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Efeitos da supressão de rituais fúnebres durante a pandemia de COVID-19 em familiares enlutados* * Este artigo refere-se à Chamada Temática “COVID-19 no Contexto da Saúde Global”.

Resumos

Objetivo

em meio à maior crise sanitária da história, deflagrada pela pandemia de COVID-19, o objetivo deste estudo documental foi compreender os sentidos atribuídos ao fenômeno da supressão de rituais fúnebres por pessoas que amargaram perdas de entes queridos, nesse contexto.

Método

com amparo da teoria do luto, foi constituído o corpus de pesquisa a partir de documentos publicados na mídia digital, contendo escritos pessoais e relatos de experiências abertos ao público. A análise temática indutiva dos textos foi realizada por dois pesquisadores com expertise.

Resultados

a experiência compartilhada nos depoimentos repercute o padecimento pela morte repentina de pessoa significativa, ampliado pela ausência ou truncamento de rituais familiares de despedida após o óbito. A supressão ou abreviação de rituais fúnebres é vivida como uma experiência traumática, pois familiares se veem impedidos de cumprirem suas últimas homenagens ao ente que se foi subitamente, gerando sentimentos de incredulidade e indignação.

Conclusão

é preciso criar alternativas e reinventar maneiras de celebrar os rituais de passagem em situações emergenciais de forte comoção social como uma pandemia, de modo a oferecer amparo e conforto aos familiares, amigos e parentes. Isso auxilia os sobreviventes a superarem o momento crítico, reduzindo o risco de desenvolvimento do luto complicado.

Infecções por Coronavírus; Vírus da SARS; Pandemias; Luto; Saúde Mental; Rituais Fúnebres


Objective

amidst the greatest health crisis in history triggered by COVID-19, this documental study was intended to understand the meanings individuals who have lost loved ones in this context assign to the phenomenon of suppressed funeral rituals.

Method

based on the theory of grief, the corpus of this study was composed of documents published in digital media containing personal writings and reports of experiences freely and easily available to the public. Two researchers with expertise in the field used inductive thematic analysis to interpret data.

Results

the experiences shared in the reports reflect the suffering experienced by the sudden death of a significant person, which is amplified by the absence or impediment to performing familial farewell rituals. The suppression or abbreviation of funeral rituals is a traumatic experience because family members are prevented from fulfilling their last homage to the loved one who has suddenly passed away, causing feelings of disbelief and indignation.

Conclusion

alternatives and new ways to celebrate passage rituals in emergencies of strong social commotion such as a pandemic are needed to provide support and comfort to family members, friends, and relatives. These rituals help survivors to overcome the critical moment, decreasing the risk of developing complicated grief.

Coronavirus Infections; SARS Virus; Pandemics; Bereavement; Mental Health; Funeral Rites


Objetivo

en medio a la mayor crisis sanitaria de la historia, deflagrada por la pandemia de COVID-19, este estudio documental tuvo por objetivo comprender los sentidos atribuidos al fenómeno de la supresión de rituales fúnebres por personas que sufrieron pérdidas de seres queridos en ese contexto.

Método

amparado en la teoría del luto, fue constituido el corpus de investigación a partir de documentos publicados en los medios de comunicación digital, conteniendo escritos personales y relatos de experiencias abiertas al público. El análisis temático inductivo de los textos fue realizado por dos investigadores con pericia.

Resultados

la experiencia compartida en las declaraciones repercute el padecimiento por la muerte repentina de persona significativa, ampliado por la ausencia o truncamiento de rituales familiares de despedida después de la muerte. La supresión o abreviación de rituales fúnebres es vivida como una experiencia traumática, ya que los familiares se encuentran impedidos de cumplir las últimas homenajes al ser que se fue súbitamente, generando sentimientos de incredulidad e indignación.

Conclusión

es necesario crear alternativas y reinventar maneras de celebrar los rituales de pasaje en situaciones de emergencia de fuerte conmoción social como una pandemia, de modo a ofrecer amparo y confort a los familiares, amigos y parientes. Esto auxilia a los supervivientes a superar el momento crítico, reduciendo el riesgo de desarrollar un luto complicado.

Infecciones por Coronavirus; Virus del SRAS, Pandemias; Aflicción; Salud Mental; Ritos Fúnebres


Introdução

A Organização Mundial da Saúde (OMS), em 11 de março de 2020, declarou que o surto da doença COVID-19, causada pelo novo coronavírus (SARS-CoV-2), caracterizava uma situação de pandemia(11. World Health Organization. Coronavirus disease (COVID-19) outbreak. [Internet]. Geneva: WHO; 2020 [cited 2020 Apr, 5]. Available from: http://www.euro.who.int/en/health-topics/health-emergencies/coronavirus-covid-19/news/news/2020/3/who-announces-covid-19-outbreak-a-pandemic
http://www.euro.who.int/en/health-topics...
-22. Organização Panamericana de Saúde. Folha informativa – COVID-19 (doença causada pelo novo coronavírus). [Internet]. Washington: OPAS; 2020 [Acesso 20 abr 2020]. Disponível em: https://www.paho.org/bra/index.php?option=com_content&view=article&id=6101:covid19&Itemid=875
https://www.paho.org/bra/index.php?optio...
). Estima-se que 80% dos indivíduos infectados desenvolvem as formas leve ou moderada da infecção, e que 20% manifestam a versão severa, dos quais aproximadamente 5% desenvolvem a forma mais grave, podendo evoluir rapidamente para um quadro de síndrome respiratória aguda grave e outras complicações que podem levar ao óbito(33. Strabelli TMV, Uip DE. COVID-19 and the Heart. Arq Bras Cardiol. 2020 Mar. doi: https://doi.org/10.36660/abc.20200209
https://doi.org/10.36660/abc.20200209...
).

Em razão da alta taxa de transmissibilidade do novo coronavírus, uma grande preocupação tomou conta do mundo, provocando diferentes e devastadores impactos(44. Freitas ARR, Napimoga M, Donalisio MR. Assessing the severity of COVID-19. Epidemiol Serv Saúde. 2020 Apr;29(2). doi: https://doi.org/10.5123/s1679-49742020000200008
https://doi.org/10.5123/s1679-4974202000...
-55. Silva AAM. On the possibility of interrupting the coronavirus (COVID-19) epidemic based on the best available scientific evidence. Rev Bras Epidemiol. 2020 Mar;23:e200021. doi: https://doi.org/10.1590/1980-549720200021
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), levando vários governos locais a declararem, além da situação de emergência sanitária e do estado de calamidade decorrentes da pandemia, medidas administrativas excepcionais para o serviço funerário. Para se ter uma ideia da dimensão da situação de crise sem precedentes, houve necessidade de abreviação ou interrupção de rituais tradicionais celebrados para homenagear os mortos e confortar os indivíduos enlutados. Dessa maneira, a pandemia mundial de COVID-19 tem reformulado muitos aspectos da experiência do morrer e de seus rituais, tanto no Ocidente como no Oriente(66. Wallace CL, Wladkowski SP, Gibson A, White P. Grief during the COVID-19 pandemic: considerations for palliative care providers. J Pain Symptom Manage. 2020 Apr 13. doi: 10.1016/j.jpainsymman.2020.04.012
https://doi.org/10.1016/j.jpainsymman.20...
).

A Psicologia há muito tempo reconhece o valor emocional e o papel estruturante da realização de ritos e rituais na organização das diferentes sociedades e culturas. O rito é uma categoria mais ampla, como rito de passagem ou de cura, enquanto o ritual é o conjunto de gestos e ações que compõem os ritos. Os rituais humanos são comuns a todos os povos e são ações simbólicas, comportamentos repetitivos, padronizados e altamente valorizados, que auxiliam o indivíduo a canalizar emoções, compartilhar com seus pares suas crenças e transmitir seus valores(77. Santos S, Crespo C, Canavarro MC, Kazak AE. Family rituals when children have cancer: a qualitative study. J Fam Psychol. 2018 Aug;32(5):643-53. doi: 10.1037/fam0000419
https://doi.org/10.1037/fam0000419...
-88. Crepaldi MA, Schmidt BN, Noal DS, Bolze SDA, Gabarra LM. Terminality, death and grief in the COVID-19 pandemic: emerging psychological demands and practical implications. Estud Psicol (Campinas). 2020 June;37:1-2. doi: https://dx.doi.org/10.1590/1982-0275202037e200090
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). Marcando a transitoriedade da vida, os rituais fúnebres estão presentes desde sempre na história(99. Nascimento FL. Cemitério x novo coronavírus: impactos da COVID-19 na saúde pública e coletiva dos mortos e dos vivos. Boletim de Conjuntura (BOCA). 2020 Apr;2(4):1-9. doi: http://dx.doi.org/10.5281/zenodo.3748890
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10. Souza CP, Souza AM. Funeral rituals in the process of mourning: meaning and functions. Psic Teor Pesq. 2019 Jul;35:1-7. doi: https://doi.org/10.1590/0102.3772e35412
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-1111. Tavares DK, Brahm JPS. Cemeteries, memories and emotions: the professional experience of the burials in the south of Bahia under the focus of the sociology of emotions. Missões: Revista de Ciências Humanas e Sociais. 2016 Set/Dez; 2(2):36-51. Available from: http://200.132.146.161/index.php/missoes/article/view/23083/8658
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), com o objetivo de demarcar um estado de enlutamento em reconhecimento ao valor e importância daquele ser que foi perdido, além de favorecer mudanças de papéis e permitir a transição do ciclo de vida(1010. Souza CP, Souza AM. Funeral rituals in the process of mourning: meaning and functions. Psic Teor Pesq. 2019 Jul;35:1-7. doi: https://doi.org/10.1590/0102.3772e35412
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). Deve-se considerar, ainda, a relevância dos rituais fúnebres para a maturação psicológica, uma vez que contribuem para que os indivíduos confrontem a perda concreta e deflagrem seu processo de luto, possibilitando a manifestação pública de seu pesar(1010. Souza CP, Souza AM. Funeral rituals in the process of mourning: meaning and functions. Psic Teor Pesq. 2019 Jul;35:1-7. doi: https://doi.org/10.1590/0102.3772e35412
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).

A ausência de rituais de despedida do corpo dificulta a concretização psíquica da perda. Aliado a isso, mortes bruscas e inesperadas impossibilitam o preparo do enlutado para lidar com a perda, uma vez que a temporalidade da morte física não acompanha a da morte social e psíquica, o que pode gerar dificuldades na elaboração do processo de luto. Quando intensas, tais barreiras podem favorecer o denominado luto complicado, caracterizado por uma desorganização prolongada que dificulta ou impede a reorganização psíquica e a retomada de atividades anteriores à perda. Além disso, é possível encontrar manifestações sintomáticas exacerbadas, tais como expressão de sentimentos intensos, somatizações, isolamento social, episódios depressivos, baixa autoestima, impulsos autodestrutivos(1212. Braz MS, Franco MHP. Palliative care professionals and their contribution to the prevention of complicated grief. Psicol Cienc Prof. 2017 Jan/Mar;37(1):90-105. doi: https://doi.org/10.1590/1982-3703001702016
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), pensamentos frequentes dirigidos à pessoa falecida, incapacidade de aceitar a perda, autoculpabilização e dificuldade de imaginar um futuro significativo sem a pessoa que se foi(1313. Dodd A, Guerin S, Delaney S, Dodd P. Complicated grief knowledge, attitudes, skills, and training among mental health professionals: a qualitative exploration. Death Stud. 2020 Apr 2:1-12. doi: 10.1080/07481187.2020.1741048
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).

Os elementos que concorrem para um luto complicado podem ser divididos entre fatores de risco pessoais, associados à história e eventos pregressos da trajetória de vida da pessoa enlutada, e fatores de risco relacionados à morte do ente querido. Esses últimos compreendem: óbito de criança ou jovem, morte da esposa ou marido, falta de preparo psicológico para elaborar a morte, falecimento no hospital, dentre outros(1414. Mason TM, Tofthagen CS, Buck HG. Complicated grief: risk factors, protective factors, and interventions. J Soc Work End Life Palliat Care. 2020 Mar 31:1-24. doi: 10.1080/15524256.2020.1745726
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15. Morris S, Fletcher K, Goldstein R. The grief of parents after the death of a young child. J Clin Psychol Med Settings. 2019 Set;26(3):321-38. doi: https://doi.org/10.1007/s10880-018-9590-7
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-1616. Tofthagen CS, Kip K, Witt A, McMillan SC. Complicated grief: risk factors, interventions, and resources for oncology nurses. Clin J Oncol Nurs. 2017 Jun;21(3):331-7. doi: 10.1188/17.CJON.331-337
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). Por outro lado, são considerados fatores de proteção contra o luto complicado: disponibilidade de apoio psicológico e social(1414. Mason TM, Tofthagen CS, Buck HG. Complicated grief: risk factors, protective factors, and interventions. J Soc Work End Life Palliat Care. 2020 Mar 31:1-24. doi: 10.1080/15524256.2020.1745726
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), comunicação clara entre a equipe de saúde e os familiares do falecido(1717. Luiz FF, Caregnato RCA, Costa MR. Humanization in the intensive care: perception family and healthcare professionals. Rev Bras Enferm. 2017;70(5):1040-7. doi: https://doi.org/10.1590/0034-7167-2016-0281
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), demonstração de empatia por parte de outros familiares e da comunidade(1818. Casellato GBFS. Mental health professional intervention in loss and bereavement situations in Brazil. Rev M. 2017 Jan/Jun;2(3):116-37.) e o significado atribuído à morte do ente querido(1919. Bekkering HJ, Woodgate RL. The parental experience of unexpectedly losing a child in the pediatric emergency department. Omega (Westport) . 2019 Set 23;30222819876477. doi: 10.1177/0030222819876477
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20. Neimeyer RA. Meaning reconstruction in bereavement: development of a research program. Death Studies. 2019;43(2):79-91. doi: 10.1080/07481187.2018.1456620
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-2121. Bellet BW, Neimeyer RA, Berman JS. Event centrality and bereavement symptomatology: the moderating role of meaning made. Omega (Westport). 2018 Nov;78(1):3-23. doi: 10.1177/0030222816679659
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).

No contexto da pandemia de COVID-19 há uma série de fatores que podem dificultar a elaboração do luto, tais como morte repentina e em circunstâncias de total isolamento em unidade hospitalar, experiência do morrer em situação de intenso sofrimento e dor física, supressão do tempo necessário para que se possa dar significado à perda, exposição ao estigma e discriminação social, rarefação de ritos e rituais, falta de suporte social, tensionamento das relações familiares e ocorrência de outras perdas simultaneamente à morte. Nesse cenário adverso, nota-se a elaboração de propostas de intervenção mediadas pelo uso de tecnologias digitais, a fim de abrandar o sofrimento de familiares e amigos(2222. Crispim D, Silva MJP, Cedotti W, Câmara M, Gomes AS. Comunicação difícil e COVID-19: recomendações práticas para comunicação e acolhimento em diferentes cenários da pandemia. [Internet]. c2020 [Acesso 10 abr 2020]. Disponível em: https://ammg.org.br/wp-content/uploads/comunica%C3%A7%C3%A3o-COVID-19.pdf.pdf
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).

O objetivo deste estudo foi compreender os sentidos atribuídos ao fenômeno da supressão de rituais fúnebres por pessoas que amargaram perdas de entes queridos, no contexto da pandemia de COVID-19.

Método

Trata-se de pesquisa documental de abordagem qualitativa. A investigação qualitativa pode utilizar diferentes instrumentos para constituição do seu corpus de pesquisa, dentre eles documentos (materiais escritos) que não foram ainda analisados ou sistematizados. Esse tipo de estudo visa a analisar o conteúdo do documento escolhido para compor o corpus da pesquisa, a partir de uma hipótese de interesse, sendo considerado importante recurso na pesquisa qualitativa, entendendo os documentos como meios de comunicação(2323. Flick U. The Sage qualitative research kit: designing qualitative research. Thousand Oaks: SAGE Publications; 2007. doi: http://doi.org/10.4135/9781849208826
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). A escolha do tipo de documento dependerá do objetivo da pesquisa e o grande desafio para o pesquisador é como operar a seleção, o tratamento dos dados e a interpretação dos resultados(2424. Kripka RML, Scheller M, Bonotto DL. Documentary research: consideration of concepts and features on qualitative research. Atas CIAIQ. 2015;2:243-7. Available from: https://proceedings.ciaiq.org/index.php/ciaiq2015/article/view/252
https://proceedings.ciaiq.org/index.php/...
). Esse tipo de pesquisa objetiva a produção de novos conhecimentos a partir, exclusivamente, da análise do método de análise documental. O pesquisador necessita compreender os documentos como meios de comunicação, considerando inclusive que eles foram elaborados pensando-se que alguém teria acesso ao seu conteúdo(2525. Vieira AJ, Garrett JM. Understanding interobserver agreement: the Kappa statistic. Fam Med. 2005; 37(5):360-3. Available from: http://web2.cs.columbia.edu/~julia/courses/CS6998/Interrater_agreement.Kappa_statistic.pdf
http://web2.cs.columbia.edu/~julia/cours...
).

Neste estudo, os documentos utilizados foram do tipo: escritos, pessoais, abertos ao público e que não foram produzidos por solicitação deliberada para pesquisa, sendo o corpus constituído pela produção textual de relatos existentes antes do planejamento da investigação(2323. Flick U. The Sage qualitative research kit: designing qualitative research. Thousand Oaks: SAGE Publications; 2007. doi: http://doi.org/10.4135/9781849208826
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). São produções espontâneas, com o propósito de comunicar ou compartilhar determinada experiência em blogs ou redes sociais virtuais, ou narrativas produzidas no contexto de reportagens publicadas na mídia digital. Nesta investigação foram selecionados depoimentos de familiares enlutados disponibilizados na internet, segundo os seguintes critérios de inclusão:

  1. relatos e testemunhos postados em sítios de acesso aberto e público da web no período de 1º de março de 2020 a 20 de abril de 2020. Esse período de publicação foi delimitado com vistas a abranger o contexto do início da pandemia de COVID-19 no Brasil;

  2. relatos e testemunhos referentes aos temas do adoecimento, morte de pessoa significativa e ausência de rituais após o óbito;

  3. depoimentos de familiares e parentes, nos quais fica patente e declarado o vínculo afetivo com a pessoa falecida.

Foram critérios de exclusão:

  1. conteúdos que não mencionavam a vivência da situação de adoecimento do ente familiar e da experiência pós-óbito;

  2. depoimentos de profissionais da saúde ou de outras áreas correlatas;

  3. relatos que não foram compartilhados em sítios digitais do contexto nacional;

  4. conteúdos de acesso restrito, que só podiam ser acessados por assinantes do sítio no qual estavam sendo disseminados ou que exigissem solicitação de amizade ou autorização para entrar no grupo.

Tais critérios foram estabelecidos em consonância com a proposta do estudo e do aporte teórico (teoria do luto). Foi elaborada a seguinte pergunta de pesquisa: quais são os sentidos atribuídos ao fenômeno da supressão de rituais fúnebres por pessoas que perderam familiares devido à COVID-19?

Para delimitar o universo de pesquisa, foi realizada uma seleção prévia de sites nacionais de acesso aberto que veicularam matérias com conteúdo vivencial relacionadas à pandemia. Além da acessibilidade, os sítios e materiais foram escolhidos pelo critério do impacto, estimado pelo número de visualizações, interações e curtidas das matérias postadas. Uma vez circunscritos os textos de interesse, congruentes com o objetivo do estudo, foram extraídos os trechos que reportavam reproduções de falas, relatos de experiência, depoimentos e vivências compartilhadas por adultos no enfrentamento do adoecimento e perda de familiares.

Os sítios utilizados para a coleta de dados foram a rede social Twitter e a plataforma Google. O Twitter disponibiliza uma ferramenta de “busca avançada” com a qual se pode selecionar o período de tempo das publicações que se deseja visualizar, a linguagem das publicações, grau de interações, palavras ou mesmo frases específicas que devem estar presentes no texto. Na plataforma Google as buscas foram filtradas por notícias de acesso aberto, relacionadas às perdas sofridas em decorrência de complicações da COVID-19, confirmada ou suspeita. No Twitter foi utilizada a seguinte combinação de termos de busca: “Covid19” e “Luto”, “Covid19” e “Velório”, “Covid19” e “Perda”, “Covid19” e “Triste”, e também a combinação “Coronavírus” e “Luto”, “Coronavírus” e “Velório”, “Coronavírus” e “Perda”, “Coronavírus” e “Triste”. Foi utilizado o filtro de, pelo menos, uma curtida na publicação, que deveria estar disponibilizada em português. Como as publicações encontradas nessas buscas eram públicas, qualquer pessoa cadastrada na plataforma Twitter tinha acesso a elas, não sendo necessário seguir o perfil da publicação ou solicitar autorização para conseguir visualizá-la.

A busca foi realizada no dia 21 de abril de 2020 por dois pesquisadores que trabalharam de modo independente. Os depoimentos extraídos de notícias que apareceram no filtro inicial de buscas foram lidos na íntegra e selecionados de acordo com os critérios de inclusão/exclusão descritos, com a leitura integral do conteúdo, guiada pela pergunta de pesquisa. Cada texto foi inserido em um formulário composto pelos itens: título, características dos participantes, endereço eletrônico da publicação e depoimentos coletados. Foi calculado o índice Kappa(2525. Vieira AJ, Garrett JM. Understanding interobserver agreement: the Kappa statistic. Fam Med. 2005; 37(5):360-3. Available from: http://web2.cs.columbia.edu/~julia/courses/CS6998/Interrater_agreement.Kappa_statistic.pdf
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) para avaliar a concordância entre os dois pesquisadores, com resultado de 0,83, indicando concordância quase perfeita entre eles. Ao final dessa primeira etapa de seleção, foram recuperados 84 depoimentos no Twitter e 17 notícias no Google. Posteriormente, as seleções dos avaliadores foram cotejadas e eventuais divergências na inclusão/exclusão de conteúdos foram dirimidas por consenso.

Foi realizada nova leitura do material coligido. Nessa segunda etapa, buscou-se refinar os conteúdos que respondessem estritamente ao objetivo do estudo, restando na seleção final dos avaliadores 23 produções, que compuseram o corpus de pesquisa.

Os relatos extraídos das produções textuais selecionados foram organizados e analisados pelos avaliadores de acordo com os passos da análise temática indutiva(2626. Braun V, Clarke V. Reflecting on reflexive thematic analysis. Qual Res Sport Exerc Health 2019 Jun;11(4):589-97. doi: https://doi.org/10.1080/2159676X.2019.1628806
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). Considerada uma abordagem acessível e flexível, mostra-se adequada ao propósito da pesquisa qualitativa. Sua utilização se dá por meio da identificação e análise de padrões presentes nos relatos coligidos, possibilitando a interpretação de seus diversos aspectos constitutivos.

A análise foi realizada por dois pesquisadores com expertise no fenômeno do luto e que não haviam participado das etapas anteriores. O procedimento envolveu os seguintes passos: 1) exploração do material: inspeção e leitura exaustiva de cada produção textual transcrita em trabalho sequencial; 2) geração de códigos iniciais; 3) busca por temas. No passo 1 as narrativas que compõem o corpus da pesquisa foram lidas na íntegra. No passo 2 os pesquisadores procederam à codificação aberta dos dados. Isso significa que as produções textuais foram lidas diversas vezes e aos conteúdos foram associadas ideias-chave, a partir da questão: “o que está sendo dito aqui?”. Em seguida, os pesquisadores revisaram todas as transcrições para garantir que nada pudesse ter sido desconsiderado, e discutiram com o restante da equipe responsável pelo estudo os códigos e temas iniciais (passo 3).

Essa etapa foi crucial para o desenvolvimento da análise, uma vez que, na pesquisa qualitativa, o que se espera não é que os pesquisadores totalmente isentos cheguem às mesmas representações de um determinado evento, mas sim que haja algum nível de concordância, mesmo que temporária, de que essa forma de representação da realidade é aceitável. Essa concordância que diferentes observadores podem alcançar a respeito do fenômeno confere a legitimidade do recorte de análise apresentado(2727. Turato ER. Introdução à Metodologia da Pesquisa Clínico-Qualitativa: definição e principais características. RPP. 2000 Jan/Jun [acesso 9 abr 2020];2(1):93-108. Disponível em: https://www.redalyc.org/pdf/287/28720111.pdf
https://www.redalyc.org/pdf/287/28720111...
). A partir dessas discussões e das sugestões advindas delas, que apontaram a necessidade de ampliação ou modificação das análises, foram definidos e nomeados os temas finais, obedecendo rigorosamente ao que é preconizado pelo método de análise adotado.

Foram respeitadas as diretrizes éticas definidas pela Resolução nº 510/2016, do Conselho Nacional de Saúde. O projeto foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa – CAAE 33584520.0.0000.5407. Dada a natureza documental do estudo, os pesquisadores trabalharam com dados já divulgados, sem que tenha havido qualquer interação com os familiares. Apesar de serem conteúdos públicos e disponíveis na web, optou-se pela omissão do nome real do participante e de outras características que pudessem levar à sua identificação.

Resultados

Foram selecionados seis depoimentos de filhos, quatro de primos, três de mães, três de noras, dois de sobrinhos, dois de esposos, um de esposa, um de cunhado e um de neto.

a)Inesperada, assustadora e invisível: a morte fecha seu cerco

Os familiares mencionaram como desencadeadores de sofrimento a impossibilidade de oferecer apoio ao ente familiar no momento do diagnóstico e, em especial, por ocasião do agravamento da doença: A COVID-19 chegou na minha família. O irmão do meu pai está no hospital em estado grave. O mais triste de tudo é que a família não pode estar junto do doente, dando força, cuidando minimamente. Uma verdadeira solidão (sobrinha).

Em geral, a contaminação de um familiar pela COVID-19 é acompanhada de surpresa e perplexidade, o que agrava o sofrimento devido à erosão da fantasia de invulnerabilidade. Essa ideia é produto de uma crença irracional de que o mal só abate a vida dos outros. Apesar da ampla disseminação de informações pelos meios de comunicação de massa, que delineiam um cenário de pandemia, a invisibilidade do vírus contribui para alimentar o ceticismo na população: A gente acha que não vai acontecer com a gente, até que acontece (esposa, viúva de um homem de 35 anos); Infelizmente, meu pai não levou isso a sério, ele dizia que era coisa da mídia. Quando resolveu viajar, eu o alertei para não ir e, mesmo sabendo dos riscos, ele foi, porque não acreditava na doença. Meu pai era 100% saudável (filha).

A imprevisibilidade do cenário e o temor do desconhecido instauram um clima de medo generalizado. Duas possíveis ameaças são temidas: da perda do familiar e da perda do senso de controle sobre os acontecimentos, desencadeando vivências de desamparo: Ela era saudável, não tinha nenhuma doença, estava fora do grupo de risco, mas, para esse vírus, não tem idade. Não é só idoso. Ele não está escolhendo idade (prima); Ele era saudável. Diziam que já estava melhorando. Não era diabético ou hipertenso, uma pessoa saudável. Não bebia, não fumava (cunhado).

Invisibilidade e periculosidade do patógeno são dois aditivos que potencializam a ansiedade persecutória. O sentimento de ameaça constante e a perda da sensação de controle sobre o planejamento da vida estão diretamente associados à impressão de que o inimigo oculto e temido está em toda parte e que pode romper barreiras e invadir o refúgio supostamente seguro do lar: Nunca pensei que esse vírus pudesse derrubar ele. Hoje tenho medo! Medo de sair na rua e trazer esse vírus para dentro de casa e contaminar minha família (filha).

Um dos aspectos mais reiterados nos depoimentos e que parece ser uma barreira para a absorção do impacto inicial da perda é a forma brusca e repentina como ela se dá. Imprevisíveis e caóticas, as situações atípicas começam a proliferar, trazendo consigo uma sensação de irrealidade diante da experiência esmagadora da vida em tempos de pandemia: É uma perda que a família não esperava, embora ele tivesse doenças crônicas. Ninguém fez nada excepcional, não foi ao aeroporto, não viajou. Ele estava em casa, a doença foi parar dentro de casa e em menos de uma semana ele morreu (prima).

O golpe repentino da doença e o quadro irreversível que se instala não dão oportunidade para pacientes e familiares se prepararem para a possibilidade do pior. Essa é uma faceta especialmente cruel e trágica da COVID-19, uma doença grave na qual o indivíduo padece e morre solitariamente, em situação de intenso sofrimento. Uma das consequências que se observa é que vivenciar essas situações leva os familiares a reverem certas crenças e concepções equivocadas que são disseminadas, como a de que “não é tão grave assim”, conforme ilustra o depoimento de uma mulher que poucos dias antes havia perdido uma prima de 38 anos, e que naquele momento estava enfrentando a morte do pai: Agora, com essa perda do meu pai, vejo como meu dever de cidadã explicar pro mundo que esse vírus não é uma simples gripe. Uma pessoa que pode ser extremamente sadia [e pode morrer] (filha); Quanta dor você ver um ente amado sozinho em um leito de UTI, isolada, se sentindo abandonada, porque um vírus maldito ceifou seus pulmões, lhe tirando o oxigênio e sua imensa alegria (nora).

b)Vivenciando perdas: sem tempo de despedida, um ciclo que não se fechou

Além de terem de lidar com a experiência traumatizante da perda, o risco elevado de contágio do novo coronavírus impede que os corpos sejam velados: Espero que não tenham nunca que ficar em casa inerte, enquanto o corpo do seu familiar está sendo cremado sem que nenhum parente possa se despedir ou homenagear (nora); O corpo dele veio dentro de um saco fechado, não foi enterrado no caixão (mãe).

Em se tratando da cultura brasileira, esses ritos de passagem que compõem os rituais de despedida estão tão naturalizados no cotidiano que sua suspensão, ainda que justificada, é cercada de incredulidade e sofrimento. A sensação dominante é de que um ciclo se abriu e não se completou: O mais triste é que, por estarmos no meio de uma pandemia, não terá velório do jeito que ele mais amaria, com uma tocada da orquestra dele (neto). O processo de chorar o morto e de se reunir com parentes e amigos para receber conforto e solidariedade foi sumariamente interrompido: A coisa mais triste do mundo é perder um filho, não poder ir ao enterro, não poder fazer nada. É muito difícil, difícil, difícil. Até a gente não aguentar mais (mãe).

Além disso, com o aumento de casos e a expansão acelerada da pandemia, à terrível catástrofe humanitária se somaram a situação de emergência sanitária e funerária: Foi tudo muito doloroso. A própria funerária estava preocupada com o procedimento. O pessoal já levou o caixão para o hospital, colocou ela dentro do jeito que [estava] lá mesmo, lacrou e levou para [nome da cidade]. Chegando lá, não passou de 20 minutos tudo. A cova já estava aberta, esperando (prima).

A necessidade dos cuidados pós-óbito com vistas a evitar o contágio pelo vírus aparece como mais um fator de “desumanização” que descaracteriza o ritual fúnebre, com o uso pelos sepultadores de Equipamentos de Proteção Individuais (EPIs), tempo curto de velório, número reduzido de pessoas presentes e caixão fechado: Todos que estavam lá estavam de máscaras, os coveiros com EPIs até dizer chega pareciam estar em Chernobyl. Tivemos 20 minutos somente (sobrinha); A prima da minha mãe faleceu e não vai ter velório, vão só enterrar com o caixão lacrado. Tanto sofrimento. Quando isso vai acabar? (prima).

Em meio à pandemia, o cenário que se apresenta ganha contornos dramáticos que potencializam a dor e o sofrimento dos familiares, na medida em que se instaura a impossibilidade de eles receberem apoio social em razão do estigma associado à doença: Agora que acabou o período de isolamento que o médico nos estipulou, eu confesso que tenho medo de sair na rua. É como se a gente contraísse uma doença que nunca será curada (filha).

Percebe-se que o enlutado deixa de ser objeto percebido como vulnerável, alguém que necessita de apoio e proteção, e passa a ser estigmatizado como potencial vetor de transmissão, objeto ameaçador e persecutório, o que amplia ainda mais seus sentimentos de solidão e desalento: Como se já não bastasse isso tudo, agora temos que lidar com a dor do preconceito. Até uma conhecida, que sabe de todo o sofrimento que estamos enfrentando na nossa família, passou do outro lado da nossa calçada, com medo de se infectar. Já escutamos vizinhos falando que a nossa casa era cheia de “infectados do coronavírus” (filha).

c)A memória do último abraço: estratégias para minimizar o sofrimento

Os relatos, no geral, são permeados por dor, revolta e sentimentos de perplexidade e abandono, mas também apontam possibilidades de desenvolver ações e mecanismos protetivos que poderiam minimizar o sofrimento. Os familiares reiteram a importância de estabelecer um elo de confiança com a equipe de saúde, em especial no que concerne ao compartilhamento de informações: Fiquei 20 minutos com o médico no telefone, ontem foram 45 minutos, a vontade é não desligar porque sempre falta alguma coisa, uma pergunta a mais para fazer. Eu queria mesmo era poder ver minha mulher (marido).

Além da comunicação com a equipe, fica evidente, no exame dos excertos, a importância de exercitar a empatia para enfrentar essa situação: Reflitam, repensem, se coloquem no lugar de tantas famílias que estão passando o que nossa família está passando. Respeitem a dor de tantas pessoas (nora).

A falta de empatia é relatada com uma das maiores dificuldades a serem enfrentadas pelos familiares: Há pessoas infectadas pelo coronavírus que vão cumprir os 15 dias de isolamento e estarão curadas. Mas, infelizmente, há muitas outras doentes por falta de compaixão e amor ao próximo. Para essas pessoas não existe cura (mulher que perdeu mãe e tio com COVID-19).

Alguns familiares buscam conforto na ideia de que pode ter havido um propósito maior na perda de seu ente: Eu não me conformo de perder meu filho com um problema tão grave. Eu só espero que as pessoas acreditem: esse problema existe e está aqui (mãe); Acho importante que a morte da minha esposa ajude que as pessoas se cuidem mais. Não é brincadeira o que está acontecendo (marido).

Discussão

No cenário global da primeira onda da pandemia de COVID-19, vários fatores vêm dificultando o processo de elaboração da perda de entes queridos pelos familiares(2828. Stroebe M., Schut H. The dual process model of coping with bereavement: a decade on. Omega (Westport). 2010;61(4), 273-89. doi: 10.2190/OM.61.4.b
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): o ainda escasso conhecimento científico de que se dispõe sobre a dinâmica da doença, seu alto índice de letalidade(2929. Ministério da Saúde (BR), Secretaria de Vigilância Sanitária em Saúde. Boletim Epidemiológico 07. Brasília: MS; 2020 [acesso 9 abr 2020]. Available from: https://www.saude.gov.br/images/pdf/2020/April/06/2020-04-06-BE7-Boletim-Especial-do-COE-Atualizacao-da-Avaliacao-de-Risco.pdf
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), o ritmo vertiginoso de contágio do SARS-CoV-2 e a restrição forçada da proximidade física, suprimindo as condições ideais para a efetivação do apoio social e fomentando o estigma relacionado à doença. Esses fatores são potencializados pelos impactos devastadores da infecção sobre a vida social e econômica.

A ameaça da pandemia afeta cada indivíduo de uma forma particular, de acordo com suas experiências pregressas, aspectos do funcionamento individual, contexto de vida, recursos protetivos e vulnerabilidade percebida. Um movimento comumente observado, especialmente nos indivíduos mais jovens, é a negação de que possam ser alcançados pelo novo coronavírus. O uso do recurso defensivo de minimização da gravidade da situação de emergência sanitária e o sentimento de ser “imune” à COVID-19 podem ser compreendidos como um modo de suportar a angústia desencadeada por uma pandemia que ameaça todos, indistintamente. No entanto, quando ocorre o adoecimento de alguém próximo, o sentimento ilusório de ter controle onipotente sobre a vida se dissipa e cai por terra o mito de suposta invulnerabilidade(3030. Silva BCA, Santos MA, Oliveira-Cardoso EA. Family experiences of cancer patients: revisiting the literature. Rev SPAGESP. [Internet]. 2019 Jan [cited 2020 Apr, 27];20(1):140-53. Available from: http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1677-29702019000100011&lng=pt
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-3131. Oliveira-Cardoso EA, Garcia JT, Mota MGM, Lotério LS, Santos MA. Anticipatory/prepatory grief in patients with cancer: analysis of scientific production. Rev. SPAGESP. [Internet]. 2018 July/Dec [cited 2020 Apr, 27];19(2):110-22. Available from: http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1677-29702018000200009&lng=en
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).

Além de terem de lidar com a experiência traumatizante da perda que, por se dar no contexto de uma doença aguda, não permite o preparo emocional gradativo dos familiares, o risco elevado de contaminação impede que os corpos sejam velados. O protocolo do Serviço de Verificação de Óbitos (SVO), atendendo às normas do Centro de Vigilância Sanitária, prevê que o sepultamento seja rápido e acompanhado, à distância, por até 10 pessoas, excluindo-se crianças, grávidas, idosos e indivíduos com doenças crônicas. O caixão não pode ficar exposto(3232. Secretaria da Saúde do Estado da Bahia. Plano estadual de manejo de óbitos durante a pandemia da COVID-19. [Internet]. Salvador: Sesab; 2020 [Acesso 20 abr 2020]. Disponível em: http://www.saude.ba.gov.br/wp-content/uploads/2020/06/PLANO-MANEJO-DE-%C3%93BITOS.pdf.
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), truncando uma ritualização que é parte fundamental da cultura brasileira.

Dessa forma, aliada à perda brutal do familiar, vivencia-se a impossibilidade de celebração dos ritos finais que criam um espaço de comunhão, cumplicidade, conexão com o sagrado e início do processo de desligamento necessário(1010. Souza CP, Souza AM. Funeral rituals in the process of mourning: meaning and functions. Psic Teor Pesq. 2019 Jul;35:1-7. doi: https://doi.org/10.1590/0102.3772e35412
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). Para os familiares, prestar as últimas homenagens ao seu ente querido é um gesto de saúde mental, que possibilita fazer reparações e reconciliar com a vida. Porém, no regime de excepcionalidade instalado pela pandemia, o funeral foi abolido e o enterro, com as necessárias limitações impostas, tende a perturbar ao invés de confortar(1010. Souza CP, Souza AM. Funeral rituals in the process of mourning: meaning and functions. Psic Teor Pesq. 2019 Jul;35:1-7. doi: https://doi.org/10.1590/0102.3772e35412
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). A sensação que fica é a de que se “pulou uma etapa”, pois é imprescindível compartilhar o pesar e receber suporte social pós-óbito(3333. Franqueira AMR. Between public and private: rituals in parental mourning process. Tempo Ciência. 2019 Jan/Jun;26(51):59-72. Available from: http://saber.unioeste.br/index.php/tempodaciencia/article/view/22989/14475
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). Essas restrições potencializam os fatores de risco para o desenvolvimento do luto complicado ou, no mínimo, podem maximizar as dificuldades de elaboração normal do luto.

Como possíveis fatores protetivos, os familiares reiteram a importância de reforçar a confiança na equipe de saúde, em especial no tocante ao compartilhamento de informações. Essa relação com os profissionais pode ser uma ferramenta capaz de promover a humanização das relações por meio do fornecimento de informações, validação das mensagens e interação remota com as famílias(1717. Luiz FF, Caregnato RCA, Costa MR. Humanization in the intensive care: perception family and healthcare professionals. Rev Bras Enferm. 2017;70(5):1040-7. doi: https://doi.org/10.1590/0034-7167-2016-0281
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). Considerando a importância dessas comunicações para quem as recebe, é de extrema relevância incorporá-las no protocolo de atendimento. Nesse sentido, pesquisadores têm se dedicado a elaborar manuais e outros recursos didáticos direcionados aos familiares, em face da necessidade de planejar o fluxo de comunicação para mitigar os riscos de desenvolvimento de luto complicado e estresse pós-traumático no cenário pós-pandemia(2222. Crispim D, Silva MJP, Cedotti W, Câmara M, Gomes AS. Comunicação difícil e COVID-19: recomendações práticas para comunicação e acolhimento em diferentes cenários da pandemia. [Internet]. c2020 [Acesso 10 abr 2020]. Disponível em: https://ammg.org.br/wp-content/uploads/comunica%C3%A7%C3%A3o-COVID-19.pdf.pdf
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).

Além da comunicação da equipe, fica evidente, nos excertos, a importância dos vínculos e do exercício ativo da empatia para o enfrentamento das situações adversas. A falta de empatia não se mostra apenas no não reconhecimento ou indiferença diante da dor do enlutado, que favorece o luto não autorizado. Ela é um sintoma altamente negativo e destrutivo que corrói a base da coesão e organização social e que dificulta o processamento do luto pessoal, familiar e coletivo, inviabilizando a construção da narrativa social da perda(1818. Casellato GBFS. Mental health professional intervention in loss and bereavement situations in Brazil. Rev M. 2017 Jan/Jun;2(3):116-37.).

No cenário conflagrado da pandemia, o desenvolvimento de habilidades sociais que favoreçam as atitudes empáticas é fundamental para o enfrentamento da crise sanitária no presente e no futuro. Campanhas que promovam atitudes proativas de solidariedade, reforçando a capacidade e responsabilidade de cada indivíduo de contribuir com seu quinhão, mostram como a união nos momentos de adversidade coletiva pode fazer a diferença e impactar positivamente a vida das pessoas.

Alguns familiares buscam se reconfortar com a crença de que houve um propósito maior na perda da pessoa querida. Essa necessidade de atribuir um sentido nobre e humanitário para a morte do familiar pode oferecer alívio em face do imponderável da situação vivida. De fato, encontrar um propósito e significado para a vida que cessou de repente está relacionado, em alguns estudos, à menor apresentação de características do luto complicado e menores níveis de estresse(1919. Bekkering HJ, Woodgate RL. The parental experience of unexpectedly losing a child in the pediatric emergency department. Omega (Westport) . 2019 Set 23;30222819876477. doi: 10.1177/0030222819876477
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20. Neimeyer RA. Meaning reconstruction in bereavement: development of a research program. Death Studies. 2019;43(2):79-91. doi: 10.1080/07481187.2018.1456620
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-2121. Bellet BW, Neimeyer RA, Berman JS. Event centrality and bereavement symptomatology: the moderating role of meaning made. Omega (Westport). 2018 Nov;78(1):3-23. doi: 10.1177/0030222816679659
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).

O processo de atribuição de significados à morte, especialmente em uma conjuntura tão inesperada e excepcional, é visto como um fator de proteção contra o luto complicado(1919. Bekkering HJ, Woodgate RL. The parental experience of unexpectedly losing a child in the pediatric emergency department. Omega (Westport) . 2019 Set 23;30222819876477. doi: 10.1177/0030222819876477
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20. Neimeyer RA. Meaning reconstruction in bereavement: development of a research program. Death Studies. 2019;43(2):79-91. doi: 10.1080/07481187.2018.1456620
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-2121. Bellet BW, Neimeyer RA, Berman JS. Event centrality and bereavement symptomatology: the moderating role of meaning made. Omega (Westport). 2018 Nov;78(1):3-23. doi: 10.1177/0030222816679659
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). Nessa direção, torna-se necessário incentivar as práticas de cuidado e de apoio psicossociais centradas na busca de sentido(1414. Mason TM, Tofthagen CS, Buck HG. Complicated grief: risk factors, protective factors, and interventions. J Soc Work End Life Palliat Care. 2020 Mar 31:1-24. doi: 10.1080/15524256.2020.1745726
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), incluindo o estímulo ao engajamento em campanhas humanitárias, ações de solidariedade social e ativismo, participação em comitês de contingenciamento de crise e associações de voluntários, que possam amparar e apoiar outras famílias enlutadas.

Este estudo apresenta algumas limitações. É importante ressaltar que as análises foram elaboradas a partir de relatos retirados de depoimentos on-line, o que impõe limites ao aprofundamento do tema investigado, uma vez que nesse tipo de delineamento não é possível dialogar com as pessoas que produziram as narrativas. A interlocução possibilitaria avançar nas análises, indo além do que está escrito, de modo que possam ser interpretadas outras camadas de significados que são atribuídos pelos narradores para os acontecimentos, sentimentos e situações vivenciadas. Em estudos futuros recomenda-se que sejam conduzidas entrevistas com pessoas que perderam familiares para que se possa avançar na compreensão produzida até o momento.

Por outro lado, este estudo pode contribuir para o aprimoramento da prática de profissionais que atuam no contexto da pandemia, uma vez que aborda tema importante para a saúde mental do familiar enlutado, que muitas vezes tem seu cuidado negligenciado no dia a dia. O apoio aos familiares, parentes, amigos e, também, aos profissionais de saúde e demais trabalhadores envolvidos nas tarefas vinculadas aos ritos e cerimônias fúnebres pode auxiliar o enlutado a superar o momento crítico, abrandando o risco de desenvolvimento do luto complicado. O maior perigo a ser evitado é o ritual de despedida perder o sentido e não cumprir sua função de agregar os familiares na destilação e elaboração psicológica da dor compartilhada.

Conclusão

A partir da análise dos relatos coligidos, foi possível perceber que, além de sérios prejuízos para a saúde física e mental das pessoas acometidas, essa nova doença também impõe uma série de desafios que precisam ser considerados na hora de planejar as intervenções psicossociais. Na perspectiva do cuidado integral, as ações devem ser abrangentes, abarcando tanto os indivíduos que adoecem quanto aqueles que, mesmo se mantendo saudáveis ou assintomáticos, testemunham casos de familiares nos quais a doença se manifesta em sua forma mais grave e o paciente corre risco de evoluir a óbito. Após a internação, a família é impedida de acompanhar o doente no hospital, passando a receber notícias esparsas por telefone. Os familiares sofrem ao se verem privados de acompanhar seus entes queridos em seus últimos dias no hospital. Depois da morte solitária e desamparada, a suspensão do velório e o imperativo de sepultamento rápido, na presença de poucos familiares e com caixão lacrado, completam o ciclo de esvaziamento dos rituais de despedida. Algumas etapas do processo de construção de sentido são suprimidas, dificultando a aceitação da perda.

Os rituais fúnebres têm se mostrado, ao longo da história da humanidade, marcos existenciais no processo de elaboração e ressignificação da morte de um ente querido por parte dos que permanecem. O processo agudo de luto desencadeado pela perda é importante para a saúde psíquica por ser uma oportunidade para elaboração da finitude – do outro e de si próprio. A partir do momento em que os familiares e parentes se veem tolhidos da possibilidade de realizarem os rituais de despedida, por conta das restrições impostas pela pandemia, todo o enlutamento pode se tornar mais doloroso e até mesmo incompleto. Isso pode desencadear sofrimentos psicológicos que tendem a se arrastar indefinidamente, fornecendo matéria-prima para o desenvolvimento do luto complicado.

Para mitigar o impacto de tais problemas, com o quais a humanidade terá de aprender a conviver daqui por diante em previsíveis novos surtos epidêmicos, é imperativo inovar as formas como os rituais fúnebres são realizados, certamente tornando-os mais seguros para minimizar os riscos de contaminação pelo novo coronavírus, e até mesmo abreviando-os, porém sem esvaziar seu sentido. Isso pode ser remediado com o auxílio da tecnologia, que permite preservar o distanciamento físico (que não é, necessariamente, afastamento social), ou até mesmo propondo novas configurações para celebrar os rituais tradicionais próprios de cada cultura.

References

  • *
    Este artigo refere-se à Chamada Temática “COVID-19 no Contexto da Saúde Global”.

Editado por

Editora Associada: Sueli Aparecida Frari Galera

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    07 Set 2020
  • Data do Fascículo
    2020

Histórico

  • Recebido
    29 Abr 2020
  • Aceito
    18 Jun 2020
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