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Percepções do graduando de enfermagem sobre a dimensão humana no seu aprendizado

Resumos

Os objetivos deste estudo foram identificar e interpretar as percepções apresentadas por alunos de um Curso de Graduação de Enfermagem após o estágio de Saúde Mental. Foram gravadas 12 entrevistas com acadêmicos de Enfermagem da Faculdade da Fundação ABC - Santo André, São Paulo, Brasil, em agosto de 2004, utilizando-se de roteiro semi-estruturado. Por meio da Análise de Conteúdo, modalidade temática, foram identificadas quatro categorias: 1. saúde mental: proporcionando a compreensão do outro; 2. respeito pelo humano: a importância de ouvir; 3. saúde mental: contribuindo para uma visão contextualizada do paciente e 4. graduação em enfermagem: "sinais e sintomas" indesejáveis da profissão. A análise e a discussão dessas categorias representaram o vislumbramento da possibilidade de um ensino pautado na condição humana. Dessa forma, defende-se, aqui, a idéia de que novos estudos devam ser realizados, mas já considerando que a disciplina Saúde Mental deve ser valorizada nos Projetos Políticos Pedagógicos dos Cursos de Graduação em Enfermagem.

saúde mental; educação; enfermagem; empatia


This study aimed to identify and interpret the perceptions presented by undergraduate students of a Nursing course after internship in Mental Health. Twelve nursing undergraduate students at the Nursing School of ABC Foundation - Santo André, São Paulo, Brazil were interviewed. These interviews using a semi-structure script were performed and recorded in August 2004. Through Content Analysis, thematic modality, four categories were identified, 1. mental health: providing understanding of the other; 2. respect for the human being: the importance of listening, 3. mental health: contributing for a contextualized view of the patient and 4. nursing graduation: undesirable "signs and symptoms" of the profession. The analysis and the discussion of these categories suggest the possibility of teaching based on the human condition. Thus, we support the idea of new research been carried out, considering that the Mental Health discipline must be valued in the Political and Pedagogical projects of the Nursing Undergraduate Courses.

mental health; education; nursing; empathy


Los objetivos de este estudio fueron identificar e interpretar las percepciones de los alumnos de Graduación de Enfermería posteriores a las prácticas de Salud Mental. Fueron grabadas 12 entrevistas con alumnos de Enfermería de la Facultad de la Fundación ABC - Santo André, São Paulo, Brasil, en agosto de 2004, utilizándose para ello, una guía semi-estructurada. El Análisis de Contenido, en su modalidad temática fue empleada para la identificación de cuatro categorías temáticas: 1. salud mental: proporcionando la comprensión del otro; 2. respeto por lo humano: la importancia de escuchar; 3. salud mental: contribución en la visión en el contexto del paciente y 4. graduación en enfermería: "signos y síntomas" indeseados por la profesión. Del análisis y la discusión de esas categorías se vislumbró la posibilidad de una enseñanza basada en la condición humana. De esa forma, se defiende la idea de que nuevos estudios deben realizarse, tendiendo en consideración que el curso de Salud Mental debe ser valorizado dentro de los Proyectos Políticos Pedagógicos dentro de la Graduación en Enfermería.

salud mental; educación; enfermería; empatía


ARTIGO ORIGINAL

Percepções do graduando de enfermagem sobre a dimensão humana no seu aprendizado

Simone de Oliveira CamilloI; Ana Lúcia da SilvaII; Alan Jefferson do NascimentoIII

IMestre em Ciências, Professor da Faculdade de Medicina da Fundação do ABC, e-mail: si.camillo@uol.com.br

IIDoutor em Enfermagem, Docente do Programa de Pós-Graduação em Ciências da Coordenadoria do Controle de Doenças da Secretaria de Estado de Saúde de São Paulo, e-mail- analu@isaude.sp.gov.br

IIIEnfermeiro, e-mail -alanjnascimento@ig.com.br

RESUMO

Os objetivos deste estudo foram identificar e interpretar as percepções apresentadas por alunos de um Curso de Graduação de Enfermagem após o estágio de Saúde Mental. Foram gravadas 12 entrevistas com acadêmicos de Enfermagem da Faculdade da Fundação ABC - Santo André, São Paulo, Brasil, em agosto de 2004, utilizando-se de roteiro semi-estruturado. Por meio da Análise de Conteúdo, modalidade temática, foram identificadas quatro categorias: 1. saúde mental: proporcionando a compreensão do outro; 2. respeito pelo humano: a importância de ouvir; 3. saúde mental: contribuindo para uma visão contextualizada do paciente e 4. graduação em enfermagem: "sinais e sintomas" indesejáveis da profissão. A análise e a discussão dessas categorias representaram o vislumbramento da possibilidade de um ensino pautado na condição humana. Dessa forma, defende-se, aqui, a idéia de que novos estudos devam ser realizados, mas já considerando que a disciplina Saúde Mental deve ser valorizada nos Projetos Políticos Pedagógicos dos Cursos de Graduação em Enfermagem.

Descritores: saúde mental; educação; enfermagem; empatia

INTRODUÇÃO

O processo ensino-aprendizagem dos Cursos de Graduação em Enfermagem no Brasil está habitualmente voltado às questões biotecnológicas e aos estudos dos procedimentos físicos relacionados à pessoa doente. Por essa razão, as relações interpessoais que permeiam o processo de atenção à saúde do indivíduo, bem como a importância dada aos sentimentos dos nossos semelhantes e a responsabilidade do cuidar não só passa a ser grande desafio como também uma das tarefas mais difíceis, somando-se ao fato de que muitas vezes essas questões não são valorizadas como deveriam ser(1).

Dessa forma, alunos e docentes acabam experimentando constantemente grande ansiedade e insatisfação ao se depararem com as relações interpessoais do processo de cuidado, justamente por não saberem lidar com determinadas situações e sentimentos decorrentes. Essas situações acabam envolvendo, em essência, não apenas o físico, mas os sentimentos de medo, tristeza, insegurança, contradições entre outros aspectos emocionais do paciente, do aluno e do próprio docente(1-2).

Nesse sentido, com o objetivo de ampliar espaços de aprendizagem na academia, a disciplina Enfermagem em Saúde Mental foi inserida no Projeto Pedagógico do Curso de Graduação em Enfermagem da Faculdade de Medicina da Fundação ABC. Esse conhecimento é indispensável ao preparo do aluno desde o início do curso, para adquirir experiência e habilidade em falar com pessoas, ouvir histórias, reconhecer e expressar sentimentos e, certamente, ter mais condições de cuidar do paciente desenvolvendo sua própria grandeza como pessoa e como profissional. Assim, a disciplina Relacionamento Interpessoal trata dos fundamentos sobre relações humanas. No quinto e sexto semestres esse conteúdo é aprofundado na disciplina Saúde Mental, que tem como finalidade trabalhar reações emocionais, sentimentos voltados ao eu e ao outro e as inter-relações estabelecidas no processo ensino-aprendizagem entre aluno, paciente e docente, por meio de exposições dialogadas e trabalhos em grupo. Isso tem estimulado discentes e docentes a trazerem para discussão não só os conceitos teóricos, juntamente às situações experimentadas em outras disciplinas, como também os sentimentos, valores, preconceitos e demais aspectos emocionais envolvidos no processo do cuidar.

Dessa forma, interessa saber qual a compreensão de alunos do Curso de Graduação em Enfermagem da Faculdade de Medicina da Fundação ABC, São Paulo, SP, após a realização de estágio em Saúde Mental. Passaram a valorizar os aspectos emocionais da mesma forma em que são valorizados os aspectos tecnicistas? Houve mudanças na vida acadêmica e pessoal desses alunos após a prática em Saúde Mental? Nesse sentido, espera-se contribuir para o aprimoramento do processo ensino-aprendizagem, reforçando a idéia de que o ser humano não se constitui apenas do seu aspecto biológico, mas também de aspectos psicológicos, sociais, culturais e espirituais.

O modelo biomédico e a enfermagem

Para que se possa entender melhor a valorização dos aspectos técnicos e dos estudos dos procedimentos físicos relacionados à pessoa doente, faz-se necessário entender a influência do paradigma cartesiano na área da saúde e, conseqüentemente, no universo da enfermagem.

A maior mudança na história da saúde ocidental ocorreu com a revolução cartesiana. Antes dela, a maioria dos terapeutas atentava para a interação corpo e alma, e tratava seus pacientes no contexto de seu próprio meio ambiente social e espiritual. A filosofia de Descartes alterou profundamente essa situação. Sua rigorosa divisão entre corpo e mente levou os terapeutas a se concentrarem no corpo e a negligenciarem os aspectos psicológicos, sociais e ambientais da doença. O próprio Descartes, embora introduzisse a separação corpo e mente, considerou, não obstante, a interação entre ambos como aspecto essencial da natureza humana, e estava perfeitamente ciente de suas implicações na ciência(3).

Por outro lado, os progressos em biologia, durante o século XIX, foram acompanhados pelo avanço da tecnologia material. Foram inventados novos instrumentos de diagnósticos, como o estetoscópio e aparelhos para a verificação da pressão sangüínea. A tecnologia cirúrgica tornou-se mais sofisticada. Ao mesmo tempo, a atenção transferiu-se gradualmente do paciente para a doença. Assim, começou a tendência para a especialização, que iria atingir seu auge no século XX(3).

Diante disso, pode-se dizer que o modelo biomédico foi influenciado pelo paradigma cartesiano e, hoje, constitui-se no alicerce conceitual do processo saúde-doença. Nesse modelo, o corpo humano é considerado uma máquina que pode ser analisada em termos de suas peças; a doença é vista como um mal funcionamento orgânico, que é estudado do ponto de vista da biologia celular e molecular. O papel dos profissionais da saúde é intervir física ou quimicamente nesse mecanismo enguiçado.

O fato desse modelo ver o indivíduo como um ser predominantemente físico, tem afetado ou afetou a prática dos enfermeiros, que se centram mais nas necessidades físicas dos doentes. Dessa forma, a enfermagem também age muitas vezes de maneira mecânica, valorizando muito mais os aspectos técnicos e biológicos em detrimento dos aspectos psicológicos, emocionais, sociais e espirituais. Os cuidados que permitam a expressão do desenvolvimento da pessoa num contexto biopsicosocial, levando em consideração as suas necessidades, os seus recursos, o seu cotidiano recheado de valores, crenças e mitos, não são contemplados nesse modelo. Percebe-se que há pouca preocupação com o que a pessoa doente pensa e sente, contrastando com o grande valor que é atribuído às técnicas que se executam, particularmente as mais sofisticadas. A formação dos profissionais de saúde, enquanto restrita ao modelo biomédico, encontra-se impossibilitada de considerar a experiência do sofrimento como integrante da sua relação profissional.

Em relação à graduação em enfermagem, um princípio bastante propagado nas instituições de ensino, enquanto excelência de qualidade de assistência, é o de assistir o indivíduo como ser integral (biopsicossociocultural e espiritual), porém, as ações ficam aquém das expectativas uma vez que é priorizado o aspecto tecnicista.

Não se trata de discutir a necessidade de desenvolver a competência técnica do acadêmico de enfermagem, que terá a garantia de um trabalho seguro e eficaz como profissional. Porém, há que se atentar para o desenvolvimento de habilidades não só no agir, mas também no pensar e no sentir. Se a função precípua do enfermeiro é o cuidado ao ser humano, é necessário enfatizar a complexidade humana, focando a compreensão, o respeito ao outro, de maneira a não fragmentar a condição humana(4). Ainda, para que os graduandos de enfermagem implementem práticas e comportamentos de cuidar, é necessário que os mesmos experenciem o cuidado, tanto na vida pessoal quanto no ambiente educacional e que, além de terem um ambiente de confiança e respeito, é preciso oportunizar o desenvolvimento do pensamento crítico(5).

Dessa forma, os objetivos desta pesquisa foram: identificar e interpretar percepções de alunos de um Curso de Graduação de Enfermagem, após o estágio em Saúde Mental.

MÉTODO

Tipo de estudo

Trata-se de pesquisa qualitativa. A pesquisa qualitativa identifica as características e os significados das experiências humanas que são descritas pelos sujeitos em vários níveis de abstração, não deixando escapar as ambigüidades e contradições dispersas nos depoimentos dos entrevistados.

Cenário e atores do estudo

Este estudo realizou-se no campus da Faculdade de Medicina da Fundação ABC, instituição filantrópica, particular e de ensino, localizada no município de Santo André da região do Grande ABC, Estado de São Paulo, Brasil.

Foram convidados os vinte e dois alunos da turma do sexto semestre do Curso de Graduação em Enfermagem, que concluíram o estágio na disciplina Saúde Mental em Enfermagem no quinto semestre, porém, apenas doze concordaram em participar da pesquisa. Optou-se por entrevistar os alunos do sexto semestre, por terem concluído recentemente o estágio na disciplina Saúde Mental em Enfermagem. Por esse motivo, acredita-se que a contribuição por parte desses alunos seria mais efetiva, uma vez que suas percepções sobre seu aprendizado no estágio da disciplina Saúde Mental estariam mais presentes na memória.

Coleta de dados

Obteve-se autorização do responsável pela instituição de ensino. Na seqüência, o parecer favorável do Comitê de Ética em Pesquisa com Seres Humanos abriu espaço para que os acadêmicos fossem orientados sobre o termo de consentimento livre e esclarecido. Diante disso, foram também informados que seus nomes não seriam revelados na socialização dos dados da pesquisa.

Realizou-se três entrevistas gravadas com o consentimento e a autorização dos informantes, com o objetivo de aprimorar o instrumento de coleta de dados, as quais não foram incluídas nesta análise.

Os acadêmicos foram contatados individualmente, e aqueles que aceitaram foram entrevistados fora do horário de aula, de acordo com a disponibilidade de cada um. A coleta de dados deu-se em agosto de 2004, mediante entrevista semi-estruturada. Esse tipo de entrevista valoriza a presença do investigador, oferece perspectivas possíveis para que o informante alcance a liberdade e a espontaneidade necessárias, enriquecendo a investigação. As questões norteadoras foram: 1. quais foram suas percepções em relação ao estágio da disciplina Saúde Mental em Enfermagem? 2. você acha que houve alguma mudança na sua visão em se tratando das relações com o paciente, com a equipe multiprofissional, com os professores, com os colegas de faculdade e com as relações pessoais? Por quê? 3. de que maneira o estágio prático na disciplina Saúde Mental em Enfermagem contribuiu para a sua formação? 4. em relação à sua formação acadêmica, você acha que os aspectos emocionais são valorizados tanto quanto os aspectos técnicos? Por quê? 5. você acha que o estágio na disciplina Saúde Mental em Enfermagem modificou sua maneira de viver?

Análise dos dados

As entrevistas foram analisadas por meio da Análise de Conteúdo, ou seja "... um conjunto de técnicas de análise das comunicações que visa, através de procedimentos sistemáticos e objetivos de descrição do conteúdo das mensagens, obter indicadores, quantitativos ou não, que permitam a inferência de conhecimentos relativos às condições de produção/recepção destas mensagens"(6). Agrega-se a modalidade Temática para atingir os significados manifestos e latentes, obtidos nas entrevistas, em profundidade, com sujeitos que vivem o universo acadêmico. Essa modalidade é uma asserção sobre determinado assunto, podendo ser colocada uma simples sentença, um conjunto delas ou um parágrafo. Incorpora, com maior ou menor intensidade, o aspecto pessoal atribuído pelo respondente acerca do significado de uma palavra e/ou sobre as conotações atribuídas a um conceito, envolvendo não apenas componentes racionais, mas, também, ideológicos, afetivos e emocionais.

Seis passos foram adotados para uma construção consistente das categorias(6-7):

1º - após a transcrição na íntegra das entrevistas gravadas, realizou-se uma leitura dos textos a partir de uma atenção flutuante. Posteriormente, com base na atenção flutuante, procederam-se mais três re-leituras, intercalando a escuta do material gravado com a leitura do material transcrito. Essa postura atenta possibilita acompanhar o encadeamento de associações em cada entrevista e a cada pessoa entrevistada. A atenção flutuante permite o funcionamento da associação o mais livremente possível a qualquer elemento do discurso. Na leitura flutuante é que se deixa invadir por impressões e orientações antes de analisar ou conhecer o texto;

2º - por meio de nova re-leitura, foram grifadas palavras e frases dos textos originais, identificando-se as convergências e divergências em cada entrevista;

3º - após serem identificadas as convergências e divergências, as palavras e frases grifadas foram recortadas dos textos originais. Da mesma forma, esse procedimento deu-se em cada uma das entrevistas;

4º - após o recorte das palavras e frases, buscou-se identificar as convergências e divergências por entrevistas e entre as entrevistas, para a elaboração das categorias;

6º - após a construção das categorias, procedeu-se à discussão dos dados.

RESULTADOS E DISCUSSÃO

As categorias encontradas estão na Tabela 1.

Saúde Mental: proporcionando a compreensão do outro

A compreensão é o ato, a faculdade de compreender em todos os sentidos. Educar para a compreensão humana é uma das missões da educação, para que se possa adquirir a condição de solidariedade intelectual da humanidade(4). Um dos objetivos da disciplina Saúde Mental é proporcionar ao aluno a reflexão sobre a compreensão da dimensão humana. As frases abaixo mostram a percepção dos alunos.

Achei muito interessante, pois não tinha a mínima idéia do que se tratava, obtive uma visão psicológica (Josefa).

No início fiquei perdida, mas depois fui me familiarizando com o estágio e vi a importância, pois aprendi a fazer o relacionamento terapêutico (Maria).

Passei a respeitar mais os colegas e professores (Camila).

Por meio do estágio na disciplina Saúde Mental, pode-se notar que as alunas Josefa, Maria e Camila sentiram-se estimuladas e interessadas na medida em que perceberam a importância de se ter uma visão psicológica do ser humano, bem como aprimorar suas relações interpessoais, demonstradas pela satisfação em ter aprendido a desenvolver o relacionamento terapêutico. Na medida em que as pessoas passam a compreender a subjetividade do outro, aprimorando suas relações interpessoais, percebe-se também a importância do respeito nas relações, que é, sem dúvida, parte fundamental para a compreensão do outro. Compreender inclui, necessariamente, um processo de empatia, de identificação e projeção. Sempre intersubjetiva, a compreensão pede abertura, simpatia e generosidade(4).

Destaca-se esse processo de empatia, de identificação e projeção pelas falas dos sujeitos.

Esse estágio foi muito interessante, pois houve um envolvimento com o paciente e criamos um vínculo (Manolo).

Ao passar por essa vivência, aprendi a enxergar melhor o lado subjetivo das pessoas (Rafaela).

Aprendi muito, porque houve mudança na minha maneira de olhar as pessoas e ver que as mesmas também têm emoções (Roseli).

A incompreensão de si é fonte importante de incompreensão do outro. No momento em que se passa a compreender a si mesmo, entra-se em contato com nossa subjetividade, por meio da prática mental do auto-exame permanente, descobre-se que se é um ser falível, frágil, insuficiente, carente. Descobre-se que todos necessitam de mútua compreensão(4). O ser humano necessita compreender melhor a si mesmo e ao outro, pois quando se entende o outro e a si próprio, o relacionamento torna-se mais espontâneo e efetivo(8).

A frase a seguir mostra que a aluna permitiu-se a prática mental do auto-exame, um dos objetivos da disciplina Saúde Mental.

Mudou muito minha maneira de viver, pois fui uma pessoa antes do estágio prático e agora procuro ser outra pessoa me preocupando com sentimentos do paciente, pois é muito importante, e até mesmo fundamental para sua melhora (Sônia).

A compreensão do outro requer a consciência da complexidade humana. Diante disso, é importante que se esteja aberto para o outro e que se tente interiorizar a tolerância, ou seja, capazes de aceitar a expressão de idéias, convicções, escolhas contrárias às proprias. Na medida em que se sintoniza com o outro em alto grau de empatia, o ser humano torna-se realmente compreensivo(8). O planeta necessita, em todos os sentidos, de compreensões mútuas. Eis então a importância fundamental da educação para a compreensão, em todos os níveis educativos e em todas as idades(4).

A disciplina Saúde Mental, no campo de estudo em questão, oferece sua contribuição fundamental na medida em que proporciona a digna tarefa na compreensão do outro.

Respeito humano: a importância de ouvir

Ouvir é renunciar. É a mais alta forma de altruísmo, em tudo quanto essa palavra signifique de amor e atenção ao próximo. Talvez, por essa razão, a maioria das pessoas ouve tão mal, ou simplesmente não ouve(9).

Nossa tendência a fragmentar é mais forte que a necessidade de integrar. Não se sabe ouvir. Quando alguém fala, em vez de se escutar até o fim o que ele tem a dizer, logo se começa a comparar o que está sendo dito com as próprias idéias e referenciais prévios. O processo mental é chamado de automatismo concordo-discordo(10). Para ouvir até o fim, sem concordar nem discordar, são atos extremamente difíceis para todos. Esse automatismo concordo-discordo funciona da seguinte maneira: quando o interlocutor começa a falar, de imediato o ouvinte assume duas atitudes: a) "já sei o que ele vai dizer e concordo; portanto, não vou perder tempo continuando a ouvi-lo"; b) "já sei o que ele vai dizer e discordo; assim, não tenho por que ouvi-lo até o fim". Em ambos os casos, o resultado é o mesmo: nega-se a quem fala a capacidade ou a possibilidade de dizer algo de novo, o que, na prática, pode corresponder à negação de nossa própria existência(10).

Enquanto se ouve, é importante ter consciência do que se sente. É preciso que se esteja atento às próprias reações ao que se ouve, pois a comunicação é fundamentalmente determinada pela percepção de quem a recebe, e não exclusivamente pelo que é expresso por quem comunica(10).

As alunas Manoela, Isabel e Goreti aprenderam que a importância de ouvir está relacionada ao respeito e à compreensão humana. Vejamos as frases seguintes.

Houve uma mudança significativa, pois aprendi a ouvir melhor as pessoas, a valorizar mais o ser humano...A ouvi-lo de verdade... (Manoela).

Ouvir primeiro e falar depois...A gente quer falar sempre...Nesse estágio, eu percebi o quanto é importante acolher as pessoas, escutando... (Isabel).

Precisamos ouvir mais o paciente e ter maior consideração por ele...Se a gente ouvisse mais, talvez os pacientes tivessem uma melhor recuperação, pela satisfação de ter alguém lhe dando de fato, a devida importância (Goreti).

Existem algumas maneiras de ouvir, pois, às vezes, as pessoas são melhores ouvintes em certas situações do que em outras. O interesse governa o comportamento, ouvi-se melhor quando se tem a atenção estimulada. Esse estímulo variará de acordo com os interesses, e ouvir-se-á melhor sempre que se precisa compreender assuntos do próprio interesse, quando a curiosidade for despertada e quando alguém se referir a qualquer assunto que nos afete pessoalmente(9).

A ampliação da visão, quanto à importância de ouvir o outro, diz respeito à própria subjetividade, o que favorece trocas profissionais e interpessoais, facilitando o enfrentamento de conflitos e o compartilhamento de experiências, o que, na verdade, constitui a matriz de identidade para atenção humanizada.

Saúde Mental: contribuindo para uma visão contextualizada do paciente

Um dos princípios bastante propagados pela enfermagem é o de assistir o indivíduo globalmente. Porém, fica aquém das expectativas uma vez que é priorizado o aspecto tecnicista. Não se questiona a necessidade de desenvolver a competência técnica do acadêmico de enfermagem, contudo, o desenvolvimento de habilidades não pode se limitar a questões centradas no agir, mas também no pensar e no sentir. Faz-se necessário enfatizar a compreensão do outro, o respeito ao outro na sua complexidade, já que o ser humano é, a um só tempo, biológico, psicológico, cultural e social. Nesse sentido, a importância da disciplina Saúde Mental foi assim documentada, como apresentada abaixo.

A disciplina Saúde Mental contribuiu, pois fiquei mais humano...Mais tolerante e mais compreensivo (Manolo).

A disciplina Saúde Mental contribuiu, pois houve uma noção de Saúde Mental e de prevenção por meio da Saúde Mental olhando o paciente como um todo...Ver tudo...Não só a doença ou o corpo, mas enxergar a pessoa (Isabel).

Na área da saúde, a tecnologia não pode anular o homem. Ser solidário com o outro, valorizar a dimensão humana, prestar assistência, dentro de uma visão complexa e criar relação de ajuda com empatia fazem da humanização a base do exercício do profissional enfermeiro. Sabe-se que a meta é caminhar na direção da humanização e, quando se procura humanizar o trabalho, tornamo-nos mais humanos. Para que isso se concretize, o aluno precisa ter conhecimento sobre a humanização da assistência, sobre seus valores pessoais a respeito do ser humano, ou os valores que poderá agregar à sua conduta, e instrumentalizar-se para saber como agir terapeuticamente. Cuidar é a razão de ser da enfermagem e, conseqüentemente, sua ética(5,8).

Diante disso, o aluno precisa ser conduzido à reflexão do que vem a ser "o humano", para que possa praticar um cuidar complexo, ou seja, não apenas na dimensão biológica, mas na dimensão biopsicossocial plena.

Graduação em enfermagem: "sinais e sintomas" indesejáveis da profissão

A enfermagem no Brasil, não muito diferente de outros países, passou a desvalorizar o cuidado humano, atendendo à ideologia de cura. Hoje, as ações curativas ocupam a maior parte das atividades, utilizando-se tecnologias materiais cada vez mais sofisticadas. Diante dessa realidade, alunas, com base na participação de estágios inerentes ao Curso de Graduação em Enfermagem comentam o trabalho dos profissionais da Enfermagem. Observe-se os trechos a seguir.

As pessoas agem esquecendo o lado emocional. Muitos só pensam no aspecto técnico, de como cuidar de um curativo...O paciente é mais que uma ferida, que uma doença (Roseli).

Eu percebo...Quando eu observo os profissionais que trabalham no hospital, eu vejo que eles não colocam em prática o que aprendem, ou seja, a valorizar o aspecto emocional (Carmem).

É uma profissão muito mecânica. Tudo é técnica...Tudo tem horário, tudo é muito corrido. O lado emocional fica em terceiro plano (Manoela).

A formação de profissionais voltada apenas para o desempenho técnico específico da sua área de atuação não pode mais ser aceita pelas instituições de ensino superior. Sua preocupação deve voltar-se para a formação do profissional cidadão, competente técnica e cientificamente, mas, sobretudo, com ampla visão da dimensão humana. A dificuldade muitas vezes de se enxergar a dimensão humana evidencia-se, como nas falas.

Muitas vezes o paciente está triste por estar internado e não paramos para conversar com ele, somente realizamos nossa tarefa e vamos embora (Ivone).

É uma profissão mais mecânica do que emocional. Eu vejo o comportamento frio das pessoas. Eu não quero ser assim (Rafaela).

Por formarem profissionais que lidam com a saúde e com a vida das pessoas, os cursos de graduação necessitam repensar a formação e a prática pedagógica, os quais, ainda hoje, são inspirados no modelo mecanicista. Um dos preceitos desse modelo é dividir o objeto de estudo ou as dificuldades surgidas em tantas parcelas quantas necessárias para resolvê-las, o que provoca a divisão do conhecimento em áreas cada vez mais especializadas(5,11).

Até à revolução cartesiana, os terapeutas, de um modo geral, tratavam seus pacientes como seres compostos por corpo e alma, dentro de um contexto social e espiritual. Porém, com o modelo biomédico, a divisão entre corpo e mente, reduziu o corpo humano a uma máquina, cujo funcionamento depende do estado de operação em que se encontra seu mecanismo biológico. A partir de então, as ciências têm investigado o funcionamento biológico até o nível molecular, enquanto que as influências de fatores como psico-emocional e o socioambiental no processo saúde-doença deixaram de ser consideradas(5), com se nota nas frases seguintes.

A grade curricular não permite melhor valorização do aspecto emocional, pois somos cobrados mais pela parte técnica (Isabel).

Há uma priorização de valores técnicos, sendo esquecidos os aspectos emocionais... A gente é avaliado pela maneira como fazemos os procedimentos e pela maneira como raciocinamos... Pelo conhecimento científico...Aí, a gente se afasta do emocional do paciente (Josefa).

É preciso considerar a possibilidade de uma formação mais humana que privilegie uma visão complexa do homem, reconhecendo-se a importância dos aspectos psico-emocionais e ambientais no processo saúde-doença e no relacionamento do profissional com o cliente. Essa formação, certamente, não será objeto de uma ou algumas disciplinas da área de ciências humanas e, sim da filosofia que deverá nortear o desenvolvimento do curso, com envolvimento de todos os professores e alunos(5).

Após essa discussão, espera-se aqui, que o ensino em Cursos de Graduação em Enfermagem se paute cada vez mais no contato com as dimensões emocionais das pessoas, na diminuição da dicotomia entre os problemas ditos físicos e os ditos psíquicos, no estímulo para perceber e lidar com a própria bagagem emocional, no preparo para adquirir experiência e habilidade em falar com pessoas, ouvir estórias, reconhecer e expressar sentimentos e certamente ter mais condições de cuidar do paciente, desenvolvendo sua própria grandeza como pessoa e como profissional. O futuro enfermeiro não se constitui apenas como um elemento técnico e hábil, mas acima de tudo é um ser humano(12).

As categorias expostas apresentam pontos de contato, de relacionamento e de permuta. Abrem caminhos para o aprimoramento da verificação e da análise das percepções apresentadas por alunos de um Curso de Graduação de Enfermagem, após o estágio em Saúde Mental. Dessa forma, não se pretende esgotar o tema em questão, ao contrário, espera-se que novos olhares contribuam para o aprimoramento deste estudo.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

É importante resgatar que a mola propulsora para a realização do presente estudo foi a necessidade de uma investigação a respeito das percepções apresentadas por alunos de um Curso de Graduação em Enfermagem, após o estágio em Saúde Mental, aprofundando o olhar para verificar se, após esse estágio, houve valorização dos aspectos emocionais na mesma proporção que são valorizados os aspectos tecnicistas.

A livre expressão conferida aos sujeitos da pesquisa foi decorrente de entrevistas semi-estruturadas. Partiu-se de um roteiro norteador e os conteúdos das entrevistas possibilitaram o reconhecimento das categorias que, na seqüência, foram discutidas e interpretadas quanto aos seus significados, como fontes orientadoras para um ensino-aprendizagem humanizado, em um Curso de Graduação em Enfermagem.

Por meio das categorias, pôde-se vislumbrar as percepções apresentadas por alunos após a realização da prática de Enfermagem em Saúde Mental, e registrou-se que a idéia de que o ser humano não se constitui apenas do seu aspecto biológico, mas também dos aspectos psicológico, social, cultural e espiritual, conforme relatos e a compreensão pelos discentes.

A disciplina Saúde Mental, no campo de estudo em questão, oferece sua contribuição fundamental na medida em que proporciona o aprendizado da compreensão do outro, por meio do processo de empatia, de identificação, de projeção, da prática mental do auto-exame, da importância de ouvir como forma de respeito ao outro. É uma das missões da educação educar para a compreensão humana, para que se possa adquirir a condição de solidariedade intelectual da humanidade.

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Recebido em: 10.8.2005

Aprovado em: 16.11.2006

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    29 Maio 2007
  • Data do Fascículo
    Abr 2007

Histórico

  • Aceito
    16 Nov 2006
  • Recebido
    10 Ago 2005
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