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Processos éticos de enfermagem no Estado de Santa Catarina: caracterização de elementos fáticos

Resumos

OBJETIVOS: o objetivo deste estudo foi caracterizar os processos ético-profissionais de enfermagem, tramitados no Conselho Regional de Enfermagem de Santa Catarina (Coren/SC), em seus elementos fáticos (ocorrências/infrações, causas e desfechos). MÉTODO: com desenho exploratório-descritivo e documental e abordagem quantitativa, este estudo foi desenvolvido nas dependências do Coren/SC. Os dados foram coletados em 128 processos ético-profissionais de enfermagem, no período de 1999 a 2007, e analisados descritivamente quanto à origem das denúncias e processos éticos, aos denunciantes, aos denunciados, ao tema da denúncia e ao desfecho do processo. RESULTADOS: quanto aos temas, das oito categorias descritas, destacaram-se as iatrogenias, o exercício ilegal de profissões, as relações interprofissionais conflitantes e a responsabilidade profissional do enfermeiro. CONCLUSÕES: os resultados mostram a necessidade de discussão e intervenção nos problemas concretos da prática e suscitam reflexões sobre o processo de formação profissional e a continuidade dessa formação nos espaços institucionais de saúde, para reduzir as ocorrências éticas na prática profissional.

Ética em Enfermagem; Organizações de Normalização Profissional; Códigos de Ética; Responsabilidade Profissional


OBJECTIVE: The present study aimed to characterize the processes of ethical and professional nursing transacted at the Regional Nursing Council of Santa Catarina (Coren/SC), considering their factual elements (events/offenses, causes and outcomes). METHOD: This descriptive, exploratory and documentary research with a quantitative approach was developed at Coren/SC. Data was collected from 128 professional ethical processes in nursing, between 1999 and 2007, analyzed descriptively with regard to the origin of the complaints and ethical processes, the denouncers, the accused, the subject of the complaint and the outcome of the process. RESULTS: Considering the topics, out of the eight categories described, iatrogenesis was highlighted, as well as illegal professional practice, conflicting inter-professional relationships and professional responsibility of the nurse. CONCLUSION: The results show the need for discussion and intervention in concrete practical and arouse reflections about the process of professional training and continuous education in the institutional spaces of health, in order to reduce ethical occurrences in professional practice.

Nursing Ethics; Organizations of Professional Normalization; Ethics Codes; Professional Responsibility


OBJETIVO: Este estudio tuvo como objetivo caracterizar procesos éticos-profesionales de la enfermería y tramitados en el Consejo Regional de Enfermería de Santa Catarina (COREN/SC), en sus elementos fácticos (acontecimientos/infracciones, causas y desenlaces). MÉTODO: Con un dibujo exploratorio-descriptivo, documental y de abordaje cuantitativo fue desarrollado en las dependencias del COREN/SC. Los datos fueron obtenidos en 128 procesos éticos-profesionales de enfermería entre 1999 y 2007, y fueron analizados descriptivamente en relación al origen de las denuncias y procesos éticos, a los denunciantes, a los denunciados, al tema de la denuncia y al desenlace del proceso. RESULTADOS: Con relación a los temas, de las ocho categorías descriptas, se destacaron las iatrogenias, el ejercicio ilegal de profesiones, las relaciones interprofesionales conflictivas y la responsabilidad profesional del enfermero. CONCLUSIÓN: Los resultados muestran la necesidad de discutir e intervenir en los problemas concretos de la práctica, suscita reflexiones sobre el proceso de formación profesional y la continuidad de esta formación en los espacios institucionales de la salud, para reducir las ocurrencias éticas en la práctica profesional.

Ética en Enfermería; Organizaciones de Normalización Profesional; Códigos de Ética; Responsabilidad Profesional


ARTIGO ORIGINAL

IPhD, Professor, Universidade do Sul de Santa Catarina, Brasil

IIPhD, Professor, Universidade Federal de Santa Catarina, Brasil

Endereço para correspondência

RESUMO

OBJETIVOS: o objetivo deste estudo foi caracterizar os processos ético-profissionais de enfermagem, tramitados no Conselho Regional de Enfermagem de Santa Catarina (Coren/SC), em seus elementos fáticos (ocorrências/infrações, causas e desfechos).

MÉTODO: com desenho exploratório-descritivo e documental e abordagem quantitativa, este estudo foi desenvolvido nas dependências do Coren/SC. Os dados foram coletados em 128 processos ético-profissionais de enfermagem, no período de 1999 a 2007, e analisados descritivamente quanto à origem das denúncias e processos éticos, aos denunciantes, aos denunciados, ao tema da denúncia e ao desfecho do processo.

RESULTADOS: quanto aos temas, das oito categorias descritas, destacaram-se as iatrogenias, o exercício ilegal de profissões, as relações interprofissionais conflitantes e a responsabilidade profissional do enfermeiro.

CONCLUSÕES: os resultados mostram a necessidade de discussão e intervenção nos problemas concretos da prática e suscitam reflexões sobre o processo de formação profissional e a continuidade dessa formação nos espaços institucionais de saúde, para reduzir as ocorrências éticas na prática profissional.

Descritores: Ética em Enfermagem; Organizações de Normalização Profissional; Códigos de Ética; Responsabilidade Profissional.

Introdução

A discussão em busca de soluções para os conflitos éticos que ocorrem na prática assistencial remete à necessidade de estudar, identificar e caracterizar esses conflitos, ressaltando os mais frequentes, como ocorre na tomada de decisão e qual a interferência dessa para todos os envolvidos e para a expressão da profissão na sociedade.

No cotidiano da prática da enfermagem, há confronto com situações em que o profissional tem que escolher entre duas ou mais alternativas, igualmente desejáveis ou indesejáveis, e, para isso, são necessárias a reflexão, a discussão e a ponderação, considerando o conhecimento específico, os valores, princípios éticos e legais, normas ou regras de conduta agregadas. No trabalho em saúde, as decisões implicam em intervenções sobre outros seres humanos, muitas vezes em situação de fragilidade e/ou vulnerabilidade. Daí que o cuidado é também problematizado em seu conteúdo ético e deve ser tema desse tipo de análise.

Nesse sentido, essa abordagem ultrapassa a concepção essencializada do cuidado, limitado a uma ação tecnicamente competente, em direção ao compromisso com a autocrítica e com uma filosofia que possa abrir a discussão sobre o cuidado profissional(1).

Os profissionais de enfermagem precisam possuir, além do preparo técnico e atualização constante, compromisso ético para dirimir ao máximo as ocorrências danosas ao paciente

A responsabilidade profissional é a que consta da regulamentação ou legislação do exercício profissional e do código de ética da respectiva profissão(3). Responsabilidade é definida como a "possibilidade de prever os efeitos do próprio comportamento e de corrigi-lo com base em tal previsão"(4). O profissional necessita conhecer o seu código de ética e a legislação que rege a sua profissão, sob pena de não prever as consequências das suas ações.

O exercício profissional da enfermagem é regido pela Lei nº7.489, de 25 de junho de 1986(5), regulamentada pelo Decreto nº94.406, de 8 de junho de 1987(6). Já o Código de Ética dos Profissionais de Enfermagem (CEPE) leva em consideração a necessidade e o direito de assistência em enfermagem da população, os interesses do profissional e de sua organização. O CEPE está centrado na pessoa, família e coletividade e pressupõe que os trabalhadores de enfermagem estejam aliados aos usuários na luta por assistência sem riscos e danos e acessível a toda população(7). Também é fundamental a existência de um órgão que zele pelo exercício da ética profissional, com atuação educativa e de referência nas situações que envolvam conflitos éticos. Visando atender essas necessidades, surgiram as comissões de ética de enfermagem (CEE), normatizadas pela Resolução COFEN 172/94(8).

A Comissão de Ética de Enfermagem (CEE) tem como finalidades: garantir a conduta ética dos profissionais de Enfermagem na instituição; zelar pelo exercício ético dos profissionais de enfermagem na instituição, combatendo o exercício ilegal da profissão, educando, discutindo e divulgando o CEPE; notificar o Conselho Regional de Enfermagem de sua jurisdição sobre irregularidades, reivindicações, sugestões e infrações éticas(8).

A discussão sobre uma ocorrência ética na enfermagem pode ser realizada entre a pessoa que a provocou, a pessoa que foi afetada e o responsável pela equipe. Essa também pode ser avaliada pela comissão de ética de enfermagem da instituição e resultar em ação educativa para evitar novas ocorrências ou, ainda, ser encaminhada como uma denúncia ao Conselho Regional de Enfermagem (Coren). A denúncia poderá evoluir para a instauração de processo ético, caso haja indícios de infração ética.

No Capítulo V do CEPE, Resolução Cofen 311/2007, em seu Art.13, "Considera-se infração ética a ação, omissão ou conivência que implique em desobediência e/ou inobservância às disposições do Código de Ética dos Profissionais de Enfermagem"(7). A denúncia ética é definida como a comunicação formal de uma situação em que a atuação profissional do enfermeiro, técnico e auxiliar de enfermagem não está em conformidade com a Lei do Exercício Profissional e/ou com o CEPE, realizada por profissional de enfermagem, cliente/paciente, família, instituição de saúde, comissões de ética, ou qualquer outro interessado(9). Apesar dessas definições, cabe questionar a capacidade de um código contemplar toda a complexidade da prática, mesmo que frequentemente revisado, já que se situa sempre numa linha de provisoriedade ou transitoriedade.

Neste estudo, elementos fáticos foram definidos como os fatos descritos e necessários ao andamento do processo, sendo eles: ocorrências/infrações, causas e desfechos. As ocorrências éticas são os fatos que causaram dano ou prejuízo a outra pessoa, consequentes a atitude ou ação de um profissional, podendo ser caracterizados como um tipo de infração ao código de ética. O desfecho é o resultado final do processo, a deliberação que o finaliza e representa a alternativa julgada como mais apropriada às circunstâncias.

Frente ao exposto, foi estabelecida como questão de pesquisa: quais os elementos fáticos contidos nos processos éticos concluídos e analisados no Coren/SC, no período de 1999 a 2007? Dessa forma, este artigo tem como objetivo analisar os elementos fáticos presentes nos processos éticos, concluídos e arquivados no Coren/SC, no período de 1999 a 2007.

Método

Trata-se de estudo quantitativo de desenho exploratório-descritivo e documental. O presente recorte é parte de uma tese de doutorado

O Projeto foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa envolvendo Seres Humanos (CEPSH) da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), sob Protocolo nº141/09 FR-261865. Foram analisadas 208 denúncias e 128 processos ético-profissionais concluídos. Para a coleta de dados, foi utilizado um roteiro, aplicado a todos os documentos acima referidos, contendo a data, a ocorrência ou tema da denúncia, a categoria profissional do denunciado, o denunciante (preservando o seu anonimato e identificando apenas a categoria profissional, se cliente, familiar ou outro), o local da ocorrência (somente o tipo de serviço, não identificando o nome da instituição) e a conclusão ou encaminhamento. Os dados foram agrupados, definidas as categorias dos temas, digitados no programa Excel e analisados no software EpiInfo 6.04, através de estatística descritiva.

Resultados

Quanto aos denunciantes, excluindo os de ofício e por representação, destacam-se os enfermeiros, seguidos pelas Comissões de Ética em Enfermagem (CEE) das instituições nas quaisocorreram as infrações, os auxiliares de enfermagem e os médicos (Figura 1).


Na Tabela a seguir são apresentadas as categorias denunciadas, tanto em denúncias rejeitadas quanto em processos éticos concluídos. Em razão da data de ocorrência dos processos éticos, ainda havia a categoria do Atendente de Enfermagem.

Quanto ao tema da denúncia, os processos éticos foram organizados em 26 temas agrupados em 8 categorias, quais sejam: iatrogenias, exercício ilegal de profissões, relações interprofissionais, responsabilidade do enfermeiro, agressão e maus-tratos a pacientes, crimes diversos, negligência, política e imagem profissional. O total das ocorrências (158) supera o número de processos éticos estudados (128), em razão de alguns processos possuírem mais de uma ocorrência (Tabela 2).

Quanto ao encaminhamento/desfecho do processo, alguns tiveram mais de uma penalidade, resultando em 149 desfechos que representam o resultado final do processo, a deliberação que o concluiu e a alternativa julgada como mais apropriada às circunstâncias (Tabela 3).

Discussão

No item relacionado aos denunciantes, representado pela Figura 1, é importante salientar que as denúncias dos enfermeiros e das CEEs, em sua maioria, resultaram em processos éticos, o que pode estar relacionado à atribuição do enfermeiro como coordenador e supervisor da assistência de enfermagem. As CEEs recebem várias denúncias, apuram preliminarmente os fatos, colhem os depoimentos e emitem um parecer, encaminhando, quando necessário, ao Presidente do Coren. Em outras situações, as CEEs limitam-se a relatar os fatos e os depoimentos colhidos.

Verifica-se pequeno número de pacientes e familiares denunciantes, possivelmente por uma realidade na qual persiste a desinformação sobre os direitos e deveres do usuário, sobre os canais desse tipo de manifestação ou, ainda, pelo silêncio imposto por relações assimétricas e pelo medo das represálias em outros atendimentos nos serviços de saúde.

Dentre as categorias dos denunciados (Tabela 1), o enfermeiro é o profissional que recebe maior número de denúncias, destacando-se a responsabilidade compartilhada por sua competência aferida na Lei do Exercício Profissional da Enfermagem (7.498/86)(5). Em outros casos, a denúncia foi consequente à permissão de pessoas não habilitadas exercerem atividades de enfermagem, caracterizando o exercício ilegal da profissão de técnico e de auxiliar de enfermagem. Isso está implicado na ação do sistema Conselho Federal/Conselhos Regionais para proteger a sociedade daqueles que não possuem habilitação para exercer a enfermagem e, consequentemente, dos riscos e possíveis danos decorrentes de tais ações.

As denúncias contra atendentes de enfermagem e parteiras limitaram-se aos anos de 1999 e 2000, quando ainda havia remanescentes do processo de profissionalização em Santa Catarina. Destaca-se que as denúncias contra a "equipe de enfermagem" tiveram como desfecho a rejeição e o arquivamento, por provas insuficientes ou dificuldade de nominar os envolvidos.

Algumas denúncias por relações conflitantes levaram à averiguação in loco, oportunizando ao Serviço de Fiscalização identificar irregularidades, comumente relacionadas ao exercício ilegal da profissão de auxiliar ou técnico de enfermagem. O presidente do Coren, de ofício, instaura processo ético contra os exercentes ilegais da profissão e também ao enfermeiro responsável técnico pelo serviço de enfermagem da instituição em questão.

Os temas das denúncias dos processos éticos (Tabela 2) mostram as iatrogenias como motivo de 34 (21,5%) das ocorrências; tanto as medicamentosas (15 casos) quanto as não medicamentosas (19 casos) estiveram associadas à imprudência, imperícia ou negligência. O termo iatrogenia designa "os aspectos negativos ou nocivos da influência que o médico e seu comportamento têm sobre o tratamento"(12). A ampliação do conhecimento, próprio da enfermagem e das ações específicas e interdependentes das ações médicas, expõe a enfermagem ao mesmo risco da categoria médica(13). Desse modo, iatrogenia do cuidado de enfermagem refere-se à privação desses cuidados, sua imposição ou prestação insatisfatória, de forma a determinar algum transtorno, dano ou prejuízo ao bem-estar do paciente(13).

As iatrogenias podem ser denominadas como ocorrências éticas, eventos adversos, incidente crítico negativo e falhas, por riscos gerados por procedimentos e má interpretação de informação, relacionada à imprudência ou imperícia, e, ainda, à omissão ou negligência, quando há uma má avaliação do risco potencial de uma ação(14).

Destacaram-se a administração de medicamento não prescrito pelo médico, ou seja, troca inadvertida de medicação, a via de administração ou dosagem errada como erros associados à falta de atenção e à falta de conhecimento do profissional.

A legislação brasileira acolheu o princípio da indesculpabilidade, portanto, a alegação de desconhecimento não é pretexto para o descumprimento de normas e leis(3). Já o estudo das ocorrências iatrogênicas, ao contrário de negar os benefícios resultantes da assistência, tem contribuído para a busca da melhoria contínua da qualidade dos serviços de enfermagem, num binômio indissociável: a segurança de quem cuida e de quem recebe o cuidado(15). Os termos falha técnica relacionada a erros técnicos ou procedimentais e falha de conduta caracterizada por falhas na atitude, no comportamento, na abordagem interpessoal ou interprofissional podem ser expressos na discussão das iatrogenias e na conceituação das infrações ético-legais que resultam em prejuízo ao paciente(16). Para tal, a educação permanente é instrumento fundamental na potencialização e desenvolvimento pessoal, por meio da capacitação técnica, aquisição de novos conhecimentos e conceitos, os quais devem ser traduzidos em atitudes, em estreita relação com o processo de formação e de trabalho(17).

O exercício ilegal da profissão de médico, de enfermeiro, de técnico ou de auxiliar de enfermagem incidiu em 33 (20,9%) denúncias. Essas, em sua maioria, estiveram relacionadas à administração de medicamentos não prescritos e à expedição de atestados de saúde, à coordenação do serviço de enfermagem por técnicos ou auxiliares de enfermagem e a pessoas não habilitadas exercendo as funções de técnico e auxiliar de enfermagem.

O exercício ilegal da profissão ou atividade é delito tipificado na Lei de Contravenções Penais (Art.47)quando prevê que não se pode exercer profissão ou atividade econômica ou anunciar que exerce sem preencher as condições que, por lei, estão subordinadas a seu exercício, ficando assim sujeito à pena prevista(3). Cabe ressaltar que a Lei do Exercício Profissional da Enfermagem destaca que as atividades elementares de enfermagem somente poderão ser desempenhadas sob a orientação e supervisão do enfermeiro e também releva a transitoriedade da função do atendente de enfermagem, categoria extinta no Estado.

Outro conjunto importante de denúncias, com incidência de 28 (17,7%) ocorrências, foi relacionado às relações conflitantes dos profissionais de enfermagem entre si e com a equipe de saúde e, em sua maioria, motivadas por assédio moral, confronto de competências e abuso de poder. Grande parte desses processos, envolvendo enfermeiros, foram arquivados por ausência de materialidade, sugerindo conflitos pessoais. O termo assédio moral se refere a qualquer conduta abusiva por palavras, ações ou comportamentos que possam prejudicar a integridade física ou psíquica do trabalhador(18). As consequências físicas e emocionais interferem na qualidade de vida da pessoa, tanto no ambiente de trabalho como na sua vida pessoal.

A responsabilidade ético-profissional do enfermeiro, evidenciada em 22 (14,0%) denúncias, esteve relacionada à permissão do exercício da enfermagem por pessoas sem a devida qualificação, à falta de supervisão e orientação na realização de atividades de enfermagem por técnicos e auxiliares. Isso remete à noção de responsabilidade profissional que emerge da relação entre a violação de um dever jurídico, a inobservância dos preceitos descritos nos códigos de ética e as demais normas disciplinadoras da profissão(3).

O profissional enfermeiro deve ser capacitado a atuar, com senso de responsabilidade social e compromisso com a cidadania, como promotor da saúde integral do ser humano. Dotado dos conhecimentos requeridos para o exercício de competências e habilidades gerais para desenvolver a atenção à saúde, à tomada de decisão, à comunicação, à liderança, à administração e gerenciamento e à educação permanente(19). Dessa forma, muitas denúncias contra o enfermeiro ocorreram pela responsabilidade compartilhada ou solidária na assistência de enfermagem, haja vista que o CEPE enuncia em seu Art.38, referente a responsabilidades e deveres, "Responsabilizar-se por falta cometida em suas atividades profissionais, independente de ter sido praticada individualmente ou em equipe"(7).

Agressão verbal e maus-tratos a pacientes foram motivos de denúncias em 13 (8,2%) processos éticos, demonstrando relações assimétricas e autoritárias entre o profissional de enfermagem e o paciente e família. Muitas das desigualdades dessa relação não se constituem apenas em diferenças, mas em relações de forças desiguais, com implicações morais, o que destaca a importância da comunicação para a redução dessas assimetrias(20). Essas denúncias, em sua maioria, tiveram como denunciados auxiliares e técnicos de enfermagem, o que demanda analisar razões implicadas nessa frequência e possíveis relações com condições de trabalho e formação ética desses profissionais.

Também com 13 (8,2%) denúncias, destacaram-se os crimes diversos, caracterizando-se como desvio de psicotrópicos, principalmente para uso próprio, fraude contra o Sistema Único de Saúde (preenchimento de dados no prontuário após alta hospitalar), adulteração de registros de enfermagem, assédio sexual a paciente e a acompanhante e, em ocorrências únicas, o plágio, a participação de uma profissional de enfermagem em tráfico de bebê e em prática de aborto. Crime é um fato proibido por lei, cuja ocorrência acarreta uma pena, instituída em nome da segurança social do Estado e do benefício da coletividade(21). Embora com infrações de diferentes gravidades, a categorização reuniu ocorrências que foram além dos preceitos éticos, mas de responsabilidade criminal, não excluídos crimes agrupados em outras categorias.

As denúncias por negligência, presentes em 11 (7,0%) processos, caracterizaram-se por atos de omissão, deixando de fazer algo necessário à assistência. A negligência causa danos ao paciente e pode ser fruto do desinteresse por parte do profissional, mas, também, pode ser consequente ao cansaço e sobrecarga de atividades, resultante de condições inadequadas de trabalho, impostas a muitos profissionais da enfermagem em instituições de saúde(22).

Caracterizou-se como política e imagem profissional o conjunto de 4 denúncias (2,5%), especialmente as relacionadas aos débitos para com o Coren/SC (2) e à incitação de profissionais de enfermagem contra uma gestão do Coren/SC (1). Todos os profissionais em exercício estão obrigados à inscrição no Coren de seu Estado e ao pagamento das anuidades.

O último caso, ainda nessa categoria, refere-se a título não comprovado ou divulgação de falsa imagem, consequente a anúncio do título de enfermeiro por técnico de enfermagem. Profissionais de enfermagem são denominados equivocadamente como enfermeiros; a má-fé ocorre quando esses assim se autodenominam para obtenção de vantagem.

Dentre os encaminhamentos/desfechos dos processos éticos (Tabela 3), 37,5% dos processos foram arquivados e 6,1% absolvidos por não caracterizarem infração ético- profissional. Em 29,5% dos processos, a penalidade foi de advertência verbal, o que consiste na admoestação ao infrator, de forma reservada, a qual será registrada em seu prontuário, na presença de duas testemunhas(7). Em 15,4% dos processos, foi aplicada a penalidade de censura que se caracteriza pela repreensão divulgada em publicações oficiais dos Conselhos Federal e Regional e em jornais de grande circulação. A multa, que consiste na obrigatoriedade de pagamento de uma a dez vezes o valor da anuidade da categoria profissional, à qual pertence o infrator, foi a penalidade aplicada em 6,1% dos processos(7).

A suspensão se traduz pela proibição do exercício profissional da enfermagem por período não superior a 29 dias, acompanhada por divulgação nas publicações oficiais dos Conselhos Federal e Regional, jornais de grande circulação e comunicada aos órgãos empregadores(8), constituindo-se no desfecho de 4,1% dos processos ético-profissionais. Já a cassação do direito ao exercício profissional, penalidade aplicada em 1,3%, implica na perda do direito ao exercício da enfermagem, do mesmo modo divulgada(7).

Conclusões

Ao demonstrar os elementos fáticos dos processos éticos, ocorridos no Coren/SC, disponibiliza-se uma visão sobre o problema que pode ser semelhante ao de outros Estados. No contexto estudado, destacaram-se as ocorrências relacionadas à iatrogenia, ao exercício ilegal de profissões, às relações interprofissionais conflitantes e à responsabilidade profissional do enfermeiro. Esses resultados se caracterizam como sérios problemas éticos, com repercussão na qualidade do cuidado, segurança do paciente, condições de trabalho e na imagem da profissão na sociedade.

A enfermagem confirma o compromisso com o cuidado do ser humano, pois expõe suas debilidades e, ao mesmo tempo, suas fortalezas ao trabalhar com a diversidade de sujeitos, situações de cuidado, tecnologia e recursos humanos e materiais. Os embates do dia a dia da prática, as situações conflitantes e os dilemas acompanham o profissional, haja vista que os problemas da prática não são só técnicos, mas éticos, morais, sociais, econômicos, políticos.

As ocorrências estudadas remetem a reflexões sobre o processo de formação profissional e à sua continuidade nos espaços institucionais de saúde, à necessidade de discussões sobre os problemas vivenciados por algum profissional e pelo conjunto da profissão.

Cuidar do ser humano em situações de fragilidade física, emocional e social é atividade complexa e o preparo para essa atividade também deve englobar várias dimensões e responsabilidades. Reconhecer as suas limitações e buscar auxílio poderia contribuir para minimizar os erros, principalmente aqueles relacionados às iatrogenias.

Também foi possível, nesta pesquisa, demonstrar indícios de como a enfermagem julga e estabelece para si mesma o julgamento das suas ações na prática. Saber gerenciar os riscos da assistência é essencial para que se coloque em prática um dos princípios fundamentais do CEPE, no compromisso da profissão com a saúde e qualidade de vida. Ao apresentar os resultados deste estudo, pretende-se, também, estimular o interesse pela criação de comissões de ética de enfermagem nas instituições de saúde, visando garantir um espaço de discussão e práticas exemplares por parte dos profissionais da enfermagem.

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  • Processos éticos de enfermagem no Estado de Santa Catarina: caracterização de elementos fáticos

    Dulcinéia Ghizoni SchneiderI; Flávia Regina Souza RamosII
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    * e, para tal, é fundamental gerenciar as situações de risco na assistência de enfermagem. Nesse sentido, os profissionais de enfermagem necessitam conhecer as responsabilidades ética, profissional, civil e penal de suas ações, e também os seus direitos e deveres, para evitar ocorrências de negligência, imperícia ou imprudência.
  • (10)

    ** e explora dados quantitativos, coletados diretamente nos arquivos da autarquia, sem a retirada dos documentos do local e mediante termo de compromisso de utilização de dados. A consulta às fontes totalizou duzentas horas, de junho a outubro de 2009. Em virtude da ausência de base de dados informatizados aberta à consulta (como já acontece em alguns Conselhos Profissionais ou Tribunais Civis e Penais), no caso, foram atendidos princípios aplicados pela OAB de que o processo ético disciplinar é sigiloso durante sua tramitação (princípio do sigilo das investigações), mas possui caráter público após decisão final (princípio da publicidade dos resultados atingidos), de modo que não foram analisados processos em curso. O recorte temporal se deve ao fato de os processos éticos, disponibilizados nos arquivos da Autarquia, terem sido iniciados a partir de 1999 e, no ano 2007, todos os processos já estavam encerrados.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      31 Ago 2012
    • Data do Fascículo
      Ago 2012

    Histórico

    • Recebido
      10 Jan 2012
    • Aceito
      03 Ago 2012
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