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Os significados da morte e do morrer: a perspectiva de usuários de crack

Resumos

O consumo de crack pode constituir-se em forma inautêntica da existência que leva a pessoa a viver de forma imprópria o ser-para-a-morte. Diante dessa realidade, objetivou-se compreender o significado da morte e do morrer para o usuário de crack e desvelar os sentidos atribuídos a esses significados. Realizou-se pesquisa qualitativa, fundamentada no método fenomenológico, com 12 usuários de crack, em processo terapêutico, em um Centro de Atenção Psicossocial - Álcool e Drogas (CAPSad), no período de fevereiro a abril de 2011, em Teresina, Piauí. Os resultados mostram que a morte é significada, onticamente, por companheira, parceira, passagem, viagem e pelo próprio crack. Conclui-se que esse significado expressa uma vivência inautêntica, direcionada ao convívio incessante do crack, acompanhada por sentimento de nulidade e descompromisso relacional.

Morte; Cocaína Crack; Enfermagem


The consumption of crack can constitute in an inauthentic form of the existence that leads a person to live improperly the being-toward-death. Given this reality, this study aimed to comprehend the significance of death and dying for the user of crack and to unveil the meanings attributed to this significance. This qualitative study was conducted, based on the phenomenological method, with 12 crack users, in the therapeutic process, in a Psychosocial Care Center - Alcohol and Drugs (CAPSad), in the period from February to April 2011, in Teresina, Piauí. The results show that death is signified, ontically, as a companion, a partner, a passage, a journey and as the crack itself. It was concluded that this significance expressed an inauthentic experience, directed toward the incessant interaction with crack, accompanied by a feeling of nullity and relational disengagement.

Death; Crack Cocaine; Nursing


El consumo de cocaína puede estar en un modo auténtico de la existencia que lleva la persona a vivir mal ser-para-la-muerte. Ante esta realidad se tuvo como objetivo comprender el significado de la muerte y el morir para los consumidores del crack revelar los significados atribuidos a estos significados. Se realizó un estudio cualitativo sobre el método fenomenológico con 12 usuarios de crack en el proceso terapéutico en un Centro de Atención Psicosocial de alcohol y otras drogas en el período de febrero a abril de 2011 en Teresina, Piauí. Los resultados muestran que la muerte se entiende, onticamente por socio, asociación, entradas, viajes y el propio crack. Se concluye que el sentido es expresado en una experiencia inauténtica dirigido a la convivencia de la grieta incesante acompañada por un sentimiento de la nada y la retirada relacional.

Muerte; Cocaina Crack; Enfermería


ARTIGO ORIGINAL

Os significados da morte e do morrer: a perspectiva de usuários de crack

Fernando José Guedes da Silva JúniorI ; Claudete Ferreira de Souza MonteiroII

IMestrando, Departamento de Enfermagem, Universidade Federal do Piauí, Brasil. Professor, Faculdade de Educação São Francisco, Brasil

IIDoutor, Professor, Faculdade de Saúde, Ciências Humanas e Tecnológicas do Piauí, Brasil. Professor Adjunto, Centro de Ciências da Saúde, Universidade Federal do Piauí, Brasil

Endereço para correspondência Endereço para correspondência: Fernando José Guedes da Silva Júnior Universidade Federal do Piauí. Campus Universitário Ministro Petrônio Portella Bairro: Ininga CEP: 64049-550, Teresina, PI, Brasil E-mail: fernandoguedesjr@gmail.com

RESUMO

O consumo de crack pode constituir-se em forma inautêntica da existência que leva a pessoa a viver de forma imprópria o ser-para-a-morte. Diante dessa realidade, objetivou-se compreender o significado da morte e do morrer para o usuário de crack e desvelar os sentidos atribuídos a esses significados. Realizou-se pesquisa qualitativa, fundamentada no método fenomenológico, com 12 usuários de crack, em processo terapêutico, em um Centro de Atenção Psicossocial - Álcool e Drogas (CAPSad), no período de fevereiro a abril de 2011, em Teresina, Piauí. Os resultados mostram que a morte é significada, onticamente, por companheira, parceira, passagem, viagem e pelo próprio crack. Conclui-se que esse significado expressa uma vivência inautêntica, direcionada ao convívio incessante do crack, acompanhada por sentimento de nulidade e descompromisso relacional.

Descritores: Morte; Cocaína Crack; Enfermagem.

Introdução

O consumo de substâncias tem marcado a história da civilização. No princípio, algumas dessas alternativas (chás, fumos mágicos, óleos medicinais e outros) eram empregadas de modo comedido, quase sempre em rituais, com desígnio curativo e/ou ritualístico, bem como na perspectiva de atenuação de angústias e sofrimentos.

No decorrer dos séculos, houve desvirtuação dessa finalidade, passando essas substâncias a serem utilizadas na perspectiva de aumentar o prazer de quem a utiliza, exacerbando o consumo para além das fronteiras do curativo/medicinal. Destaca-se, ainda, que esse consumo esteve articulado à visão mercadológica das substâncias, a qual contribuiu de forma decisiva para o crescimento da oferta, valorização e ampliação do consumo. Nesse contexto, ampliou-se o acesso do homem a veículos inebriantes que deturpam a percepção e humor, tendo como consequência, na pluralidade das vezes, alteração do comportamento.

Em consonância com tal realidade, esses veículos foram caracterizados como substâncias lícitas e ilícitas. Nas últimas décadas, o consumo das drogas ilícitas galgou de quantidades consideradas irrelevantes para a produção e distribuição em escala global, como um produto comercial que, além de proibido, tem seu controle em megacartéis do contrabando. Os resultados dessa expansão ocasionam desordens sociais, econômicas e de saúde, tornando-se sério problema de justiça e de saúde pública(1-2).

Dentre as substâncias ilícitas mais consumidas, de modo abusivo, no mundo, destacam-se a cocaína, a heroína e a maconha. Em maior relevo, como problema de saúde pública, está a cocaína, caracterizada por efeitos nocivos mais intensos e cujo consumo vem exacerbando-se a partir de 1987, principalmente na forma de pedra: o crack(3-4).

Estima-se que o crack seja consumido por 0,3% da população mundial e que a maior parte dos usuários, cerca de 70%, concentram-se nas Américas(5). No Brasil, seu uso atinge 0,7% da população geral, constituindo-se uma das substâncias ilícitas mais utilizadas, perdendo somente para a maconha (8,8%), para os solventes (6,1%) e para a cocaína (2,3%)(6-8).

O consumo de crack tem se ampliado significativamente e com rapidez alarmante desde que foi concebido. Assim, é necessário enfatizar que a instantânea euforia desencadeada pelo consumo dessa droga reforça e motiva, para a maioria dos indivíduos, o desejo de um novo episódio de consumo, estabelecendo relação íntima e quase incoercível, de dependência entre o sujeito e a droga.

Embora sintam e conheçam as consequências, os usuários de crack ultrapassam qualquer obstáculo, dirigindo-se cada vez mais ao "fundo do poço", numa tentativa desenfreada de sobreviver por meio da droga. Esse fato remete ao questionamento: seria essa droga uma morte cotidiana?

Pode-se refletir que no fenômeno da dependência de drogas repousa a privação de valor à vida e a ausência de verdadeiro e significativo sentido existencial. O usuário de crack não pertence a nada e a ninguém, mas na busca para sobreviver através da droga, ele morre a cada dia. A morte é um modo de ser, que a presença assume no momento em que é(9).

O dependente de crack, frente às dificuldades cotidianas, encontra nessa droga um caminho supostamente efetivo para superar sua fragilidade e evitar a desintegração do seu ego. Por tal razão, a elaboração e implementação de medidas efetivas de enfrentamento configuram-se em árdua tarefa.

Por outro lado, a Enfermagem, como uma ciência do cuidado, depara-se, também, na cotidianidade do assistir profissional, com pessoas, sejam homens ou mulheres, cada vez mais jovens, que se entregam a esse morrer diário pelo uso do crack. Buscar, portanto, compreender como são feitas essas escolhas e tomadas de decisões contribuirá para visão mais ampla do modo de agir desses indivíduos e quiçá seja um ponto de partida para iniciar abordagem terapêutica centrada no cliente. Para tanto, é preciso adentrar no mundo subjetivo desses usuários, conhecer quais as conexões fazem para deixar para trás leis, famílias, afetos e se dedicarem a viver com e pela droga.

Para a construção desse conhecimento tornou-se imperativa a aproximação com o referencial fenomenológico, uma vez que esse permite desvelar sentidos, compreender sentimentos, revelar o que se encontra velado, possibilitando chegar à essência do fenômeno.

Desse modo, os objetivos traçados para este estudo foram: compreender os significados da morte e do morrer para a pessoa usuária de crack e desvelar os sentidos atribuídos a esses significados.

Percurso Metodológico

Realizou-se pesquisa qualitativa, fundamentada no método fenomenológico. O método utilizado foi desenvolvido em três etapas estreitamente entrelaçadas: a descrição, a redução e a compreensão.

A descrição fenomenológica foi o momento inicial em que se interrogou o sujeito para que falasse livremente sobre o fenômeno pesquisado em seu mundo-vida. O segundo momento constituiu-se como redução fenomenológica, quando se procurou distanciamento de todas as concepções e conhecimentos pré-estabelecidos (epoché) sobre o tema e buscou-se selecionar partes da descrição, consideradas essenciais ao desvelamento dos objetivos propostos. Por fim, realizou-se a compreensão fenomenológica ou hermenêutica, quando as expressões ingênuas dos discursos foram substituídas por expressões próprias do pesquisador(10-11).

A pesquisa foi desenvolvida em um Centro de Atenção Psicossocial - Álcool e Drogas (CAPSad), no período de fevereiro a abril de 2011. Como critério de inclusão dos sujeitos considerou-se: ser usuário de crack, maior de 18 anos, em processo terapêutico e que, voluntariamente, aceitasse participar do estudo com a assinatura do termo de consentimento livre e esclarecido.

Os sujeitos pesquisados foram 12 usuários de crack, do sexo masculino, na faixa etária compreendida entre 18 e 45 anos, com ensino fundamental completo. Todos possuíam percurso semelhante quanto à dinâmica do consumo de drogas: sempre iniciando com o uso do loló e lança-perfume, seguido do consumo da maconha, cocaína e crack.

Destaca-se que a escolha e quantidade de sujeitos participantes do estudo não foi intencional. O fato de serem exclusivamente do sexo masculino, é justificado, levando-se em consideração que, no período de obtenção dos relatos, não havia mulheres em processo terapêutico pelo uso do crack. O número de entrevistados, por sua vez, se deu por meio da saturação das informações obtidas nos relatos.

Foram apresentados aos participantes os objetivos do estudo, a metodologia e a forma de sua participação. Promoveu-se a privacidade para a entrevista, permitindo, assim, a oportunidade de adesão de forma interessada e voluntária, conforme preconiza a Resolução nº196/96, do Conselho Nacional de Saúde (CNS). Destaca-se que foram obedecidos os princípios da ética, sigilo e confidencialidade. O estudo obteve aprovação pelo Comitê de Ética em Pesquisa (CEP) da Faculdade de Saúde, Ciências Humanas e Tecnológicas do Piauí (NOVAFAPI) por meio da CAAE nº0468.0.043.000-10.

Os dados foram obtidos por meio de um roteiro de perguntas abertas, mediados pela entrevista fenomenológica com as seguintes questões: comente livremente sobre o uso de crack por você. Como você relaciona ser-usuário-de-crack com a morte e o morrer? Esses questionamentos permitiram ouvir relatos de vivência com o crack e como a morte se entrelaça nesse modo de estar e ser-no-mundo. Nesse momento, consideraram-se as particularidades da clientela estudada, buscando-se estratégias favoráveis à condução da descrição do fenômeno aos olhos de quem o experiencia.

Os resultados são apresentados por unidades de significação, agrupados pelo conteúdo destacado dos relatos dos sujeitos e analisados com base em estudos sobre o tema, subsidiado por conceitos do pensamento fenomenológico de Martin Heidegger.

Resultados e Discussão

A leitura atentiva foi repetida várias vezes até que se tornasse clara, tomando um sentido significativo, conhecido por "compreensão vaga e mediana", pois inicia-se com o sujeito que fala. A partir de então, as unidades de significação acerca da morte e do morrer para usuários de crack foram organizadas.

Como primeira unidade de significação, foi possível compreender que, para esses usuários de crack, a morte e o morrer são significados como companheiro e parceiro na vida. Essa relação com o fenômeno é estabelecida por meio de conflito cotidiano e quase indelével entre viver e morrer. Há associação direta da vivência com a droga e a morte, já que "o homem significa a partir das vivências e vivencia a partir dos significados que dá"(12).

A morte pode vir a qualquer momento. Ela é uma companheira (D1).

A morte anda o tempo todo contigo. Ela te acompanha em todos os momentos. Ela é um parceiro. É como se ela tivesse olhando pra você, seguindo você, falando de você (D3).

O fenômeno em questão é significado como uma presença necessária, diária, que acompanha, guia, fala; enfim, indica. Crack e morte estão entrelaçados no cotidiano desses usuários, orientando suas vidas, determinando valores, vinculando suas existências. Quando, entretanto, significa a morte como companheira, parceira de toda hora, é uma expressão da sua nulidade, da não presença, da falta de expectativa de mudança. Essa significação revela a morte como algo esperado, que vem junto a e com a droga.

A compreensão vaga e mediana revela também a morte e o morrer como viagem e passagem. Esse significado produz uma dolorosa consciência e gera os mais diversos sentimentos, como perda, dor e tristeza. Para esses sujeitos, a morte é compreendida como transcendência, percebida como passagem e não como um fim.

A morte é como se fosse uma passagem (D8).

Uma viagem que eu sei que não tem volta, mas uma viagem (D11).

A morte caracteriza-se por ser própria, irremissível, insuperável, certa e indeterminada. No entanto, essa pode ser antecipada quando o homem está perdido no impessoal, na impropriedade e na inautenticidade(9). Essa significação (viagem e passagem), atribuída à morte e ao morrer, é assumida pelo usuário de crack como um viver pelas coisas e pelos objetos. Reside aí a inautenticidade, revelando que, no cotidiano do consumo de crack, repousa carência de estima à vida.

Nos relatos é possível perceber que esses usuários são conscientes de que a morte virá. Eles entendem que ela é pré-sença viva do movimento do existir humano. Estão certos da própria morte, embora não saibam o dia, nem a hora.

Valorizar a morte e o morrer como passagem e viagem, ao invés de reconhecê-la como existencialmente livre, é viver na decadência, de modo impróprio e inautêntico, utilizando-se a fuga como meio de evitar a angústia. É alienar-se, é colocar-se na medianidade(13). O homem se angustia justamente porque é um ser de possibilidades, e sua angústia existencial se deve ao fato de poder se tornar uma impossibilidade, por ser mortal. A morte é a possibilidade da impossibilidade, da qual não se pode fugir, mas que o homem tenta a todo custo distanciar-se dela.

Na segunda unidade de significação, os sujeitos se referiram à morte não como finitude de vida, mas de forma indiferenciada; um acontecer a qualquer hora, expressão de um nada.

Eu podia morrer qualquer hora. É a única coisa que eu sei. Eu vou morrer. Mas como usuário de crack a gente não ver morrer não. A gente não sabe o que é a morte não (D6).

Quando tava na "fissura" eu pensava que ia morrer o tempo todo. Vem um sentimento ruim. E era maior quando usava o crack (D10).

O ser-para-a-morte é o sentido autêntico da existência. Com a morte não há outros projetos a realizar. A finitude é a última possibilidade de poder-ser. Quando a morte se torna realidade findou-se a existência. Assim, a morte denota medo por desvelar o poder-não-estar-mais-presente, bem como por evidenciar o fechamento às inúmeras possibilidades de vir-a-ser(9).

Para os sujeitos deste estudo, não havia essa consciência ontológica da morte e do morrer. Não há referência ao temor do desaparecimento da presença no mundo, mas um caminhar junto, uma certeza de que estando com o crack também se está com a morte.

Assim é que, para muitos desses sujeitos, a morte e o morrer são também significados como sendo o próprio crack. Essa experiência indica a presença de uma dimensão espaço/temporal, na qual esse homem perde sua rede de referências, sente-se desligado, experimenta a falta de conexão com seu lugar de origem, sente-se em órbita no lugar onde habita(12). Eles não conseguem referir sua posição, seu papel, enfim, seu lugar no mundo - sua referência é o crack.

Morte é usar crack [...]. O cara usando o crack ele tá morto. Só não tá morto porque não está enterrado. Tá fora de si. Assalta os amigos, os parentes, qualquer um só pra fumar. Pra mim a morte tava sendo mesmo o crack (D3).

A morte é usar crack. Eu quando passava mais de quatro dias usando eu pensava: essa porra está me matando. A gente do "meio" sabe que o crack mata com quatro cinco anos. Se não for pela saúde é pelas coisas que a gente faz quando a gente usa (D4).

Nessa unidade de significação, os relatos evidenciam que o consumo de crack faz com que eles percam, cada vez mais, o incentivo para a busca de sua identidade pessoal, sendo, pois, consequentemente, lançados na impropriedade de si mesmos, na inautenticidade. Essa compreensão pode ser apreendida ao se considerar que o usuário de crack ao estar-lançado no cotidiano do consumo de drogas está limitando-se, dessa forma, na vivência de sua sexualidade, do lazer, da vida social e laborativa.

A morte é o fim de carreira, é quando tudo acaba. O fim da estória. E o crack vem trazendo rapidez nesse negócio porque ele te leva, destrói tua saúde, destrói teu ciclo de vida [...] família, amigos [...] ele te deixa cego, surdo, tu perde a noção (D7).

Com o crack você não sente sono, vontade de comer, de ter relação, de fazer sexo. Você só sente vontade de usar ela. De beber e usar ela. Isso lá é vida? Pra mim isso é morte, isso é o fim. Porque a gente não sente vontade de viver (D12).

Significar a morte como sendo o próprio crack é uma compreensão do quanto essa droga pode distanciá-lo de todos e de tudo. Morrer é desaparecer para a família, os amigos e o trabalho. É perder-se em si mesmo, é desvalorizar-se e valorizar a droga, de tal forma que para se estar com ela é capaz de mentir, roubar, envolver familiares, amigos, em troca de seu maior abismo: o crack.

Ao encarar a morte o homem defronta-se com a vida. Nesse momento, abdicam-se as opiniões convencionais e se escolhe autonomamente como vai viver, ou seja, vive seu ser-próprio. Nesse contexto, viver-com-o-crack aproximando-se da finitude.

O ser do homem é um ser de possibilidades, é um poder-ser(9). O ex-sistir implica em estar-lançado nessas possibilidades. Dessa forma, o usuário de crack está sempre frente às alternativas, diante das quais deverá sempre fazer escolhas. Assim, o ex-sistir humano se estrutura em termos e possibilidades e a existência é a escolha entre vir-a-ser ou findar-se. A escolha é uma vivência porque está sempre acompanhada de profundos e incomodativos sentimentos(12).

Quando se está em uma situação de escolher entre as alternativas é porque ocorreu um desacerto, um desarranjo, naquilo que estava certo e definido e está como que suspenso no ar. Ao se encontrar em crise, experimenta-se sentimentos de instabilidade e angústia(14). Na realidade em que este estudo se insere, isso é notadamente percebido por meio da instabilidade familiar e conjugal evidenciada nos relatos.

Minha família já tava totalmente desestruturada. Comigo usando o crack tudo piorou (D1).

Meus filhos e minha mulher me abandonaram. Depois essa droga me fez perder tudo. Meus pais e meus irmãos (D4).

Destaca-se que, para a análise das falas dos sujeitos deste estudo, foi necessário aprofundar-se a compreensão acerca da dimensão relacional e a construção da identidade do homem. Essa dimensão relacional, que funda a constituição do homem, "só pode ser em referência a outro que não é ele mesmo"(12).

É, pois, a partir dessa consciência de mundo que ele vai organizando suas relações, fazendo suas escolhas, afetando e sendo afetado por cada uma delas. São idas e vindas que, aos poucos, vão se unindo e constituindo o ser. Quando, porém, os obstáculos, sejam de ordem emocional, financeira, relacional, são tamanhos, esse homem vai buscar no oferecimento inicial fácil, compensatório dessas perdas - que é a droga, a forma de construir essa sua identidade. "Para o dependente, a droga é uma questão de sobrevivência"(12).

Nesse contexto, a relação que os sujeitos deste estudo fazem entre a morte e o morrer está intimamente ligada ao próprio uso do crack, expressando uma vivência inautêntica, apresentada por sentimento de nulidade, descompromisso relacional e voltada à simbiose com o crack.

Considerações finais

A fenomenologia abre-se como uma nova concepção para a compreensão dos significados atribuídos aos fenômenos contemporâneos. Essa abordagem metódica representa a constituição da busca do ser e dos significados por eles experienciados.

O significado da morte e do morrer expresso pelos usuários de crack onticamente se mostram por meio do companheirismo, parceria, passagem, viagem e como sendo o próprio crack. Nesse contexto, é evidente que o significado da morte e do morrer para o usuário de crack é objeto difícil e delicado de ser explorado.

Esses usuários, ao se permitirem refletir sobre esse fenômeno, se deixam identificar por meio de palavras, gestos e posicionamentos nos quais esses se reconhecem como seres mortais, embora não estejam preparados para a vivência do sentido autêntico da existência: ser-para-a-morte. Destaca-se que muitos dos significados encontrados para esse grupo são também compartilhados por outros, muitas vezes pela maioria da população, como, por exemplo, o sentido de transcendência.

A partir deste estudo, mediados pela hermenêutica heideggeriana, tornou-se possível penetrar nesse mundo relacional do usuário de crack. Eles vivenciam uma dualidade entre viver e morrer em detrimento do consumo dessa substância. Nesse contexto, desvelou-se a morte e o morrer como transcendência, denotando um viver de forma decadente, de modo impróprio e inautêntico, considerando-se que essa vivência faz parte da escolha dessa pessoa no seu modo de ser pré-sença.

A despeito da relevância da contribuição ao conhecimento produzido, o estudo apresenta limitações. Uma delas se refere à constituição da amostra composta exclusivamente por usuários do sexo masculino, deixando de conhecer o fenômeno no âmbito feminino. A outra limitação se refere ao fato de esses usuários se encontrarem em tratamento no momento da coleta, o que poderia constituir reflexões mais conscientes. Nesse sentido, sugere-se ampliar a pesquisa de modo a envolver mulheres.

Referências

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Recebido: 16.6.2011

Aceito: 6.1.2012

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  • Endereço para correspondência:

    Fernando José Guedes da Silva Júnior
    Universidade Federal do Piauí.
    Campus Universitário Ministro Petrônio Portella
    Bairro: Ininga
    CEP: 64049-550, Teresina, PI, Brasil
    E-mail:
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      05 Jun 2012
    • Data do Fascículo
      Abr 2012

    Histórico

    • Recebido
      16 Jun 2011
    • Aceito
      06 Jan 2012
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