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Resistência à liderança norte-americana na formação da enfermeira brasileira (1934-1938)

Resumos

Estudo histórico-social teve como objetivos: descrever as circunstâncias em que Bertha Pullen assume a direção da Escola de Enfermagem Anna Nery; analisar as estratégias empreendidas por Pullen para assegurar sua posição de poder e prestígio no espaço da escola e da enfermagem brasileira e discutir as resistências à presença e autoridade da diretora americana, pelas enfermeiras diplomadas e alunas, na luta pela identidade nacional. A análise do corpus documental se fez a partir da contextualização das fotografias, com base nos documentos escritos e fontes secundárias. O estudo evidenciou que a segunda gestão de Bertha Pullen se configurou como a reiteração da presença americana na liderança da Escola de Enfermagem Anna Nery, apesar da resistência das enfermeiras e alunas. Desse modo, pode-se concluir que a segunda gestão de Bertha Pullen na Escola de Enfermagem Anna Nery não representou necessidade real ou sentida pela própria escola.

história da enfermagem; escolas de enfermagem; emblemas e insígnias


A historical social descriptive study whose objective is to describe the circumstances where Bertha Pullen assumes as the din of Anna Nery Nursing School, to assess the strategies undertaken by Pullen to assure her position of power and prestige in the space of the school and Brazilian nursing; and to discuss about the resistance to the presence and authority of the American din, for the nurses and students, in the struggle for a national identity. Corpus analysis was made by putting photographs into context base don written documents and secondary sources. Results: The second management of Pullen was the reiteration of the American presence in the leadership of the School, despite the resistance of the nurses and students. Thus, we may assume that the second tenure of Pullen did not represent a real need that was felt by the school.

history of nursing; schools, nursing; emblems and insignia


Estudio histórico-social que tuvo como objetivos: describir las circunstancias en las que Bertha Pullen asume la dirección de la Escuela de Enfermería Anna Nery; analizar las estrategias emprendidas por Pullen para asegurar su posición de poder y prestigio en la escuela y en la enfermería brasileña y discutir las oposiciones frente a su presencia y autoridad como directora americana por parte de las enfermeras y alumnas en la lucha por una identidad nacional. El análisis de los documentos fue a través de la contextualización de fotografías, con base en documentos y fuentes secundarios. El estudio demostró que la segunda gestión de Bertha Pullen reiteró la presencia americana dentro del liderazgo de la Escuela de Enfermería de Anna Nery, a pesar de la resistencia de las enfermeras y alumnas. De este modo, se concluye que su segunda gestión en la Escuela de Anna Nery no representó una necesidad real o sentida por la misma escuela.

historia de la enfermería; escuelas de enfermería; emblemas e insignias


ARTIGO ORIGINAL

Resistência à liderança norte-americana na formação da enfermeira brasileira (1934-1938)

Tânia Cristina Franco SantosI; Gertrudes Teixeira LopesII; Fernando PortoIII; Aline Silva da FonteIV

IDoutor em Enfermagem, Professor Adjunto da Escola de Enfermagem Anna Nery da Universidade Federal do Rio de Janeiro, Brasil, e-mail: taniacristinafsc@terra.com.br

IILivre-Docente, Professor Titular da Faculdade de Enfermagem da Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Brasil, e-mail: gertrudeslopes@uol.com.br

IIIDoutorando em Enfermagem da Escola de Enfermagem Anna Nery da Universdidade Federal do Rio de Janeiro, Brasil, Professor Assistente da Escola de Enfermagem Alfredo Pinto da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro, Brasil, e-mail: ramosporto@openlink.com.br

IVAluna do Curso de Graduação em Enfermagem da Escola de Enfermagem Anna Nery da Universidade Federal do Rio de Janeiro, Brasil, e-mail: alinefonte@globo.com

RESUMO

Estudo histórico-social teve como objetivos: descrever as circunstâncias em que Bertha Pullen assume a direção da Escola de Enfermagem Anna Nery; analisar as estratégias empreendidas por Pullen para assegurar sua posição de poder e prestígio no espaço da escola e da enfermagem brasileira e discutir as resistências à presença e autoridade da diretora americana, pelas enfermeiras diplomadas e alunas, na luta pela identidade nacional. A análise do corpus documental se fez a partir da contextualização das fotografias, com base nos documentos escritos e fontes secundárias. O estudo evidenciou que a segunda gestão de Bertha Pullen se configurou como a reiteração da presença americana na liderança da Escola de Enfermagem Anna Nery, apesar da resistência das enfermeiras e alunas. Desse modo, pode-se concluir que a segunda gestão de Bertha Pullen na Escola de Enfermagem Anna Nery não representou necessidade real ou sentida pela própria escola.

Descritores: história da enfermagem; escolas de enfermagem; emblemas e insígnias

CONSIDERAÇÕES INICIAIS

A implantação do modelo de enfermagem nightingaleano no Brasil, no início da década de 1920, ocorreu sob a égide da saúde pública, no âmbito de grande reforma sanitária, liderada pelo cientista e sanitarista Carlos Chagas, então diretor do Departamento Nacional de Saúde Pública. Essa reforma ensejou a vinda de um grupo de enfermeiras norte-americanas, integrantes de uma missão, à época denominada Missão de Cooperação Técnica para o Desenvolvimento da Enfermagem no Brasil, de modo responder pelas necessidades requeridas pelo departamento, consideradas necessárias à efetivação da Reforma Carlos Chagas. Essa missão permaneceu no Brasil durante uma década (1921-1931).

A implantação de um novo modelo de enfermeira no Brasil, decorrente da influência da Missão de Enfermeiras, se materializou mediante a criação de uma escola de enfermagem e de um serviço de enfermeiras, ambos dirigidos por enfermeiras norte-americanas.

Com a criação da Escola de Enfermeiras do Departamento Nacional de Saúde Pública, em 1922, as enfermeiras americanas transplantaram para o Brasil um modelo de enfermagem que agregava às características do tradicional modelo nightingale, outras, desenvolvidas em seu processo de adaptação à sociedade americana, desde os tempos da guerra civil.

O modelo clássico de enfermagem moderna, implantado pelas americanas determinava a seleção de mulheres não casadas e de bom nível social e educacional, a ênfase na hierarquia e na disciplina, o aprendizado através do trabalho e a subordinação à medicina era mitigada pela autonomia administrativa.

Como características americanas, o modelo de ensino aqui implantado era baseado no Standard Curriculum e no Relatório Goldmark, que defendia autonomia em relação ao hospital. No caso do Brasil, a autonomia da enfermagem no âmbito do Hospital São Francisco de Assis (principal campo de prática das alunas) era garantida pelo exercício simultâneo da função de diretora da Escola de Enfermeiras do Departamento Nacional de Saúde Pública e do cargo de chefe do Serviço de Enfermagem nesse hospital, por uma só pessoa.

A Escola de Enfermeiras do Departamento Nacional de Saúde Pública, atualmente denominada Escola de Enfermagem Anna Nery, começou o seu funcionamento em 19 de fevereiro de 1923, tendo como diretora a enfermeira americana Claire Louise Kieninger (1923-1925). No período de 1925 a 1928, a escola foi dirigida por Loraine Geneviéve Dennhardt.

Vale ressaltar que as duas gestões de Bertha Pullen na direção da escola deveram-se a circunstâncias especiais. Sua primeira gestão como terceira diretora da Escola de Enfermagem Anna Nery (1928-1931) constituiu um tempo de prorrogação da missão de enfermeiras americanas no Brasil, decorrente de decisão governamental, uma vez que o acordo inicial previa o seu término em 1928.

Com o término da missão, em 1931, a direção da Escola de Enfermagem Anna Nery passa à responsabilidade de Rachel Haddock Lobo, enfermeira brasileira. No entanto, sua morte prematura e inesperada, em 1933, colocou novamente em jogo poderosos interesses, relacionados à escolha de nova diretora para a escola. Embora o Departamento Nacional de Saúde Pública já contasse com cento e vinte enfermeiras diplomadas pela Escola de Enfermagem Anna Nery, sendo dezessete com curso de pós-graduação nos Estados Unidos, a decisão final foi a de que Bertha Pullen voltasse ao Brasil, para reassumir a direção da escola, em segunda gestão (1934-1938).

O presente estudo teve como objeto a reiteração da liderança americana na formação da enfermeira brasileira, mediante a segunda gestão (1934-1938) de Bertha Pullen como diretora da Escola de Enfermagem Anna Nery. Para responder à problemática apresentada, foram traçados os seguintes objetivos: descrever as circunstâncias em que Bertha Pullen assume a direção da Escola de Enfermagem Anna Nery; analisar as estratégias empreendidas por Bertha Pullen para assegurar sua posição de poder e prestígio, no espaço da escola e da enfermagem brasileira, e discutir as resistências à presença e autoridade da diretora americana, pelas enfermeiras diplomadas e alunas, na luta pela identidade nacional.

METODOLOGIA

O presente estudo, realizado sob a perspectiva da história social, deriva do projeto de pesquisa intitulado “Emblemas e rituais na formação da identidade da enfermeira brasileira”, aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Escola de Enfermagem Anna Nery/Hospital Escola São Francisco de Assis. Os dados foram analisados à luz da teoria do mundo social de Pierre Bourdieu, quando estuda a configuração dos diferentes espaços sociais, as hierarquias e as lutas no interior desses espaços, analisando as relações dialéticas entre os agentes no interior desses espaços(1).

O corte espacial estudado é o da Escola de Enfermagem Anna Nery, concebido nesse estudo como espaço social onde os agentes (enfermeiras, professoras e alunas) conquistam suas posições na divisão do trabalho que as habilita à manipulação legítima de determinados produtos simbólicos, como os bens culturais(2).

As fontes primárias foram localizadas no Centro de Documentação da Escola de Enfermagem Anna Nery da Universidade Federal do Rio de Janeiro e estão constituídas de documentos fotográficos e documentos escritos, de caráter oficial, como relatórios, correspondências, atas, textos de conferências e discursos, ambos relativos à temática e de acordo com o recorte temporal em estudo. As fontes secundárias versaram sobre a história do Brasil e a história da enfermagem, localizadas em artigos, dissertações e teses.

Após a seleção dos documentos, procedeu-se à crítica externa e interna de modo a validar os achados do estudo, pois a crítica às fontes auxiliaram na determinação das evidências históricas que apoiaram a análise(3).

A análise do corpus documental se fez a partir da contextualização das fotografias, com base nos documentos escritos e fontes secundárias, permitindo a articulação do conteúdo expressado no texto fotográfico com o que lhe é externo. Esses aspectos determinaram a estrutura do conteúdo e forneceram subsídios para a análise do objeto em estudo(4).

RESULTADOS

A volta de liderança americana, personificada por Bertha Pullen, na direção da Escola de Enfermagem Anna Nery: estratégias de demarcação do espaço

Bertha Pullen assume a direção da Escola de Enfermagem Anna Nery, em segunda gestão, em 2 de abril de 1934, escolhendo como sua assistente a enfermeira brasileira Maria de Castro Pamphiro, diplomada pela primeira turma e pós-graduada nos Estados Unidos. Vale ressaltar que, após a morte de Rachel Haddock Lobo, Maria de Castro Pamphiro assumiu a direção da Escola como diretora interina, por período de sete meses.

Bertha Pullen, em seu primeiro relatório mensal de atividades, ao final do mês de abril de 1934, registrou que estava reassumindo a direção da Escola de Enfermagem Anna Nery, após ausência de precisamente dois anos e nove meses. Essa providência indica o entendimento da diretora de que a gestão de Rachel Haddock Lobo, interrompida por sua morte, representara apenas uma breve interrupção na liderança norte-americana na direção da escola ao tempo em que trazia à lembrança os serviços por ela prestados em sua primeira gestão.

Bertha Pullen também realizou breve diagnóstico da situação da escola, atestando que a mesma estava materialmente em más condições, ressaltando, porém que os princípios gerais de organização se haviam conservados intactos. Pontuou a necessidade de rever os conteúdos teóricos e as experiências práticas.

Para garantir sua autoridade e controle das professoras e das alunas, a diretora tentou estabelecer comunicação direta com as alunas, adotando a estratégia de promover eventos informais, nos quais não estava prevista a presença das professoras. Assim, no segundo mês de sua gestão foi instituída “A Hora Social”, todas as segundas-feiras, na sala da diretora.

Tal situação, apesar de, aparentemente, aproximar a diretora das alunas, reafirmava o distanciamento social, pois a realidade social se caracteriza por situações que refletem a posse de um conjunto de atributos garantidos aos socialmente valorizados, ao tempo em que faz com que cada um perceba os seus limites, através da interiorização das determinações externas, no sentido de que se assume ou se aceita aquilo a que está destinado, em função do seu habitus.

Quanto às professoras, foi instituído um curso, de freqüência obrigatória, sobre Ensino de Enfermagem e Administração de Enfermaria. As primeiras aulas versaram sobre o “estudo da construção do caráter: como estudá-lo e reedificá-lo”. Essa determinação da diretora evidencia a preocupação com a padronização do comportamento docente e discente, através de estratégias que visavam a produção de agentes [enfermeiras] dotadas de habitus secundário, ou seja, de ethos secundário, com resultado da interiorização das estruturas desse campo, pois o sistema de ensino, enquanto instância de reprodução “ao realizar sua tarefa de inculcação, consagra como digna de ser conservada a cultura que tem o mandato de reproduzir”(5).

Em outras palavras, a estratégia da diretora em promover um curso para o corpo docente, em caráter obrigatório, possibilitou a atualização do habitus profissional, de modo a ajustar-se às novas exigências, pois o habitus, enquanto modus operandi e condição primeira de qualquer objetivação, exige, da parte dos grupos e/ou das classes de agentes, o mínimo de controle e domínio de um código comum, ainda que segundo registro inconsciente(5), pois o habitus, enquanto disposição incorporada e implantado desde a primeira educação familiar, é constantemente atualizado ao longo da trajetória social, demarcando os limites dos agentes.

Os rituais e emblemas da profissão, institucionalizados desde a inauguração do curso da Escola de Enfermagem Anna Nery, em 1923, pelas enfermeiras norte-americanas, enquanto “modalidades simbólicas de transfiguração da realidade social”(5) tiveram sobretudo a função de instituir e consagrar uma nova ordem simbólica, uma vez que esses rituais deram visibilidade à nova profissão que aspirava o reconhecimento social. Além disso, a eficácia simbólica dos rituais reside na possibilidade de proclamar a identidade de uma profissão.

Bertha Pullen, em sua segunda gestão como diretora, deu continuidade ao ritual de “Recepção de Touca”, que representava a integração efetiva da aluna ao corpo discente da escola, simbolizando a mística da enfermagem encarnada como valor universal e, ao mesmo tempo, uma estratégia de igualdade e diferenciação do grupo, conferindo obrigações e vantagens, no plano simbólico, a quem a usava, determinadas pela pertença àquele grupo(4), pois o ritual é um conjunto de atos formalizados, expressivos e portadores de dimensão simbólica que utiliza como recurso um sistema de linguagens e comportamentos específicos, bem como objetos emblemáticos, cujo sentido representa um bem simbólico do grupo(6).

A Figura 1 surpreende o momento em que Bertha Pullen, assistida por Zaíra Cintra Vidal, prende a touca à cabeça de uma das alunas, ao tempo em que essa aluna acende sua vela na chama da vela da aluna que a antecedeu no ritual. A inclusão do ritual de ascender velas acrescenta à cerimônia mais um significado simbólico, pois “o simbolismo primário da vela é o da fé em uma verdade e uma beleza que transcendem a própria existência, determinando a consagração perene a um serviço”(4).


O cenário é o salão nobre da residência das alunas e o corte temporal remete ao ano 1936. Sobre a mesa vê-se a lâmpada, ícone da enfermagem mundial, que evoca a memória de Florence Nightingale.

O recebimento da touca diante da lâmpada bem como a transferência da chama às velas de todas as alunas reforça o voto de compromisso com a futura profissão. A compreensão da importância de tais símbolos pode ser visualizada no fragmento de um texto produzido por uma aluna da Escola de Enfermagem Anna Nery, intitulado A Lâmpada symbolo de nossa Fé, publicado na Revista Anaes de Enfermagem, atual revista Brasileira de Enfermagem, em setembro de 1937, ao afirmar: “Mostremo-nos dignas de tamanhas vantagens e benéficos, em suma, cumpramos o nosso dever. Só assim veremos cintilar no luzeiro universal a lâmpada que nos serve de símbolo”.

Os rituais de colação de grau da Escola de Enfermagem Anna Nery sempre corresponderam a momento e espaço privilegiados por todas as diretoras da escola, os quais congregavam pessoas de diferentes setores da sociedade, tornado o grupo manifesto para si e para os outros, uma vez que os rituais institucionais produzidos pela escola tinham o efeito de consagração do grupo, pois a eficácia simbólica do ritual depende do poder das autoridades que o instauram e das disposições dos destinatários para conhecer e reconhecer as condições institucionais de um ritual válido(7).

Desse modo, o ritual de colação de grau reafirmava o compromisso da aluna com a profissão, pois a eficácia simbólica do ritual reside em transformar a representação que os demais agentes possuem da pessoa consagrada, modificando a natureza das relações sociais e, ao mesmo tempo, transformar a representação que a pessoa consagrada faz de si mesma, bem como os comportamentos que ela julga estar compromissada a adotar para se ajustar a tal representação(7).

Os rituais, assim, têm efeito de consignação estatutária, pois não demarcam apenas a passagem de um estado a outro, mas determinam a incorporação de um habitus profissional consoante com as expectativas sociais ligadas à sua categoria.

Realinhamento de posições de poder e prestígio: a resistência à liderança estrangeira na enfermagem brasileira

A inauguração do retrato de Rachel Haddock Lobo, por ocasião do primeiro aniversário de sua morte, em 26 de setembro de 1934, primeiro ano da segunda gestão de Bertha Pullen como diretora da Escola de Enfermagem Anna Nery, evidencia algumas manifestações de resistência à liderança de Bertha Pullen, conforme as disposições das pessoas no espaço geográfico, representado na Figura 2, que se refere à inauguração do Retrato de Inauguração do Retrato de Rachel Haddock Lobo, no Salão Nobre da Residência das Alunas.


O retrato de Rachel Haddock Lobo está ladeado à esquerda pela então Superintendente do Serviço de Enfermeiras do Departamento Nacional de Saúde Pública, Edith de Magalhães Fraenkel, de pé, com uniforme de enfermeira de saúde pública e pela aluna Anita Guanais Dourado, oradora da turma de alunas; à sua direita encontra-se a enfermeira e docente Zaíra Cintra Vidal. As duas senhoras sentadas, de trajes escuros e semblante consternado, ao lado de Zaíra Cintra Vidal, são parentes de Rachel Haddock Lobo.

Os dois homens que figuram na fotografia e que aparecem do lado de fora do salão, não foram identificados; mas os documentos escritos levam à inferência de que sejam familiares de Rachel Haddock Lobo, uma vez que esses documentos fazem referência à presença de Sydney Haddock Lobo, irmão de Rachel, tendo esse inclusive feito a leitura de um discurso em homenagem à mesma. Também figuram na foto cerca de uma dezena de estudantes uniformizadas.

No que se refere à identificação das demais pessoas fotografadas, têm-se ao lado de Edith de Magalhães Fraenkel, a enfermeira Maria de Castro Pamphiro, então assistente da diretora (cargo correspondente ao de vice-diretora, na atualidade), de uniforme de enfermeira hospitalar.

A diretora da escola, Bertha Pullen, também vestida de enfermeira hospitalar, figura imediatamente atrás do perfil do único menino (sobrinho de Rachel Haddock Lobo) presente na fotografia. Sua posição na composição fotográfica, distante do retrato de Rachel e das dirigentes brasileiras não a coloca em destaque, a não ser por sua estatura, que a faz sobressair na fotografia.

Esse dado ganha mais expressividade quando articulado ao fato de que a mesma não fez uso da palavra no evento, não sendo, portanto, reconhecida pelas enfermeiras e alunas como porta-voz autorizada, uma vez que “o porta-voz autorizado é aquele ao qual cumpre, ou cabe falar em nome da coletividade; é ao mesmo tempo seu privilégio e seu dever, sua função própria, em suma, sua competência”(7).

Não obstante, o posicionamento da diretora pode ser explicado à luz do que Bourdieu denominou como “estratégias de condescendência”, pois Bertha Pullen ao posicionar-se distante do retrato de Rachel Haddock Lobo e também, pelo fato de não fazer uso da palavra evidencia, o caso das transgressões simbólicas, em que “o consagrado condescendente, que possui o privilégio dos privilégios, toma liberdade com seu próprio privilégio”(7), autorizando-se a transgressões que estariam proibidas a outros agentes, expressando o reconhecimento de seu capital cultural e identidade profissional.

A distribuição espacial das enfermeiras brasileiras presentes à cerimônia, no entanto, reflete a luta pela imposição de visão de mundo “óculos tais quais as pessoas vejam o mundo segundo certas divisões”(8), que define as posições hierárquicas do campo, no caso específico, da Escola de Enfermagem Anna Nery, as enfermeiras brasileiras ao se posicionarem ao lado do retrato de Rachel (lugar de honra da cerimônia), ao tempo em que deu visibilidade à liderança da enfermeira brasileira na direção de uma escola, considerada padrão à época, também evidenciou a resistência à liderança estrangeira.

Essas estratégias que refletem a luta pelo monopólio legítimo do poder por parte das enfermeiras brasileiras, mediante a utilização do capital coletivo das enfermeiras “prestigiosas”, determinado por “sua posição na estrutura objetiva das relações de autoridade, isto é, da autoridade e da força que conquistaram durante a luta”(5).

CONSIDERAÇÕES FINAIS

As duas gestões de Bertha Pullen (1928-1931 e 1934-1938), separadas pela breve gestão da primeira diretora brasileira, Rachel Haddock Lobo, configuraram-se como a reiteração da presença americana na liderança da Escola de Enfermagem Anna Nery, apesar da resistência das diplomadas e alunas.

A preocupação da diretora em perpetuar os rituais iniciados por ocasião da implantação da Escola de Enfermagem Anna Nery se justifica pela possibilidade de consagrar um modelo de enfermeira para a sociedade brasileira, pois os rituais institucionais têm a função de atribuir e distinguir qualidades novas, conferindo ao grupo os meios para atuar sobre a realidade social.

Apesar das estratégias da diretora no sentido de controle do grupo, a sua segunda gestão se configura como período de muita resistência à sua presença e autoridade, pois o que estava em jogo era a construção de identidade nativa e nacional. Desse modo, pode-se concluir que a segunda gestão de Bertha Pullen na Escola de Enfermagem Anna Nery não representou necessidade real ou sentida pela própria escola.

E, por fim, vale ressaltar que, embora a reiteração da presença americana tenha correspondido à imposição de uma visão de mundo considerada legítima, por outro lado, contribuiu para que as enfermeiras brasileiras atualizassem o seu habitus, através das relações profissionais com Bertha Pullen, mediante a incorporação de capital cultural e social(9).

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

Recebido em: 11.3.2007

Aprovado em: 5.12.2007

  • 1. Boudieu P. O Poder Simbólico. Rio de Janeiro (RJ): Bertrand do Brasil; 1989.
  • 2. Pinto L. Pierre Bourdieu e a Teoria do Mundo Social. Rio de Janeiro (RJ): FGV; 2000.
  • 3. Padilha MICS, Borenstein MS. O método de pesquisa histórica na enfermagem. Texto E Contexto Enfermagem 2005 outubro; 14(4):575-84.
  • 4. Santos TCF, Barreira IE. O poder simbólico da enfermagem norte-americana no ensino da enfermagem na capital do Brasil (1928-1938). Rio de Janeiro (RJ): Ana Nery; 2002.
  • 5. Bourdieu P. A economia das trocas simbólicas. São Paulo (SP): Editora Perspectiva; 2001.
  • 6. Segalen M. Ritos e Rituais Contemporâneos. Rio de Janeiro (RJ): FGV; 2002.
  • 7. Bourdieu P. A economia das trocas lingüísticas O que falar quer dizer. 2 ed. São Paulo (SP): Edusp; 1998.
  • 8. Bourdieu P. Sobre a Televisão. Rio de Janeiro (RJ): Jorge Zahar Editor; 1997.
  • 9. Bernardes MMR, Lopes GT, Santos TCF. O cotidiano das enfermeiras do Exército na Força Expedicionária Brasileira (FEB) no Teatro de Operações da 2ª Guerra Mundial, na Itália (1941-1945). Rev Latino-am Enfermagem 2005 maio-junho; 13(3):314-21.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    31 Mar 2008
  • Data do Fascículo
    Fev 2008

Histórico

  • Recebido
    11 Mar 2007
  • Aceito
    05 Dez 2007
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