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A fenomenologia existencial como possibilidade de compreensão das vivências da gravidez em adolescentes

Resumos

A pesquisa teve como objetivo compreender o sentido da gravidez, para a adolescente grávida, tentando captar o modo-de-ser e seu novo-sendo-no-mundo-estando-grávida. Foram realizadas quatro entrevistas em profundidade, utilizando-se a questão norteadora: como é para você estar grávida? Os discursos e seus significados foram analisados à luz da fenomenologia heideggeriana. Na aproximação com o fenômeno, captou-se o modo impessoal e inautêntico das adolescentes, a co-presença na relação com o namorado e com a família, influenciando as decisões sobre a gravidez. Ficou demonstrado, ainda, o temor pelo filho e pela saúde dele, a preocupação com os cuidados e o futuro que circunda o cuidar por julgarem não possuir habilidade para tal, o que gera a angústia e a ansiedade próprias da cotidianidade no novo-modo-de-ser-da-presença. A compreensão desse fenômeno é fundamental no cuidado à adolescente grávida para uma ação integral e humanizada, no controle e na promoção da saúde do binômio mãe-filho.

adolescente; gravidez; promoção da saúde


The research had as objective to comprehend the sense of pregnancy to the teenager pregnant trying to get the way of being and having be pregnant. It was done four in-deep interviews, using the core question: How do you feel being pregnant? The speeches and their meanings were analysed by the light of Heidegger's Phenomenology. In getting closer to the phenomena we get the way impersonal and not authentic of teenagers, the co-presence in relation to the boyfriend and family. They shown, still the dread by the child and by his health, worrying with the future that around the care, due they deem themselves not to have the ability to this, which causes the anguish and anxiety of daily life, in the new way of being. The comprehension of this phenomena is fundamental in the care to the teenager pregnant to a full and humanized action.

adolescent; pregnancy; promotion of health


La investigación ha tenido como objetivo comprender el sentido del embarazo para la adolescente embarazada, intentando captar el "modo-de-ser" y su nuevo "siendo-en el-mundo-estando-embarazada". Han sido realizadas cuatro entrevistas en profundidad, utilizando la cuestión que nos guia: ¿Cómo es para ti estar embarzada? Los discursos y sus significados han sido analizados a la luz de la Fenomenología heideggeriana. Ha quedado demostrado además el temor por el hijo y por la salud del mismo, y la preocupación con el futuro que involucra el cuidar, justamente porque juzgan que no poseen habilidades para ello. Eso favorece la angustia y la ansiedad propias de su cotidiano, en el nuevo-modo-de-ser de la presencia. La comprensión de este fenómeno es fundamental en el cuidado de la adolescente embarazada, para lograr una acción integral y humanizada en el control y la promoción de la salud del binomio madre-hijo.

adolescente; embarazo; promoción de la salud


ARTIGO ORIGINAL

A fenomenologia existencial como possibilidade de compreensão das vivências da gravidez em adolescentes

Maria Salete Bessa JorgeI; Getúlio Vasconcelos FiúzaII; Maria Veraci Oliveira QueirozIII

IEnfermeira, Doutor em Enfermagem, Docente da Universidade Estadual do Ceará, Pesquisador do CNPq, e-mail: masabejo@hotmail.com

IIEnfermeiro do Programa de Saúde da Família e do Hospital Infantil Alberto Sabin

IIIEnfermeira do Hospital Geral de Fortaleza, Doutor em Enfermagem, Docente da Universidade Estadual do Ceará, e-mail: veracioq@hotmail.com

RESUMO

A pesquisa teve como objetivo compreender o sentido da gravidez, para a adolescente grávida, tentando captar o modo-de-ser e seu novo-sendo-no-mundo-estando-grávida. Foram realizadas quatro entrevistas em profundidade, utilizando-se a questão norteadora: como é para você estar grávida? Os discursos e seus significados foram analisados à luz da fenomenologia heideggeriana. Na aproximação com o fenômeno, captou-se o modo impessoal e inautêntico das adolescentes, a co-presença na relação com o namorado e com a família, influenciando as decisões sobre a gravidez. Ficou demonstrado, ainda, o temor pelo filho e pela saúde dele, a preocupação com os cuidados e o futuro que circunda o cuidar por julgarem não possuir habilidade para tal, o que gera a angústia e a ansiedade próprias da cotidianidade no novo-modo-de-ser-da-presença. A compreensão desse fenômeno é fundamental no cuidado à adolescente grávida para uma ação integral e humanizada, no controle e na promoção da saúde do binômio mãe-filho.

Descritores: adolescente; gravidez; promoção da saúde

INTRODUÇÃO DA TEMÁTICA

Nas experiências assistenciais de enfermagem com a adolescente grávida, observou-se que o atendimento a ela não leva em conta os seus aspectos psicossociais e emocionais nessa fase, isto é, não se consideram suas necessidades especiais. No entanto, sabe-se quão importante é o cuidado individualizado e humanizado desenvolvido junto à mãe adolescente, objetivando a sua saúde e a do bebê.

O cuidado individualizado e humanizado deve desenvolver-se com o objetivo de compreender a subjetividade do ser cuidado, percebendo-o em suas várias dimensões humanas, uma vez que deve tratar da saúde de forma integral, inclusive do psicobiológico, pois engloba o processo de cuidar para promover, manter e/ou recuperar a dignidade e a totalidade humana(1). Nesse sentido, o cuidado é entendido como ação que vai além de procedimentos técnicos, engloba envolvimento e compromisso com o outro, tornando-se, portanto, uma ação humanizada.

Ao se tratar da adolescência como um período de transição na vida da pessoa, é importante destacar que representa, por si só, momento de conjunção de conflitos. Essa fase é caracterizada pelo início das relações sexuais, momentos de incertezas, ansiedade, consolidação da auto-imagem e da auto-estima, amadurecimento emocional e mental, questionamentos sobre imposições, regras, valores, identidade e família. Cada um desses fatores impõe ao jovem crises que se superpõem e provocam conflitos de natureza intrapessoal e interpessoal(2).

As crises da adolescência são necessárias e imprescindíveis ao desenvolvimento do ser humano, no entanto, a gravidez na adolescência desencadeia crises com capacidade desestruturante por agregar pesada carga emocional, física e social, capaz de impedir que sejam vivenciados importantes estágios de maturação psicossocial(3).

Estudar a adolescência é tarefa complexa e dinâmica. Há necessidade de imersão profunda nesse mundo-vida, de forma plena, a fim de tornar possível a aproximação com a essência e o significado que essa fase imprime aos que a vivenciam. Nesse momento da existência, ocorre um turbilhão de sentimentos e emoções que se mesclam, até porque ser adolescente é vivenciar o enlouquecimento da anatomia e o acordar psico-biológico-existencial do seu ser(4).

Faz-se oportuno destacar que o fato de se sentir grávida, tende a ser muito difícil para a adolescente, isso por se ver, de um momento para o outro, forçada a desempenhar um papel para o qual não foi preparada, inclusive sem ter cumprido os ritos de passagem(5). Como decorrência disso, a vivência da gravidez para a jovem, não raro, vem acompanhada de grande demanda de apoio emocional. Além disso, as mudanças significativas na interação da adolescente com o pai da criança, ou com a família, favorecem os sentimentos de culpa, vergonha e incerteza pela suposta desobediência às leis sociais, produzindo reflexos tanto em relação à aceitação do filho, quanto na decisão do aborto(2). Outra situação discutida pelos autores(2) é que a adolescente grávida é potencialmente fadada a conflitos no seguimento da vida escolar, uma vez que, por se sentir discriminada pelos colegas e professores, acaba evadindo-se da escola.

Tal fenômeno acontece, com freqüência, em virtude de grande parte dos professores não ter o preparo necessário para conduzir discussões dessa natureza e acaba adotando condutas discriminatórias, tentando geralmente excluir das salas de aula a menina gestante com o intuito de preservar as colegas de um "mau exemplo"(3).

Outro aspecto significativo é o papel da rede familiar, com todas as implicações do contexto social em que emerge o papel feminino envolto em elementos que precisam, de forma pragmática, ser incorporados à discussão sobre a gestação na adolescência. Torna-se, pois, relevante, a ajuda que essa jovem em pleno processo de amadurecimento físico, psicológico e social venha a receber, para superar conflitos, munindo-se, para tanto, de mecanismos efetivos de enfrentamento das dificuldades impostas, circunstancialmente, pela vida.

O fenômeno "gravidez na adolescência" não pode ser isolado de um contexto maior, isto é, descontextualizado da família, das redes de sociabilidade da adolescente, em suma, das teias sociais que condicionam sua trajetória biográfica e sociocultural. A gravidez na adolescência tem sérias implicações, que devem ser levadas em consideração pela equipe que a acompanha. Fenômenos, como esse, precisam ser considerados como possíveis danos psicológicos, econômicos e sociais, principalmente, em países em desenvolvimento como o Brasil, que enfrenta uma crise econômica na qual vive toda a América Latina(6).

Um questionamento importante surge em meio a essa conjunção de fatores: qual a percepção que a jovem grávida tem da gravidez na adolescência? Como ela se sente? É importante discutir esse aspecto, haja vista o momento representar, duplamente, uma crise para a jovem que vivencia essa experiência.

Muitos são os conflitos de ordem inconsciente, tornando-se difícil para a adolescente administrá-los, uma vez que às situações do presente vêm se somar a angústia pelo que virá, o medo gerado pela responsabilidade pelo filho, a ansiedade com o decorrer da gestação e, até mesmo, o temor da morte. Há que se lembrar que os problemas vivenciados na gestação, muitas vezes, dificultam a relação mãe-bebê, podendo levar, mais tarde, a maus-tratos à criança, o que se torna mais complexo quando a família permanece não aceitando a gravidez da filha(7).

Frente a essa problemática, é fundamental ao profissional enfermeiro compreender como as adolescentes vivenciam o fenômeno da gravidez, bem como buscar o sentido que tem para elas o fato de estarem grávidas. É relevante apreender, no convívio com as adolescentes, as suas vivências, procurando, em suas manifestações, descobrir o que esconder e, não somente, o que aparentam ser para o profissional que delas cuida.

Diante do exposto, a pesquisa teve como objetivo compreender o sentido da gravidez para a adolescente grávida, tentando captar os seus modos-de-ser e seu novo-sendo-no-mundo-estando-grávida.

TRAJETÓRIA METODOLÓGICA

O estudo de natureza fenomenológica foi produzido a partir de um recorte do projeto de pesquisa sobre a gravidez na adolescência. Utilizou-se, assim, uma unidade de significados que possibilitou mostrar as diversas possibilidades de Ser-Adolescente-Grávida.

O método fenomenológico escolhido está fundamentado em categorias heiddegerianas, o que permitiu lançar um olhar humano sobre as vivências dessas jovens, facilitando reconhecer, em cada uma delas, um ser vivendo experiência única, cujo significado, ao ser apreendido, possibilita a compreensão do sentido da gravidez para a adolescente grávida.

A Fenomenologia de Heidegger envolve uma série de conceitos fundamentados numa linguagem própria, de grande riqueza semântica. O filósofo, em referência, valoriza, sobremaneira, a linguagem poética como uma maneira de se chegar à essência das coisas, pois, para ele, a linguagem é a casa do Ser; não o palavrório, mas a linguagem essencial na sua forma original e poética. É pela linguagem que o homem se abre ao mundo; é ela que dá ao Ser as coisas; portanto, para ir às próprias coisas, deve-se ir às palavras(8).

Considerando as relações do Ser-aí, das pre-senças, é relevante destacar que essas relações só se constituem em essência apenas no ser-no-mundo. O ser autêntico é ser-com-os-outros, saindo do plano ôntico de relações para o ontológico. O ôntico refere-se a tudo que é percebido e conhecido de imediato, enquanto o ontológico diz respeito às características fundamentais que possibilitam as várias maneiras de algo se tornar manifesto, realizado. É o mundo das essências universais(9).

O método fenomenológico de Heidegger é a hermenêutica da interpretação das possibilidades; é a interpretação do ser da pre-sença, sendo a compreensão a base da interpretação e, ainda, a abertura do ser para o mundo. A Fenomenologia Hermenêutica é a compreensão e a interpretação das possibilidades de ser da pre-sença; é a consideração do ser-no-mundo, da convivência da pre-sença com as demais pre-senças através da co-presença(9); é a investigação da expressão do cuidado, da pre-ocupação positiva com o outro na busca de expressar as potencialidades do ser.

O campo de pesquisa foi o Serviço de Adolescente de uma maternidade pública, do município de Fortaleza, CE. O programa iniciado em 1985 fundamenta o atendimento à adolescente grávida ou não na perspectiva "humanizada", tornando-se local de referência para essas clientes. O seu quadro profissional é composto de três médicas, uma enfermeira, uma psicóloga, quatro auxiliares de enfermagem e uma secretária.

As adolescentes em geral comparecem às consultas marcadas no dia anterior e, no início de cada turno, participam do grupo informativo, uma reunião conduzida pela enfermeira ou pela psicóloga, oportunidade em que são fornecidas informações sobre o serviço, o modo como são realizadas as consultas e outras, do interesse do grupo. Há sala própria, para o encontro coletivo das jovens com os profissionais. No dia de pré-natal, destinado às jovens grávidas, a discussão é focada em assuntos relativos à gravidez, desde a fecundação, passando pelas modificações psicobiológicas, até à preparação para o parto, bem como o aconselhamento sobre amamentação e puericultura.

Participaram do estudo quatro adolescentes grávidas, na faixa etária entre os onze e os dezoito anos, atendidas nesse serviço. O critério de escolha foi intencional, respeitando a aceitação das jovens em participar da pesquisa, sem critério de exclusão, uma vez que cada jovem possuía algo a dizer sobre sua vivência da gravidez. A definição do número de sujeitos se deu pela amostragem teórica, ou seja, seguindo o processo de amostragem por saturação. Devido à homogeneidade das características individuais das entrevistadas, as informações coletadas começavam a se repetir e já respondiam os objetivos da pesquisa(10).

Desse modo, foram realizadas quatro entrevistas ao todo, como também um encontro com cada uma das adolescentes, que se deu às quintas-feiras consecutivas, dia em que elas tinham atendimento e mostravam-se disponíveis. As entrevistas foram marcadas previamente e, antes de iniciar a conversa, as adolescentes eram informadas sobre a pesquisa, os objetivos e a importância. Assim como outros informes de proteção ética. Todas as adolescentes leram e assinaram o termo de consentimento livre e esclarecido e, a seguir, iniciavam a falar sobre suas experiências. Não se observou nenhum constrangimento, mas espontaneidade em cada uma ao manifestar suas experiências sobre o assunto indagado. Dessa forma, foram respeitados os dispositivos legais constantes da Resolução 196/1996, do Conselho Nacional de Saúde, que trata dos aspectos éticos de pesquisas envolvendo seres humanos(11). O estudo só foi iniciado após recebimento de parecer favorável do Comitê de Ética em Pesquisa da Universidade Estadual do Ceará.

Para a obtenção das informações, foi utilizada a entrevista fenomenológica, tendo como direcionamento a indagação: "o que é para você estar grávida?" Na condução da entrevista, foram constantes as reformulações e algumas complementações para esclarecer e aprofundar os questionamentos. As entrevistas foram gravadas e transcritas com fidedignidade, conforme descrito pelas participantes. Após leituras sucessivas das entrevistas, foram sendo identificadas as unidades de sentido a que se restringiu o fenômeno relacionado às vivências das adolescentes grávidas.

APROXIMAÇÃO COM O FENÔMENO DES-VELADO

A compreensão é a forma de se penetrar nas possibilidades do Ser, interpretando-o. Segundo Heidegger, isso significa perceber as possibilidades projetadas pelo Ser, captadas pelo sujeito pesquisador(9). Nesse recorte, as adolescentes grávidas mostram o significado da gravidez; tomam para si o modo de ser adolescente, as formas de enfrentar uma realidade inesperada e as possibilidades do fenômeno ser-mãe.

Vivência da gravidez e a possibilidade de ser mãe

Para algumas adolescentes, a descoberta da gravidez vem como uma surpresa, como algo inesperado, fora de seus planos; é um momento no qual emergem sentimentos e incertezas variadas, que vão influenciar todo o período da gestação. A idéia de engravidar é algo distante e que nunca aconteceria com ela; o pensamento mágico é relatado com freqüência.

Foi uma surpresa, eu não esperava nunca, de jeito nenhum. E eu só às vezes usava camisinha, quando tava perto de, assim só botava a camisinha na hora, às vezes. Eu mesmo nem pensava nisso, eu queria era namorar, sair com as minhas amigas, me divertir, mas aí não passava pela minha cabeça [...] (Discurso B).

A jovem, ao se referir à surpresa de descobrir-se grávida, acaba reproduzindo um discurso comum, baseada no que ouve, dando uma explicação de fatalidade ao acontecido; é o falatório, manifestação de um modo impessoal de existência. O que é exposto no falatório arrasta consigo círculos cada vez mais amplos (...). As coisas são assim porque delas se fala assim(9). A adolescente, em meio à sua vivência, traz consigo valores e princípios comuns entre seus pares e tem necessidade de reproduzir o falatório. Dessa forma, a pre-sença, vivenciada de modo impessoal, retira de si a responsabilidade, uma vez que o modo de ser impessoal tira o encargo de cada pre-sença em sua cotidianidade.

A adolescente, não raro, percebe-se cercada de sentimentos contraditórios ao se descobrir grávida. Há o aparecimento de alegria e tristeza, querer e não-querer.

[...] muitas mães pretendem ter filhos só com quarenta e cinco, eu acho que [...] eu tenho dezessete anos e, acho normal, uma adolescente estar grávida, porque eu sempre quis ser mãe. Mas não pretendia ser agora, só que[...] sei lá, aconteceu (Discurso A).

Só que eu fui pensar bem, depois, que algumas pessoas sabiam. Aí eu fiquei achando que era bom e era ruim, ao mesmo tempo, porque, querendo ou não, você quer e também, às vezes, você não quer [...] (Discurso C).

Esses sentimentos demonstram, ainda, o modo impessoal de revelar à adolescente impressões alheias, apreendidas da atitude dos outros em relação a si própria. Essa manifestação da presença não é ela própria (a pre-sença), são os outros que lhe tomam o ser. O arbítrio dos outros dispõe sobre as possibilidades cotidianas de ser da pre-sença, assumido enquanto ser-com, sem que se dê conta dessa manifestação(9).

O modo impessoal de se manifestar a adolescente é uma tentativa de fuga desse novo momento em sua existência, uma vez que a pre-sença, no modo de ser inautêntico, fica à deriva do outro, sob sua forte influência, retirando da pre-sença a função de pensar em sua vida, por si mesma.

A pre-sença tem em sua determinação ser-com. É somente no ser-com que a pre-sença se abre no mundo para suas possibilidades e, assim, o mundo da pre-sença é o mundo compartilhado na co-pre-sença. Assim, a pre-sença se entende a partir de seu mundo, observando-se o impacto da opinião do outro sobre a jovem, sobretudo ao se destacar a sua vivência no modo de ser inautêntico(9).

[...] no colégio, eu tinha vergonha de ir... tinha vergonha do que os meus amigos iam dizer... começou a surgir comentário. [...] eu não sabia o que fazer...perguntavam se eu tava grávida, e eu dizia que não sabia... eu não sabia o que responder [...]. Eu evito ter contato com essas pessoas (Discurso C).

Então, a vida inautêntica se deixa dominar pelo estar-no-mundo, conforme os ditames da lei da massa. Pode-se ainda perceber que a jovem, ao evitar as demais pessoas, está evitando a curiosidade alheia, também outra manifestação cotidiana do modo impessoal.

Em relação à co-pre-sença, destaca-se a importância, para a adolescente grávida, da família e do namorado, elementos que muito a influenciam, seja em relação à aceitação da gravidez, seja nas decisões a serem tomadas. São os dois pólos fundamentais, que permeiam o discurso das adolescentes.

Eu pensava que, ele (o pai) nunca ia aceitar, porque ele dizia que se eu engravidasse... eu ficava lembrando dele, quando saí de lá [...] onde eu fiz um exame e deu positivo. Ele ia ficar, assim, com vergonha, de mim, de eu tá grávida, uma filha com quinze anos, grávida, do namorado, sem nem tá junta... mesmo eu ficando preocupada, com tudo, né, com o pai do meu filho, com meu pai... e tinha também a minha mãe, que eu acho que ficou triste, aí.. dá medo [...] (Discurso D).

Nesse momento, é comum a jovem se sentir sozinha, justamente pela não-presença de pessoas que em muito influenciam sua vida, como os seus pais. Apesar de continuarem eles presentes fisicamente, mesmo sem sair de casa, ela se sente solitária; é o sentir-se entre os outros sem estar entre os ombros. A respeito desse modo de ser, Heidegger afirma que a determinação da pre-sença no ser-com prossegue, mas ser-com, no caso de "estar entre" as outras pre-senças, vem do modo da indiferença e da estranheza; o estar-só é um modo deficiente de ser-com, e sua possibilidade é prova disso(9). Esse sentimento de estar-só pode ser evidenciado na fala que se segue.

Com a minha mãe, ela foi neutra, não falou, só balançou a cabeça, e eu fiquei triste, porque nem ela, né, quis assim, né, pra me dar mais apoio, eu fiquei só, sem meu pai nem a minha mãe. Ela tava ali, mas só ficava com cara... ficava calada [...] (Discurso B).

O sentimento de culpa, muitas vezes imposto à jovem pela família, leva-a, com freqüência, a pensar na possibilidade de aborto, que aparece como opção de fuga da crise inicial, advinda da descoberta da gravidez.

Eu só pensava em abortar, só em abortar. Por causa do meu pai, eu moro com ele, e ele nunca, eu pensava, ele nunca ia aceitar, que ele dizia que se eu engravidasse... eu chorava direto, o tempo inteiro eu tava chorando, eu ficava com medo [...] eu lembrava do meu pai, que ele ia brigar, falar o tempo todo, eu já saí da clínica, do laboratório, chorando muito (Discurso D).

Ao mesmo tempo, a jovem começa a ter contato com o profundo em si, de modo lento e gradual. E, com isso, passa a se encarar como responsável por sua existência, descobrindo-se, aos poucos, um ser para possibilidades. É quando procura enfrentar seus atos de forma autêntica, tomando-os para si.

Só que depois de um tempo, assim, eu comecei a perceber que, pô, pra quê que eu vou fazer isso? Abortar? Eu vou abortar pra quê, pra minha consciência pesar pro resto da vida?... não, prefiro criar, enfrentar quem for, porque ninguém tem nada a ver com a minha vida, mesmo que eu tivesse um pouco de vergonha, sei lá. Eu não fiz? Pois então agora eu vou criar responsabilidade, por mais que eu não tenha [...] (Discurso D).

Nesse momento, aparece o jogo de "ir-e-vir", do ôntico para o ontológico, num movimento dinâmico, no qual a pre-sença caminha entre o profundo e o superficial, entre o autêntico e o impessoal. Ao mesmo tempo em que a família, o namorado em especial e também as demais pessoas do seu convívio influenciam e determinam muitas decisões da jovem, "conduzindo" sua existência, ela vai se "apropriando" de sua vivência, tomando-a para si. A família representa um peso muito importante para a jovem, na gravidez. Esse é um momento em que ela avalia de uma forma diferente sua relação com os familiares e, mesmo diante do impacto negativo da descoberta da gravidez, que se faz acompanhar da sua atribuição pelo acontecido, isso faz com que a futura mamãe realmente comece a tomar conta de sua vida e passe a procurar entender o sentimento dos pais.

Minha mãe [...] ficou, assim, um pouco triste mas ela teve que aceitar, ela não vai poder fazer nada, mas ela ficou foi mais decepcionada. Eu agora entendo o lado dele [ ...] a gente passa a entender mais a família da gente, porque eu sei que eles se preocupam comigo, agora eu também vou ser assim [...] (Discurso A).

Passado o momento da surpresa, os pais começam a aceitar a gravidez e acolher a jovem, compartilhando com ela dos planos para o neto que está para chegar, o que lhe traz alívio e conforto, principalmente por se sentir acolhida por eles.

No modo impessoal, a pre-sença se "apóia" nos outros, já que ela não se responsabiliza por si, atribuindo sua vivência à co-presença, provocando uma dependência dos outros em suas ações dentro da determinação do ser-com. Enquanto ser-com, a pre-sença se dá, essencialmente, em função dos outros(9).

A jovem grávida busca, no namorado, uma "ajuda" para tomar decisão importante: abortar ou não, que é o primeiro questionamento feito nessas circunstâncias. Evidentemente, há grande dependência da jovem, em relação à opinião do namorado, quanto à decisão que deve ser tomada.

Ele (o namorado) queria ter, é o sonho dele, tem vinte anos, ele dizia que dava pra criar, que ia trabalhar [...] que eu não ligasse pro que as pessoas falavam. Aí, eu disse que tudo bem (Discurso A).

Em meio a essa busca de apoio do namorado, a jovem acha que ser apoiada pelo pai do seu filho vai ter importância na aceitação da gravidez pela sociedade, uma vez que ela não será uma mãe solteira, estigmatizada, o que influencia, sobremodo, na vivência da sua gravidez. Aqui se expressa, mais uma vez, a dependência da pre-sença às demais pre-senças, às opiniões das demais pre-senças. É importante para a jovem dar uma resposta aos demais, de modo que as críticas feitas à gravidez na adolescência sejam diminuídas.

Eu engravidei de um homem responsável, e isso importa muito, porque não foi de qualquer um, ele vai assumir, como me assumiu. É claro que se ele não tivesse sido homem, me assumido, eu, tinha sido muito mais difícil, eu ia sentir muita vergonha e na família tinha sido pior [...] (Discurso A).

Para a jovem, é bastante reconfortante o apoio do namorado num momento especial em que ela se vê pressionada pela família, incorporando sentimentos de culpa e solidão impostos, sobretudo pelos pais.

A dependência da pre-sença, às demais co-pre-senças gera influência na determinação do ser-com, na cotidianidade do outro, sobre a pre-sença. "Este conviver dilui, inteiramente, a própria pre-sença no modo-de-ser dos 'outros', e isso de tal maneira que os outros desaparecem ainda mais em sua possibilidade de diferença e expressão"(9). Ninguém é si, todos são os outros.

Na vivência da gravidez, a adolescente expressa, ainda, o medo que a perseguirá por todo o período gravídico. A jovem também manifesta o medo do parto, sobretudo em relação à dor e, ainda, em relação à hospitalização e aos procedimentos realizados no momento do parto. A filosofia heideggeriana ressalta que o temor é um modo da disposição, como uma abertura para o poder-ser, para as possibilidades. O temor apresenta possibilidades, a saber: o pavor, o horror e o terror. Nessas variações dos momentos constitutivos do fenômeno do temor, a aproximação da realidade pertence à estrutura de encontro daquilo que ameaça. A ameaça de algo que não aconteceu, mas que, a qualquer momento, pode acontecer, subitamente se abate sobre o ser-no-mundo da ocupação. O temor pode se transformar em pavor. Desse modo, é preciso saber distinguir o que é ameaça; a aproximação do que isso representa, pois o desconhecido vem sob a forma de terror. O pavor é, de início, algo conhecido e familiar. Se, ao contrário, o que ameaça possui caráter de algo totalmente não familiar, o temor transforma-se em horror (9).

Dessa forma, a jovem possui, em relação à possibilidade do parto, o modo-de-ser pavor do temor, uma vez que, vivenciando o modo impessoal na cotidianidade, se vale, com freqüência, dos relatos de outras mulheres que já vivenciaram a experiência, e que trazem consigo o falatório. Os discursos de outras mulheres influenciam a jovem, levando-a a sentir pavor diante da possibilidade da vivência do parto.

Tenho medo também de sentir alguma dor, que eu não quero sofrer muito dias, muito no hospital, sem poder ficar com ninguém, só sentindo dor (Discurso A).

O temor pelo parto em virtude de tudo que a ele se relaciona como dor, solidão, hospitalização aparece, sobretudo, em decorrência do que a jovem escuta de outras pessoas, que, de modo impessoal, sem maior envolvimento, se valem do falatório para tecer comentários sobre o parto. No falatório, não há compromisso com o que se fala, limitando-se a uma superficialidade. Está ele relacionado muito mais à curiosidade, pelo novo, pulando de uma novidade para outra, sem interesse de compreensão(12).

A adolescente manifesta expectativas em relação ao futuro, ao seu modo de ser mãe, ao que é novo e ao que representa o cuidar. É a tomada de consciência da nova condição de ser mãe, de ser responsável por um filho, por um outro. Isso gera na jovem a angústia, uma vez que o desconhecido se aproxima, sem que haja familiaridade, desse novo modo de ser; busca, sem direção, um "afastamento" do que supõe ser a origem desse "incômodo". Essa "fuga", entretanto, aproxima-a justamente do que ela foge, de sua nova condição e das mudanças advindas desse modo de ser. São as expectativas sobre o desconhecido.

Quando eu penso que daqui a pouco vou tá com ele aqui, dá uma coisa estranha, um medo, sei lá uma coisa diferente, porque vai mudar tanta coisa,vai ser tudo tão diferente que dá um medo. Se você for pensar você fica doida! (Discurso B).

E o desconhecido aparece, sobretudo, em relação à maternidade, à inexperiência da jovem com o sentir-se mãe, e as implicações disso em sua vida. Ela se questiona sobre o sentimento da maternidade, de ser-mãe. Aqui aparecem as incertezas em relação à convivência, à vivência da co-pre-sença.

Fico imaginando como é você olhar pra uma criança e saber que ela um dia tava dentro de você... que você tem um pouco dela, em você, deve ser engraçado, só quando sair é que vou saber como é (Discurso B).

Vivenciar essa co-pre-sença gera o temor, uma vez que essa nova condição, o modo de ser mãe, é algo novo, do qual ela apenas tem idéia fundamentada em outras vivências, descritas por outras pessoas de sua convivência. No entanto, essa incerteza e a expectativa também vêm permeadas de alegria pela possibilidade de, em breve, estar-com o filho.

REFLEXÃO SOBRE O ESTUDO

O fenômeno gravidez na adolescência é temática que permeia o cotidiano dos profissionais da saúde, o que fez despertar a compreensão das vivências dessas jovens a partir da interpretação dos discursos à luz da fenomenologia de Heidegger.

Quando as adolescentes refletem acerca de gravidez e do modo de ser mãe, fazem uma análise das perdas e ganhos. Destacam situações novas e importantes e vão se "apropriando" da nova condição, trazendo-a para si, começando a pensar no modo de ser mãe, no modo de ser adolescente, no modo de ser mulher, no modo de ser filha casada. Essa apropriação acontece levando em conta as múltiplas possibilidades de abertura da jovem para o mundo.

A atitude reprodutora de técnicas, a ocupação com as coisas do mundo, com o fazer cotidiano, muitas vezes, impedem o profissional de perceber o que as jovens grávidas querem saber, o que pensam sobre sua nova condição de vida, suas expectativas e ansiedades frente ao momento vivido. Neste estudo, elas demonstraram interesse em saber sobre o parto, saber como cuidar do filho. Não bastava saber apenas que o coração do filho estava batendo, que ele nasceria em tal dia. Isso é importante para as jovens grávidas, mas ansiavam por mais, precisavam ser compreendidas a partir de uma escuta quanto aos seus sentimentos e angústias ante uma gravidez precoce.

Conseguiu-se, aqui, com este estudo, captar algumas vivências da adolescente grávida: momentos de autenticidade e, ainda, sua determinação de Ser-mãe. Assim, a presença estende-se a partir de seu mundo na co-presença com os outros, que são significativos para sua vida como Ser de possibilidades. Tendo o profissional a compreensão das manifestações da adolescente na vivência da gravidez e de Ser-mãe, crescem as possibilidades de ofertas de assistência individual e humanizada às jovens. Sabe-se, não obstante, que a cotidianidade do fazer técnico distancia os profissionais da realidade vivida por cada sujeito (cliente), daí ser preciso que ele supere tais posturas e saiba construir maneiras de entender a existência de cada Ser-presente no universo de suas relações profissionais.

Nesse sentido, o estudo traz informações empíricas interpretadas à luz de um referencial filosófico que propicia reflexão sobre o significado da interação e da valorização das experiências dos sujeitos para o desenvolvimento de atitudes profissionais que podem contribuir para o processo de cuidar/cuidado, numa dimensão individual, com a perspectiva do desenvolvimento do outro em suas potencialidades. Tais proposições trazem subsídios que ensejam a promoção da saúde e o planejamento do processo de cuidar, em enfermagem, do binômio mãe-filho em situação de gravidez precoce.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

Recebido em: 11.8.2005

Aprovado em: 4.7.2006

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    09 Fev 2007
  • Data do Fascículo
    Dez 2006

Histórico

  • Aceito
    04 Jul 2006
  • Recebido
    11 Ago 2005
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