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Acadêmicos de enfermagem, nutrição e fisioterapia: a escolha profissional

Resumos

Sob o aspecto da escolha profissional, o ingresso na universidade traz embutido significados de autorrealização e status social, nos quais perpassam conceitos e ideais construídos no viver da pessoa. O objetivo do estudo foi analisar regimes de verdade que permeiam a escolha profissional da enfermagem, fisioterapia e nutrição. É um estudo descritivo, de abordagem qualitativa, com ingressantes na graduação. Coleta de dados foi realizada com grupos focais, avaliados pela análise de discurso, sob o olhar de Focault. Da análise emergiram as temáticas: - escolha profissional: coroamento de um processo de diferenciação social, - reflexos da história de reconhecimento das profissões, - a escolha profissional para além de projetos profissionais. Os discursos assinalam que o conhecimento científico adquire status nas relações de poder entre as diferentes profissões e a sociedade, sendo fundamental que a formação de profissionais de saúde esteja articulada às políticas públicas que ampliam a participação de diferentes profissões, a fim de atender às demandas em prol da atenção integral.

escolha da profissão; poder; enfermagem; fisioterapia; nutricionista; pessoal de saúde


In the perspective of career choice, entering university encompasses meanings of self-accomplishment and social status, which are permeated by concepts and ideals people construct in their lives. This study aimed to analyze regimes of truth that permeate career choice in nursing, physiotherapy and nutrition. This qualitative-descriptive study was carried out with undergraduate freshmen. Data were collected through focus groups, evaluated by discourse analysis from a Foucaultian perspective. The following themes emerged from the analysis: - career choice: crowning a process of social differentiation, - reflexes of professions' history of acknowledgement; - career choice beyond professional projects. Discourse highlights that scientific knowledge acquires status in relations of power between different professions and society and is essential that health professional education is linked to public policies that expand the participation of different professions so as to meet demands in favor of integral care.

career choice; power; nursing; physical therapy; nutritionist; health personnel


Bajo el aspecto de la elección profesional, el ingreso a la Universidad trae embutido significados de autorrealización y de status social, los cuales contienen conceptos e ideales construidos en el vivir cotidiano de las personas. El objetivo del estudio fue analizar regímenes de verdad contenidos en la elección profesional de enfermería, nutrición y fisioterapia. Se trata de un estudio descriptivo, de abordaje cualitativo realizado en los estudiantes que ingresan a la Graduación. La recolección de datos fue realizada en Grupos Focales, evaluados por medio del Análisis del Discurso, bajo el marco teórico de Focault. Del análisis emergieron las temáticas: Elección profesional; Coronamiento de un proceso de diferenciación social; Reflejos de la historia del reconocimiento de las profesiones; La elección profesional - más allá de proyectos profesionales. Los discursos señalan que el conocimiento científico adquiere status en las relaciones de poder entre las diferentes profesiones y en la sociedad, siendo fundamental que la formación de los profesionales de la salud esté articulada a las políticas públicas que amplían la participación de las diferentes profesiones, con la finalidad de atender las demandas en pro de una atención integral.

selección de profesión; poder; enfermería; terapia física; nutricionista; personal de salud


ARTIGO ORIGINAL

Acadêmicos de enfermagem, nutrição e fisioterapia: a escolha profissional

Beatriz Sebben OjedaI; Marion CreutzbergII; Ana Maria Pandolfo FeoliIII; Denizar da Silva MeloIV; Valéria Lamb CorbelliniV

IFaculdade de Enfermagem, Fisioterapia e Nutrição da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, Brasil: Doutor em Psicologia, Professor Adjunto, bsojeda@pucrs.br

IIFaculdade de Enfermagem, Fisioterapia e Nutrição da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, Brasil:Doutor em Gerontologia Biomédica, Professor Adjunto, e-mail: marionc@pucrs.br

IIIFaculdade de Enfermagem, Fisioterapia e Nutrição da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, Brasil: Doutor em Bioquímica, Professor Adjunto, e-mail: anafeoli@pucrs.brIVFaculdade de Enfermagem, Fisioterapia e Nutrição da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, Brasil: Doutor em Clínica Médica, Professor Adjunto, e-mail: dmelo@pucrs.brVFaculdade de Enfermagem, Fisioterapia e Nutrição da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, Brasil: Doutor em Educação, Professor Adjunto, e-mail: vlamb@pucrs.br

RESUMO

Sob o aspecto da escolha profissional, o ingresso na universidade traz embutido significados de autorrealização e status social, nos quais perpassam conceitos e ideais construídos no viver da pessoa. O objetivo do estudo foi analisar regimes de verdade que permeiam a escolha profissional da enfermagem, fisioterapia e nutrição. É um estudo descritivo, de abordagem qualitativa, com ingressantes na graduação. Coleta de dados foi realizada com grupos focais, avaliados pela análise de discurso, sob o olhar de Focault. Da análise emergiram as temáticas: - escolha profissional: coroamento de um processo de diferenciação social, - reflexos da história de reconhecimento das profissões, - a escolha profissional para além de projetos profissionais. Os discursos assinalam que o conhecimento científico adquire status nas relações de poder entre as diferentes profissões e a sociedade, sendo fundamental que a formação de profissionais de saúde esteja articulada às políticas públicas que ampliam a participação de diferentes profissões, a fim de atender às demandas em prol da atenção integral.

Descritores: escolha da profissão; poder (Psicologia); enfermagem; fisioterapia (especialidade); nutricionista; pessoal de saúde

INTRODUÇÃO

A fragmentação das práticas em saúde é uma realidade contemporânea, concretizada nas múltiplas profissões e especializações. Nessa realidade, nos diferentes cenários de prática, cada profissional se ocupa de uma parcela do cuidado em que habitam saberes invisíveis como, por exemplo, a naturalização de práticas femininas e masculinas imersas nas diferentes profissões da saúde(1).

O desenvolvimento científico da modernidade foi decisivo para o surgimento de profissões como a nutrição, a fisioterapia e a enfermagem(2-4). A constituição do campo científico da área da nutrição foi estimulada pela evolução industrial européia (séc. XVIII), tornando-se visível, a partir da Primeira Guerra Mundial, pela necessidade de desenvolvimento de estudos e pesquisas na área e também pela necessidade de formação de profissionais especialistas, culminando na criação das primeiras agências de controle e intervenção em nutrição(3). Na América Latina, o desenvolvimento dessa área se deu de maneira mais sistematizada a partir de meados do séc. XIX, integrada à área de conhecimento médica. Quanto à fisioterapia no Brasil, no século XIX, os recursos fisioterápicos integravam a terapêutica médica(2). A ampliação das demandas fisioterápicas, a partir da 2ª Guerra Mundial, requereu a formação de profissionais não médicos para atendimentos e cuidados fisioterápicos. A enfermagem nasceu na Inglaterra, em meados do séc. XIX, com Florence Nightingale, cujo modelo foi influenciado por concepções disciplinares britânicas com regras rígidas, baseadas em costumes militares e morais, preconizados nos monastérios. A partir de bases estatísticas, seus conhecimentos e preocupações com medidas de higiene, nutricionais e ambientais levaram à reformulação de hospitais militares bem como à administração sanitária do exército. Como referência em assuntos sanitários, participou na elaboração de políticas internas e externas da saúde, lançando bases mundiais para a enfermagem como profissão(4).

Diante desses breves fragmentos históricos, acerca das profissões, pode-se visualizar a estreita relação com a área médica, desenvolvendo-se a partir de demandas de especialidades ou das necessidades da medicina. Nessa construção social, evidencia-se a naturalização de profissões hierarquizadas nas práticas sociais em saúde(1).

Toda sociedade possui regimes de verdade(5) que instituem identidades, determinam regras, legitimam ou desconsideram práticas, dizem e impõem diferentes valorizações sociais. Denomina-se regime de verdade aquilo que se instaura por meio de dispositivos de saber-poder capazes de inscrever, na realidade, algo que vai se concretizando como verdade, passando a existir como efeito de discursos, práticas e saberes(5).

O ingresso na universidade remete à escolha profissional que traz embutido um significado de autorrealização e de autonomia econômica no qual também perpassam conceitos e ideais construídos no viver da pessoa. Regimes de verdade, que determinam hierarquias entre as profissões da saúde, parecem circular nos discursos sociais e se mostram presentes nas instituições acadêmicas e de saúde. Sob essa perspectiva, com o desenvolvimento da medicina moderna, o saber médico foi se plasmando a relações sociais, políticas e econômicas, tornando-o imperativo ao saber em saúde(5).

Os discursos se formam em enunciados, em teorias, em instituições, na maneira como se organizam determinadas práticas e como são transmitidas. A aceitação de um discurso decorre da repetição e da dispersão dos enunciados. São inúmeras as fontes de linguagens que constroem os enunciados e que podem ser visualizados em diferentes discursos sociais a exemplo da mídia, no meio acadêmico e profissional. Essas práticas vêm nos dizer das verdades, dos regimes de verdade que, independentemente do que pregam as leis e o desejo das pessoas, de grupos, são suficientemente fortes para, nas relações de poder, se instituir como inquestionáveis. São naturalizáveis!(5).

Integrado a essa tecedura social, o presente estudo analisa discursos de alunos(as) recém-ingressantes nos cursos de graduação em enfermagem, fisioterapia e nutrição por serem representantes de uma realidade, onde circulam e são produzidos regimes de verdade acerca dessas profissões que, também, se expressam nas políticas sociais, nas instituições de saúde, na mídia e nas instituições.

O estudo realizado com estudantes universitários sobre o prestígio profissional de treze profissões de nível superior dá pistas de que a hierarquização está expressa no julgamento de cada profissão. No referido estudo, a profissão médica foi identificada como a de maior prestígio, a fisioterapia ficou na sexta posição, a enfermagem na oitava, sendo que a nutrição não estava no rol das profissões avaliadas(6). Outro estudo recente aponta a influência que a mídia exerce na formação de enunciados presentes na imagem de profissões como a enfermagem, o que requer dessas profissões a busca de estratégias que ampliem a informação, que lhe tragam maior visibilidade e voz no âmbito social(7). As reflexões pertinentes aos resultados dos estudos citados remetem para a necessidade de se ampliar a compreensão do cenário em que se dá a escolha profissional e a formação dos futuros profissionais de saúde.

Ao analisar os discursos dos ingressantes, busca-se aquilo que é naturalizado, inquestionado, disperso em diferentes enunciados, mostrando-se transversalizados como materialidades de jogos de verdades e que influenciaram a escolha profissional(5). Assim, com o presente estudo busca-se instigar nos profissionais em formação, nos docentes e pesquisadores um olhar crítico sobre o cenário social das profissões da saúde.

OBJETIVO

Analisar regimes de verdade que perpassam a escolha profissional da enfermagem, fisioterapia e nutrição, manifestados por alunos(as) ingressantes nos respectivos cursos.

MÉTODOS

É um estudo descritivo de abordagem qualitativa. Os participantes do estudo foram alunos(as) ingressantes nos Curso de Graduação em Enfermagem, Fisioterapia e Nutrição da PUCRS. Os(as) alunos(as) foram selecionados(as) dentre as turmas de primeiro nível, no início dos semestres letivos (2006/1 e 2006/2), a partir da participação voluntária na apresentação sucinta do projeto. Foram convidados a participar do estudo todos(as) os(as) alunos(as) que atenderam os critérios de inclusão de disponibilidade para a participação dos grupos focais, ser aluno(a) ingressante via vestibular, e, também, pertencer ao primeiro semestre do curso.

A coleta de dados foi realizada por meio de grupos focais. A utilização da técnica de grupos focais tem sido intensificada em diversas áreas de estudo, especialmente nas pesquisas com metodologia qualitativa com interesses voltados à investigação do social. A técnica de grupo focal oferece ao pesquisador a oportunidade de conhecer a opinião, pensamentos, sentimentos e ações de um grupo determinado de pessoas, frente a um fenômeno social(8). Os 7 grupos focais, com o número de 7 a 12 participantes, foram conduzidos pelas pesquisadoras, tendo duração máxima de 90 minutos. A discussão do grupo se desenvolveu a partir das seguintes questões norteadoras: como vocês veem a área profissional que escolheram? Como vocês veem a inserção dessa profissão na área da saúde e da sociedade? O que vocês vieram buscar nessas áreas? Com a participação de um observador houve a gravação, bem como o registro das discussões e as informações não-verbais expressas pelos(as) participantes.

A análise dos dados foi por meio da análise de discurso, sob a perspectiva foucaultiana(5). A análise propõe descrever os enunciados do discurso que poderão estar expressos de diferentes maneiras: em uma frase, em uma figura, em um ato de linguagem. A partir dos discursos dos(as) participantes, foram analisadas as concepções sociais acerca da área escolhida, buscando trazer em evidência quais os regimes de verdade que perpassam conceitos e práticas dessas áreas.

O projeto obteve recursos da Fundação de Amparo à Pesquisa do Rio Grande do Sul e foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa da PUCRS e aprovado. Os(as) alunos(as) participantes da pesquisa assinaram termo de consentimento livre e esclarecido.

RESULTADOS E DISCUSSÃO

Escolha profissional: coroamento de um processo de diferenciação social

O ingresso na universidade, que remete à escolha profissional, parece ser o coroamento de um processo de diferenciação social: [...] desde pequena as coisas que eu queria eram muito ligadas à saúde, à fisioterapia, medicina, enfermagem até pensei em psicologia [...] (G5)

Na sociedade contemporânea, o ensaio para a escolha profissional inicia-se muito cedo(9), mas a expectativa da sociedade e da família em relação à definição da carreira profissional se intensifica ao término do ensino médio, com a perspectiva do vestibular, que exige optar por um curso superior, ou seja, por uma profissão: [...] tinha a mínima ideia quando eu estava no terceiro ano, quando eu me toquei, 'meu Deus, o que eu vou fazer no vestibular, vou sair da escola, vou pra faculdade' e não tinha noção nenhuma do curso que eu ia escolher [...] (G5).

A família exerce influência na escolha profissional da(o) adolescente, uma vez que é nela que o projeto se constrói, inclusive, por meio de expectativas e desejos dos pais ou familiares: [...] eu não passei em medicina me chamaram na enfermagem eles não acreditavam que eu iria fazer enfermagem depois de ter tentado medicina e hoje eles ainda não veem como profissão no final do primeiro semestre [...] (G2). Assim, a escolha profissional torna-se, também, oportunidade para mostrar lealdade à família ou a concretização de projeto coletivo familiar: [...] quando eu falei pro meu pai que eu queria fazer nutrição ele falou 'tu vai ser cozinheira?' ele queria que eu fizesse medicina, pra ser a doutora [...] mas eu estou encantando ele, quando eu chego em casa e falo das minhas aulas, daquilo que eu aprendi, ligado à medicina, aí ele vai, ele está me estimulando mais [...] (G7). Em outro estudo(8), os estudantes referiram a forte influência dos pais a ponto de gerar dúvidas no processo de decisão. Por vezes, a família deseja encontrar, na escolha do estudante, a sua própria projeção social, podendo criar ambiente de cobranças e mais indecisão.

Esse processo de escolha profissional não se encerra com o ingresso no curso escolhido. No início de sua trajetória acadêmica, o estudante reavalia a sua opção frente às experiências, vivências e conhecimento acerca da profissão, podendo reafirmar ou questionar sua escolha(10).

Escolha profissional: reflexos da história de reconhecimento das profissões

De certa maneira, a escolha profissional também traz em evidência o processo histórico de cada profissão, suas lutas, seus preconceitos e suas perspectivas de reconhecimento social: [...] a minha primeira opção era medicina, mas eu fui vendo assim que não só medicina, como enfermagem, nutrição, ou qualquer outra área que lida com a saúde, prá mim proporcionam um prazer muito grande estar lidando com o paciente, estar presente em cada momento, em cada situação (G4).

O processo histórico das profissões da saúde abarca as lutas para o seu ingresso no ensino superior como estratégia em busca de legitimidade, autonomia e reconhecimento social. No Brasil, a formação do nutricionista foi idealizada pela primeira geração de médicos nutrólogos, no início da década de 1940, com a criação de cursos técnicos(3). A luta pelo reconhecimento do curso de nutrição no âmbito de formação superior teve início na década de 1950, e foi efetivada somente em 1962. Nesse processo histórico, evidenciou-se sensível ampliação dos campos de atuação profissional, crescente processo de especialização/divisão do objeto de trabalho/estudo do nutricionista com o desenvolvimento e qualificação de habilidades e competências técnico-científicas. Contudo essa luta parece estar presente no contexto atual: [...] eu acho que a nutrição tem o mesmo valor que medicina [...] (G5).

O ingresso da enfermagem ao ensino universitário iniciou-se na década de 30 do século XX, quando começava a expansão do trabalho feminino no Brasil. Entretanto, somente se concluiu em 1968, com a Reforma Universitária. Como profissão feminina, doméstica e auxiliar, a formação em enfermagem, ao longo de muitos anos, possibilitava o ingresso de alunas com nível de escolaridade inferior aos demais ingressantes no ensino superior(11). Essa particularidade foi revertida em 1962, com a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional, exigindo a conclusão do ciclo colegial para ingresso na universidade, a exemplo das demais áreas do ensino superior. Até a década de 60, no processo de formação das enfermeiras, as escolas de enfermagem estavam anexadas às faculdades de medicina, atendendo as necessidades das especialidades. A enfermagem configurava-se como disciplina da área médica, denominada profissão paramédica. Somente com a Reforma Universitária, em 1968, se consolidou o ingresso das escolas de enfermagem como unidades acadêmicas, no contexto da universidade. Nas concepções sociais acerca da enfermagem estão presentes preconceitos com a profissão, desde o processo de escolha da carreira, estendendo-se à formação acadêmica e à vida profissional. Com frequência, na convivência com professores e alunos de outras áreas da saúde, são expressos preconceitos quanto à qualificação do saber da enfermagem(10).

Também, no processo de luta para reconhecimento social de profissões da saúde, o ingresso da fisioterapia no ensino superior se deu em 1964, embora ainda entendida, na época, como auxiliar e, portanto, condicionada à orientação e responsabilidade médica(2), o que parece ainda estar presente no discurso: [...] todo mundo acha que fisioterapia é somente fazer clínica; tem muita coisa dentro da fisioterapia como dentro de uma unidade básica, e não somente o médico, o fisioterapeuta, vai poder fazer. As pessoas não sabem disso (G4). O reconhecimento da/o fisioterapeuta como profissional de nível superior expressa uma das maiores conquistas, pois, a partir dela evidencia-se o desenvolvimento de múltiplas demandas que trouxeram maior visibilidade social(2).

Embora centrados apenas nas profissões de nutrição, enfermagem e fisioterapia, os fatos históricos assinalados apresentam certa similaridade na luta pelo ingresso das profissões da saúde na educação superior como, por exemplo, busca de reconhecimento social, autonomia e emancipação de práticas. Sob esse aspecto, o médico ainda é visto como o agente principal em saúde, o que implica na participação secundária dos demais profissionais no âmbito das práticas em saúde(12).

No processo histórico da área da saúde, a medicina tornou-se o saber matricial, instituindo-se o que Foucault denomina como biopoder. Esse saber capilariza-se nas diferentes nuanças do viver humano, em seus hábitos, costumes e culturas, sendo constituinte de práticas sociais e, também, constituído por essas. Ao adquirir tal dimensão social, a medicina concede aos seus profissionais status diferenciado em relação a outras profissões da saúde. O status social que a medicina confere provavelmente é uma das principais razões que faz com que essa área ainda se constitua em uma das mais procuradas nos concursos vestibulares, tanto em universidades públicas como privadas(1). Tal diferenciação mobiliza relações de saber/poder na escolha profissional.

O ingresso ao curso de medicina concede à(ao) aluna(o) o status de médico, ou seja, a própria seleção torna-se estratégia nas relações de saber/poder que diferencia os(as) futuros(as) profissionais médicos(as) dos(das) futuros(as) demais profissionais, integrando-se a esse o estatuto de (pré)conceitos que imperam como regimes de verdade: alunos(as) mais inteligentes, mais cultos(as), que tiveram preparos diferenciados, conseguem vagas nos cursos mais concorridos e, portanto, se constituem nos melhores profissionais, mantendo naquela profissão o status diferenciado que o/a torne autoridade de saber. [...] o médico pensa que só porque ele fez medicina e está tratando com o corpo humano e que vai dar medicamento pensa que ele pode ser o maioral e acaba sendo, ele que comanda as coisas [...] (G6). O regime de verdade, que concede um diferencial ao aluno ingressante no curso, de certa forma hierarquiza o ingresso de alunos(as) nos cursos da saúde, permeado por diferenças socioeconômicas e culturais que também perpassam essas profissões(1).

A grande procura pela área médica leva muitos(as) candidatos(as) a buscar outras profissões da saúde como segunda opção. Em estudo com alunos matriculados no curso de enfermagem, 70% ingressaram nessa área por não conseguirem classificação em outra; em sua maioria, a medicina aparecia como primeira opção(11). Observa-se que esse fenômeno também se faz presente em outras profissões da saúde como expressa o discurso: [...] a fisioterapia, porque quase todo mundo quis fazer medicina, como a procura é muito grande é difícil [...] (G4). [...] tu estás fazendo nutrição porque querias medicina e não conseguiste [...] (G5).

A escolha profissional para além de projetos profissionais

Parece que o ingresso em determinadas áreas se dá para além de projetos profissionais, ou seja, como escolhas ocasionais de alguém que pouco conhece a área, mas que traz concepções e valores que circulam socialmente: [...] foi meio que um baque, porque não era bem aquilo o que eu queria daí eu mudei de opinião, porque eu ia fazer odonto e deu pra nutrição, 'ah vou fazer pra ver se eu gosto', daí eu estou adorando agora, não quero mais trocar, eu quero nutrição (G5).

Em estudo com alunos das ciências da saúde(12), foi identificado que, entre as motivações que levaram alunos a determinadas áreas, estava a "impossibilidade de fazer o curso de preferência", especialmente os cursos de medicina e odontologia, o que também aparece no discurso a seguir: [...] a fisioterapia era a minha segunda opção, porque eu queria era odontologia, mas como eu gosto muito da área da saúde e não deu para odontologia eu fiz pra fisioterapia [...] (G4). O estudo assinala certo grau de frustração nesses alunos que, mesmo já tendo realizado boa parte do curso, lamentam por não terem concretizado esse projeto de vida. Quanto às expectativas profissionais, os estudantes referem o reconhecimento profissional que inclui realização profissional e pessoal, "vencer profissionalmente, superar obstáculos, obter reconhecimento por parte dos pacientes e dos profissionais e exercer a profissão com dignidade, aplicando os conhecimentos adquiridos"(12).

Alguns aspectos que podem ser facilitadores para o ingresso na profissão médica(13), como boa renda familiar, pais com educação superior, estudos em boas escolas de ensino médio, cursos preparatórios para vestibular, tendo familiares médicos, mostra a relevância dos diversos fatores socioeconômicos para determinar a escolha da carreira: [...] minha família fez pressão 'ah, vamos fazer medicina' [...] vou pra fisioterapia porque eu já tinha sido paciente, tinha gostado bastante. Agora os meus tios são médicos ficaram 'mas fisioterapia é tão parecido com medicina' (G7). Essa realidade não parece ser a mesma em profissões como enfermagem, nutrição e fisioterapia em que o número de cursos de graduação no âmbito regional e nacional é exorbitante. Em 2004, no Brasil, havia 415 cursos de graduação em enfermagem(14), 201, em nutrição(15) e 339 em fisioterapia(16). O número de vagas é maior que o ingresso de alunos, assim como se evidencia significativa evasão nessas áreas, massificando a formação desses profissionais e seu ingresso ao mundo do trabalho. Outro aspecto importante a ser considerado é a realidade socioeconômica dos(das) estudantes que necessitam ingressar no mundo do trabalho para subsidiarem seus estudos. Quanto à participação no mundo do trabalho, observou-se, nas instituições privadas, que, na enfermagem, 54,4% dos estudantes ingressantes trabalham, na nutrição, 35,1% e na fisioterapia, 31,6% . O dado referente à renda familiar nesses cursos reforça a dificuldade que os estudantes enfrentam: 77,3% na enfermagem, 70,9% na nutrição e 69,2% na fisioterapia têm renda até 10 salários mínimos(14-16). Tais fenômenos são observados, também, na realidade dos cursos dos participantes desse estudo.

A partir do ingresso na universidade, o futuro profissional começa a vivenciar as relações de poder presentes no universo da saúde: [...] tem uma hierarquia que é criada, que primeiro vem o médico, aí depois vem o fisioterapeuta e depois vem o educador físico, e aí é criado isso aí. E aí eu me senti pequeno perto dessas coisas, sabe, e buscando mais conhecimento, claro que eu consigo, conseguiria isso só dentro da educação física, dentro, buscando conhecimento nessa área eu conseguiria, não é ser superior, mas, me mostrar mais, vamos dizer assim [...] (G6). Lutas explícitas ou silenciosas se movimentam para que sejam autorizados e legitimados espaços e práticas não convencionais. O ingresso às profissões da área da saúde mobiliza regimes de verdade, presentes na imagem de cada profissional que se transversalizam na formação e no contexto profissional. Há expectativas de que a trajetória acadêmica possibilite a construção da identidade profissional, historicamente construída, que atenda e se aproprie de determinadas prescrições políticas, econômicas e sociais. Em contrapartida, a transformação dos saberes e das práticas mostram que tais prescrições são foco de lutas entre as diferentes áreas.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A análise desenvolvida neste estudo demonstrou que a escolha profissional dos estudantes esteve vinculada fortemente à imagem social da área e à influência familiar. Durante a formação, ao se confrontar com os conhecimentos das áreas, o estudante de enfermagem, fisioterapia ou nutrição reafirma sua escolha ou se define por novas opções profissionais. Disso advém a importância de que o curso promova, desde o início, o contato direto do ingressante com os saberes e práticas de profissão escolhida.

Tanto a escolha profissional como as vivências acadêmicas dos participantes ocorrem no contexto dos conflitos de poder das profissões da saúde. O discurso dos estudantes demonstrou um conhecimento plasmado à medicina e que adquire status nas relações de poder. Assim, é fundamental que a formação de profissionais de saúde esteja articulada às políticas públicas que ampliam a participação de diferentes profissões, a fim de atender às demandas o que implica também na (re)organização de práticas. Esses movimentos tornam visíveis as profissões e suas práticas que, articuladas a saberes científicos, instituem novos regimes de verdade.

A busca pelo reconhecimento profissional e pela realização pessoal permeou o ingresso dos participantes do estudo no ensino superior. Para além de projetos profissionais e pessoais, a construção da identidade profissional do enfermeiro, fisioterapeuta ou nutricionista carece da constituição de novo agir voltado para a compreensão ampla de saúde que conceda voz às diferentes profissões em prol de uma atenção integral.

AGRADECIMENTOS

Agradecimentos especiais às acadêmicas que auxiliaram no processo de transcrição dos dados: Caroline Abud, Bianca Bosenbecker Walker, Jeanine Saueressig.

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  • *
    . A escolha profissional também abriga imagem social acerca daquela área na busca da realização de desejos e de projetos de vida da pessoa
    (1).
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      03 Ago 2009
    • Data do Fascículo
      Jun 2009

    Histórico

    • Recebido
      11 Nov 2007
    • Aceito
      01 Abr 2009
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