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Diabetes e Covid-19: o que aprendemos com as duas pandemias em curso

A pandemia pela COVID-19, infecção causada pelo coronavírus SARS-CoV-2, iniciada em Wuhan (China), em 2019, se sobrepôs a uma pandemia pré-existente, a do Diabetes Mellitus Tipo 2 (DM2)(11 Anghebem MI, Rego FGM, Picheth G. COVID-19 and Diabetes: two distinct pandemics and their relationship. Rev Bras Anal Clin. 2020;52(2):154-9. doi: http://doi.org/10.21877/2448-3877.20200001
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). A literatura mostra que o DM2 constitui fator de risco para a evolução desfavorável da COVID-19, assim como para contraí-la, o que significa uma maior susceptibilidade ao vírus. Também foi demonstrado que pacientes com diabetes com bom controle apresentavam evolução mais favorável em relação aos não controlados(11 Anghebem MI, Rego FGM, Picheth G. COVID-19 and Diabetes: two distinct pandemics and their relationship. Rev Bras Anal Clin. 2020;52(2):154-9. doi: http://doi.org/10.21877/2448-3877.20200001
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-22 Rahmani-Kukia N, Abbasi A. Physiological and Immunological Causes of the Susceptibility of Chronic Inflammatory Patients to COVID-19. Infection: Focus on Diabetes. Front Endocrinol (Lausanne). 2021;12:576412. doi: http://doi.org/10.3389/fendo.2021.576412
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).

O UK Prospective Diabetes Study (UKPDS) mostrou que o controle do DM2 previne complicações crônicas(33 UK Prospective Diabetes Study (UKPDS) Group. Intensive blood-glucose control with sulphonylureas or insulin compared with conventional treatment and risk of complications in patients with type 2 diabetes (UKPDS 33). Lancet. 1998;352:837-53). Diante da COVID-19, novos conhecimentos reiteram a importância do controle do DM2, agora enfocando a prevenção da forma grave de uma doença infecciosa aguda.

O DM2 é definido por alterações na homeostase da glicose e por um quadro de inflamação crônica, mas também induz alterações no sistema imune, tornando o paciente acometido por essa doença mais susceptível a infecções, inclusive causada por vírus, como o SARS-CoV-2. O DM2 também provoca ativação do sistema renina-angiotensina-aldosterona e lesão endotelial, com consequente aumento do risco de trombose. Ora, a COVID-19 é uma doença que pode provocar hiperinflamação e tem sido associada ao risco aumentado de ocorrência de fenômenos tromboembólicos, especialmente o tromboembolismo pulmonar, mais frequentemente observado em pacientes com pneumonia grave, internados em unidades de terapia intensiva (UTI)(44 Lim S, Bae JH, Kwon, HS, Nauck MA. COVID-19 and diabetes mellitus: from pathophysiology to clinical management. Nat Rev Endocrinol. 2021;17:11-30 https://doi.org/10.1038/s41574-020-00435-4
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). As razões para a associação de DM2 e COVID-19 são: a menor reserva funcional de órgãos provocada pelo DM2, que pode passar despercebida em circunstâncias normais, mas que vem à tona assim que surge um desafio da magnitude da COVID-19(44 Lim S, Bae JH, Kwon, HS, Nauck MA. COVID-19 and diabetes mellitus: from pathophysiology to clinical management. Nat Rev Endocrinol. 2021;17:11-30 https://doi.org/10.1038/s41574-020-00435-4
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). Cumpre salientar que a doença inflamatória crônica causada pelo DM2 é sobreposta pela inflamação decorrente da COVID-19, que tem então suas consequências grandemente amplificadas.

Além dos aspectos mencionados acima, o DM2 está associado a outras condições clínicas, como obesidade, hipertensão arterial, coronariopatia e doença renal crônica, fatores de risco para o desenvolvimento da forma grave da COVID-19. A insuficiência renal aguda tem sido comumente observada em pacientes internados em UTI, especialmente nos pacientes com DM2(44 Lim S, Bae JH, Kwon, HS, Nauck MA. COVID-19 and diabetes mellitus: from pathophysiology to clinical management. Nat Rev Endocrinol. 2021;17:11-30 https://doi.org/10.1038/s41574-020-00435-4
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).

A COVID-19 tem provocado sequelas significativas, principalmente em pacientes que tiveram a forma grave dessa doença, como aqueles que requereram ventilação mecânica. Aparentemente, as sequelas são observadas com maior frequência, e em forma mais grave, em pacientes com DM2. A explicação seria a menor reserva funcional dos órgãos, além de lesão aguda de maior magnitude, possivelmente provocada pelo hiperinflamação. Resta saber ainda se o grupo de pacientes que sobreviveu à COVID-19 não terá agravado o DM2, como, aliás, parece ser o caso. A COVID-19 acomete o pâncreas, o que poderia causar perda de células beta, com possível agravamento do DM2, por exemplo, com a necessidade de administrar insulina, ou requerer doses mais altas dos antidiabéticos orais. Ademais, não nos parece irrazoável presumir que as complicações do diabetes possam aparecer mais precocemente e de forma mais grave.

Frente à pandemia da COVID-19, inicialmente os serviços de saúde fecharam suas agendas para atendimento de rotina presencial, com a recomendação de que pacientes com diabetes mantivessem o isolamento social, além de adotar as outras medidas de proteção, como o uso de máscara e a utilização de álcool gel. Houve a necessidade de reestruturação dos serviços, organização de agendas e sala de espera, regulamentação da teleconsulta e capacitação dos profissionais de saúde para atendimento seguro dos pacientes com e sem sintomas gripais(55 American Diabetes Association. 5. Facilitating Behavior Change and well-being to improve health outcomes. Standards of Medical Care in Diabetes - 2020. Diabetes Care. 2021, 44(suppl.1):S53-S72. doi: http://doi.org/10.2337/dc20-S005
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). A pandemia mostrou de maneira contundente um problema crônico dos serviços de saúde, ou seja, a necessidade do atendimento multiprofissional aos pacientes com diabetes.

Diante da sazonalidade das doenças virais, a vacinação contra a influenza foi acelerada. Atenção especial deve ser dada ao esquema vacinal do paciente com DM2 para pneumonia(55 American Diabetes Association. 5. Facilitating Behavior Change and well-being to improve health outcomes. Standards of Medical Care in Diabetes - 2020. Diabetes Care. 2021, 44(suppl.1):S53-S72. doi: http://doi.org/10.2337/dc20-S005
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) e COVID-19 de acordo com os protocolos vigentes. Cabe destacar que ainda não há consenso sobre os testes para avaliar o grau de imunização nas pessoas vacinadas para COVID-19(66 Levi M, Levi JE. Nota Técnica SBIm: SBIm não recomenda a realização de sorologia para avaliar resposta imunológica às vacinas COVID-19 [Internet]. 26 mar 2021 [Acesso 8 jun 2021]. Disponível em: https://sbim.org.br/images/files/notas-tecnicas/nota-tecnica-sbim-sorologia-pos-vacinacao-210326.pdf
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).

Ao considerar a importância do bom controle da glicemia para menor susceptibilidade e melhor evolução da COVID-19, em pessoas com diabetes, intensificar o monitoramento da glicemia tanto dos assintomáticos, e mais rigorosamente daqueles com quadro gripal ou durante um quadro de descompensação aguda é fundamental(11 Anghebem MI, Rego FGM, Picheth G. COVID-19 and Diabetes: two distinct pandemics and their relationship. Rev Bras Anal Clin. 2020;52(2):154-9. doi: http://doi.org/10.21877/2448-3877.20200001
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2 Rahmani-Kukia N, Abbasi A. Physiological and Immunological Causes of the Susceptibility of Chronic Inflammatory Patients to COVID-19. Infection: Focus on Diabetes. Front Endocrinol (Lausanne). 2021;12:576412. doi: http://doi.org/10.3389/fendo.2021.576412
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3 UK Prospective Diabetes Study (UKPDS) Group. Intensive blood-glucose control with sulphonylureas or insulin compared with conventional treatment and risk of complications in patients with type 2 diabetes (UKPDS 33). Lancet. 1998;352:837-53
-44 Lim S, Bae JH, Kwon, HS, Nauck MA. COVID-19 and diabetes mellitus: from pathophysiology to clinical management. Nat Rev Endocrinol. 2021;17:11-30 https://doi.org/10.1038/s41574-020-00435-4
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).

A alimentação saudável (sem, por exemplo, alimentos ultraprocessados) é recomendada(22 Rahmani-Kukia N, Abbasi A. Physiological and Immunological Causes of the Susceptibility of Chronic Inflammatory Patients to COVID-19. Infection: Focus on Diabetes. Front Endocrinol (Lausanne). 2021;12:576412. doi: http://doi.org/10.3389/fendo.2021.576412
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3 UK Prospective Diabetes Study (UKPDS) Group. Intensive blood-glucose control with sulphonylureas or insulin compared with conventional treatment and risk of complications in patients with type 2 diabetes (UKPDS 33). Lancet. 1998;352:837-53

4 Lim S, Bae JH, Kwon, HS, Nauck MA. COVID-19 and diabetes mellitus: from pathophysiology to clinical management. Nat Rev Endocrinol. 2021;17:11-30 https://doi.org/10.1038/s41574-020-00435-4
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-55 American Diabetes Association. 5. Facilitating Behavior Change and well-being to improve health outcomes. Standards of Medical Care in Diabetes - 2020. Diabetes Care. 2021, 44(suppl.1):S53-S72. doi: http://doi.org/10.2337/dc20-S005
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). Aumentar o consumo de vegetais não processados industrialmente, diminuir a ingestão de alimentos caracterizados como fast food e adotar hábitos como a hidratação adequada devem ser estimulados. Ainda não se dispõem de dados consistentes que mostrem que suplementos alimentares possam contribuir para a prevenção e tratamento da COVID-19.

A atividade física deve ser estimulada e adaptada ao novo contexto, pois ela regula e fortalece o sistema imune dos pacientes com diabetes, além dos benefícios cardiovasculares e da redução do estresse(22 Rahmani-Kukia N, Abbasi A. Physiological and Immunological Causes of the Susceptibility of Chronic Inflammatory Patients to COVID-19. Infection: Focus on Diabetes. Front Endocrinol (Lausanne). 2021;12:576412. doi: http://doi.org/10.3389/fendo.2021.576412
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). Caminhar, diminuir o tempo sentado, praticar atividade orientada (presencial ou virtual), ao ar livre e aderir ao protocolo para prevenção de COVID-19 podem constituir medidas seguras. A realização de exercícios de membros inferiores e respiratórios no domicilio deve ser estimulada.

Com relação ao diagnóstico da COVID-19, é importante reforçar a importância de não realizar testes sem solicitação médica e não se medicar sem a orientação por profissional da saúde; procurar assistência médica precoce, em serviços estruturados para o atendimento da doença; manter medicamentos prescritos para o controle do diabetes e lembrar que mudanças terapêuticas podem ser necessárias(44 Lim S, Bae JH, Kwon, HS, Nauck MA. COVID-19 and diabetes mellitus: from pathophysiology to clinical management. Nat Rev Endocrinol. 2021;17:11-30 https://doi.org/10.1038/s41574-020-00435-4
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).

Situações graves podem requerer internação hospitalar, de modo que o manejo do paciente hospitalizado com DM2, que já era um desafio antes da COVID-19, teve exacerbada a sua importância. A capacitação da equipe multiprofissional e a individualização do tratamento são aspectos-chave para a boa evolução do paciente, com ou sem COVID-19. A insulinização adequada e a reavaliação da prescrição de medicamentos orais, a depender da gravidade da doença, aumentaram este desafio intra-hospitalar.

Pacientes com diabetes podem apresentar problemas agudos que necessitam atendimento de urgência, por exemplo, um infarto agudo do miocárdio ou cetoacidose diabética, que devem ser diagnosticados e tratados precocemente. É necessário orientar a população a não ter receio de procurar serviço de saúde em meio à pandemia sempre que apresentar sintomas sugestivos das complicações mencionadas.

Diante da complexidade das duas pandemias, os pacientes devem seguir as recomendações e cuidados da equipe de saúde. As mensagens comunicadas por vários tipos de mídia podem não trazer o rigor científico (fake news) e a veracidade da informação necessária para definir comportamentos adequados na prevenção e tratamento do diabetes e da COVID-19.

Restam ainda várias questões, que poderão ser respondidas em estudos futuros, como as consequências da agressão à ilhota pancreática pela COVID-19; se haverá aumento na incidência de DM1 e da prevalência do DM2; se a pandemia imporá mudanças de comportamento que favoreçam maior controle de doenças crônicas como o diabetes.

References

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    » https://sbim.org.br/images/files/notas-tecnicas/nota-tecnica-sbim-sorologia-pos-vacinacao-210326.pdf

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    29 Out 2021
  • Data do Fascículo
    2021
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