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A Enfermagem: diálogo com o passado no compromisso com o presente


Na década de 1960 o mundo passava por profundas transformações político-sociais; a enfermagem, nesse contexto, ampliava espaços e assumia novas tarefas. O reduzido número de enfermeiras foi chamado a atender doentes, administrar enfermarias e formar recursos humanos.

A enfermagem entrava na universidade, assumindo a pesquisa como elemento promissor para o desenvolvimento profissional. Os primeiros estudos, do tipo descritivo, foram importantes por mostrarem o status quo da profissão, o capital humano disponível e a ser preparado frente às lacunas existentes nos serviços e no ensino, além de formar pesquisadores. Os problemas investigados responderam às questões formuladas, contribuindo para o avanço do conhecimento e, sobretudo, para despertar interesse na continuidade das pesquisas e na multiplicação das temáticas em estudo.

Neste século, em 2019, a campanha global Nursing Now* da Organização Mundial de Saúde (OMS), assumida pelas lideranças internacionais da enfermagem, coloca-nos na posição central para “alcançar a meta da cobertura universal” das populações, dentre outras ações. Temas que há tempos foram inquietações na minha vida profissional vinculada ao ensino, prática e pesquisa em recursos humanos e que permanecem atuais frente aos problemas relativos ao reduzido número de profissionais nos serviços, salários indignos, péssimas condições de trabalho, desvalorização do trabalho do enfermeiro, dificuldade de recrutar enfermeiros e estudantes, retenção de pessoal e a fuga de cérebros. Adicionalmente surgem questões de gênero, baixos salários, violência nos serviços, valorização e sobrecarga do trabalho da mulher, precariedade de recursos humanos e materiais e ainda péssimas condições de trabalho.

Duas teses de docentes da Escola de Enfermagem de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo foram marcos de investigação da enfermagem no Brasil e na América Latina e mostram a preocupação para o reconhecimento social da profissão. Na leitura das conclusões da primeira tese(11 Alcantara G de. Enfermagem moderna como categoria profissional: obstáculos a sua expansão na sociedade brasileira. Tese [Cátedra]. Ribeirão Preto: Escola de Enfermagem de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo; 1963.), observa-se a indicação da necessidade de que a comunidade tivesse percepção do papel da enfermagem; as enfermeiras, por meio de seu desempenho profissional, deveriam contribuir para que este grau de percepção fosse atingido com rapidez, sugerindo: “a imagem da enfermeira é a enfermeira que constrói”(11 Alcantara G de. Enfermagem moderna como categoria profissional: obstáculos a sua expansão na sociedade brasileira. Tese [Cátedra]. Ribeirão Preto: Escola de Enfermagem de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo; 1963.). Na segunda tese, a pesquisadora, uma socióloga, ao analisar a enfermagem como profissão num hospital-escola, relata a inconsistência e indefinição de papéis entre as categorias de enfermagem, estando a profissão mal integrada ao sistema social hospitalar e sendo desvalorizada na sociedade global(22 Ferreira-Santos C. A enfermeira como categoria ocupacional num moderno hospital-escola brasileiro. Tese [Doutorado]. Ribeirão Preto: Escola de Enfermagem de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo; 1968.). A atualidade desses resultados lembra o valor de replicar estudos de tempos em tempos, a comparação temporal é valiosa, mas pode-se ir além, revendo estratégias, avanços e retrocessos, motivações e mesmo formulando perguntas novas para temas persistentes.

Passados quarenta anos de Alma Ata(33 Organização Pan-americana de Saúde. Organização Mundial de Saúde. Declaração de Alma-Ata. Conferência Internacional sobre Cuidados Primários em Saúde. URSS, 6-12 set 1978. Disponível em: https://apps.who.int/iris/bitstream/handle/10665/39228/9241800011_por.pdf;jsessionid=75CCB6D051D08CE03D0BB3152D09872E?sequence=5. Acesso: 27 maio 2019.
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) e tendo ocorrido uma profunda transformação nos serviços de saúde ao assumir a prevenção da doença como meta, a enfermagem foi considerada chave para o alcance das metas propostas pela OMS, “Saúde para todos no ano 2000”. O empenho dos enfermeiros na consecução desta meta foi intenso, na organização de serviços, em programas de governo e no preparo de recursos humanos. No Brasil e em toda a América Latina, vários programas foram criados e sua contribuição à saúde permanece vigorosa.

O recente chamado à liderança das enfermeiras para novamente terem uma posição central para o sucesso da nova proposta da OMS induz a reflexões imprescindíveis, a condição de trabalho vigente é considerada insatisfatória e os recursos humanos e materiais disponíveis são insuficientes para atender a população que bate às portas dos serviços e não encontra abrigo, criando problemas de proporções legais e éticas.

Transformar serviços ou mudar paradigmas pressupõem aderência do grupo ao projeto e aceite ao empoderamento de lideranças. Liderança não como um atributo imposto à pessoa, embora seja viável seu desenvolvimento. Ser líder implica mudanças nas relações de poder por ser um processo fundamentado nas relações humanas.

Num mundo em constante transformação, em que a tecnologia extingue e cria profissões num passe de mágica, os paradigmas se constroem e desconstroem com a rapidez de um feixe de luz, deixando as pessoas tensas e competitivas na busca de propósitos, às vezes incapazes de suportar até pequenos deslizes.

No ambiente em movimento, os enfermeiros devem estar atualizados e prontos a apresentar propostas inovadoras, mantendo uma postura ética diante da responsabilidade que lhes é dada por ofício. Na posição de líder, é a pessoa que tem o manejo das situações e a competência para diminuir atritos que podem provocar crises incontroláveis; a habilidade do líder se revela especialmente nos conflitos.

O respeito e a valorização do trabalho têm início na base da pirâmide, é na relação eu/tu, reconhecendo o outro como igual e o tratando com respeito, que se revela o primeiro movimento da liderança. Se o cliente não conhece o enfermeiro, desconhece quando e como contar com ele e sua responsabilidade pela qualidade do atendimento, ele não saberá valorizar o cuidado.

Ser líder é um compromisso e é este o chamado renovado neste momento.

  • *
    A campanha Nursing Now é uma iniciativa da OPAS/OMS e ICN e visa capacitar os enfermeiros para assumir o papel central no enfrentamento dos desafios de saúde do século XXI. Até o final de 2020, a campanha objetiva aumentar a influência dos enfermeiros e maximizar suas contribuições para garantir que todos tenham acesso à saúde e aos cuidados em saúde. Informações em: http://www.nursingnow.org/.

References

  • 1
    Alcantara G de. Enfermagem moderna como categoria profissional: obstáculos a sua expansão na sociedade brasileira. Tese [Cátedra]. Ribeirão Preto: Escola de Enfermagem de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo; 1963.
  • 2
    Ferreira-Santos C. A enfermeira como categoria ocupacional num moderno hospital-escola brasileiro. Tese [Doutorado]. Ribeirão Preto: Escola de Enfermagem de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo; 1968.
  • 3
    Organização Pan-americana de Saúde. Organização Mundial de Saúde. Declaração de Alma-Ata. Conferência Internacional sobre Cuidados Primários em Saúde. URSS, 6-12 set 1978. Disponível em: https://apps.who.int/iris/bitstream/handle/10665/39228/9241800011_por.pdf;jsessionid=75CCB6D051D08CE03D0BB3152D09872E?sequence=5 Acesso: 27 maio 2019.
    » https://apps.who.int/iris/bitstream/handle/10665/39228/9241800011_por.pdf;jsessionid=75CCB6D051D08CE03D0BB3152D09872E?sequence=5

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    07 Out 2019
  • Data do Fascículo
    2019
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