this strategy is found in the realm of the legal instruments created to deal with land conflicts, such as Law 8.629, of February 25, 1993, which in article 2 characterizes as a crime participation in organizations that promote "conflicts over land ownership" through actions such as occupation of public land and buildings (an act denominated as "invasion" and "plunder"), which, according to the law, should be severely punished.Recebido em 26/01/2016. Aprovado em 15.03.2016. . Por outro lado, o Estado também atua através de políticas de promoção da cultura, produção, comercialização etc., e "vê-se obrigado, pelo poder de pressão das classes subalternas, a incorporar, ainda que subordinadamente, alguns de seus interesses" (IAMAMOTO, 2009IAMAMOTO, M. V. Relações sociais e Serviço Social no Brasil: esboço de uma interpretação histórico-metodológica. São Paulo: Cortez: CELATS, 2009., p. 81).

Tais iniciativas são respaldadas e legitimadas também por intermédio do conjunto de organismos designados vulgarmente como privados, ou aparelhos privados de hegemonia (GRAMSCI, 2007GRAMSCI, A. Cadernos do Cárcere. Tradução Carlos Nelson Coutinho. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira , v. 2, 2007.), o que se torna mais agravante diante da monopolização dos meios de comunicação pelos setores dominantes, embora haja, com muitas dificuldades, a presença de mecanismos contra hegemônicos, a exemplo das rádios comunitárias, jornais, revistas etc., vinculadas ao MST e a outras organizações de trabalhadores(as). Isto, porém, com raio de alcance infinitamente menor nas áreas onde os próprios movimentos atuam, fazendo com que os principais meios de informação dos(as) trabalhadores(as) continuem sendo os hegemônicos, interferindo predominantemente na visão de mundo desse público e, consequentemente, na coesão do projeto coletivo, tal como indicam os depoimentos abaixo:

Pra falar a verdade, aqui no Assentamento existe uma divisão. No caso, têm pessoas que apoiam a luta do MST, né. E tem gente que não quer ser MST [...]. Aí, não participam, não entendem [...]. O pessoal não quer mesmo que chegue neles o nome de 'Sem Terra' [...]. Aí, tem uma parte que acha o nome de 'Sem Terra' assim como de 'índio', porque ninguém quer ser índio [...]. Só pra você vê, a escola do campo que tá sendo construída aí, luta nossa, né [...]. quando a gente conversa isso, aí diz: 'e você tá pensando que essa escola foi o Sem Terra que trouxeram? Isso aqui foi o prefeito' (Entrevistada 16).

O individualismo afasta as pessoas muitas vezes do coletivo, sabe? [...] quer dizer, ele não ver o coletivo como se fosse dele e isso é uma insatisfação, pra mim, aqui dentro, sabe? [...]. O cara não deixa os seus afazeres pra ser coletivo, né. Porque no dia que tu tá no coletivo, tu tá deixando de fazer o seu (Entrevistada 02).

Embora os assentamentos e acampamentos sejam territórios de resistência, são, predominantemente, espaços de reprodução da hegemonia dominante que constrói uma concepção estigmatizada do ser Sem Terra; impõe a lei do valor sustentada em relações mercantis e centrada na propriedade privada, apontando entraves nos processos de produção e circulação orientados por outra perspectiva e princípios. A presença do agronegócio, de outras corporações e de seus representantes se faz sentir nas áreas de reforma agrária de diversas formas, a exemplo das propostas de arrendamento das terras, contratos de integração, pela indução, via crédito rural, de uma matriz tecnológica dependente do capital, com implicações de diversas ordens que incidem fortemente na capacidade de resistência e direção política (MST, 2006). Ou seja, na lógica de produção de valor de uso e valor de troca, os(as) produtores(as) dos assentamentos também compõem o amplo circuito da divisão social do trabalho. Assim, "o relacionamento do trabalhador com as condições objetivas de seu trabalho é o de propriedade" (MARX, 2008MARX, K. O Capital: crítica da economia política. Tradução Reginaldo Sant´Anna. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira , livro I, v. 2. 2008., p. 65). Sobre isso, o MST (2006, s/p) formulou a seguinte análise:

Estes trabalhadores entendem que sua libertação passa pelo acesso à propriedade privada da terra, para poderem dispor pela primeira vez em suas vidas de forma plena e livre o seu destino e gerirem autonomamente as suas vidas. Não se constituiu na consciência destes trabalhadores, o rompimento destas condições de exploração, pelo caminho da coletivização da terra [...]. Esta relação individualizada e individualizante com a propriedade determinará o modo de agir e de pensar [...] e se tornará cada vez mais rígida quanto maior for o tempo de duração dessa relação [...]. Sua consciência se desenvolve em torno do aspecto da propriedade da terra, dos bens e dos interesses da família.

Essas condições, objetivas e subjetivas, incidem diretamente sobre a visão de mundo e sobre a forma de participação na vida social desses(as) trabalhadores(as) que tendencialmente reconhecem a ordem existente como a única possível, o que favorece a adoção de valores compatíveis com esse modo de vida, implicando na descaracterização da identidade coletiva dos(as) trabalhadores(as), desestimulando-os(as) perante a possibilidade de efetivação de uma organização coletiva que venha realmente a atender os interesses de todos(as). No entanto, vale destacar que as relações de propriedade nas áreas desapropriadas demonstram diferenças das relações predominantes, pois, no âmbito local, especialmente nos territórios com maior referência no MST, ainda há coexistência do trabalho coletivo, realizado em áreas instituídas entre os(as) próprios(as) trabalhadores(as) como de uso coletivo, com o individual ou familiar. Segundo Militão (2010MILITÃO, M. S. R. Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra: observações sobre a reforma intelectual e moral gramsciana. São Paulo, UNESP, 2010., p. 220), os limites na construção da reforma intelectual e moral a partir das experiências do MST e dos setores populares do campo "evidencia a necessidade de se construir uma ampla aliança de classes [...], mostra, com sua práxis política, que é possível construir [...] um novo Bloco Histórico [...] capaz de [...] recuperar o valor da ação política e do homem como construtor e transformador de sua história". Afinal, os ganhos de uma classe ou de outra dependem de condições concretas juntamente com a capacidade de mobilização e organização dessas mesmas classes por seus interesses.

Considerações Finais

Em meio a disputa de projetos existente nos assentamentos, particularmente no assentamento Lagoa do Mineiro, tais territórios continuam sob hegemonia do capital que tem hoje, como maior expressão no campo, o agronegócio. Esse processo vem demonstrando que a acumulação primitiva do capital (MARX, 2008MARX, K. O Capital: crítica da economia política. Tradução Reginaldo Sant´Anna. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira , livro I, v. 2. 2008.) não é um fenômeno de um passado longínquo, mas pertence à natureza do desenvolvimento capitalista, especialmente no Brasil. Essa realidade recai diretamente sob a vida dos(as) produtores(as), afinal, o Estado, apesar de não ser monolítico e, de algum modo, ter que levar em consideração o conjunto das reivindicações dos(as) trabalhadores(as), tende a negá-las ou enquadrá-las à sua ordem.

Para evitarmos o idealismo e o fatalismo, é possível observar que, nos assentamentos de influência do MST, as experiências que se desencadearam após a desapropriação da terra, o rompimento da dominação do antigo patrão e da sujeição imposta por este, provocaram mudanças que, unanimemente, favoreceram a construção de uma relativa autonomia e de uma concepção de mundo mais crítica, muito embora predominem "no senso comum os elementos 'realistas', materialistas, isto é, o produto imediato da sensação bruta" (GRAMSCI, 2006_____. Cadernos do Cárcere. Tradução Carlos Nelson Coutinho. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, v. 1, 2006., p.115). A necessária mediação da organização política tem demonstrado que essa realidade não é irredutível, mas histórica. Esses territórios são objeto de uma constante, acirrada e desproporcional disputa no terreno político, cultural, econômico e ideológico. No Ceará, tal mediação é representada pelo MST que, embora haja reconhecimento por parte dos(as) produtores(as), atua em meio a um conjunto de forças bastante heterogêneas que incidem sobre as experiências de assentamentos e acampamentos, como nas próprias instâncias que compõem o Movimento em questão. A construção da direção política é, portanto, fundamentalmente dinâmica, partimos do ponto de vista de que a história da sociedade de classes não segue uma linearidade, mas é processual e permeada "por correlações de forças, entre diferentes sujeitos coletivos, que constroem alianças em torno de objetivos comuns que se unificam na consolidação de projetos hegemônicos que mantêm vinculação com a defesa de projetos societários" (RAMOS, 2005RAMOS, S. R. A mediação da organização política na (re)construção do projeto profissional: o protagonismo do Conselho e Federal de Serviço Social. Recife, UFPE, 2005., p. 50). Conforme Dias (1997_____. A liberdade (im) possível na ordem do capital: reestruturação produtiva e passivização. São Paulo: IFCH/Unicamp, n. 29, 1997., p. 35), um dos elementos primordiais na construção e consolidação da hegemonia burguesa é a "naturalização/des-historicização da vida social". Esse processo é acompanhado pelo ocultamento da dominação política, dificultando a tomada de consciência dessa dominação pelas classes subalternas. As estratégias do consenso vêm se reconfigurando sob um permanente reforço à subserviência e dependência. A própria legitimidade jurídica incorporada na figura do(a) assentado(a) diz muito sobre isso. Este termo, estritamente institucional, que diz respeito aquele(a) que está cadastrado(a) junto aos órgãos responsáveis e que, portanto, é representante legal da família, interfere na subjetividade desses sujeitos, já que, "até mesmo na mais simples manifestação de uma atividade intelectual qualquer, na 'linguagem', está contida uma determinada concepção de mundo" (GRAMSCI, 2006, p. 93).

Outro aspecto que contribui para a perpetuação dessas relações no campo brasileiro é a situação ainda predominante da falta de acesso e qualidade nos serviços públicos, especialmente relacionados à educação e a saúde, mesmo após a desapropriação da terra. Isso implica, em muitos casos, no deslocamento cotidiano dos(as) trabalhadores(as) para os centros urbanos mais próximos ou mesmo para a capital do estado. Daí a necessidade que vem sendo pautada pelos movimentos sociais do campo de lutar não apenas contra o latifúndio da terra, mas também por demandas necessárias para a sustentabilidade das comunidades em sentido amplo. Diante disso ressaltamos, com Netto (1990NETTO, J. P. Democracia e transição socialista: escritos de teoria e política. Belo Horizonte: Oficina de Livros, 1990., p. 82), que: "as transformações sociais estruturais do nosso tempo só podem ser levadas a cabo mediante intervenções organizadas de grandes massas", pois as possibilidades dadas pela história não representam um equilíbrio das forças sociais. Os homens e as mulheres fazem sua história não de acordo com sua vontade, mas conforme as circunstâncias e o acirramento de contradições e tendências capitalistas, típicas de períodos de crise, podem vir a limitar ou favorecer condições para um período de transição. É preciso que os(as) trabalhadores(as) invistam em outras formas de produzir e de viver que representem a construção de força política e aponte para uma nova hegemonia, já que "o elemento decisivo de cada situação é a força permanentemente organizada e há muito tempo preparada" (GRAMSCI, 2007GRAMSCI, A. Cadernos do Cárcere. Tradução Carlos Nelson Coutinho. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira , v. 2, 2007., p. 46). Trata-se de fortalecer processos que tencionem no presente um tempo futuro, que polarize a sociedade, pondo a necessidade de ampliar a visão de mundo dos subalternos e os espaços de participação política desses sujeitos na vida em sociedade.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Jul-Sep 2016
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