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Controle da tuberculose: descentralização, planejamento local e especificidades gerenciais

Resumos

Buscou-se analisar, segundo a percepção dos gestores de saúde, as práticas que norteiam as ações de controle da tuberculose, em municípios da região metropolitana de João Pessoa, PB. Trata-se de estudo qualitativo que envolveu oito profissionais que exerciam cargos de gestão. Os depoimentos foram coletados por meio de entrevista semiestruturada, entre maio e julho de 2009, e organizados mediante análise de conteúdo. Embora se reconheça os benefícios da descentralização das ações de controle da tuberculose, o planejamento local sinaliza a predominância de modelo burocrático restrito à negociação e provisão de insumos. A programação local centra-se na figura do coordenador, retratando uma linha de comando e gestão vertical que induzem à fragmentação do processo de trabalho. A tarefa de gerenciar deve trilhar caminho inovador e transformador que ultrapasse as barreiras burocráticas e alcance o maior desafio que lhe é imposto: equilibrar as inter-relações profissionais no intuito de aperfeiçoar o desempenho do trabalho em saúde.

Tuberculose; Gestão em Saúde; Atenção Primária à Saúde


The goal was to analyze, according to the perception of health managers, the practices that guide tuberculosis control actions in cities in the metropolitan region of João Pessoa - PB, Brazil. This qualitative study involved eight professionals in management functions. Testimonies were collected through semi-structured interviews between May and June 2009 and organized through content analysis. Despite the acknowledged benefits of tuberculosis control action decentralization, local planning indicates the predominance of a bureaucratic model that is restricted to negotiation and supplies. Local programming is centered on the coordinator, which shows a command line and vertical management that lead to the fragmentation of the work process. Management action should follow an innovative and transformative route that surpasses bureaucratic barriers and faces the biggest challenge it is proposed: to balance professional interrelations with a view to improving health work performance.

Tuberculosis; Health Management; Primary Health Care


Se buscó analizar, según la percepción de los gestores de salud, las prácticas que orientan las acciones de control de la tuberculosis en municipios de la región metropolitana de Joao Pesoa, estado de Paraíba. Se trata de un estudio cualitativo que envolvió ocho profesionales que ejercían cargos de gestión. Las declaraciones fueron recolectadas por medio de entrevistas semiestructuradas, entre mayo y julio de 2009, y organizadas mediante análisis de contenido. A pesar de que se reconozcan los beneficios de la descentralización de las acciones de control de la tuberculosis, la planificación local señala la predominancia del modelo burocrático restricto a negociación y suministro de insumos. La programación local se centra en la figura del coordinador, retratando una línea de comando y gestión vertical que induce a la fragmentación del proceso de trabajo. La tarea de administrar debe explorar un camino innovador y transformador, que ultrapase las barreras burocráticas y alcance el mayor desafío que le es impuesto: equilibrar las interrelaciones profesionales con la finalidad de perfeccionar el desempeño del trabajo en salud.

Tuberculosis; Gestión en Salud; Atención Primaria de Salud


ARTIGO ORIGINAL

Controle da tuberculose: descentralização, planejamento local e especificidades gerenciais1

Janaína Von Söhsten TrigueiroI ; Jordana de Almeida NogueiraII; Lenilde Duarte de SáII; Pedro Fredemir PalhaIII; Tereza Cristina Scatena VillaIV; Débora Raquel Soares Guedes TrigueiroV

IEnfermeira, Mestre em Enfermagem, Professor, Centro de Educação e Saúde, Universidade Federal de Campina Grande, Cuité, PB, Brasil. E-mail: janavs_23@hotmail.com

IIEnfermeira, Doutor em Enfermagem, Professor Doutor, Departamento de Enfermagem Clínica, Universidade Federal da Paraíba, João Pessoa, PB, Brasil. E-mail: Jordana - jal_nogueira@yahoo.com.br, Lenilde - lenilde_sa@yahoo.com.br

IIIEnfermeiro, Doutor em Enfermagem, Professor Doutor, Escola de Enfermagem de Ribeirão Preto, Universidade de São Paulo, Centro Colaborador da OMS para o Desenvolvimento da Pesquisa em Enfermagem, SP, Brasil. E-mail: palha@eerp.usp.br

IVEnfermeira, Doutor em Enfermagem, Professor Titular, Escola de Enfermagem de Ribeirão Preto, Universidade de São Paulo, Centro Colaborador da OMS para o Desenvolvimento da Pesquisa em Enfermagem, SP, Brasil. E-mail: tite@eerp.usp.br

VEnfermeira, Mestranda em Enfermagem, Universidade Federal da Paraíba, João Pessoa, PB, Brasil. E-mail: deborasgt@hotmail.com

Endereço para correspondência

RESUMO

Buscou-se analisar, segundo a percepção dos gestores de saúde, as práticas que norteiam as ações de controle da tuberculose, em municípios da região metropolitana de João Pessoa, PB. Trata-se de estudo qualitativo que envolveu oito profissionais que exerciam cargos de gestão. Os depoimentos foram coletados por meio de entrevista semiestruturada, entre maio e julho de 2009, e organizados mediante análise de conteúdo. Embora se reconheça os benefícios da descentralização das ações de controle da tuberculose, o planejamento local sinaliza a predominância de modelo burocrático restrito à negociação e provisão de insumos. A programação local centra-se na figura do coordenador, retratando uma linha de comando e gestão vertical que induzem à fragmentação do processo de trabalho. A tarefa de gerenciar deve trilhar caminho inovador e transformador que ultrapasse as barreiras burocráticas e alcance o maior desafio que lhe é imposto: equilibrar as inter-relações profissionais no intuito de aperfeiçoar o desempenho do trabalho em saúde.

Descritores: Tuberculose; Gestão em Saúde; Atenção Primária à Saúde.

Introdução

No cenário contemporâneo, a descentralização das ações de controle da tuberculose (TB) para o âmbito da atenção básica (AB), coloca em pauta a discussão sobre em que medida os desenhos organizacionais e arranjos de práticas traduzem as necessidades dos usuários e levam em conta as singularidades do território e o acesso aos serviços de saúde.

A tuberculose está entre as seis prioridades do Pacto pela Vida, mediante o qual os gestores, sob as diretrizes da regionalização solidária e cooperativa, como eixo estruturante do processo de descentralização, devem envidar esforços para atingir 85% de cura de casos novos de TB, em todos os municípios prioritários(1). Ocorre que essa meta não vem sendo atingida e os gestores continuam a enfrentar desafios que os deixam mais distantes de alcançarem os compromissos pactuados.

Pressupõe-se que, para alcançar metas e honrar pactos, a organização das ações de controle da TB, na esfera local, deverá estar associada a um trabalho coordenado, cuja operacionalização se assente potencialmente nas relações que envolvem pessoas, tecnologia e recursos. Cabe, portanto, ao gestor, ter habilidades para mediar, manter e transformar essas relações em função das necessidades da população. Logo, a coordenação se destaca como instrumento determinante desse processo, cujos efeitos estarão diretamente relacionados à capacidade de prover e articular recursos de informação e conhecimento, organizativos, políticos e financeiros em função do tempo, prioridades estratégicas e operacionais concretamente estabelecidas(2).

No plano operacional, a organização da rede de atenção à TB requer o cumprimento de um conjunto de normas (rede laboratorial disponível para exames diagnósticos, abastecimento de medicamentos, oferta de tratamento supervisionado, alimentação e análise de dados), bem como o reordenamento das práticas, tanto no plano do cuidado individual/coletivo como no controle e ordenação do fluxo de trabalho, na articulação da rede assistencial, na adequação tecnológica e na instrumentalização das equipes(3). Esses ajustes fundamentam-se na capacidade gerencial de ordenar esforços das várias partes do sistema, controlar os processos e os rendimentos, avaliar os produtos finais e os resultados para a correção dos desvios detectados.

Nos municípios prioritários para o controle da TB, embora existam diretrizes operacionais em função dos Pactos pela Vida, em Defesa do Sistema Único de Saúde (SUS) e de Gestão, observa-se que as peculiaridades locais desafiam os gestores municipais, expõem suas fragilidades como responsáveis pela saúde da população e mostram como as singularidades conformam a gestão distanciada do que se propõe como necessário a mudanças operacionais do SUS, ressaltando, principalmente, as esferas da descentralização e do planejamento das ações.

Tendo como cenário dois municípios prioritários para o controle da TB, na Grande João Pessoa, PB, e entendendo gerência como instrumento necessário para a reorganização dos serviços de saúde, o objetivo desta investigação se constituiu em analisar, segundo a percepção dos gestores, as práticas que orientam as ações de controle da TB nessas localidades.

O estudo baseia-se no conceito de que gestão em saúde "seria a arte ou ciência de identificar recursos necessários para a concretização de determinadas finalidades, a mobilização em si para obtê-los, e de combinar, de forma adequada, sua utilização, por meio da ação humana e de determinados processos de trabalho, de acordo com dimensões que qualificam o alcance dessas finalidades ou objetivos"(4).

Método

O presente estudo insere-se no projeto intitulado Avaliação das dimensões organizacionais e de desempenho das equipes de saúde da família, no controle da tuberculose, em dois municípios da região metropolitana da Paraíba, aprovado pelo MS/CNPq/ FAPESQ- TC 078/07.

Optou-se pela abordagem qualitativa, utilizando-se a entrevista semiestruturada como instrumento para coleta de informações. As questões norteadoras centraram-se na inserção da TB, no contexto sanitário municipal, atores envolvidos e potencialidades e fragilidades administrativo-gerenciais/financeiras/operacionais.

As entrevistas foram realizadas nos meses de maio e junho de 2009, envolvendo oito profissionais que exerciam cargos de gestão nos municípios referidos, dentre eles os coordenadores dos Programas de Controle da Tuberculose, da AB, Vigilância em Saúde, Vigilância Epidemiológica e Secretários de Saúde. A partir da concordância na colaboração da pesquisa, foi solicitado o preenchimento do termo de consentimento livre e esclarecido, firmando-se anuência por escrito. As entrevistas foram gravadas e posteriormente transcritas.

Ressalta-se que o número total de gestores a serem entrevistados não foi definido a priori, pois, na pesquisa qualitativa, a coleta permanece até o momento em que houver convergências suficientes para configurar o fenômeno do estudo.

Os depoimentos foram analisados mediante o emprego da análise de conteúdo, entendida como um conjunto de técnicas de análise das comunicações, com a finalidade de obter, por meio de procedimentos sistemáticos e objetivos de descrição do conteúdo dos relatos, os indicadores que permitem deduzir conhecimentos relativos às condições de produção e recepção dessas mensagens(5).

A análise seguiu três momentos: a pré-análise, a exploração do material e o tratamento dos resultados. Nesse tipo de análise, para compor as unidades de registro e de contexto são utilizados recortes semânticos que originam as categorias analíticas, compreendidas como uma afirmação sobre um assunto, uma frase, frase composta ou sintetizada, por influência da qual se pode abranger grande conjunto de formulações individuais(5).

O projeto do qual resultou esse estudo foi apreciado pelo Comitê de Ética em Pesquisa do Centro de Ciências da Saúde (CEP/CCS) da Universidade Federal da Paraíba-UFPB, sendo aprovado em 29/8/2007, sob Protocolo n°1248. Atendendo às orientações inerentes à Resolução nº196/96, do Conselho Nacional de Saúde(6), que trata de pesquisa envolvendo seres humanos, foi garantido o sigilo da identidade dos participantes, estabelecendo-se um código para os gestores (G1, G2...) seguido da letra "M" para diferenciação dos municípios (M1, M2).

Da análise dos depoimentos emergiu o núcleo de sentido central - A tuberculose no contexto sanitário municipal: descentralização, planejamento local e especificidades gerenciais.

Resultados

A tuberculose no contexto sanitário municipal: descentralização, planejamento local e especificidades gerenciais

A inserção da TB, dentre as prioridades sanitárias do Pacto pela Vida e como área estratégica da AB, para a intensificação das ações e atuação em todo território nacional(1), exige superação do modelo tradicional e reorientação das políticas e práticas. A descentralização das ações de controle da TB para o âmbito local é reconhecida pelos gestores como benéfica ao usuário.

Eu acho que a descentralização foi muito boa, muito eficaz. Primeiro porque você tira de um nível central, da Referência, fazendo com que abra um leque maior, favorecendo a equidade na ação. É um ganho para todos os envolvidos, os profissionais e principalmente os portadores de TB (G3/M1); A descentralização foi um grande avanço, né? Agora o usuário, o acesso dele ao serviço de saúde melhorou muito. Foi bom também pela questão do acompanhamento dos casos, diariamente. Para o município também foi maravilhoso, porque não precisa mais deslocar aquele determinado paciente para a Unidade de Referência, o Clementino (G7/M2).

Embora se evidencie, nos conteúdos, o reconhecimento da importância em descentralizar as ações de saúde, o deslocamento do poder decisório para o nível local imprime ao gestor competências e habilidades para que as ações sejam adequadamente planejadas. Considerando metas e pactos definidos para o controle da TB, os depoimentos dos gestores sinalizam compromisso político com o planejamento das ações no contexto sanitário municipal, embora restritivas à negociação e à provisão de insumos necessários para realização de diagnósticos e campanhas educativas.

Em relação ao planejamento existe todo um trabalho de cálculo, que é realizado em cima da população, da área adscrita, números de baciloscopia, de sintomáticos respiratórios, enfim, faz tudo isso para planejar as metas que são propostas anualmente (G3/M1). Nós, todo ano, fazemos o planejamento de saúde, das ações, e apresentamos ao Conselho Municipal de Saúde, para ser aprovado. Aí, nesse planejamento, levantamos as questões de todos os materiais necessários para exames diagnósticos, para os eventos que realizamos como o dia mundial da tuberculose, é por aí, sabe? (G8/M2). O planejamento é feito anualmente, dando prioridade às necessidades do programa, como, por exemplo, os exames laboratoriais, quantos mais ou menos a gente vai ter que realizar... a gente faz a análise anual e em cima dela faz a mensal (G1/M1).

Constata-se, pelas declarações, que o planejamento das ações de controle da TB limita-se à racionalização e adequação da utilização de recursos. Remetem à ideia de que os sujeitos assumem o desempenho da gerência do ponto de vista técnico-burocrático, contrapondo-se à ideia do Planejamento Estratégico(7). Tal situação parece agravar-se quando a responsabilidade gerencial é deslocada para a figura do coordenador do Programa Municipal de Controle da Tuberculose (PCT).

Em relação ao planejamento, na verdade, nem sei te responder direito essas coisas, eu vou deixar para a coordenadora do Programa de TB dizer isso pra você, tá certo? Porque isso não cabe a mim, foge, sabe? (G6/M2). Isso aí é uma coisa mais específic, que, até assim, para eu me aprofundar, como eu tenho uma visão mais macro, isso aí é mais com a coordenação do Programa, né? (G5/M1).

O desconhecimento mostrado pelo gestor compromete o seu poder político concebido como a capacidade de desencadear mobilização, por sua vez, dependente de saberes advindos de sua experiência prática, de sentimentos gerados por essas experiências e pelo conhecimento científico(8). A situação é agravada pelo fato de os depoimentos retratarem um modelo de organização em que a inevitável departamentalização estipula uma linha de comando e de gestão vertical que induz a fragmentação do processo de trabalho(9).

O ruim aqui é o seguinte, não existe integração das vigilâncias sanitária, epidemiológica e em saúde, com a atenção básica também. É tudo muito separado e não deveria ser assim, porque dificulta o trabalho (G3/M1).

Para que se atinjam mudanças em uma dada realidade local, é indispensável desenvolver a capacidade de coordenar os recursos disponíveis, setoriais e extrassetoriais, bem como investir na construção de competências para emancipação de relações de trabalho não alienadas. Chama atenção, no entanto, que essa conformação do papel gerencial contemporâneo, cuja lógica se assenta na construção conjunta da finalidade, na negociação de projetos individuais e na formulação de projetos coletivos, na prática, revela contradições e interrupções.

Se, por um lado, como já referido, o planejamento das ações de controle da TB nos municípios estudados conformam-se de modo fragmentado, isto é, os atores que ocupam funções de gestores "não conversam entre si" e, por outro, quem executa não participa do planejamento, esse processo agrava-se frente à rotatividade dos profissionais de saúde.

O município muda de profissional como quem troca de roupa (G1/M1). A mudança de gestores no município é uma grande dificuldade, porque dificulta bastante o andamento do serviço, né? Depois que eu cheguei aqui já mudou três vezes de secretário de saúde e isso contribui muito para que a coisa não ande como deveria andar (G3/M1). A grande dificuldade que nós temos em relação aos recursos humanos é devido à rotatividade, devido ao perfil também, sabe? Isso dificulta o andamento do trabalho (G8/M2).

Embora a Constituição Brasileira recomende a realização de concursos públicos, na maioria das vezes, as contratações para ocupar função gerencial são resultantes de indicação política e/ou grupos ideológico/religiosos, que sustentam, politicamente, os detentores do poder instituído(10). A contratação de equipes para a Saúde da Família, por meio de organizações não-governamentais, contribui para o aumento da precarização do trabalho em saúde, caracterizado, em geral, por vínculos inadequados e contratação informal em caráter temporário.

As formas inadequadas de contratação dos trabalhadores de saúde induzem a rotatividade de pessoal e implicam em perda de pessoas estratégicas, gerando fator de ruptura e, consequentemente, prejudicando a eficiência organizacional e acompanhamento dos casos de TB.

A gente sabe que a equipe é fundamental para que o paciente aceite e termine o tratamento, mas o problema é que no PSF existe uma rotatividade muito grande de profissionais (G4/M1). A partir do momento que você investiu naquele profissional, você treinou, capacitou e o perde, é uma perda para o município, uma perda para os usuários que já estavam sendo acompanhados por ele (G7/M2). O pessoal que tava anteriormente foi treinado, sabe? A gente tem tentado, mas a gente vê que agora nem todo mundo tá 100% capacitado para tratar da doença (G5/M).

Outro ponto destacado, como limitante, relaciona-se à dupla função dos gestores do PCT. O ruim é a questão de ser uma coordenadora só para fazer tudo de dois programas... você acaba não tendo o olhar diferenciado para a patologia propriamente dita, né? Não se pode ter um programa com uma pessoa que tá coordenando outros programas. Acho que um programa do tipo da tuberculose tem que ter uma pessoa específica para dar mais prioridade às ações de controle (G3/M1). Fica difícil fazer as coisas quando você está atuando em duas Coordenações, sabe? Isso prejudica demais o meu trabalho (G6/M2).

Os discursos traduzem, novamente, o fracionamento do trabalho, nos quais os gestores são responsáveis por partes, deixando transparecer certa "lógica em que alguém manda e os outros apenas obedecem; cada trabalhador vai desenvolvendo o trabalho conforme seu grau de conquista de autonomia e autogoverno". Paradoxalmente, os trabalhadores têm sido "apontados como potenciais sujeitos da mudança e de reformulação das atuais práticas de saúde e deveriam ser assim valorizados"(10).

Outra questão que ocupa espaço de destaque entre os gestores do PCT refere-se à política de financiamento para implementação das ações de controle da TB. Como há centralização de recursos no nível central, os gestores do PCT não dispõem de autonomia para determinar a utilização dos mesmos.

Não é como DST/AIDS que vem recurso direitinho, sabe? O que sempre dizem é que para tuberculose não tem dinheiro. As coisas que a gente consegue é através da vigilância epidemiológica. Na verdade, não é uma verba específica, né? O recurso é muito pouco (G1/M1). Infelizmente os recursos financeiros ainda são poucos. Se fosse melhor, daria para realizar um trabalho melhor, mais eficaz. Todo gestor tem dificuldade a respeito do recurso. Ele [o recurso] é tão insignificante que não dá para ter uma estrutura melhor para o paciente de TB. Isso preocupa, mas a gente vai fazer o quê? (G2/M1.)

O provável sucesso do PCT está pautado em cinco pilares e, um deles, é justamente o compromisso político, onde se almeja a sustentabilidade das ações de controle da doença, sobretudo por meio da estratégia do tratamento diretamente observado (DOTS). Compreende-se o termo sustentabilidade como a competência em assegurar a continuidade das ações de controle da TB, mediante o fornecimento de subsídios para recursos materiais e humanos(11).

A baixa capacidade técnica e financeira da grande maioria dos municípios, todavia, concorre para impossibilitar a ampliação de determinados serviços. A insuficiência de recursos públicos, associada às vulnerabilidades sociais e disparidades econômicas regionais, demanda negociações constantes com os gestores municipais de saúde, a fim de que se convertam verbas provenientes do Ministério da Saúde para favorecer as ações do PCT.

Quando o comprometimento com a TB é legitimado pelo município, não só é possível alocar recursos financeiros, mas, também, disponibilizar incentivos para benefícios como cestas básicas e vales-transporte, com a finalidade de suprir algumas necessidades dos doentes em tratamento(9).

Eu sempre lutei por uma cesta básica. Eu acho que se tivesse, ele [o paciente] iria pensar duas vezes antes de deixar o tratamento. Segurava mais, né? (G1/M). O nosso município não dispõe de iniciativas mais eficazes, que seria a distribuição de cesta básica. Não resolveria o problema, mas seria um bom paliativo. Faria com que os pacientes não abandonassem o tratamento, porque o paciente de TB tem fome e ele quer comer, né? (G2/M1). O município antigamente dava feiras e isso contribuiu para o tratamento. Era uma cesta básica. Na verdade nem tinha tanta coisa, mas dava para ajudar. Mas parou, nunca mais compraram. O desejo é que volte a distribuir isso, mas precisa de recurso, é difícil (G7/M2).

O último fragmento mostra como a falta de incentivos/benefícios corroboram a descontinuidade do tratamento, fato que reduz a sustentabilidade de política e ações voltadas ao cumprimento de metas, principalmente para o alcance de 85% de cura. Sabe-se que recursos promovem a adesão terapêutica. Entretanto, a centralização de recursos e a sua disponibilização irregular certamente provocarão a pouca disposição do doente em colaborar com o tratamento, de modo a gerar rupturas no processo de planejamento e na efetivação das atividades de supervisão.

Discussão

O planejamento das ações de controle da TB, no contexto investigado, limita-se a um modelo burocrático, não sendo assinalada a pretensão de planejar no sentido de qualificar as ações, de repensar o que seria indispensável para um doente com TB. Tampouco os sujeitos associam ser o planejamento "um processo de racionalização de ações humanas que consiste em definir proposições e construir sua viabilidade com vistas à solução de problemas e atendimento de necessidades individuais e coletivas"(12).

As ações de controle da TB, à luz do conceito ampliado de saúde, requerem que a gestão de sistemas e serviços considere "fortemente a intersetorialidade, uma visão sistêmica e ampliada das necessidades de um indivíduo ou de uma coletividade"(4). Espera-se que o gestor conheça os pressupostos do processo de planejamento e visão ampla da realidade local (infraestrutura, recursos humanos, logística) para que, desse modo, possam ser definidas as metas, prioridades e as ferramentas necessárias para a composição/capacitação de equipes de saúde, sobretudo as que atuam nas unidades de saúde da família. Atividades desarticuladas concorrem para comprometer o sucesso de práticas e políticas de saúde e mostram estar o trabalho da gestão distanciado de finalidades e prioridades.

Nessa perspectiva, reconhece-se a gestão também como "a capacidade de articular diferentes projetos existentes, de lidar com grupos, interesses e realidades diferentes, e a capacidade de pactuar algumas finalidades, através da construção de consensos afirmativos"(4).

Há de se considerar, no contexto investigado, que uma das questões nevrálgicas relaciona-se à incapacidade de articulação entre os atores que ocupam funções gerenciais, responsáveis por setores que seriam operacionalmente fundamentais para organizar, estrategicamente, as ações de controle da TB. Além do conhecimento adequado da organização, ou seja, no que é formalmente definida, a função gerencial requer conhecimento dos aspectos "informais" e que gere o clima organizacional. Daí a importância de se visualizar o papel gerencial não como um atributo individual, mas como um fenômeno relacional(13).

Nessa compreensão, o desempenho gerencial vai além das responsabilidades de planejar, organizar, controlar e coordenar. Para se efetivar mudanças no sistema de saúde, defende-se a necessidade de "reforçar os movimentos que procuram redefinir o papel dos profissionais de saúde" bem como "recuperar a vontade dos indivíduos, grupo e coletividade de maneira a compor uma massa crítica apta a construir projetos novos"(14).

Faz-se necessário um redesenho dos macroprocessos de trabalho, principalmente no que diz respeito ao entendimento de que as competências da gestão sejam ampliadas(15) e capazes de "desencadear no conjunto dos trabalhadores um processo de reflexão e revisão de sua prática que encaminhe para a adesão e comprometimento a um processo de produção de cuidados à saúde e não de cumprimento de tarefas fragmentadas centradas no desenvolvimento de procedimentos isolados"(16).

Cabe assinalar, no entanto, que as contratações de caráter temporário, a instabilidade trabalhista podem limitar a capacidade de continuidade dos processos iniciados. A rotatividade dos gestores e profissionais nos serviços de AB vem sendo apontada como obstáculo para a organização da atenção à TB, pois interfere na resolutividade e impede a manutenção de equipes qualificadas, sensibilizadas e prontas para prestar assistência efetiva aos doentes(17).

Outro ponto destacado relaciona-se à competência gerencial em destinar continuadamente recursos financeiros para assegurar o fornecimento de incentivos (cesta básica/vale-transporte). Ressalta-se que a implementação das ações de controle da TB configurou-se a partir de uma política de incentivos, definida como uma modalidade assistencial induzida, onde o repasse financeiro aos municípios estaria condicionado, obrigatoriamente, à comprovação de resultados positivos como, por exemplo, a reinserção dos indivíduos portadores de TB completamente curados na sociedade(18).

A correlação bidirecional entre TB e pobreza é inquestionável. Conhecer essa relação é passo determinante para quebrar esse ciclo vicioso(19). A entrega de incentivos contribui para fortalecer as relações de vínculo entre o profissional de saúde e usuário, haja vista que o profissional passa a reconhecer o paciente em sua forma integral, holística e esse, por sua vez, a valorizar as ações de saúde desempenhadas pelo profissional(11).

Sugere-se, portanto, que ao lançar mão de práticas humanizadas que alcancem as necessidades individuais do doente para além da doença, valorizando suas singularidades e articulando-se com outros setores é possível vivenciar o princípio da integralidade da assistência(20).

Logo, o conceito de integralidade remete, obrigatoriamente, ao de integração de serviços por meio de redes assistenciais, reconhecendo a interdependência dos atores e organizações, em face da constatação de que nenhuma delas dispõe da totalidade dos recursos e competências necessários para a solução dos problemas de saúde de uma população em seus diversos ciclos de vida. Torna-se, portanto, indispensável desenvolver mecanismos de cooperação e coordenação próprios de uma gestão eficiente e responsável pelos recursos coletivos, a qual responda às necessidades de saúde individuais em âmbitos local e regional(21).

Considerações finais

Observa-se, nos municípios estudados, que não existem evidências de planejamento voltado a viabilizar ações que minimizem problemas relacionados ao enfrentamento do problema da TB, de modo a contribuir para o alcance de metas e pactos definidos. Os atos gerenciais ancoram-se em um discurso normativo (importante, mas não fundante), moldam-se no ente federado, isentando o processo de gestão de um planejamento na perspectiva do Planejamento Estratégico Situacional. Os modos de apropriação e o padrão de atuação fundamentam-se em um discurso protegido pela racionalidade técnica/operacional e em propostas de intervenção derivadas exclusivamente do desenho de um certo "deve ser", sem antes apreender com profundidade o que acontece na realidade, ou de falar sobre a prática com base em conceitos que orientam a gestão no campo da saúde coletiva.

Os achados revelam a ausência de planejamento participativo e falta de articulação entre os gestores. A programação local centra-se na figura do coordenador do PCT e retrata uma linha de comando e de gestão vertical que induz a fragmentação do processo de trabalho. O acúmulo de funções dos coordenadores e a rotatividade dos profissionais de saúde fragilizam e interrompem as iniciativas de formação de vínculo entre trabalhadores e usuários, propiciando obstáculos à efetividade do desempenho da gestão municipal da saúde.

O gestor deve, em consonância com a Política Nacional de Atenção Básica, promover processos de qualificação centrados na Educação Permanente em Saúde que ofereça ao trabalhador de saúde condições de refletir sobre sua prática, e transformá-la em função das necessidades dos cidadãos que buscam os serviços de saúde. A efetividade e sustentabilidade das ações de luta contra a TB exigem, indispensavelmente, a criação de um novo palco e inclusão de novos atores.

Mudar a prática dos serviços de saúde não implica apenas racionalizar por meio do planejamento da ação e do controle, mas do envolvimento, do compromisso dos membros da organização (trabalhadores de saúde, usuários) com seus objetivos. A tarefa de gerenciar deve trilhar um caminho inovador e transformador, que ultrapasse as barreiras burocráticas e alcance o maior desafio que lhe é imposto: equilibrar as inter-relações profissionais no intuito de aperfeiçoar o desempenho do cuidado em saúde, de modo a redefinir indicadores que expressam epidemiologicamente a TB e que revelem avanços do SUS na esfera da atenção básica.

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  • Corresponding Author:
    Janaína Von Söhsten Trigueiro
    Universidade Federal de Campina Grande. Centro de Educação e Saúde. Campus Cuité
    Sitio Olho D’água da Bica, s/n
    Bairro: Centro
    CEP: 58175-000 Cuité, PB, Brasil
    E-mail:
  • 1
    Paper extracted from Master’s Thesis “Controle da tuberculose e os desafios da gestão básica de municípios da região metropolitana da Paraíba”, presented to Departamento de Enfermagem, Universidade Federal da Paraíba, PB, Brazil. Supported by FAPESQ/MS/CNPq-TC 078/07.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      16 Jan 2012
    • Data do Fascículo
      Dez 2011

    Histórico

    • Recebido
      05 Jul 2010
    • Aceito
      24 Mar 2011
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