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Determinantes sociais do HIV/AIDS e violência por parceiro íntimo: questionando o papel da raça, etnia e cor da pele


A violência por parceiro íntimo (VPI) e o HIV/AIDS afetam a vida de milhões de mulheres em todo o mundo, limitando a expectativa e a qualidade de vida. Uma em cada três mulheres é afetada pela VPI. Em 2018, quase 40 milhões de pessoas em todo o mundo estavam vivendo com HIV. As experiências de VPI aumentam o risco de HIV/AIDS porque as pessoas que sofrem desse tipo de violência têm uma capacidade limitada para negociar o sexo seguro, são menos propensas a usar preservativos e, geralmente, são parceiras de pessoas envolvidas em comportamentos de risco, como uso de drogas e atividade sexual sem preservativo com outros parceiros(11 Campbell, JC, Baty, ML, Ghandourb, RM, Stockman, JK, Franciscod, L, Wagman, J. Int J Inj Contr Saf Promot. 2008 Dec; 15(4): 221-231doi:10.1080/17457300802423224
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). As pessoas que vivem com HIV (PVH) podem sofrer progressão acelerada da doença se expostas à VPI, principalmente quando o seu parceiro usa de controle para interferir na ingestão de medicamentos para tratamento do HIV ou para forçar a atividade sexual(22 Anderson JC, Campbell JC, Glass NE, Decker MR, Perrin N, Farley J. Impact of intimate partner violence on clinic attendance, viral suppression and CD4 cell count of women living with HIV in an urban clinic setting. AIDS Care - Psychological and Socio-Medical Aspects of AIDS/HIV. 2018;30(4):399-408. https://doi.org/10.1080/09540121.2018.1428725. doi: 10.1080/09540121.2018.1428725
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). Infelizmente, a VPI e a HIV/AIDS afetam desproporcionalmente as “pessoas de maioria global” (PGM, por sua sigla em inglês), também conhecidas como pessoas de cor (POC, sigla em inglês) e as pessoas que vivem em situação de pobreza.

Pessoas com maiores vulnerabilidades à VPI e à HIV/AIDS são frequentemente descritas de acordo com a sua raça, etnia e cor da pele, muitas vezes, perpetuando falsos vínculos biológicos ou fisiológicos com os resultados da doença. Por outro lado, os determinantes sociais da saúde, assim como as condições nas quais as pessoas da maioria global desenvolvem e mantêm relações românticas e sexuais influenciam fortemente a transmissão do HIV/AIDS e a exposição à VPI(33 Sharpe TT, Voûte C, Rose MA, Cleveland J, Dean HD, Fenton K. Social Determinants of HIV/AIDS and Sexually Transmitted Diseases Among Black Women: Implications for Health Equity. J Women’s Health. [Internet]. 2012 Mar [cited Jan 20, 2020];21(3):249-54. Available from: http://www.liebertpub.com/doi/10.1089/jwh.2011.3350
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). Neste editorial, há comentários sobre maneiras pelas quais dois determinantes sociais da saúde - pobreza e desigualdade gênero - são construções complexas pelas quais podemos interrogar nosso uso de raça e gênero como variáveis intersetoriais usadas em pesquisas sobre essas epidemias de saúde que se relacionam. Como exemplo, discute-se o impacto do HIV/AIDS e da VPI na saúde de mulheres negras nos EUA.

Apesar dos sucessos recentes no controle de novas infecções pelo HIV, as mulheres negras nos EUA continuam a experimentar efeitos desproporcionais em relação à saúde. Quase um quinto das novos infectados por HIV são mulheres negras e cerca de uma em cada duas mulheres negras vivendo com HIV são afetadas pela VPI. Além disso, cerca de um quarto das mulheres negras que vivem com HIV nos EUA não estão realizando os devidos cuidados relacionados a essa infecção, portanto, apresentando maus resultados no seu tratamento(44 Hamby S. On the use of race and ethnicity as variables in violence research. Psychol Violence. 2015;5(1):1-7.doi: 10.1037/a0038470
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).

Embora esses fatos sejam desencorajadores, eles não podem ser totalmente compreendidos sem exames cuidadosos e detalhados das causas subjacentes a essas disparidades. “Negro” (ou, em muitos casos, afro-americano) e “mulher”, como categorias raciais e de gênero, não descrevem um grupo monolítico de pessoas sem experiências individuais ou contextos culturais específicos. Contudo, como descritores, eles podem fornecer pontos de partida para interrogar o papel que as categorias sociais de opressão desempenham em nosso entendimento das iniquidades em saúde e soluções subsequentes.

Fatores como raça, etnia e cor da pele são frequentemente usados de forma intercambiável com outros marcadores de marginalização para descrever as populações mais afetadas pelo HIV/AIDS e pela VPI. Essas características, geralmente, estão alinhadas às desvantagens econômicas, culturais, históricas, religiosas ou relacionadas a outras características sociais. Raça e cor da pele, características físicas superficiais usadas para agrupar pessoas de diferentes etnias, culturas, idiomas ou países de origem têm significados culturais. Nos EUA, as pessoas identificam sua raça e/ou etnia; e a autoidentificação geralmente é enquadrada em uma sociedade que determina o valor de um indivíduo com base nessas características(44 Hamby S. On the use of race and ethnicity as variables in violence research. Psychol Violence. 2015;5(1):1-7.doi: 10.1037/a0038470
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).

As mulheres negras nos EUA, geralmente, lidam com vários estressores condicionados por determinantes sociais da saúde que são únicos para as circunstâncias das suas vidas. Por exemplo, as mulheres negras têm maior probabilidade de viver na pobreza do que a maioria das outras mulheres, exceto as mulheres nativas americanas. Historicamente, as políticas governamentais limitavam onde as famílias negras poderiam viver, onde seus membros poderiam se educar e com quem poderiam se casar. Isso criou redes estreitas de vizinhança com muitas vantagens para a conexão social, porém, sem investimento monetário, tornaram-se ambientes desorganizados devido ao menor número de recursos para oportunidades econômicas. Atividades que podem acelerar a transmissão do HIV/AIDS e a causa da VPI, como a venda e o consumo de drogas, bem como o trabalho sexual, tornaram-se formas de suprir as necessidades básicas da família(33 Sharpe TT, Voûte C, Rose MA, Cleveland J, Dean HD, Fenton K. Social Determinants of HIV/AIDS and Sexually Transmitted Diseases Among Black Women: Implications for Health Equity. J Women’s Health. [Internet]. 2012 Mar [cited Jan 20, 2020];21(3):249-54. Available from: http://www.liebertpub.com/doi/10.1089/jwh.2011.3350
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).

A desigualdade de gênero nas relações sexuais e nas famílias é outro determinante social que afeta as experiências relacionadas ao HIV/AIDS e à VPI entre as mulheres negras. Por exemplo, a revolução sexual nas décadas de 1960 e 1970 potencializou mudanças entre as mulheres brancas, incluindo maior aceitação do sexo fora do casamento e controle das decisões reprodutivas. No entanto, as estruturas familiares das mulheres negras sofreram instabilidade devido ao controle econômico restrito e à disponibilidade limitada de parceiros sexuais. As taxas de encarceramento entre os homens negros cresceram, removendo-os de seus lares e tirando os seus ganhos das suas famílias. Menos homens negros para atender aos desejos sociais e sexuais das mulheres negras resultou em menor poder de negociação em relação ao uso de preservativos e num maior número de parceiros sexuais. As redes sexuais tornaram-se menores, aumentando as oportunidades de transmissão sexual do HIV/AIDS em um ambiente economicamente desgastado(33 Sharpe TT, Voûte C, Rose MA, Cleveland J, Dean HD, Fenton K. Social Determinants of HIV/AIDS and Sexually Transmitted Diseases Among Black Women: Implications for Health Equity. J Women’s Health. [Internet]. 2012 Mar [cited Jan 20, 2020];21(3):249-54. Available from: http://www.liebertpub.com/doi/10.1089/jwh.2011.3350
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).

Embora a pobreza e a desigualdade de gênero forneçam um contexto para a compreensão da vida das mulheres negras no que se refere ao HIV/AIDS e à VPI, seu exame não apresenta uma imagem completa, na qual a resiliência conduz as respostas das mulheres negras a essas desigualdades sociais. Por exemplo, as mulheres negras usam de estratégias de segurança em relação à VPI e se baseiam em fontes de força existentes para superar os efeitos da VPI e do HIV. As mulheres que experimentam a VPI buscam fontes de força para obter motivação para mudar sua situação, deixar o seu agressor ou cuidar de sua saúde. Elementos como a espiritualidade/religião ou crença em Deus, a autoconfiança ou a crença em si mesma e o contato com amigos ou família, com a polícia, com organizações voltadas à pessoas que sofrem VPI e assistência médica(55 Sabri B, Holliday CN, Alexander KA, Huerta J, Cimino A, Callwood GB, et al. Cumulative violence exposures: Black women’s responses and sources of strength. Soc Work Public Health. 2016;31(3). doi: 10.1080/19371918.2015.1087917
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) suscitaram nessas mulheres sentimentos de empoderamento e resiliência. Além disso, identidades compartilhadas, estratégias exclusivas de enfrentamento e a conscientização do significado social e político podem preservar o bem-estar das mulheres negras diante das adversidades. Assim, abordagens para a prevenção do HIV e o envolvimento com o cuidado do HIV entre mulheres negras que sofrem de VPI devem considerar esses importantes aspectos derivados da cultura para transformar a saúde.

A raça, a etnia e a cor da pele não funcionam sozinhas na nossa compreensão das disparidades relacionadas à saúde entre as mulheres negras que sofrem de VPI. O acesso a serviços de prevenção, tratamento, assistência e apoio são mecanismos essenciais para diminuir os efeitos dessas epidemias que afetam grandes populações. Pesquisas e programas anteriores abordam a prevenção e o tratamento, porém, com foco em comportamentos individuais. Por outro lado, as práticas atuais e as abordagens de pesquisa requerem uma visão mais ampla para incluir respostas de vários níveis, relevantes cultural e socialmente, que diminuam o ônus do HIV/AIDS e da VPI nas populações mais vulneráveis aos seus efeitos.

References

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    Anderson JC, Campbell JC, Glass NE, Decker MR, Perrin N, Farley J. Impact of intimate partner violence on clinic attendance, viral suppression and CD4 cell count of women living with HIV in an urban clinic setting. AIDS Care - Psychological and Socio-Medical Aspects of AIDS/HIV. 2018;30(4):399-408. https://doi.org/10.1080/09540121.2018.1428725 doi: 10.1080/09540121.2018.1428725
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    » http://www.liebertpub.com/doi/10.1089/jwh.2011.3350
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    Hamby S. On the use of race and ethnicity as variables in violence research. Psychol Violence. 2015;5(1):1-7.doi: 10.1037/a0038470
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    » https://doi.org/10.1080/19371918.2015.1087917

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    08 Jun 2020
  • Data do Fascículo
    2020
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