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CONSTRUINDO O SIGNIFICADO DA RECORRÊNCIA DA DOENÇA: A EXPERIÊNCIA DE MULHERES COM CÂNCER DE MAMA

CONSTRUYENDO EL SIGNIFICADO DE LA REINCIDENCIA DE LA ENFERMEDAD: LA EXPERIENCIA DE MUJERES CON CÁNCER DE SENO

CONSTRUCTING THE MEANING OF DISEASE RECURRENCE: THE EXPERIENCE OF WOMEN WITH BREAST CANCER

Resumos

Considerando a recorrência como possibilidade na vida das mulheres com câncer de mama, este trabalho teve como objetivo identificar como elas constróem o significado dessa possibilidade, a partir de sua própria experiência. O estudo pautou-se nas concepções do interacionismo simbólico, utilizando-se a análise de conteúdo para analisar as entrevistas de 12 mulheres mastectomizadas. A possibilidade da recorrência se mostrou presente no espaço de vida das mulheres estudadas, configurada pela incerteza vivida e representada nas unidades temáticas identificadas em seus depoimentos ao revelarem, estar "vivendo com uma doença estigmatizante", "convivendo com sentimento negativo" e "enfrentado preconceitos".

câncer de mama; recorrência; incerteza


Considerando la reincidencia como posibilidad en la vida de mujeres con cáncer de seno, éste trabajo tuvo como objetivo identificar como ellas construyen el significado de ésta posibilidad, a partir de sus propias experiencias. El estudio se basó en las concepciones del interaccionismo simbólico, utilizando el análisis de contenido de las entrevistas de 12 mujeres mastectomizadas. La posibilidad de reincidencia hace parte de la vida de las mujeres estudiadas, a través de la incertidumbre y representada en las unidades temáticas identificadas en sus declaraciones cuando revelaron estar "viviendo con una enfermedad estigmatizante", "conviviendo con sentimientos negativos" y "enfrentando preconceptos".

cáncer de seno; reincidencia; incertidumbre


Regarding recurrence as a possibility in the lives of women with breast cancer, this work aimed at identifying how they construct the meaning of such possibility from their own existence. The study was based on the conceptions of symbolic interactionism and the content analysis of interviews with 12 mastectomized women was used. The possibility of recurrence was present in the lives of the women under study. It was configured by the uncertainty that they experienced and represented in the thematic units identified in their accounts when they stated to be "living with a stigmatizing disease", "experiencing a negative feeling" and "facing prejudice".

breast cancer; recurrence; uncertainty


Artigo Original

CONSTRUINDO O SIGNIFICADO DA RECORRÊNCIA DA DOENÇA: A EXPERIÊNCIA DE MULHERES COM CÂNCER DE MAMA

Ana Maria de Almeida1 1 Professor Doutor, e-mail: amalmeid@eerp.usp.br; 2 Professor Titular; 3 Doutoranda do Programa de Pós-Graduação em Enfermagem em Saúde Pública; 4 Mestranda do Programa de Pós-Graduação em Enfermagem em Saúde Pública. Escola de Enfermagem de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo, Centro Colaborador da OMS para o desenvolvimento da pesquisa em enfermagem

Marli Villela Mamede2 1 Professor Doutor, e-mail: amalmeid@eerp.usp.br; 2 Professor Titular; 3 Doutoranda do Programa de Pós-Graduação em Enfermagem em Saúde Pública; 4 Mestranda do Programa de Pós-Graduação em Enfermagem em Saúde Pública. Escola de Enfermagem de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo, Centro Colaborador da OMS para o desenvolvimento da pesquisa em enfermagem

Marislei Sanches Panobianco3 1 Professor Doutor, e-mail: amalmeid@eerp.usp.br; 2 Professor Titular; 3 Doutoranda do Programa de Pós-Graduação em Enfermagem em Saúde Pública; 4 Mestranda do Programa de Pós-Graduação em Enfermagem em Saúde Pública. Escola de Enfermagem de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo, Centro Colaborador da OMS para o desenvolvimento da pesquisa em enfermagem

Maria Antonieta Spinoso Prado4 1 Professor Doutor, e-mail: amalmeid@eerp.usp.br; 2 Professor Titular; 3 Doutoranda do Programa de Pós-Graduação em Enfermagem em Saúde Pública; 4 Mestranda do Programa de Pós-Graduação em Enfermagem em Saúde Pública. Escola de Enfermagem de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo, Centro Colaborador da OMS para o desenvolvimento da pesquisa em enfermagem

Maria José Clapis1 1 Professor Doutor, e-mail: amalmeid@eerp.usp.br; 2 Professor Titular; 3 Doutoranda do Programa de Pós-Graduação em Enfermagem em Saúde Pública; 4 Mestranda do Programa de Pós-Graduação em Enfermagem em Saúde Pública. Escola de Enfermagem de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo, Centro Colaborador da OMS para o desenvolvimento da pesquisa em enfermagem

Considerando a recorrência como possibilidade na vida das mulheres com câncer de mama, este trabalho teve como objetivo identificar como elas constróem o significado dessa possibilidade, a partir de sua própria experiência. O estudo pautou-se nas concepções do interacionismo simbólico, utilizando-se a análise de conteúdo para analisar as entrevistas de 12 mulheres mastectomizadas. A possibilidade da recorrência se mostrou presente no espaço de vida das mulheres estudadas, configurada pela incerteza vivida e representada nas unidades temáticas identificadas em seus depoimentos ao revelarem, estar "vivendo com uma doença estigmatizante", "convivendo com sentimento negativo" e "enfrentado preconceitos".

PALAVRAS CHAVE: câncer de mama, recorrência, incerteza

CONSTRUCTING THE MEANING OF DISEASE RECURRENCE: THE EXPERIENCE OF WOMEN WITH BREAST CANCER

Regarding recurrence as a possibility in the lives of women with breast cancer, this work aimed at identifying how they construct the meaning of such possibility from their own existence. The study was based on the conceptions of symbolic interactionism and the content analysis of interviews with 12 mastectomized women was used. The possibility of recurrence was present in the lives of the women under study. It was configured by the uncertainty that they experienced and represented in the thematic units identified in their accounts when they stated to be "living with a stigmatizing disease", "experiencing a negative feeling" and "facing prejudice".

KEY WORDS: breast cancer, recurrence, uncertainty

CONSTRUYENDO EL SIGNIFICADO DE LA REINCIDENCIA DE LA ENFERMEDAD: LA EXPERIENCIA DE MUJERES CON CÁNCER DE SENO

Considerando la reincidencia como posibilidad en la vida de mujeres con cáncer de seno, éste trabajo tuvo como objetivo identificar como ellas construyen el significado de ésta posibilidad, a partir de sus propias experiencias. El estudio se basó en las concepciones del interaccionismo simbólico, utilizando el análisis de contenido de las entrevistas de 12 mujeres mastectomizadas. La posibilidad de reincidencia hace parte de la vida de las mujeres estudiadas, a través de la incertidumbre y representada en las unidades temáticas identificadas en sus declaraciones cuando revelaron estar "viviendo con una enfermedad estigmatizante", "conviviendo con sentimientos negativos" y "enfrentando preconceptos".

PALABRAS CLAVES: cáncer de seno, reincidencia, incertidumbre

O câncer de mama apresenta, em sua trajetória, diferentes situações de ameaça aos portadores da doença como aquelas relacionadas à integridade psicossocial, à incerteza do sucesso do tratamento, à possibilidade da recorrência, à morte, entre outros.

Atualmente, apesar das dificuldades no diagnóstico precoce e na efetividade do tratamento, a maioria das mulheres acometidas viverá com sua doença por muitos anos. Nesse sentido, melhorar a qualidade de suas vidas representa um desafio tanto para elas como para os profissionais de saúde.

Diante do aumento da sobrevida, é fundamental que compreendamos a experiência de se viver com o câncer de mama, pois a presença constante da incerteza aparece como elemento importante na vidas dessas mulheres e se manifesta, muitas vezes, através do medo de uma recorrência da doença.

Utilizando a adaptação da teoria da incerteza à doença crônica, podemos afirmar que a incerteza é usada pelos indivíduos como base para sua auto-organização e reformulação da sua visão de vida. Nesse estado de ordem, há uma nova visão de mundo envolvendo o pensamento probabilístico e, a expectativa de um mundo condicional abre-se a considerações de múltiplas possibilidades e eventos, que são vistos como resultados de vários contingentes e respostas(1).

Como a recorrência da doença é uma possibilidade na vida de toda mulher com câncer de mama, procuramos através deste trabalho compreender como elas vivem esse mundo de incerteza. Assim, estabelecemos como objetivo identificar como as mulheres constróem o significado da possibilidade da recorrência do câncer de mama a partir das suas experiências.

FUNDAMENTAÇÃO TEÓRICA

Para compreender o processo de significação sobre a possibilidade de recorrência vivenciado por mulheres com câncer de mama nos pautamos na concepção de que o significado de um fenômeno para o indivíduo se dá através da interação do eu, da mente e da sociedade; interação resultante da vida social em cujo processo o indivíduo é um ator e não um reator passivo(2). Com base nessa premissa, é possível dizermos que a mulher mastectomizada processará a possibilidade de recorrência da doença a partir da forma como esse fenômeno se apresenta na sua vida social e da interpretação que faz do mesmo.

A compreensão dos significados dos fenômenos é de fundamental importância para entendermos porque as mulheres mastectomizadas, na medida em que vivenciam a doença, compartilham de experiências que vão adquirindo significados individuais e coletivos. Por isso, acreditamos que esse referencial seja o mais adequado para identificarmos como elas percebem a possibilidade de uma recorrência do câncer de mama(3).

METODOLOGIA

Este fenômeno foi estudado através do discurso de 12 mulheres mastectomizadas, assistidas pelos profissionais do Núcleo de Ensino, Pesquisa e Assistência na Reabilitação de Mulheres Mastectomizadas - REMA - do Departamento de Enfermagem Materno Infantil e Saúde Pública da Escola de Enfermagem de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo, no período de dezembro de 1996 a fevereiro de 1997.

Determinamos como critério de inclusão no estudo, as mulheres que já tivessem terminado o tratamento preconizado para o câncer de mama e que, preferencialmente, estivessem num período próximo à realização dos exames de controle da doença ou seja, as que se encontrassem na fase de controle ambulatorial , ou no período dito "fase livre da doença".

A participação das mulheres se deu a partir de uma dinâmica de grupo, momento em que lhes foi explicado como seria realizada a pesquisa. Tais esclarecimentos foram pautados nas Diretrizes e Normas Regulamentadoras de Pesquisa envolvendo Seres Humanos, da Resolução 196/96 do Conselho Nacional de Saúde.

O número de mulheres participantes não foi predeterminado; resultou de um processo de amostragem teórica, que faz parte da metodologia utilizada, procedimento que permite a identificação e o desenvolvimento de conceitos que são revalidados e aprofundados visando à saturação teórica.

Para este estudo, utilizamos entrevistas semi-estruturadas como fonte básica para a geração de dados. As entrevistas visavam aprofundar o conhecimento acerca das questões: percepção de mudanças no cotidiano de suas vidas, decorrentes da doença; maiores dificuldades enfrentadas ao conviver com a doença; experiências no período dos exames de controle e avaliação.

As entrevistas foram realizadas por uma das autoras do trabalho, que as gravou com autorização prévia das participantes. A seguir, os conteúdos colhidos foram digitados, para após serem analisados em profundidade.

Submetemos os dados à análise de conteúdo que relaciona estruturas semânticas (significantes) com estruturas sociológicas (significados) dos enunciados. Além disso, ela articula a superfície dos textos descritos e analisados com os fatores que determinam suas características, como: variáveis psicossociais, contexto natural e processo de produção da mensagem(4).

Optamos pela análise temática, pois ela nos permite buscar, através dos depoimentos dos sujeitos, o significado da possibilidade da recorrência e como este tem sido incorporado nas suas vidas.

ANÁLISE DOS DADOS

Pela análise dos dados percebemos o sentido que as mulheres deram a possibilidade da recorrência do câncer de mama, de forma que os temas relevantes foram captados e ordenados a partir das entrevistas com as mulheres com câncer de mama.

Assim, percebemos que a possibilidade da recorrência da doença se mostra presente no espaço de vida das mulheres estudadas, configurada pela incerteza vivida e representada nas unidades temáticas identificadas em seus depoimentos, ao revelarem estar "vivenciando com uma doença estigmatizante", "convivendo com sentimento negativo" e "enfrentando preconceitos".

Passaremos a seguir, a apresentar a análise dos dados, com vistas a reconhecer os pontos comuns e as diferenças existentes no significado simbólico de viver com a incerteza do câncer de mama.

VIVENDO COM UMA DOENÇA ESTIGMATIZANTE

Viver com uma doença estigmatizante, como o câncer de mama, deu margem a um processo de significação, gerado pela percepção que as mulheres tinham sobre a doença, possibilitando-lhes a reformulação de pré-concepções e a elaboração de novos conceitos sobre ter uma doença incurável. Esse processo foi resultado ainda da interpretação da experiência de viver com a doença e seu tratamento, gerando sentimentos e atitudes que refletiram um grau de incerteza a partir da revelação do diagnóstico e das suas concepções a respeito da doença.

Portanto, pudemos apreender a unidade temática vivendo com uma doença estigmatizante nos discursos das mulheres pesquisadas, ao agruparmos as seguintes categorias: dando significado à doença; convivendo com sentimentos negativo e enfrentando o preconceito.

Dando significado à doença

Dando significado à doença figurou como elemento importante na formulação da possibilidade da recorrência do câncer de mama e emergiu do sentido simbólico de uma busca de causalidade, passando por conceitos partilhados a partir da experiência presente e do significado do câncer através dos tempos.

Dessa forma a enfermidade constitui-se em uma interpretação e um julgamento sobre as impressões sensíveis produzidas pelo corpo, sendo considerada, portanto, não um fato mas uma significação(5).

A partir do discurso das mulheres com câncer de mama, verificamos que elas buscam compreender a doença e nesse processo reflexivo se encontram: buscando a causalidade, identificando características da doença e fazendo comparações.

Buscando a causalidade

A possibilidade da recorrência da doença é configurada pelas mulheres estudadas quando procuram compreender o processo de adoecimento e tentam dar significado a ele. Nessa fase, já aparecem sinais de preocupação com a possibilidade da volta da doença, quando então retomam conceitos baseados nas experiências vividas.

Assim, na busca da causalidade, as mulheres levantam hipóteses sobre a gênese da doença, identificando familiares que a tiveram.

Eu acho que é hereditário, eles (médicos) falam que não, mas... põe na tua cabeça, quer dizer, já foram 3 (irmãos), ela (irmã) 4 e eu 5, eu acho que vem da família...

Nessa busca por respostas para a causalidade da doença, a percepção sobre a possibilidade da recorrência não se dá num instante pontual na vida do indivíduo, porque ela é produto de toda a sua história, que é constituída por processos de interação e de comunicação com os outros.

A preocupação com a recorrência, nessa fase onde se busca compreender a etiologia da doença, é explicitada quando relembram experiências negativas anteriores a ela ou conceitos sobre a mesma, que são compartilhados cultural e socialmente.

Perdi uma irmã com esse problema, ela durou 3 anos; perdi um irmão que foi no pulmão, mas ele morreu com 84 anos; perdi um irmão com 41 anos, foi na garganta...

Algumas mulheres tentam explicar o aparecimento da doença como decorrente de uma condição interna ao organismo, deixando transparecer a possibilidade de sua volta, ao afirmarem:

... é uma doença que vem do organismo da pessoa e com o tempo, por algum motivo, ela vem e passa a desenvolver...

Quando levantam a hipótese da gênese da doença, como decorrente de uma condição interna, elas apresentam uma indefinição do agente que desencadeia o processo mórbido, deixando transparecer a possibilidade de uma recorrência.

As mulheres estudadas revelam, em certo sentido, a compreensão de que a construção do significado da doença está fundamentada no ato individual de perceber uma experiência interior como problemática, construção que ocorre a partir de processos interpretativos adquiridos na vida cotidiana(5). Essa compreensão deu às mulheres pesquisadas a possibilidade de, a partir de uma situação condicional, viverem com o câncer de mama, avaliarem a condição vivida e aprenderem formas positivas de enfrentá-lo.

Nesse contexto, encontrar uma causa para a doença pode ter uma importante implicação, a longo prazo, para mulheres com câncer de mama(6). Essa busca de significado pode torná-las aptas a conhecer melhor sua situação, propiciando-lhes domínio e controle sobre futuras recorrências. Dessa forma, a atribuição causal pode ser importante porque, freqüentemente, determina os tipos de estratégias adotados, pelas mulheres para seu ajustamento e alterações do seu estilo de vida.

Identificando características da doença

As emoções e as imagens suscitadas pelo câncer relacionam-se à idéia dos movimentos de um caranguejo. Simbolicamente se faz essa associação por ter esse animal hábitos noturnos, viver em profundidades invisíveis e se deslocar de maneira mal ordenada e imprevisível. Para seu crescimento e desenvolvimento faz inúmeras vítimas e as neutraliza sem aviso prévio e sem lhes deixar escapatória(7).

A representação do câncer como a metáfora acima expressa uma visão assustadora e temerosa, identificada pelas mulheres pesquisadas, demonstrando o temor que ele representa em suas vidas.

O ocultamento dos sinais e sintomas físicos que dificultam o diagnóstico precoce é percebido como o lado sombrio da doença, deixando embutida a possibilidade de sua recorrência, visto ser ela imprevisível.

...a doença, a maligna,ela vem... devagarinho, você quando percebe já

...eu nunca senti, dor eu nunca tive...

O sofrimento embutido na experiência de cada uma também é revelado como algo que marca profundamente suas vidas, da mesma forma que mostra a possibilidade da recorrência que é incorporada como parte do processo de adoecer.

... acho que é triste porque judia muito da pessoa ... ela não mata, é uma doença que fica ali oh! ... meses, anos... é uma doença que sofre né, a pessoa sofre muito..."

Os depoimentos das mulheres com câncer de mama denotam o sentimento que a dor e a doença lhes trazem, ou seja, a iminência do sofrimento, onde parece estar implícita a possibilidade da recorrência e, por conseqüência, o medo da morte.

A dor e a morte são indissociáveis, e tal afirmativa vem ao encontro do conceito não é porque caiu doente que o homem morre; é, fundamentalmente, porque ele pode morrer que o homem adoece(8-9).

Entendemos que, para as mulheres com câncer de mama, o medo da morte faz com que a possibilidade da dor, seja muito mais valorizada. O conceito culturalmente construído de que a pessoa com câncer tem dor é valorizado no discurso dessas mulheres, denotando, portanto, a possibilidade da recorrência mesmo no período "livre da doença", ou seja, quando nenhuma delas apresenta qualquer sinal ou sintoma identificado.

Fazendo comparações

O caráter sombrio e imprevisível do câncer, particularmente no caso do câncer de mama, pode ser evidenciado também quando as mulheres pesquisadas, em seu processo de significação fazem comparações com outras enfermidades tidas como severas.

... essa doença é traiçoeira, eu estou para te falar que o câncer ... eu acho que é pior que a AIDS. A AIDS você pode evitar né, pode evitar; agora o outro não tem jeito, a hora que aparece ...

Aqui, o câncer é comparado à AIDS que, na atualidade, é uma doença com significações éticas, morais e sexuais predominantemente mais repressivas. Com essa interpretação, os depoimentos das mulheres estudadas apontam a AIDS como possível de ser evitada, enquanto que o câncer ainda não.

Simbolicamente, as imagens suscitadas tanto pela AIDS como pelo câncer revelam o seu caráter de finitude, pois ambas evoluem em estágios, deixando evidente a fragilidade do sistema imunológico do indivíduo para combatê-las e a ineficácia das armas terapêuticas. Nesse processo de significação, onde o futuro é incerto, parece que a morte é iminente.

Convivendo com sentimentos negativos

No processo de incorporação da possibilidade da recorrência da doença, conseguimos perceber que as mulheres buscam identificar sentimentos e para tal tentam compreender sua própria responsabilidade no processo de adoecer, assim como passam a conviver com uma nova concepção de si mesmas, a qual nem sempre é facilmente aceita.

Assim tendem a se comportar como pessoas com um estigma particular que tendem a vivenciar experiências similares de aprendizagem, relativas à sua condição, e a sofrer mudanças análogas na concepção do eu, que não sejam apenas causa mas também efeito do compromisso com uma seqüência semelhante de ajustamentos pessoais(10).

Pudemos então, através dos depoimentos das mulheres estudadas, identificar que, ao enfrentarem a doença, o sentido de conviver com sentimentos negativos foi explicitado através das subcategorias: tendo culpa e percebendo-se com alterações corporais.

Tendo culpa

O câncer de mama traz à consciência das mulheres o quanto o cuidado consigo mesma é colocado em segundo plano. Diante da situação vivida, muitas passam a refletir acerca das ações tomadas com relação à sua saúde e percebem o descaso que tiveram com o próprio corpo. Implicitamente, deixam à margem a possibilidade da recorrência da doença como resultado desse processo de retardar o cuidado.

Quando nos reportamos aos modelos de socialização dos estigmatizados temos que aqueles que se encontram numa fase avançada da vida passam por uma reorganização radical da visão do seu passado. Tais indivíduos têm conceitos formados acerca do normal e do estigma muito antes de serem obrigados a se considerar como deficientes. Portanto, é muito provável que consigam-se identificar como tal, com mais facilidade para se auto censurarem(10).

Nesse processo de auto-avaliação, as mulheres, através de seus depoimentos, deixam transparecer sentimentos de culpa decorrentes da falta de cuidado consigo mesmas; também pudemos apreender a incorporação da incerteza à possibilidade implícita da recorrência da doença.

... o problema é a gente, a gente não se cuida né! Eu acho que a mulher precisa se cuidar. Mas isso eu pensei já tarde né! Eu achava que eu tinha uma saúde de ferro, mas acabou ...

O sentimento de culpa também é explicitado quando, em seu processo de reflexão, passam a crer que a doença poderia ter sido identificada anteriormente, e para minorarem esse sentimento tentam externalizar o processo de identificação da doença, diminuindo sua responsabilidade por não terem percebido as alterações corporais.

Se eu tivesse ido antes no médico, talvez o médico tivesse achado esse carocinho antes, né! Achava que não precisava!

Esse sentimento acerca de um possível diagnóstico retardado também traz embutida a incerteza com relação à doença, uma vez que a mesma pode ter avançado o suficiente para não responder ao tratamento. Nesse caso, a incerteza pode não favorecer a incorporação de estratégias positivas para o enfrentamento da mesma e o perigo da possível volta da doença pode imobilizá-las, tornando-as incapazes de utilizarem seus recursos pessoais para lidarem, adequadamente, com o câncer.

Percebendo-se com alterações corporais

A representação do corpo desempenha papel importante na construção da auto-imagem e a consciência do corpo, em particular a relação que a pessoa estabelece com o próprio corpo, é um elemento constitutivo e essencial da individualidade(11).

Como elemento constitutivo da individualidade, a imagem corporal tem um caráter dinâmico, sofrendo influências do social, do simbólico e do afetivo, sendo o indivíduo, simultaneamente, objeto e agente da percepção(11).

A ruptura desse elemento com a doença tem um significado especial, no caso do câncer de mama, considerando-se o simbolismo social e individual da mama feminina na sociedade ocidental. Esse elemento de ruptura tem contornos significativos nos discursos das mulheres estudadas e nos mostra o quão difícil é enfrentar o sentimento da mutilação.

... a gente acorda abalada né, sem o seio, coisa triste, nossa ... o seio é tudo na mulher. Quando você se vê só com um, não dá vontade nem de olhar no espelho mais nunca na vida....

A ruptura da identidade feminina não é amenizada mesmo quando apenas parte da mama é retirada, como foi verbalizado por algumas mulheres pesquisadas.

... eu fiz uma cirurgia, não foi uma mastectomia total, mas é uma coisa que me incomoda. Olhar para o espelho e ver que o meu seio está diferente um do outro ... não uso uma roupa mais justa, que marca tanto...

As reações da mulher com câncer de mama frente à mutilação também relacionam-se à sua subjetividade, sendo determinadas pela maneira como ela vive e convive com o seu corpo desde a infância(12).

Entendemos, portanto, que o processo de elaboração vivido pelas mulheres mastectomizadas, frente à doença e à perda da mama, é semelhante ao processo de elaboração de luto, ou seja, pode ser comparado à perda de um ente querido(13-14).

Além da perda da mama, a possibilidade do linfoedema é também objeto de preocupação para essas mulheres, visto que, diante de sua ocorrência, simbolicamente ele se constitui num sinal visível e representativo da doença.

a gente já está sem a mama ... a gente não queria ter o braço inchado..

Percebemos que o linfoedema é um agravante na reconstituição da auto-imagem, dando visibilidade interna e externa à doença, condição importante para o enfrentamento da mesma e de suas incertezas.

Enfrentando o Preconceito

Condições graves como o câncer trazem consigo uma série de associações simbólicas, podendo afetar profundamente a maneira como as pessoas percebem sua doença e o comportamento de outras pessoas com relação às mesmas. A representação do câncer, como um mal, exprime um sentimento de desvalorização social; dessa forma, a doença não é apenas um desvio biológico, mas também um desvio social, onde o doente se vê como um ser socialmente desvalorizado(15 - 16).

Enfrentar o preconceito de viver com uma doença estigmatizante é o resultado de como as mulheres estudadas percebem, avaliam e interpretam a situação vivida por elas.

Como o câncer é uma doença que afeta profundamente a pessoa acometida e as que fazem parte de suas relações, e como também ainda hoje tem uma conotação de contágio e terminalidade, identificamos nos discursos das mulheres a presença do preconceito através das subcategorias: ficando constrangida e percebendo o afastamento das pessoas.

Ficando constrangida

O câncer, simbolicamente representado no imaginário popular pelas crenças tradicionais sobre a natureza moral da saúde, da doença e do sofrimento humano, e traz, para as pessoas acometidas, dificuldades para elaborar uma imagem satisfatória da doença, visto que é percebida por todos como o próprio mal(16).

Assim a doença é, constantemente, vista como a perda do poder físico ou da dignidade humana, fato que se traduz na prepotência dos sadios e que acentua a desigualdade social"(17).

Dessa forma, observamos que as mulheres estudadas explicitam em seus depoimentos o constrangimento por serem portadoras de uma doença impregnada de preconceitos.

... eu não queria falar no assunto né ... a gente fica muito constrangida, eu tinha vergonha de ter o problema que eu tive, eu acho que a pessoa doente, ela se sente muito inferior...

O constrangimento de ter uma doença estigmatizante levou algumas participantes do estudo a se afastarem das pessoas de seu convívio social. Essa atitude parece fruto de um processo interpretativo, baseado nos seus conceitos e nos dos outros sobre a doença, que deliberadamente escondem informações sobre sua identidade social verdadeira, quer recebendo ou aceitando um tratamento baseado em falsas suposições a seu respeito. A manipulação da informação oculta que desacredita o eu, ou seja, o encobrimento da doença foi evidenciado no enfrentamento da situação vivida pelas mulheres estudadas(10).

A dificuldade é estar no meio do pessoal. É medo das perguntas. Ah! Me incomodava se a pessoa vinha me perguntar porque eu estava afastada, se eu estava doente...

Da mesma forma, pudemos apreender que, para essas mulheres, o conhecimento dos outros sobre o seu diagnóstico funciona como um símbolo do estigma da doença, destinado a transmitir a informação social decorrente, ou seja, a iminência de morte.

...você fica sentida porque, as vezes, a pessoa fala: nossa, a pessoa que tem câncer, a pessoa então é podre, porque tem câncer, então você fica com aquilo machucado, sabendo que você tem a doença.

O preconceito identificado por essas mulheres explicita também a possibilidade da recorrência da doença, quando trazem em seu discurso a falta de credibilidade na cura. A interpretação dessa possibilidade está baseada na construção social da doença, na realidade vivenciada, ou seja, o câncer ainda é uma doença fundamentalmente incurável; portanto, seu futuro passa a ser incerto.

...hoje o câncer é tipo ... é igual a AIDS. Uma pessoa, as vezes, morre: ai, do que a pessoa morreu? De AIDS ou câncer?

Assim, entendemos que o preconceito é motivo de constrangimento para essas mulheres e, às vezes, dificulta o enfrentamento da doença, visto que, repetidamente, percebem o caráter incerto do diagnóstico, tratamento e recuperação, deixando clara a desigualdade a que serão expostas a partir do diagnóstico da doença.

Percebendo o afastamento das pessoas

A manipulação do estigma é uma ramificação de algo básico na sociedade, que tem sido caracterizado como a estereotipia, ou seja, o perfil de nossas expectativas normativas, em relação à conduta e ao caráter(10). O estigma associado ao câncer de mama pode levar pessoas a evitar o doente, privando-o do convívio social(15).

As mulheres com câncer de mama, participantes deste estudo, interpretam que o afastamento de algumas pessoas de seu convívio se deu em decorrência do medo de um possível contágio.

... muitas (mulheres) tem amizade comigo mas... um pouco assim de longe; é um oi só, não se aproxima muito... mudou, deixou de ser...

Além da possibilidade de contágio, entendem esse afastamento como uma dificuldade das mesmas em lidarem com uma situação de doença ameaçante à vida, visto que uma das dimensões do estigma relaciona-se à associação da doença com a morte.

Eu ouvi pessoas da família mesmo falando: Nossa, ela tem câncer? Ai meu Deus do céu, os meninos, o marido, agora? Como vai ser agora ela com essa doença?

Percebemos que na imagem representada pelo câncer, em especial do câncer de mama, a morte ocupa posição de destaque. Observa-se que é difícil, no nosso tempo, encarar a morte como um fenômeno natural e que mesmo com o avanço da ciência ainda tememos e negamos a morte como realidade(18).

Dessa forma, as mulheres com câncer de mama traduzem a persistente possibilidade da recorrência, reafirmando suas incertezas, quando dão significado ao viver com uma doença estigmatizante.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A apreciação feita através dos dados desta pesquisa, sobre o impacto do câncer de mama no cotidiano das mulheres, sinaliza possibilidades de desenvolvimento de intervenções efetivas direcionadas à assistência integral.

Viver com uma doença estigmatizante, conviver com sentimentos negativos e enfrentar preconceitos significou para essas mulheres se depararem, constantemente, com incertezas e possibilidades da recorrência da doença, momento em que se constatou a importância dos profissionais de saúde, especialmente das enfermeiras, por entenderem como as mulheres percebem a causa e o significado do câncer de mama e suas formas de enfrentamento, com o fim de ajudá-las a explorar seus sentimentos, expectativas e estratégias de ajustamento.

Nosso desafio, então, é ensinar a essas mulheres como viverem diante de futuros imprevisíveis e com o medo da recorrência, mesmo após a fase aguda da cirurgia e tratamentos adjuvantes.

Entendemos que as mulheres com câncer de mama e suas famílias necessitam de suporte constante dos profissionais de saúde, com vistas a equilibrarem as complexas conexões entre a doença e a possibilidade da recorrência. Assim, este trabalho busca uma compreensão de como se processam seus sentimentos de incerteza a partir da experiência da doença, compreendendo os fenômenos mais evidentes na sua incorporação.

Os fenômenos aqui identificados têm implicações práticas e podem ser utilizados para conscientizar os profissionais de saúde sobre os significados que as mulheres dão à doença, bem como os medos que vivenciam no cotidiano de sua doença. Além disso, apontam as limitações enfrentadas por elas, tanto físicas como psicossociais, possibilitando a implementação de estratégias que as levem a se adaptar a essa nova situação e a melhorar sua qualidade de vida.

Ainda é fundamental que compreendam as conseqüências de como devem viver com a incerteza da doença e como devem se adaptar às novas formas de ser-no-mundo condicional, do qual têm consciência, e que não as impede de viverem e viverem bem.

É importante apontarmos, que esse processo de construção do significado da possibilidade da recorrência não se dá de forma linear, porque envolve um ir e vir. Da mesma forma, a trajetória da doença varia de uma mulher para outra, pelas particularidades de cada uma em relação à doença, ao tratamento e também pela influência do seu contexto sócio-cultural e familiar.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

Recebido em: 14.9.2000

Aprovado em: 13.7.2001

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  • 1
    Professor Doutor, e-mail:
    2
    Professor Titular;
    3
    Doutoranda do Programa de Pós-Graduação em Enfermagem em Saúde Pública;
    4
    Mestranda do Programa de Pós-Graduação em Enfermagem em Saúde Pública. Escola de Enfermagem de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo, Centro Colaborador da OMS para o desenvolvimento da pesquisa em enfermagem
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      08 Maio 2002
    • Data do Fascículo
      Set 2001

    Histórico

    • Aceito
      13 Jul 2001
    • Recebido
      14 Set 2000
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