Acessibilidade / Reportar erro

Vínculo familiar de usuários de crack atendidos em uma unidade de emergência psiquiátrica

Resumos

O objetivo deste estudo foi conhecer o vínculo familiar de usuários de crack, atendidos em uma unidade de emergência psiquiátrica do Sul do Brasil. Trata-se de pesquisa qualitativa, com delineamento de série de casos, realizada no município de Maringá, PR, no período de abril a junho de 2010. Para a coleta dos dados utilizou-se roteiro semiestruturado de entrevista. Os dados foram analisados seguindo a técnica de análise de conteúdo e organizados em duas categorias: o vínculo familiar como facilitador do uso de crack e outras drogas, e o vínculo familiar fragmentado de usuários de crack. Entre os dez usuários investigados, evidenciou-se a perda dos vínculos relacionais com a família e o meio social, presença de drogas e violência no ambiente familiar. A realização de pesquisas sobre o uso de crack e sua interface com a família deve ser estimulada, visto que as famílias possuem papel fundamental na iniciação e continuidade ao uso de drogas.

Relações Familiares; Drogas Ilícitas; Cocaína Crack; Serviços de Emergência Psiquiátrica


This study characterizes the family ties of crack cocaine users cared for in a psychiatric emergency department in southern Brazil. It is a qualitative study with a series of cases carried out in the city of Maringá, PR, Brazil from April to June 2010. Data were collected through semi-structured interviews, analyzed using content analysis, and organized into two categories: family ties as facilitators in the use of crack cocaine and other drugs; and fragmented family ties of crack users. Loss of relational bonds with family and social milieu was observed among the ten studied users in addition to the presence of drugs and violence in the family sphere. Further studies addressing the use of crack and its interface with the family are encouraged, taking into consideration that families have an essential role in the initiation and continuity of drug use.

Family Relations; Street Drugs; Crack Cocaine; Emergency Services Psychiatrics


El objetivo del estudio fue conocer el vínculo familiar de usuarios de crack atendidos en una Unidad de Emergencia Psiquiátrica del Sur de Brasil. Se trata de una investigación cualitativa, con delineamiento de serie de casos, realizada en el municipio de Maringá, en Paraná, en el período de abril a junio de 2010. Para la recolección de datos se utilizó un guión semiestructurado de entrevista. Los datos fueron analizados siguiendo la técnica de análisis de contenido y organizados en dos categorías: el vínculo familiar como facilitador del uso de crack y otras drogas, y el vínculo familiar fragmentado de los usuarios de crack. Entre los diez usuarios investigados, se evidenció: pérdida de los vínculos relacionales con la familia y con el medio social y, presencia de drogas y violencia en el ambiente familiar. La realización de investigaciones sobre el uso de crack y su interfaz con la familia deben ser estimuladas, ya que las familias poseen un papel fundamental en la iniciación y continuidad del uso de drogas.

Relaciones Familiares; Drogas Ilícitas; Cocaína Crack; Servicios de Urgencia Psiquiátrica


ARTIGO ORIGINAL

Vínculo familiar de usuários de crack atendidos em uma unidade de emergência psiquiátrica

Maycon Rogério SeleghimI; Sônia Regina MarangoniI; Sonia Silva MarconII; Magda Lúcia Félix de OliveiraIII

IEnfermeiro, Mestrando em Enfermagem, Universidade Estadual de Maringá, PR, Brasil. E-mail: Maycon - mseleghim@yahoo.com.br, Sônia - sonia.marangoni@yahoo.com.br

IIEnfermeira, Doutor em Filosofia da Enfermagem, Professor Associado, Departamento de Enfermagem, Universidade Estadual de Maringá, PR, Brasil. E-mail: soniasilva.marcon@gmail.com

IIIEnfermeira, Doutor em Saúde Coletiva, Professor Assistente, Departamento de Enfermagem, Universidade Estadual de Maringá, PR, Brasil. E-mail: micoleao@wnet.com.br

Endereço para correspondência

RESUMO

O objetivo deste estudo foi conhecer o vínculo familiar de usuários de crack, atendidos em uma unidade de emergência psiquiátrica do Sul do Brasil. Trata-se de pesquisa qualitativa, com delineamento de série de casos, realizada no município de Maringá, PR, no período de abril a junho de 2010. Para a coleta dos dados utilizou-se roteiro semiestruturado de entrevista. Os dados foram analisados seguindo a técnica de análise de conteúdo e organizados em duas categorias: o vínculo familiar como facilitador do uso de crack e outras drogas, e o vínculo familiar fragmentado de usuários de crack. Entre os dez usuários investigados, evidenciou-se a perda dos vínculos relacionais com a família e o meio social, presença de drogas e violência no ambiente familiar. A realização de pesquisas sobre o uso de crack e sua interface com a família deve ser estimulada, visto que as famílias possuem papel fundamental na iniciação e continuidade ao uso de drogas.

Descritores: Relações Familiares; Drogas Ilícitas; Cocaína Crack; Serviços de Emergência Psiquiátrica.

Introdução

O consumo de crack é considerado problema emergente, na saúde pública. Embora os primeiros registros de sua introdução no Brasil tenham ocorrido no final da década de 1980, observa-se crescente aumento na prevalência de seu uso(1).

A complexidade que envolve o fenômeno do uso de crack, e o fato de suas consequências atingirem os usuários, as famílias e a sociedade, com elevação de índices de violências, indicam a necessidade de investigações nos múltiplos aspectos dessa temática, na tentativa de contribuir para a formulação de políticas públicas específicas para o seu controle e tratamento(2).

O crack é um subproduto da cocaína, substância extraída das folhas da planta denominada Erythroxilon coca, encontrada em países da América do Sul e da América Central, e é uma pasta de coca combinada com o bicarbonato de sódio(3). Apresenta como principais características potente efeito recompensador, de curta duração, estimulando a administração repetida, de tal forma que, depois de sua experimentação, deflagra-se o uso intenso e compulsivo, passando ele a desempenhar papel central na vida do usuário, ou seja, torna-se prioritário em detrimento de comportamentos que antes tinham relevância(1-2).

Pela fissura, ou seja, o desejo incontrolável em usar a droga, os usuários relatam a venda de pertences próprios e de familiares, roubos, sequestros, atividades ligadas ao tráfico e à prostituição, seja feminina ou masculina, a qual, pelos inúmeros parceiros sexuais e a baixa adesão ao uso de preservativos, tem exposto os usuários ao risco de adquirir doenças sexualmente transmissíveis e infecção pelo HIV(4).

O uso compulsivo do crack interfere na dimensão individual do usuário, comprometendo também seu relacionamento social, de forma que os vínculos sociais e familiares estáveis e normalizados se fragilizam e rompem-se, marginalizando-o progressivamente(2,4).

Considerando-se que os fatores que levam à adesão ou não do uso de drogas são influenciados principalmente pelo contexto sociocultural em que se inserem os indivíduos, a família é de extrema importância para a iniciação, manutenção e resolução do uso de drogas entre seus membros(5).

A família se constitui socialmente em uma unidade primordial no âmbito da construção, formação e desenvolvimento dos indivíduos que a compõem, transmitindo às gerações valores, regras, costumes, ideias, além de modelos e padrões de comportamentos, inclusive hábitos nocivos à saúde(6-7). A existência de vínculos relacionais saudáveis entre os indivíduos e as famílias, como delimitação das responsabilidades, apoio e afeto familiar, é apontada como fator protetor quanto ao uso de drogas(5).

De modo geral, o papel da família pode ser compreendido a partir de três lócus principais. O primeiro se refere à centralidade das famílias como fator de proteção social, o que implica ter presente seu caráter ativo e participante nos processos de mudança; o segundo ressalta a família como aquela que, paradoxalmente, pode formar ou destruir, dar identidade ou desintegrar o indivíduo em formação e o terceiro refere-se à sua importância na promoção e manutenção da saúde entre seus membros(8).

Autores apontam o importante papel das relações familiares na iniciação ao uso de drogas, tendo em vista que a negligência, o abandono e a privação de cuidados são considerados uma forma de violência familiar, que se expressa pela ausência, recusa ou falta de atenção necessária a quem deveria receber atenção e cuidados(9).

Partindo do pressuposto de que o vínculo está relacionado, entre outros fatores, à interação dos indivíduos com a família, o uso de drogas pode ser também compreendido a partir dessa perspectiva. A pesquisa sobre os fatores contextuais de risco e de proteção, relacionados ao ambiente familiar, é relevante para a compreensão do uso drogas e, portanto, constitui-se uma necessidade, pois contribui para ação efetiva em relação às possibilidades de prevenção(5).

Diante do exposto, o objetivo deste estudo foi conhecer o vínculo familiar de usuários de crack atendidos em uma unidade de emergência psiquiátrica da região Sul do Brasil.

Métodos

Trata-se de pesquisa de natureza qualitativa, com delineamento de série de casos, realizada no período de abril a junho de 2010. O estudo de série de casos consiste na descrição de um grupo de dez ou mais indivíduos com uma doença ou problema em particular, sendo comum análise retrospectiva da vida dos indivíduos(10).

Os casos investigados foram originários da Unidade de Emergência Psiquiátrica do Hospital Municipal de Maringá (HMM), instituição de caráter público, caracterizada como hospital geral de média complexidade, e referência em atenção às emergências e internações psiquiátricas dos 67 municípios que compõem três regionais de saúde (RS) do Paraná – 11a RS (Campo Mourão), 13a RS (Cianorte) e 15a RS (Maringá).

Para a seleção dos participantes, recorreu-se à consulta do "mapa" de pacientes internados, com posterior levantamento dos prontuários dos casos selecionados, para o estabelecimento dos motivos que levaram os usuários ao atendimento na unidade de emergência psiquiátrica.

A composição dos casos estudados foi realizada a partir da valorização de critérios de representatividade qualitativa, denominada amostra intencional(11). Foram entrevistados todos os usuários de crack, que se encontravam internados na referida unidade nos dias da coleta dos dados, após cumprirem os seguintes critérios de inclusão/exclusão: idade igual ou superior a 18 anos e estar em condições clínicas e mentais favoráveis, segundo a avaliação da equipe de saúde da unidade, para responder ao instrumento de coleta dos dados. Foram entrevistados 12 usuários, de ambos os sexos; contudo, dois foram excluídos da pesquisa – um por ser menor de idade e o outro por haver negado o uso de crack, ficando, assim, a amostra constituída por dez usuários.

Foi observado, inicialmente, grande receio dos usuários em participar de uma pesquisa sobre o uso de drogas, principalmente em relação ao uso de crack. Diante dessa constatação, houve maior necessidade de esclarecimento quanto aos objetivos da pesquisa, aproveitando o momento para o estreitamento do vínculo entre o pesquisador e o entrevistado. Após essa aproximação inicial e o esclarecimento de eventuais dúvidas sobre o estudo, em especial acerca da confidencialidade das informações fornecidas, os indivíduos aceitaram participar do mesmo.

As entrevistas foram realizadas individualmente em local reservado na própria unidade, e tiveram duração média de 1h. Em todas elas houve a participação de dois pesquisadores – um responsável por sua condução e o outro por seu registro. Dada a especificidade da população em estudo, as entrevistas não foram gravadas; porém, os depoimentos emitidos foram registrados integralmente no roteiro de entrevista. Vale salientar que, após o término de cada entrevista, os registros foram lidos para os entrevistados, de modo que eles puderam confirmar, completar ou mesmo mudar o que haviam relatado inicialmente.

O roteiro de entrevista, elaborado pelos próprios pesquisadores, com questões semiestruturadas, foi constituído de duas partes: uma destinada à identificação dos respondentes em relação a dados socioeconômicos e demográficos, e referentes ao uso de crack e outras drogas, e a segunda constituída de questões abertas que buscaram investigar aspectos do ambiente e vínculo familiar.

Para a análise do material coletado foi utilizada a técnica de análise de conteúdo, na modalidade de análise temática. A análise temática consiste em descobrir os núcleos de sentido que compõem uma comunicação, cuja presença ou frequência signifique alguma coisa para o objetivo analítico visado, e, operacionalmente, abrange as fases de pré-análise, exploração do material, tratamento dos resultados obtidos e interpretação(12). Para tanto, os registros das entrevistas foram lidos exaustivamente, seguidos da organização dos dados em duas categorias.

A realização deste estudo foi autorizada pela Secretaria Municipal de Saúde de Maringá, e aprovada pelo Comitê Permanente de Ética em Pesquisas com Seres Humanos, da Universidade Estadual de Maringá (Parecer nº291/10). Todas as diretrizes e normas regulamentadoras da Resolução nº196/96, do Conselho Nacional de Saúde, foram cumpridas, inclusive com a assinatura do termo de consentimento livre e esclarecido, em duas vias. Para garantia do anonimato, os usuários foram identificados com a letra E, seguida de algarismos arábicos, conforme a sequência de realização das entrevistas.

Resultados

Os usuários de crack investigados eram, em sua maioria, do sexo masculino, com idade que variou de 20 a 49 anos, mas com maior ocorrência na faixa etária de 20 a 27 anos. A evasão dos estudos foi observada em todos os casos, sendo que quase a totalidade tinha, no máximo, o ensino médio incompleto, e apenas um entrevistado possuía o ensino superior incompleto (Figura 1).


Nenhum dos usuários possuía, no momento da entrevista, relação estável com parceiro, e boa parte era separada e tinha filhos. Em relação à ocupação, somente um usuário possuía vínculo empregatício formal, e três encontravam-se em situação de rua.

O tempo de uso do crack variou de dois a 17 anos, mas a maioria usava havia menos de oito anos. O uso diário foi o mais relatado, inclusive com a presença de uso compulsivo, em alguns desses usuários, caracterizado por "o tanto que tiver".

A maioria dos usuários iniciou o uso de drogas com o álcool e/ou tabaco, e todos relataram o crack como última droga de uso. A idade de início do uso de drogas lícitas ou ilícitas variou de 11 a 17 anos, mas o início, aos 15 anos de idade, foi frequentemente evidenciado entre os usuários. O envolvimento em atividades ilícitas para adquirir o crack também foi verbalizado pelos entrevistados, bem como a venda de algum pertence próprio e/ou familiar.

Os motivos que levaram os usuários ao atendimento na emergência psiquiátrica foram: a procura espontânea do serviço para tratamento da dependência causada pelo uso do crack (E1, E2, E8 e E10); história de agressividade com a família (E3 e E5); transferência do pronto atendimento do HMM, após tratamento clínico (E6 e E7), e a presença de sinais e sintomas de transtorno mental no momento do atendimento (E4 e E9).

A partir da leitura exaustiva dos registros, os dados foram agrupados em duas categorias temáticas: o vínculo familiar como elemento facilitador do uso de crack e outras drogas, e o vínculo familiar fragmentado de usuários de crack. Essas categorias são apresentadas a seguir.

O vínculo familiar como elemento facilitador do uso de crack e outras drogas

Nesta categoria, foi possível identificar a presença de algumas características relacionadas aos vínculos familiares, consideradas favoráveis para o início e continuidade do uso de drogas.

O uso de drogas lícitas e/ou ilícitas por um ou mais dos membros da família foi relatado pelos usuários de crack, bem como indícios de uma implícita cultura familiar do uso de drogas, disseminada entre a família nuclear, e associada à ocorrência de violências e rupturas sociais. Minha família era grande, tenho seis irmãos, um é falecido, a gente brigava, discutia, mas não pelo uso das drogas, eles bebiam (E5). Minha irmã usava escondido tiner e cola, agora já é casada, não sei se usa mais (E2). [...] minha irmã fumava maconha (E1). Todo mundo fumava e bebia (E8).

Em relação à presença de violência intrafamiliar, caracterizada pelos entrevistados como brigas e discussões, boa parte dos usuários verbalizou atitudes repressivas da família frente ao uso de crack, como encarceramento domiciliar e denúncia à polícia. Eu saio correndo, fujo [...] briga só de boca, fala que vai me internar (E2). O ambiente tinha muito conflito, meu pai tentou matar a minha mãe por bebida (E10).

Chamou atenção o depoimento de uma das usuárias, que relatou um tipo específico de violência intrafamiliar: o abuso sexual infantil praticado por parentes próximos, dentro do próprio lar. [..] só ficava em casa quando a minha mãe estava, pra não ser violentada pelo meu irmão (E10).

Entre os usuários que eram separados, a ocorrência de conflitos relacionais com o cônjuge pelo uso de crack, caracterizados por desentendimentos e brigas, e constantes cobranças para cessar o uso da droga, foi frequentemente evidenciada. Alguns desses usuários apontaram o fim do relacionamento em decorrência do crack. Ela (esposa) brigava, eu ficava até tarde na rua, gastava todo o dinheiro do salário [...] não aguentou mais e saiu de casa (E4). Antes, já tinha briga porque eu bebia, depois, com o crack, piorou (E7). Ela falava para parar (E8). Às vezes, ele (esposo) me deixava embriagada, drogada, para sair de casa, eu ficava com os filhos (E10).

O vínculo familiar fragmentado de usuários de crack

Quanto à interação dos usuários de crack com as famílias, poucos ainda moram com os pais, sendo que o casamento foi o motivo mais relatado para a saída da casa dos pais, ocorrendo principalmente na adolescência. Contudo, uma das usuárias relatou a gravidez, e a outra, o abuso sexual como fatores desencadeantes para a saída do ambiente familiar.

Em relação ao relacionamento atual dos usuários com os pais, alguns informaram não manter mais contato com os mesmos, e boa parte relatou manter bom relacionamento; no entanto, em consulta aos prontuários hospitalares desses últimos, constatou-se que, para alguns deles, a internação ocorreu em decorrência de agressividade dos mesmos para com a família.

Dentre os usuários que afirmaram bom relacionamento com os pais, foram identificados depoimentos que remetem a sentimentos de afeto e apoio da família em relação ao problema das drogas, divergindo do motivo da internação, como se segue: [...] graças a Deus eles (pais) me apoiam a deixar o crack (E3). Não tenho conflitos familiares, eu desencadeio o conflito pelo uso das drogas (E9). Tentou ajudar (a família), mas quem tem que se ajudar é eu (E3). Tenho bom relacionamento, todos são amáveis comigo, dão apoio para largar a droga (E9).

Dos usuários que eram separados, muitos já usavam o crack antes mesmo da união conjugal. Duas usuárias relataram que consumiam o crack e outras drogas com os cônjuges, dentro do ambiente familiar; convém destacar que essas possuíam filhos. Ele (cônjuge) vendia pedra (crack) e a gente curtia junto (E10). Eu, ele (cônjuge) e o irmão dele fumava tudo junto (E2).

No que se refere à relação atual dos usuários com os cônjuges e os filhos, evidenciou-se o rompimento dos vínculos relacionais com os cônjuges, visto que nenhum usuário relatou manter contanto com os ex-companheiros. Um usuário relatou separação recente, havendo ocorrido cerca de dois meses antes da entrevista para o estudo.

Observou-se, também, pouco contato dos usuários com os filhos, sendo que a maioria visitava os filhos no máximo uma vez por semana. Apenas uma usuária mora com o filho, e essa tem diagnóstico médico de esquizofrenia.

Discussão

O perfil do usuário de crack, evidenciado neste estudo, é semelhante ao descrito na literatura. A descrição do perfil do usuário de crack brasileiro é de homem jovem, de baixa escolaridade e sem vínculos empregatícios formais(13). A presença de usuários jovens ou no início da fase adulta é característica marcante do fenômeno crack, apresentando uso mais associado a processos disruptivos em relação à vida social. A baixa escolaridade implica, entre outros aspectos, menor inserção no mercado formal, menor disponibilidade financeira e, consequentemente, maior vulnerabilidade social.

Apesar de a introdução do crack ser relativamente recente no cenário brasileiro, observou-se que alguns entrevistados iniciaram o seu uso poucos anos após os primeiros registros de sua ocorrência no país, fato que demonstra tanto a rápida agregação como a disseminação da droga na sociedade. Somado a isso, no período de 2001 a 2005, observou-se aumento do "uso na vida" de crack pela população geral, corroborando essa afirmativa(14).

A cultura do uso de crack tem sofrido mudanças quanto ao padrão de uso e, embora a maioria dos usuários o faça de forma compulsiva, observou-se, em alguns casos deste estudo, a existência de uso controlado, que merece maior detalhamento, principalmente quanto às estratégias adotadas para seu alcance(4). No entanto, vale destacar que a sensação de urgência por crack pode incentivar o usuário à realização de atividades ilícitas, intensificando o processo de marginalização social e os riscos à sua liberdade e integridade física, psíquica e moral(4).

Conhecer a sequência de estágios de uso de drogas dentro de uma população, e os interferentes que nela agem, poderia ser ferramenta eficaz, não só para o entendimento desse fenômeno, mas, sobretudo, para se deter a exposição, cada vez maior, ao risco proporcionado por uma progressão de drogas(15).

O início do uso de drogas com substâncias lícitas, relatado pelos usuários, é semelhante ao dos resultados encontrados em um estudo cujo objetivo foi identificar, entre usuários de crack, a progressão no uso de drogas e seus fatores interferentes(15). Foram encontradas duas fases distintas de uso de drogas. A primeira, com drogas lícitas, sendo o cigarro e o álcool as mais citadas, e a segunda, com o uso de drogas ilícitas. Nesses casos, parentes e amigos dos entrevistados foram os incentivadores do consumo, e o motivo alegado para o uso dessas substâncias foi a necessidade de autoconfiança. Ainda de acordo com esse estudo, a idade precoce do consumo e o uso pesado de uma ou mais drogas foram determinantes para o início de uma escalada de drogas ilícitas.

Em relação à realização da prática de atividades ilícitas para adquirir o crack, relatada pelos entrevistados, pode-se dizer que essa situação também é frequentemente evidenciada no contexto social dos usuários. Em função da sensação de urgência pela droga e na falta de condições financeiras para adquiri-la, o usuário se vê "forçado" a participar de atividades ilícitas como tráfico de drogas, roubos, assaltos, dentre outros(2,4).

Em estudo desenvolvido com usuários de crack, internados no Hospital Psiquiátrico São Pedro, de Porto Alegre, RS, verificou-se que a presença de antecedentes criminais foi observada em 40% da amostra, sendo que essa variável estava relacionada a mais ansiedade, depressão e fissura(16).

Chama atenção a procura espontânea de usuários para tratamento da dependência química, principalmente pelo fato de o crack ser considerado droga com alto poder de dependência, com consequências negativas no âmbito individual e coletivo. Contudo, foi possível perceber, em alguns indivíduos, que a procura pelo atendimento surgiu como meio de "aliviar" os longos períodos de uso da droga na rua, sem a evidência real de motivação para a cessação do uso de crack.

Considerando o papel da família e do vínculo familiar na resistência dos indivíduos às adversidades(9), verificou-se que o grupo estudado apresentava vários eventos desfavoráveis, que podem ter atuado como fator indutor ao início do uso de drogas: doenças na família, principalmente uso de álcool e drogas, brigas e separação dos cônjuges, violência intrafamiliar física e psicológica e rupturas dos vínculos relacionais com a família e com o meio social.

A instituição familiar é considerada um dos elos mais fortes na cadeia multifacetada que pode levar ao uso de álcool e drogas, além de também atuar como importante fator de proteção(17-18). Isso se justifica pelo fato de que o consumo de substâncias psicoativas é aprendido, predominantemente, a partir das interações estabelecidas entre os indivíduos e suas fontes primárias de socialização que, no Ocidente, correspondem à família, à escola e ao grupo de amigos. O resultado dessa constante interação é o estabelecimento de vínculo que possibilita a comunicação de um conjunto de normas(17).

É fundamental, no desenvolvimento do indivíduo, a forma como ele é criado pela família, estando sob a responsabilidade dos pais, principalmente no que se refere à proteção contra os fatores de risco relacionados às drogas(18).

A configuração de ambiente favorável à adoção do consumo de substâncias psicoativas é influenciada por uma série de fatores, sendo a família um dos mais importantes(19). A falta de suporte parental, o uso de drogas pelos próprios pais, atitudes permissivas dos pais perante o consumo e incapacidade dos pais de controlar os filhos são fatores predisponentes à iniciação ou continuação do uso de drogas(20).

Em relação à ausência de relacionamento com os pais, a situação complica-se com o avanço da dependência química gerada pelo uso de crack, em que a ruptura do caráter leva o usuário a utilizar-se de manobras ilícitas, na relação com a família: a mentira recorrente, os roubos praticados dentro de casa e violência são relatos comuns entre os dependentes(2,4). Com isso, ocorre a perda da referência com a família, com o trabalho e com a escola; situação verificada na maioria dos casos estudados.

Vale ressaltar, ainda, a diversidade de configurações sociais expressadas pela dependência do uso de crack. Em alguns casos, já é possível encontrar usuários com mais de cinco anos de consumo, com padrão de uso associado a outras drogas em que a marginalidade não é comum. Nesses casos, esses indivíduos têm conseguido manter o vínculo empregatício e familiar(13,21).

Sobre o domínio familiar e a sua influência na utilização de substâncias psicoativas ainda na adolescência, destacam-se como fatores de proteção contra o uso de drogas o estabelecimento de fortes vínculos entre pais e filhos, a criação de regras e a imposição de limites claros e coerentes, além da monitorização, supervisão e apoio aos jovens nas suas decisões e atitudes, adotando-se, principalmente, o diálogo como prática comum na rotina familiar(5).

Evidenciou-se, neste estudo, a importância da participação da família no comportamento dos indivíduos em relação ao uso de drogas. Ressalte-se que essa importância é resultado das relações e dos vínculos estabelecidos com as famílias, ao longo do processo de crescimento e amadurecimento emocional desses indivíduos.

O uso de drogas pelos pais e outros familiares é certamente uma das grandes influências para que os adolescentes se tornem dependentes de drogas. A transmissão intergeracional de pautas de comportamento é frequente na literatura científica; pais que fazem uso de alguma droga servem de modelo para os filhos na experimentação e continuidade do uso de álcool e outras drogas(5,7,20).

A partir dessa visão, pode-se entender melhor alguns fenômenos como, por exemplo, quando em uma mesma família, composta de pai, mãe e filhos, somente um desses filhos torna-se dependente de drogas. Contudo, há que se pontuar que, em alguns casos, o evento "drogas" pode interferir, influenciar ou se localizar no processo de singularizarão dos indivíduos, fazendo com que cada um adote comportamentos diferenciados com relação a um evento, aparentemente semelhante(22).

A violência intrafamiliar, evidenciada nos casos estudados, é definida como "[...] toda ação ou omissão que prejudique o bem-estar, a integridade física, psicológica ou a liberdade e o direito ao pleno desenvolvimento de outro membro da família. Pode ser cometida dentro ou fora de casa por algum membro da família, incluindo pessoas que passam a assumir função parental, ainda que sem laços de consanguinidade, e em relação de poder a outra"(23).

O abuso sexual infantil, relatado por uma usuária, é problema que envolve questões legais de proteção à criança e punição do agressor, e também terapêuticas de atenção à saúde física e mental da criança, tendo em vista as consequências psicológicas decorrentes da situação de abuso. Tais consequências estão diretamente relacionadas a fatores como: idade da criança e duração do abuso; condições em que ocorre, envolvendo violência ou ameaças; grau de relacionamento com o abusador e ausência de figuras parentais protetoras. Esses fatores podem estar associados, também, a desvios de comportamento na fase adulta da vida e iniciação ao uso de drogas(24).

Conclusão

Evidenciaram-se, nos casos investigados, a perda dos vínculos relacionais na família e no meio social, presença de uso de drogas e violência no ambiente familiar.

Torna-se importante, então, a realização de pesquisas para o avanço dos conhecimentos e práticas relacionados ao uso de crack, visando estabelecer alianças com as famílias, de modo a conhecer suas tradições, seus valores e costumes, pois as famílias possuem papel fundamental na prevenção e no tratamento do uso de drogas.

É importante considerar, ainda, que muitos usuários não têm mais (ou nunca tiveram) referência familiar minimamente organizada. Nesses casos, é imprescindível a atuação dos profissionais da saúde, principalmente aqueles inseridos no âmbito da atenção primária, no sentido de identificar esses usuários e encaminhá-los para tratamento de saúde adequado.

Apesar de que temas dessa natureza são transversais a quaisquer categorias profissionais, os da área da saúde e mesmo das ciências humanas poderiam se apropriar dessa discussão, pois existe a necessidade urgente da articulação dessa temática com o cuidado de Enfermagem, que, por ser uma profissão que tem na ação educativa um de seus principais eixos norteadores, contribui para a identificação e a realização de ações de prevenção, especialmente por parte dos profissionais que atuam na Estratégia Saúde da Família, pela maior proximidade com as famílias.

Por fim, a ausência de suporte social – aqui entendido como emprego, estabilidade do núcleo familiar e disponibilidade de rede de tratamento adequado – e a deficiência no acesso e vínculo aos serviços de saúde primários, pouco acessíveis àquelas pessoas que mais necessitam, têm agravado a situação do uso de crack na atualidade.

O Sistema Único de Saúde tem se deparado com o aumento do número de usuários que procuram tratamento, exigindo uma rede estruturada de atenção psiquiátrica, com garantia de continuidade da assistência, sempre que necessário. A redefinição do modelo de atenção à saúde mental no país foi um avanço, no sentido de evitar que os doentes fossem excluídos da sociedade. No entanto, o Brasil ainda não foi capaz de criar serviços substitutos adequados e em quantidade compatível com a demanda.

Referências

  • 1. Dunn J, Laranjeira RR, Da Silveira DX, Formigoni ML, Ferri CP. Crack cocaine: an increase in the use among patient attending clinics in Săo Paulo 1990-1993. Subst Use Misuse. 1996;31(4):519-27.
  • 2. Oliveira LG, Nappo AS. Avaliaçăo da cultura do uso de crack após uma década de introduçăo da droga na cidade de Săo Paulo [tese]. Săo Paulo: Escola Paulista de Medicina, Universidade Federal de Săo Paulo; 2007. 330 p.
  • 3. Oga S, Carvalho MMA, Batistuzzo JAO. Fundamentos de Toxicologia. 3Ş ed. Săo Paulo: Atheneu; 2008. 696 p.
  • 4. Oliveira LG, Nappo AS. Caracterizaçăo da cultura de crack na cidade de Săo Paulo: padrăo de uso controlado. Rev Saúde Pública. 2008;42(4):664-71.
  • 5. Schenker M, Minayo MCS. Fatores de risco e de proteçăo para o uso de drogas na adolescęncia. Cienc Saúde Colet. 2005;10(3):707-17.
  • 6. Elsen I. Cuidado familial: uma proposta inicial de sistematizaçăo conceitual. In: Elsen I, Marcon SS, Silva MRS, organizadoras. O viver em família e sua interface com a saúde e a doença. 2Şed. Maringá: Eduem; 2004. 398 p.
  • 7. Medina NA, Ferriani MGC. Protective factors for preventing the use of drugs in the families of a Colombia locality. Rev. Latino-Am. Enfermagem. 2010;18(Spec):504-12.
  • 8. Osório LC, Valle MEP, organizadores. Manual de terapia familiar. Porto Alegre: Artmed; 2009.
  • 9. Bernardy CCF, Oliveira MLF. O papel das relaçőes familiares na iniciaçăo ao uso de drogas de abuso por jovens institucionalizados. Rev Esc Enferm USP. [periódico na Internet]. 2010; 44(1):11-7.
  • 10. Marcílio C. Dicionário de pesquisa clínica. Salvador: Artes Gráficas; 1995.
  • 11. Thiollent M. Metodologia da pesquisa-açăo. 13Şed. Săo Paulo: Cortez; 2004.
  • 12. Minayo MCS, organizadora. Pesquisa social: teoria, método e criatividade. 24Şed. Petrópolis: Vozes; 2010.
  • 13. Duailib LB, Ribeiro M, Laranjeira R. Profile of cocaine and crack users in Brazil. Cad Saúde Pública. 2008; 24 (Suppl 4):545-57.
  • 14
    Centro Brasileiro de Informações sobre Drogas Psicotrópicas (Cebrid). II Levantamento domiciliar sobre o uso de drogas psicotrópicas no Brasil: estudo envolvendo as 108 maiores cidades do país. São Paulo: Cebrid - Centro Brasileiro de Informações sobre Drogas Psicotrópicas e Unifesp - Universidade Federal de São Paulo; 2007.
  • 15. Sanchez ZVDM, Nappo AS. Sequęncia de drogas consumidas por usuários de crack e fatores interferentes. Rev Saúde Pública. 2002;36(4):420-30.
  • 16. Guimarăes CF, Santos DVV, Freitas RC, Araújo RB. Perfil do usuário de crack e fatores relacionados ŕ criminalidade em unidade de internaçăo para desintoxicaçăo no Hospital Psiquiátrico Săo Pedro de Porto Alegre (RS). Rev Psiquiatr Rio Gd Sul. 2008;30(2):101-8.
  • 17. Paiva FS, Ronzani TM. Estilos parentais e consumo de drogas entre adolescentes: revisăo sistemática. Psicol Estud. 2009;14(1):177-83.
  • 18. Schenker M, Minayo MCS. A implicaçăo da família no uso abusivo de drogas: uma revisăo crítica. Cienc Saúde Colet. 2003;8(1):299-306.
  • 19. Mombelli MA, Marcon SS, Jaquilene B. Caracterizaçăo das internaçőes psiquiátricas para desintoxicaçăo de adolescentes dependentes químicos. Rev Bras Enferm. [periódico na Internet]. 2010;63(5):735-40.
  • 20. Bahr SJ, Hoffmann JP, Yang. Parental and peer influences on the risk of adolescent drug use. J Prim Prev. 2005;26(6):529-51.
  • 21. Kessler F, Pechansky FHP. Uma visăo psiquiátrica sobre o fenômeno do crack na atualidade. Rev Psiquiatr Rio Gd Sul. 2008;30(2):96-8.
  • 22. Caldeiras ZF. Drogas, indivíduo e família: um estudo de relaçőes singulares. [dissertaçăo]. Escola Nacional de Saúde Pública: Fundaçăo Oswaldo Cruz; 1999.
  • 23
    Ministério da Saúde (BR). Violência intrafamiliar: orientações para a prática em serviço. Brasília; 2001. p. 15.
  • 24. Araújo MF. Violęncia e abuso sexual na família. Psicol Estud. 2002;7(2):3-11.
  • Corresponding Author:
    Maycon Rogério Seleghim
    Rua Osvaldo Cruz, 340, Apto. 309
    Bairro: Zona 07
    CEP: 87020-200, Maringá, PR, Brasil
    E-mail:
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      25 Out 2011
    • Data do Fascículo
      Out 2011

    Histórico

    • Recebido
      02 Out 2010
    • Aceito
      10 Ago 2011
    Escola de Enfermagem de Ribeirão Preto / Universidade de São Paulo Av. Bandeirantes, 3900, 14040-902 Ribeirão Preto SP Brazil, Tel.: +55 (16) 3315-3451 / 3315-4407 - Ribeirão Preto - SP - Brazil
    E-mail: rlae@eerp.usp.br