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Cuidado da enfermidade em casa ou em instituição de saúde: o processo de decisão em uma comunidade de baixa renda

Resumos

O objetivo desta pesquisa foi descrever as experiências de um grupo de mulheres relativa ao processo decisório sobre o cuidado da enfermidade no domicílio ou em uma instituição de cuidado à saúde. O método da história oral temática foi desenvolvido. As categorias descritivas foram: a) o pobre possui um jeito próprio de cuidar da saúde e da enfermidade; b) o principal suporte para combater a enfermidade está na crença em Deus; c) O cuidado médico é para quando os recursos de cura não são suficientes e a enfermidade é perigosa. Em famílias de baixa renda, a bagagem cultural que está associada à condição socioeconômica permeia o processo decisório relativo ao cuidar da enfermidade em casa ou buscar o cuidado médico institucionalizado. Este conhecimento é essencial para um cuidado significativo na perspectiva de indivíduos e suas famílias.

medicina de família e comunidade; cultura; assistência à saúde; fatores socioeconômicos


The aim of this research was to describe the experiences of a group of women about the decision making process related to illness care at home or in health care institutions. The thematic oral history method was applied. The descriptive categories were: a) The poor have their own way of taking care of health and illness; b) The main support to fight the illness is belief in God; c) Medical care is the last resource, when healing resources are not enough and the illness is dangerous. In low income families, the cultural background, associated to the socioeconomic conditions, permeate the decision with regard to taking care of the illness at home or to seek institutionalized medical care. This knowledge is essential for meaningful health care from the perspective of individuals and families.

family practice; culture; delivery of health care; socioeconomic factors


El objetivo de la investigación fue describir las experiencias de un grupo de mujeres sobre su decisión de cuidar de la enfermedad en casa o en una institución de asistencia a la salud. Fue utilizado el método de la historia oral temática. Las categorías descriptivas fueron: a) El pobre tiene una forma propia de cuidar de la salud y de la enfermedad; b) El apoyo principal para luchar contra la enfermedad es la creencia en Dios; c) La atención médico es utilizada cuando los recursos de cura no son suficientes y la enfermedad es peligrosa. En familias de bajos ingresos, los conocimientos culturales que están asociados a la condición socioeconómica influyen en el proceso de decisión para cuidar de la enfermedad en casa o buscar una institución para asistencia médica. Este conocimiento es esencial para un cuidado significativo según la perspectiva de las personas y sus familias.

medicina familiar y comunitária; cultura; prestación de atención de salud; factores socioeconómicos


ARTIGO ORIGINAL

Cuidado da enfermidade em casa ou em instituição de saúde: o processo de decisão em uma comunidade de baixa renda

Luiza Akiko Komura Hoga

Enfermeira Obstétrica, Professor Associado da Escola de Enfermagem da Universidade de São Paulo, Brasil; email: kikatuca@usp.br

RESUMO

O objetivo desta pesquisa foi descrever as experiências de um grupo de mulheres relativa ao processo decisório sobre o cuidado da enfermidade no domicílio ou em uma instituição de cuidado à saúde. O método da história oral temática foi desenvolvido. As categorias descritivas foram: a) o pobre possui um jeito próprio de cuidar da saúde e da enfermidade; b) o principal suporte para combater a enfermidade está na crença em Deus; c) O cuidado médico é para quando os recursos de cura não são suficientes e a enfermidade é perigosa. Em famílias de baixa renda, a bagagem cultural que está associada à condição socioeconômica permeia o processo decisório relativo ao cuidar da enfermidade em casa ou buscar o cuidado médico institucionalizado. Este conhecimento é essencial para um cuidado significativo na perspectiva de indivíduos e suas famílias.

Descritores: medicina de família e comunidade; cultura; assistência à saúde; fatores socioeconômicos

INTRODUÇÃO

Os valores e as convicções das famílias em relação ao processo saúde-enfermidade necessitam ser compreendidos para que essa perspectiva possa ser considerada pelos profissionais nas práticas de cuidado à saúde. Este é um princípio do Programa Saúde da Família do Governo Brasileiro(1). A Cidade de São Paulo é um grande centro urbano e atrai famílias de outros estados e regiões. A imigração interna tem resultado em uma variedade de comunidades diferentes sob o ponto de vista cultural nesta cidade. Rio Negro (nome fictício) é uma dessas comunidades. Durante mais de uma década de atividades de extensão universitária desenvolvida nesta comunidade, foi possível observar que as crenças, valores e práticas de cuidado à saúde e enfermidade são compartilhadas entre os membros da família, seus parentes e vizinhos.

Entre as famílias pobres, as atividades de cuidado à saúde são baseadas em princípios sócio-culturais refinados e caracterizadas por um alto grau de articulação social. A solidariedade e as estratégias de cura existem, entretanto, eles são limitados pela escassez de recursos financeiros(2). Os rituais de cura baseados nos próprios conhecimentos são desenvolvidos para solucionar problemas de saúde e estas práticas são muito diferentes daquelas desenvolvidas pelo sistema de cuidado à saúde oficial(3).

O cuidado na saúde da família requer enfoque nos fundamentos sociais, étnicos e culturais dos usuários, de forma personalizada e contextualizada(4). Enfermeiras necessitam visualizar a pessoa como um ser humano único em interação com a família e a comunidade(5). O que o sintoma da doença significa, quando e em qual instituição de saúde levar um membro da família doente são questões respondidas de acordo com as crenças e valores familiares(6).

O objetivo desta pesquisa foi descrever as experiências de um grupo de mulheres sobre o processo decisório relativo ao cuidado da enfermidade no contexto doméstico ou em uma instituição de cuidado à saúde.

MÉTODO

Desenho da pesquisa

O método da história oral temática foi desenvolvido nesta pesquisa. A compreensão dos aspectos específicos da experiência, assim como a captura das idéias, valores e crenças relativas ao tema, constituem a essência deste método. Além disso, o método possibilita que pessoas que usualmente não possuem uma voz social expressem suas idéias e sentimentos(7). Por meio da história oral temática é possível compreender e descrever as experiências de cada uma das mulheres entrevistadas no que concernem ao seu envolvimento no processo de cuidar da enfermidade no domicílio ou procurar uma instituição de cuidado à saúde apropriado.

De acordo com o último censo demográfico realizado em 2000, Rio Negro era composto de 348 famílias com um total de 2.152 pessoas. Residência na comunidade por pelo menos 10 anos, demonstração de empatia, existência de experiência no tópico abordado e facilidade para narrar experiências, foram alguns critérios para a inclusão de uma pessoa como colaboradora da pesquisa(8). Estes critérios foram seguidos para incluir as colaboradoras desta pesquisa.

A identificação das colaboradores da pesquisa, pessoas que tinham conhecimentos profundos do fenômeno estudado, foi facilitada pela familiaridade do pesquisador com a comunidade. Durante as atividades de cuidado à saúde desenvolvidas em Rio Negro foi possível observar que as mulheres eram as principais responsáveis pelas atividades de cuidado relacionadas à saúde, enfermidade e doença.

As entrevistas foram agendadas em comum acordo entre o pesquisador e cada mulher e realizadas nas residências das mulheres, em uma sala com a presença apenas do pesquisador e da colaboradora. A seguinte questão introdutória foi apresentada para cada mulher: “Quando um membro da família adoece de que forma você decide a respeito da realização das práticas de cuidado em casa ou a busca de uma instituição de cuidado da saúde”. Perguntas adicionais foram incorporadas para clarear pontos obscuros e aprofundar conteúdos significativos. Os dados foram coletados entre Abril e Junho de 2004, e cada entrevista teve a duração de cerca de 60 minutos e todos foram integralmente gravados e transcritos.

As novas colaboradoras foram sendo incluídas e a saturação teórica ocorreu a partir da nona entrevista. Entretanto, apesar deste fato, um total de 14 mulheres foram entrevistadas.

Processo de análise dos dados

Cada história oral foi submetida a um processo de transcrição, realizado em três etapas. A transformação dos dados gravados para a forma escrita foi a primeira etapa. A textualização da narrativa, por meio da a omissão das questões da entrevista, foi a segunda etapa. Durante este trabalho, as palavras-chave de cada entrevista foram identificadas, as idéias centrais estabelecidas e um “tom vital” selecionado. Este se refere a uma sentença que revela a essência da narrativa. A extração de um tom vital de cada história é essencial para preservar a contribuição individual das colaboradoras e atribuir-lhes voz. As colaboradoras confirmaram os respectivos tons vitais de modo a respeitar uma prerrogativa da história oral. A última etapa do processo de transcrição foi a transcriação, ou a finalização do texto, o que resulta na versão final da narrativa. Uma imersão profunda em cada narrativa transcriada, por meio de sucessivas leituras de cada uma delas, permitiu desenvolver o processo de análise da narrativa(7).

Este processo foi desenvolvido de maneira indutiva. Durante este trabalho foi possível descobrir diferentes significados e expressões relativas ao cuidado da saúde e enfermidade de forma a permitir a construção de categorias descritivas. A extração de pequenos trechos das narrativas foi utilizada como medida para que as descrições se tornassem mais reais. Finalmente, cada narrativa foi novamente lida, o que tornou possível verificar a ausência de contradições entre as histórias orais e as categorias descritivas. Esta análise de dados, de forma interativa, é considerada uma importante medida para garantir a validade da pesquisa e para assegurar que a pesquisa qualitativa seja realizada mediante um processo sistemático e rigoroso(8).

Os aspectos éticos da pesquisa estavam de acordo com os critérios estabelecidos pelo Conselho Nacional de Pesquisa Brasileiro(9). O formulário de consentimento de participação em pesquisa foi assinado por todas as colaboradoras após o recebimento de informações detalhadas a respeito da pesquisa e da garantia do anonimato por meio da utilização de nomes fictícios.

RESULTADOS

As características pessoais das mulheres, os tons vitais, as categorias descritivas e respectivos conteúdos são apresentadas.

Características pessoais das mulheres

A idade das mulheres variou entre 25e 70 anos de idade (media de 45 anos), dez eram casadas, três eram divorciadas e uma era viúva. O tempo de residência na comunidade variou entre 10 e 30 anos (média de 17 anos). A respeito do trabalho, nove trabalhavam fora de casa e dentre estas, sete eram arrimo de família e cinco eram donas de casa. Doze mulheres tinham quarto anos de educação formal e duas eram analfabetas. Quando questionadas a respeito da religião, sete eram Cristãs Evangélicas, seis eram Católicas e uma era Espírita. Todas as mulheres eram brasileiras.

Os tons vitais

Nomes fictícios, escolhidos a partir da flora Brasileira típica, foram utilizados para identificar as mulheres.

Eu faço como eu posso em casa quando alguém fica doente porque quando um pobre vai ao médico, é tratado com muito pouco caso (Gerânio).

A medicina não tem cura para doenças incuráveis, mas Jesus tem (Junípero).

Nós cuidamos da gripe com remédios caseiros mas pneumonia requer a ajuda de um médico (Camomila).

Doenças conhecidas não são perigosas, tratamos delas em casa, mas doenças desconhecidas são perigosas, precisamos procurar um médico (Manjerona).

Primeiro procuramos ajuda em Deus, depois nas ervas e finalmente o doutor (Tomilho).

A pessoa pobre nunca tem dinheiro para comprar remédios, então, é melhor partir para as ervas (Cedro).

Ir para o hospital requer tempo e dinheiro. Então eu prefiro ficar com Jesus (Alecrim).

Remédios caseiros são melhores, eu procuro o médico só quando eu não conheço a doença (Salvia).

Eu fui ao médico, ele receitou um remédio, mas eu pensei: eu tenho um remédio melhor em casa (Mentruz).

As ervas são o meu remédio, não compro produtos de farmácia. Graças a Deus, estou bem, Pessoas com fé conseguem combater tudo, inclusive as doenças (Hortelã).

Sou macaca velha no uso das ervas, me trato com as ervas, mas somente Deus dá a cura (Aloe Vera).

Tomo remédios, mas não acredito na medicina. Então, eu coloco a minha fé em Jesus (Erva Doce).

Primeiro, aplico meus conhecimentos sobre ervas e cura. Se a doença persiste, busco assistência médica (Urucum).

Tenho uma opinião negativa dos médicos por causa do que aconteceu comigo, quero ficar bem longe de doutor (Picão).

As categorias descritivas

- O pobre tem seu próprio jeito de cuidar da saúde e da enfermidade

As mulheres aprenderam a lidar com o processo saúde enfermidade a partir das próprias experiências vividas no contexto da pobreza. A pobreza é percebida pelas mulheres como um estigma e está incorporada nos seus comportamentos relativos ao processo saúde-enfermidade, e conseqüentemente, ela permeia as ações e decisões desta área.

Para estas mulheres, a manutenção da saúde constitui um valor importante e específico. Ela representa a possibilidade de dar continuidade às atividades relacionadas ao trabalho e isto é essencial para a sobrevivência imediata própria assim como dos demais membros da família. Sinais de enfermidade provocam ansiedade porque a condição de saúde representa a capacidade de lutar pela vida. Normalmente as mulheres trabalham sem registro em carteira, como as faxinas domésticas, que requerem uma boa disposição física e mental.

A saúde é importante para nós. Eu tenho minhas fraquezas, mas nada me derruba, nunca. A fadiga, a enfermidade, a falta de dinheiro, nada me derruba. Com esta força, eu vou adiante, não sou combatida... Esta energia é muito importante para nossa sobrevivência. Eu sempre cuido da minha saúde, para continuar a viver e a lutar. Eu aprendi a viver de forma, humilde, me preservando das enfermidades

A preservação da saúde física e mental é considerada relevante na vida das mulheres. Entretanto, os cuidados preventivos da área da saúde, como o exame de prevenção de câncer ginecológico, não constitui um cuidado usualmente tomado pelas mulheres. Elas se consideram “relaxadas”. A prioridade é direcionada para os demais membros da família, principalmente as crianças. De acordo com a visão das próprias mulheres, uma criança adoece em conseqüência da falta de cuidado da mãe.

A saúde é importante, mas eu não tomo o cuidado necessário em relação a mim mesma, eu não faço o Papanicolau periodicamente, porque sou relaxada, Ma eu faço de tudo em relação ao meu filho, eu tenho que ser uma boa mãe.

As mulheres mantêm um constante estado de alerta em relação às próprias vulnerabilidades, especialmente em relação à preservação da saúde. As mulheres associam a condição de ansiedade com a difícil realidade da pobreza. As oportunidades de promoção da saúde mental não poucas e se restringem ao diálogo com amigos, comadres e vizinhas, ver televisão e ir à igreja. Estes recursos são considerados um caminho para superar os problemas diários, mas são avaliados como impróprios para a resolução dos conflitos pessoais. Elas referiram uma variedade de estratégias para a promoção da auto-ajuda.

A condição de baixa renda e a opressão de gênero afeta a saúde mental das mulheres porque elas não conseguem visualizar formas de superar estes problemas. Conseqüentemente, as mulheres são obrigadas a conviver com os traumas provocados por eles. Com o objetivo de obter bem estar, os conflitos pessoais, familiares e sociais são combatidos de diversas maneiras. As mulheres recorrem à automedicação e fazem muitas outras coisas para tentar superar os problemas e promover o autocuidado. Mas, o principal suporte é representado pela fé porque, para as mulheres, Deus representa a salvaguarda para todos os problemas enfrentados.

O pobre tem o seu próprio jeito de combater a enfermidade. Quando eu me sinto saturada ou ansiosa, eu tomo uma aspirina, eu falo com as outras pessoas e eu começo a me sentir melhor... quando eu sinto que eu estou ficando com depressão, eu bato um bolo e mando embora esse mal ... Deus é o caminho para cuidar da saúde, da cabeça, de todos os problemas.

Os sinais indicativos de enfermidade são prontamente combatidos. Todos os conhecimentos de cura são colocados em prática para evitar a necessidade do cuidado médico.

Em relação aos machucados, eu coloco um pedaço de pano vermelho no local porque o vermelho ajuda o corpo a curar e a se defender melhor, eu tomo chá, faço simpatia, tudo junto, para não ter que sair em busca de hospital.

Os conhecimentos sobre as práticas de cura, como os remédios feitos com as ervas, as simpatias, os efeitos de uma variedade de chás são compartilhados entre os vizinhos e parentes. O fácil acesso a uma variedade de ervas, plantas e outros recursos de cura, proporciona às mulheres a sensação de segurança. Esforços são feitos para manter um fácil acesso a uma variedade de recursos de cura das enfermidades. As mulheres mais idosas são consideradas referências em termos de conhecimentos relativos às ervas, efeitos das práticas de cura e outras práticas de cuidado. Este tipo de conhecimento é transmitido de uma geração a outra no contexto familiar e de vizinhança.

- O principal suporte para combater a enfermidade é a crença em Deus

A crença em Deus é para as mulheres o mais importante suporte para combater a condição da enfermidade. Deus constitui o guia para a preservação da vida e para dirigir a própria condição de saúde em uma boa direção. O comportamento contrário, ou a falta de fé e crença no poder de Deus é considerado um perigo e é avaliado como a causa das enfermidades e das ocorrências difíceis da vida. Várias medidas são tomadas simultaneamente com o objetivo de combater os sinais e sintomas da enfermidade. Quando a condição de enfermidade é aparente e necessita ser combatida, as mulheres buscam primeiramente o poder da espiritualidade, depois a ajuda das ervas e outras práticas de cura, e por fim, a busca pelo cuidado médico. A medicina, os médicos e outros profissionais de saúde são vistos como tendo um atributo divino. A espiritualidade representa para as mulheres um suporte indispensável para o sucesso do cuidado médico.

A força para combater as dificuldades vem da fé, a falta de fé provoca é que provoca o mal.... Primeiramente, eu busco ajuda em Deus, depois nas ervas. Os médicos e os remédios de farmácia também ajudam, Tudo junto... Quando Deus quer, Ele também usa os médicos... Deus provê o suporte essencial em todos os casos de enfermidade.

- O cuidado médico é o último recurso, quando os recursos de cura não são suficientes e a enfermidade é perigosa

As cuidadoras domésticas fazem uma avaliação da severidade da enfermidade. Nesse sentido, é feita uma distinção entre problemas de saúde “perigosos” e “não perigosos”. As enfermidades desconhecidas são classificadas como “perigosas” e aquelas que são familiares não significam perigo.

Quando as cuidadoras percebem a ineficácia das práticas de cura, incluindo o uso das ervas, elas ficam muito ansiosas. É realizada uma análise minuciosa de todos os fatores envolvidos na situação. A severidade e os riscos de complicação relacionados à enfermidade são avaliados. Além da consideração e da avaliação de todos os fatores envolvidos, é avaliada sobretudo, a falta de experiência com os sinais e sintomas da enfermidade. O pouco conhecimento a respeito do que está acontecendo com a pessoa doente é um fator determinante no processo decisório entre ir ou não ir à busca do cuidado médico em uma instituição de saúde.

Quando os sintomas são claramente reconhecidos, a escolha entre as práticas de cura domésticas e o cuidado profissional é fácil e prontamente decidida. Quando todas as possibilidades de cura no contexto doméstico são exaustivamente praticadas e a condição de enfermidade persiste, a instituição de saúde é visualizada como a última possibilidade de tratamento. Nestes casos, o tratamento médico é prontamente requisitado.

Quando a enfermidade é conhecida, ela não é perigosa, nós temos o conhecimento para combatê-la. A enfermidade desconhecida é um problema porque ela é perigosa. Em todos os casos, nós usamos nossos próprios conhecimentos de cura. Uma perna quebrada é um caso para o cuidado médico. Quando nós não sabemos como tratar, procuramos o médico.

O processo de saída de casa em busca de uma instituição de saúde é precedido por uma avaliação detalhada dos custos e benefícios do cuidado médico. Os fatores financeiros, incluindo a necessidade de transporte que requer dinheiro ou outro suporte, o tempo disponível, assim como a necessidade de realizar os trabalhos domésticos são alguns itens considerados no processo decisório. As experiências pessoais das mulheres em relação às instituições de saúde e a efetividade dos cuidados profissionais são também analisadas. A avaliação negativa atribuída ao sistema público de saúde é considerada no processo avaliativo. As impressões negativas incluem as experiências prévias em relação ao cuidado recebido da equipe hospitalar e dos profissionais de saúde.

Há a questão financeira relacionada à compra dos remédios e as despesas de transporte. É mais fácil com as ervas. Se você é da classe social mais baixa, é uma discriminação atrás da outra. Então, no caso de doença, prefiro cuidar em casa. Eu, com a ajuda de Deus Pessoas da classe baixa como a nossa, eles pensam que nós não somos ninguém. Eu tenho medo de ir ao médico. Eu só vou mesmo quando estou realmente doente. Os hospitais públicos estão sempre em greve a fila é muito longa.

As mulheres possuem a crença de que os remédios de farmácia provocam efeitos colaterais e são perigosos. Esta crença contribui para que as mulheres optem pelo uso dos seus conhecimentos de cura.

O doutor me receitou um antibiótico para infecção na urina. Mas eu pensei, os antibióticos podem me fazer mal.... Eu tenho um remédio melhor em casa.

Além disso, existe a crença de que os medicamentos são usados apenas para combater os sintomas. As mulheres percebem uma falta de consideração dos profissionais em relação à sua condição socioeconômica e bagagem cultural. De acordo com a experiência pessoal delas, os profissionais prescrevem o uso dos medicamentos e outros tratamentos médicos sem uma relação e consideração das condições socioeconômicas que envolvem as mulheres.

O doutor não pergunta se você tem dinheiro para comprar os remédios. Eles acham que isso é um problema seu. Normalmente nós não temos dinheiro para comprar remédios. Eles prescrevem, mas o pobre nunca tem dinheiro para comprar, então é mais fácil recorrer às ervas.

DISCUSSÃO E IMPLICAÇÕES PARA O CUIDADO DE ENFERMAGEM

As mulheres que participaram deste estudo se consideravam "pobres" e aprenderam, desde a infância, a estabelecer suas relações sociais enquanto pessoas pobres. Durante a socialização primária que ocorre na infância, a estrutura de caráter da pessoa é constituída. Simultaneamente, a pessoa, a família e os modelos de comportamento social, incluindo os relativos ao processo saúde-enfermidade, se estruturam. Os profissionais de saúde devem compreender que durante a socialização primária, as experiências de vida são incorporadas de modo emocional(10). As conseqüências da pobreza, como o estigma, a sensação de inferioridade e a opressão sofrida durante a infância, continuam presentes no subconsciente até a vida adulta. É uma situação que afeta as atitudes humanas, inclusive a relativa ao processo saúde-enfermidade. Compreender as inter-relações entre as experiências pessoais e os comportamentos atuais e como isso se dá em uma pessoa representa um grande desafio para os profissionais de saúde.

A comunicação entre as culturas vai começar a melhorar apenas quando os profissionais de saúde forem capazes de reconhecer os significados de suas atitudes pessoais. Uma profunda compreensão dos outros pode ser obtida apenas quando os profissionais de saúde incrementarem o conhecimento a respeito de si mesmos(11). Para os enfermeiros e outros profissionais de saúde, alguns modos criativos, para facilitar e mobilizar os recursos sociais disponíveis, necessitam de incorporação no processo de planejamento e implementação do cuidado à saúde(12).

Uma grande importância da espiritualidade foi observada entre as mulheres moradoras de Rio Negro. A religião exerce um grande impacto sobre o cuidado da saúde e estilos de vida, e estudos objetivando o desenvolvimento do conhecimento deste tópico são requeridos, sobretudo no contexto da baixa renda(13). Neste aspecto, enfermeiros e outros profissionais responsáveis pela provisão do cuidado devem incorporar os conhecimentos científicos, religiosos e culturais em suas práticas na clínica. Isto é considerado essencial na promoção da qualidade de vida das famílias(14).

Este fator e outros que influenciam as ações da esfera social e cultural necessitam ser compreendidas, analisados e primariamente considerados na proposição de projetos por parte dos profissionais de saúde e os propositores das políticas públicas. As enfermeiras que atuam junto aos seus clientes no contexto doméstico e seus superiores hierárquicos necessitam desenvolver suas habilidades com o objetivo de oferecer um cuidado à saúde culturalmente competente. Este desafio requer uma abordagem do paciente orientada na perspective cultural, o desenvolvimento de programas educacionais junto ao quadro de profissionais e a adoção de uma política organizacional voltada ao atendimento das demandas de clientelas culturalmente diversas. Este suporte facilita o atendimento da diversidade cultural, necessário na prestação de serviços de saúde no contexto doméstico(15).

O poder de escolha da família se torna mais restrito quando um de seus membros está doente e as condições que eles têm de enfrentar os afetam. A experiência da doença, assim como a condição da vulnerabilidade confrontada nessa situação, necessita ser compreendida pelos profissionais de saúde, de forma ampla e profunda. Este conhecimento é essencial para a proposição de cuidados adequados às famílias que estejam enfrentando situações difíceis(16).

A pesquisa do processo saúde-enfermidade em culturas específicas possui um grande valor. Os resultados dessas pesquisas podem descrever como as condições sociais e culturais influenciam os comportamentos da esfera da saúde. A pesquisa esclarece também a complexa relação existente entre as condições socioeconômicas, a localização geográfica, as atitudes relativas à saúde e enfermidade e as razões que levam às decisões e comportamentos desta esfera.

Em contextos de baixa renda a esfera social é intimamente associada à bagagem cultural e estes fatores precisam ser considerados no gerenciamento do cuidado da saúde. Um objetivo desta pesquisa foi dar voz a pessoas que normalmente não possuem a oportunidade de expressar suas opiniões. Esta é uma das principais prerrogativas da pesquisa com história oral(7). A saúde das pessoas de uma nação é o retrato de seu desenvolvimento socioeconômico e os pobres ao redor do mundo não podem ser negligenciados(17). O conhecimento sobre os difíceis e complexos fatores envolvidos nas práticas de cuidado da saúde e as decisões nas famílias de baixa renda podem ser respaldados nas ações dos profissionais de saúde de forma a satisfazer as reais necessidades de cuidado à saúde das pessoas sob seus cuidados.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

Recebido em: 7.3.2007

Aprovado em: 2.11.2007

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    31 Mar 2008
  • Data do Fascículo
    Fev 2008

Histórico

  • Recebido
    07 Mar 2007
  • Aceito
    02 Nov 2007
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