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A privatização do ensino superior em enfermagem no Brasil: perfil, desafios e tendências* * Este artigo refere-se à chamada temática “Recursos Humanos em Saúde e Enfermagem: Formação e Atuação nas Américas”. O presente trabalho foi realizado com apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES) - Código de Financiamento 001, e Fundação Carlos Chagas Filho de Amparo à Pesquisa do Estado do Rio de Janeiro (FAPERJ), FAPERJ- E-26/203.308/2017, Brasil.

Resumos

Objetivo:

o presente estudo visa analisar e caracterizar o movimento de expansão dos cursos de graduação de enfermagem no Brasil a partir dos anos 90. Discutem-se as características desta expansão, o cenário sócio-político em que ocorreu tal movimento, bem como a qualidade do ensino disponível com base nos dados coletados.

Método:

trata-se de um estudo descritivo, transversal e de abordagem quali-quantitativa, com o uso de bases de dados secundárias.

Resultados:

foi identificado um crescimento acelerado e desordenado dos cursos de graduação em enfermagem, bem como do número de vagas, devido especialmente à participação do setor privado, em especial a partir do ano 2000. Desigualdades geográficas na distribuição desses cursos e vagas também foram identificadas.

Conclusão:

a forte expansão do ensino superior em enfermagem, ao lado de outras profissões de saúde, resultou no fortalecimento de instituições privadas de ensino superior associadas a grupos econômicos, na concentração regional, bem como na oferta excessiva da modalidade de ensino a distância sem avaliação adequada de sua qualidade ou repercussões.

Descritores:
Educação em Enfermagem; Estatísticas de Enfermagem; Escolas de Enfermagem; Privatização; Economia da Enfermagem; Brasil


Objective:

this study aims to analyze and characterize the movement of expansion of Nursing undergraduate courses in Brazil since the 1990s. The characteristics of this expansion are discussed, as well as the socio-political setting where such movement occurred, and the quality of education available based on the data collected.

Method:

this is a descriptive and cross-sectional study with a quali-quantitative approach, with the use of secondary databases.

Results:

an accelerated and disordered growth of Nursing undergraduate courses was identified, as well as the number of vacancies, especially due to the participation of the private sector, especially since the year 2000. Geographical inequalities in the distribution of these courses and vacancies were also identified.

Conclusion:

the strong expansion of higher education in Nursing, along with other health professions, resulted in the strengthening of private higher education institutions associated with economic groups, regional concentration, as well as the excessive offer of distance learning without adequate evaluation of its quality or repercussions.

Descriptors:
Nursing Education; Nursing Statistics; Nursing Schools; Privatization; Nursing Economics; Brazil


Objetivo:

el presente estudio tiene como objetivo analizar y caracterizar el movimiento de expansión de las carreras de grado en enfermería en Brasil a partir de la década del 90. Se discuten las características de esta expansión, el escenario sociopolítico en el que ocurrió este movimiento, así como la calidad de la educación disponible según los datos recopilados.

Método:

se trata de un estudio descriptivo, transversal con enfoque cualitativo y cuantitativo, utilizando bases de datos secundarias.

Resultados:

se identificó un crecimiento acelerado y desordenado de las carreras de licenciatura en enfermería, así como el número de cupos, debido fundamentalmente a la participación del sector privado, especialmente a partir del año 2000. También se identificaron desigualdades geográficas en la distribución de las carreras y los cupos.

Conclusión:

la fuerte expansión de la educación superior en enfermería, junto con otras profesiones de la salud, favoreció el fortalecimiento de las instituciones privadas de educación superior asociadas a grupos económicos, la concentración regional y la oferta excesiva de educación a distancia sin la correcta evaluación de calidad o de las repercusiones.

Descriptores:
Educación en Enfermería; Estadísticas de Enfermería; Facultades de Enfermería; Privatización; Economía de Enfermería; Brasil


Introdução

O crescimento global das Instituições de Ensino Superior Privadas (IESP), sobretudo aquelas com fins lucrativos nas últimas décadas, ampliou o debate sobre a natureza de bens públicos e privados na educação superior e, especialmente, sobre o papel do setor privado e o seu impacto na formação acadêmica. O sistema educacional responde tanto às exigências do sistema de saúde quanto à dinâmica do mercado de trabalho em saúde. Nesse sentido, as instituições de ensino são reconhecidas como vitais na transformação do sistema de saúde e no desenvolvimento econômico e social(11 World Health Organization. Working for health and growth: Investing in the health workforce. [Internet]. [cited May 27, 2020]. Available from: https://apps.who.int/iris/bitstream/handle/10665/250047/9789241511308-eng.pdf;jsessionid=526E176066AD376A62C23A251CD67706?sequence=1
https://apps.who.int/iris/bitstream/hand...
).

O fenômeno da privatização na educação superior em saúde tem se caracterizado como de marcante crescimento dinâmico e acelerado na área da educação do século XXI(22 Altbach, PG. The Logic of Mass Higher Education. Tert Educ Manag. [Internet]. 1999[cited May 27, 2020];5:105-22. Available from: https://link.springer.com/article/10.1023/A:1018716427837
https://link.springer.com/article/10.102...
). Suas tendências de expansão estão relacionadas, especialmente, às políticas públicas, que influenciam, e mesmo favorecem, o aumento dessas instituições(33 McPake B, Squires A, Agya M, Araujo E. The Economics of Health Professional Education and Careers: Insights from a Literature Review. Washington: Word Bank Group; 2015. doi: https://doi.org/10.1596/978-1-4648-0616-2
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).

Neste estudo o termo “privatização” compreende a expansão de instituições privadas de ensino superior que oferecem cursos de graduação em enfermagem, dirigidas por pessoas físicas ou jurídicas, e não mais pelo Estado. Neste processo, há uma tendência de perceber o aluno como consumidor e a educação como um produto(44 Britto LC, Minciotti SA, Crispim SF, Zanella W. Motivos da escolha da educação a distância: o aluno como consumidor. Rev Adm IMED. [Internet]. 2016 [Acesso 4 ago 2020];6:206-20. Disponível em: https://seer.imed.edu.br/index.php/raimed/article/view/1373
https://seer.imed.edu.br/index.php/raime...
). A privatização apresenta ainda como característica um forte apelo das marcas das IES privadas, da concorrência, da exploração de nichos de mercado com profissões socialmente prestigiadas, marketing agressivo e políticas de preços orientadas para o lucro(55 Scheffler R, Bruckner T, Spetz J. The labour market for human resources for health in low- and middle-income countries. [Internet]. 2014 [cited 4 Aug 2020]. Available from: https://www.who.int/hrh/resources/Observer11_WEB.pdf?ua=1
https://www.who.int/hrh/resources/Observ...
).

No Brasil, a primeira escola de enfermagem surgiu em 1890, no Rio de Janeiro, e em 1939 foi criada a primeira instituição privada de enfermagem em São Paulo. Até o final de década de 1950 existiam apenas 33 cursos de enfermagem no país, dos quais 36% de natureza privada, em sua imensa maioria instituições confessionais(66 Ministério da Educação (BR). Cadastro Nacional de Cursos e Instituições de Educação Superior. [Internet]. [acesso em 20 mai 2020]. Disponível em: http://emec.mec.gov.br/
http://emec.mec.gov.br/...
-77 Durham ER. O Ensino Superior no Brasil: público e privado. [Internet]. São Paulo: NUPES-USP; 2003 [acesso 20 ago 2020]. Disponível em: http://nupps.usp.br/downloads/docs/dt0303.pdf
http://nupps.usp.br/downloads/docs/dt030...
). Em julho de 2019, o número de escolas e vagas presenciais eram 1.348 e 197.995, respectivamente.

Se de um lado o aumento no número de escolas e vagas pode ser considerado positivo, pois ampliou o acesso ao ensino superior e melhorou a proporção de profissionais por habitante, de outro lado, tem produzido desigualdades na distribuição das instituições e questionamentos acerca da qualidade do ensino. Adicionalmente, no Brasil a formação em enfermagem passou a contemplar, fortemente, a modalidade de Ensino à Distância (EaD), com 82.000 vagas oferecidas por 9 Instituições de Ensino Superior (IES) todas privadas(66 Ministério da Educação (BR). Cadastro Nacional de Cursos e Instituições de Educação Superior. [Internet]. [acesso em 20 mai 2020]. Disponível em: http://emec.mec.gov.br/
http://emec.mec.gov.br/...
).

A enfermagem é a maior categoria profissional no setor saúde. Dados recentes da Organização Mundial da Saúde (OMS) indicam um crescimento de 4.7 milhões de profissionais no período de 2013 a 2018, correspondendo atualmente a aproximadamente 59% da força de trabalho no setor em todo o mundo(88 World Health Organization. State of the world's nursing 2020: investing in education, jobs and leadership. [Internet]. [cited 3 ago 2020]. Available from: https://www.who.int/publications/i/item/nursing-report-2020
https://www.who.int/publications/i/item/...
). No entanto, 80% desses profissionais estão localizados em países com a metade da população mundial, uma distribuição bastante desigual sobretudo nos países mais pobres e de baixa e média renda. Apesar deste crescimento, estima-se até 2030 uma escassez de 5,7 milhões de profissionais de enfermagem, especialmente nos países que concentram a maior carga de doenças(88 World Health Organization. State of the world's nursing 2020: investing in education, jobs and leadership. [Internet]. [cited 3 ago 2020]. Available from: https://www.who.int/publications/i/item/nursing-report-2020
https://www.who.int/publications/i/item/...
).

Não há evidências sobre como o aumento no número de vagas e de escolas poderia resolver o problema da falta de profissionais de saúde(99 Fehn AC. O ensino médico privado- expansão e tendências na Índia e no Brasil [tese]. Rio de Janeiro: Instituto de Medicina Social da UERJ; 2019. Disponível em: https://pesquisa.bvsalud.org/portal/resource/pt/biblio-1015350
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). Análises recentes da OMS indicam a necessidade de crescimento na média de licenciados em enfermagem de cerca de 8% ao ano, mas sublinham a importância que esta expansão deve estar vinculada a uma maior empregabilidade, estratégias de fixação desses profissionais, desenvolvimento de competências e habilidades associadas às necessidades dos sistemas de saúde e ao fortalecimento da governança e da liderança em enfermagem(88 World Health Organization. State of the world's nursing 2020: investing in education, jobs and leadership. [Internet]. [cited 3 ago 2020]. Available from: https://www.who.int/publications/i/item/nursing-report-2020
https://www.who.int/publications/i/item/...
).

Atualmente, no Brasil existem 1.241 cursos de enfermagem na modalidade presencial em atividade, que oferecem 193.217 vagas, sendo a imensa maioria em IES privadas, cuja participação é de 87,8% na oferta de cursos. O aumento da participação do setor privado, inerente às tendências globais do modelo econômico, na oferta de serviços e na educação em saúde, também criou oportunidades nas medidas que visavam a expansão da Cobertura Universal da Saúde e a flexibilização de leis e normas quanto à participação do capital privado e do capital internacional, além da redução da ineficiência de estruturas regulatórias(99 Fehn AC. O ensino médico privado- expansão e tendências na Índia e no Brasil [tese]. Rio de Janeiro: Instituto de Medicina Social da UERJ; 2019. Disponível em: https://pesquisa.bvsalud.org/portal/resource/pt/biblio-1015350
https://pesquisa.bvsalud.org/portal/reso...
).

A compreensão da formação da força de trabalho está intrinsecamente vinculada ao desenvolvimento econômico e apresenta consequências sociais, econômicas e políticas importantes. Torna-se difícil supor que grandes economias atinjam estágios avançados de desenvolvimento sem elevados níveis de inovação e de qualidade na educação, por exemplo, os quais podem ser considerados componentes básicos para se colocar um país na vanguarda da “sociedade da informação”(1010 Carnoy M, Loyalka P, Dobryakova M, Dossani R, Froumin I, Kuhns K, et al. University expansion in a changing global economy- triumph of the BRICS? [Internet]. Palo Alto: Stanford University Press; 2013 [cited Aug 3, 2020]. Available from: https://cepa.stanford.edu/content/university-expansion-changing-global-economy-triumph-brics
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). Nesse sentido, é crucial o entendimento de como se dá o funcionamento das universidades, no processo de formação de recursos humanos, em termos de mercado, uma vez que essa realidade nem sempre aparece na descrição pública da sua função e recebe, com frequência, uma conotação negativa(1111 Demin MR. Universities on the Market: Academic Capitalism as a Challenge and a Window of Opportunity. Russ Educ Soc. 2017;59:465-85. doi: https://doi.org/10.1080/10609393.2017.1433912.
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). Além disso, é urgente compreender os fatores que afetam o tamanho da futura força de trabalho da saúde para planejar e propor ações mais efetivas e ajustadas a cada realidade(1212 Scheffer MC, Dal Poz MR. The privatization of medical education in Brazil: Trends and challenges. Hum Resour Health. [Internet]. 2015 [cited Aug 4, 2020];13:96. Available from: https://pubmed.ncbi.nlm.nih.gov/26678415/
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).

Dessa forma, este artigo pretende descrever, analisar e caracterizar o movimento de expansão dos cursos de graduação de enfermagem no Brasil, enfatizando a participação do setor privado, seu papel, impacto e tendências na formação em enfermagem no país.

Método

No Brasil são definidos como profissionais de enfermagem, de acordo com a Lei nº 7.498/86(1313 Brasil. Lei n. 7.498, de 25 de junho de 1986. Dispõe sobre a regulamentação do exercício da enfermagem, e dá outras providências. Diário Oficial da União, 26 jun 1986.), enfermeiros, auxiliares e técnicos de enfermagem, obstetrizes e parteiras. A formação leva entre um e cinco anos, variando conforme o grau e a titulação. Neste artigo, são analisadas somente as informações referentes ao profissional graduado em curso de nível superior de enfermagem, cuja formação varia de 4 a 5 anos.

Trata-se de um estudo do tipo descritivo, transversal e de abordagem quali-quantitativa, cujo cenário de análise é o Brasil. Os dados quantitativos deste estudo foram coletados no período de julho de 2019 a maio de 2020. A população deste estudo são as instituições de ensino superior (IES) selecionadas com os seguintes critérios: i) instituições de ensino superior com curso de graduação em enfermagem; ii) a categoria administrativa da IES; iii) curso em atividade; e iv) modalidade de ensino, se presencial ou à distância. Foram selecionadas como participantes todas as instituições com cursos de graduação em atividade.

Foram selecionadas as seguintes variáveis do estudo: número de cursos de enfermagem ativos, a modalidade da atividade, se presencial ou à distância, a categoria administrativa da instituição que oferece a graduação (se pública ou privada), o número de vagas autorizadas e a localização geográfica do curso ou da instituição que o oferece. Não foi necessário o uso de qualquer instrumento específico para a coleta dos dados uma vez que as variáveis eram facilmente localizadas.

A coleta de dados foi realizada nos sites do e-MEC, do Instituto Nacional de Pesquisa Anísio Teixeira (INEP) e da Estação de Trabalho da Rede Observatório de Recursos Humanos em Saúde do Instituto de Medicina Social da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (ObservaRH-IMS/UERJ). Sobre o tratamento e análise dos dados destacamos que no site do e-MEC obtivemos os dados listados referentes ao período em vigência, não sendo possível acessar dados de anos anteriores, que foram obtidos no banco de dados do ObservaRH-IMS/UERJ. Os microdados do Censo de Educação Superior de 2017 e 2018 foram obtidos no site do Instituto Nacional de Pesquisa Anísio Teixeira (INEP). Toda a coleta foi realizada por um único pesquisador, com supervisão e revisão de outro pesquisador. Em seguida os dados foram compilados e organizados em tabela e gráficos, utilizando os recursos do Office Microsoft Excel.

A revisão da literatura foi realizada nas bases da PubMed, SciELO e Google Acadêmico, de forma a conhecer a produção existente sobre a educação de enfermeiros e a expansão do ensino superior privado nessa área. Para isso, foram utilizados os seguintes termos de busca: nursing education, nursing schools, private e privatization. Foram considerados relevantes artigos publicados a partir do ano 2000, nos idiomas inglês, português e espanhol, que tratavam de pesquisas semelhantes e/ou do contexto histórico do desenvolvimento e expansão dos cursos de graduação em enfermagem. A busca dos textos foi realizada por um pesquisador, com a participação dos demais pesquisadores na análise, de modo qualitativo, com ênfase no conteúdo dos artigos selecionados, a fim de complementar as informações da pesquisa, bem como compará-las a outros estudos. Por fim, no que se refere aos aspectos éticos, este estudo dispensa aprovação de Comitê de Ética e Pesquisa.

Resultados

As mudanças ocorridas nos sistemas de educação ampliaram a permeabilidade ao setor privado(1414 Tripodi ZF, Sousa SZ. Do governo à governança: permeabilidade do estado a lógicas privatizantes na educação. Cad Pesqui. [Internet], 2018 [Acesso 4 ago 2020];48:228-53. Disponível em: https://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_abstract&pid=S0100-15742018000100228&lng=en&nrm=iso&tlng=pt
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). Por permeabilidade pode-se compreender efeitos da reunião ou sobreposição do Estado e do setor privado nas diversas etapas da produção e entrega de políticas públicas(1515 Marques E. Estado e redes sociais: permeabilidade e coesão nas políticas urbanas no Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Revan; 2000.). Os efeitos podem assumir diferentes contornos dependendo do padrão relacional estabelecido em um dado momento, sob certas condições históricas, sociais, políticas e econômicas(1515 Marques E. Estado e redes sociais: permeabilidade e coesão nas políticas urbanas no Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Revan; 2000.).

A compra e venda de serviços não é estranha à atividade estatal, contudo, a velocidade e as características da privatização nas três últimas décadas, teve aspectos muito próprios, em especial no setor educacional. Nesse sentido, não há serviços isentos de participação do setor privado, existem aqueles setores no qual o setor privado opera com menor ou ínfima expressão(1616 Ball SJ. Education PlC: Understanding Private Sector Participation in Public Sector. London: Education Routledge; 2007. doi: https://doi.org/10.1016/j.ijedudev.2008.02.001
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).

Esta seção apresenta inicialmente o perfil do processo de privatização no Brasil destacando alguns elementos do contexto histórico e suas características. Na sequência são descritas a tendência de crescimento do setor privado ao longo dos últimos anos e a sua distribuição geográfica pelos estados e pelas regiões do país.

A privatização do ensino superior no Brasil

No que se refere ao ensino superior brasileiro e do ponto de vista legal, o Estado pode e tem transferido recursos para as IES privadas. No caso das políticas públicas que influenciam e até contribuem para a expansão das instituições privadas de ensino superior, há uma tendência ao aumento da expressividade do setor privado no setor saúde globalmente(33 McPake B, Squires A, Agya M, Araujo E. The Economics of Health Professional Education and Careers: Insights from a Literature Review. Washington: Word Bank Group; 2015. doi: https://doi.org/10.1596/978-1-4648-0616-2
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).

A expansão da educação superior brasileira abrange quatro categorias: 1) ampliação de vagas, matrículas e cursos nas IES federais por parte da União, que pode ser observado tanto na multiplicação dos campi de instituições federais já existentes, como no aumento do número de instituições ou ainda por intermédio de programas de reestruturação, como o Programa de Apoio a Planos de Reestruturação e Expansão das Universidades Federais (Reuni); 2) expansão da pós-graduação e o empresariamento do conhecimento; 3) intensa diversificação de cursos, instituições e modalidades de ensino, sobretudo o Ensino a Distância (EaD); e 4) expressivo aumento das IES privadas com fins lucrativos(1717 Mancebo D, Vale AS. Expansão da educação superior no Brasil e a hegemonia privado-mercantil: o caso da UNESA. Educ Soc. [Internet]. 2013 [Acesso 4 ago 2020];34:81-98. Disponível em: https://www.scielo.br/scielo.php?pid=S0101-73302013000100005&script=sci_abstract&tlng=pt
https://www.scielo.br/scielo.php?pid=S01...
).

De 1960 a 1970, se criou um subsetor lucrativo de negócios de ensino superior, quando os estabelecimentos eram ainda considerados formalmente sem fins lucrativos(1818 Franco TAV, Dal Poz MR. A participação de instituições de ensino superior privadas na formação em saúde no Brasil. Trab Educ Saúde. [Internet]. 2018 [Acesso 4 ago 2020];16:1017-37. Disponível em: https://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1981-77462018000301017
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). Outro aspecto interessante é que, embora tenham ocorrido cenários políticos alternados entre distintos grupos políticos e partidos com, supostamente, distintos ideais de conformação, orientação e militância, seus governantes mantiveram o direcionamento favorável à expansão das IES privadas(1919 Franco TAV. A participação de instituições de ensino superior privadas na formação em saúde : marco regulatório, financiamento e as políticas setoriais [dissertação]. Rio de Janeiro: Universidade do Estado do Rio de Janeiro; 2016 [Acesso 4 ago 2020]. Disponível em: https://www.academia.edu/30527571/A_participa%C3%A7%C3%A3o_de_institui%C3%A7%C3%B5es_de_ensino_superior_privadas_na_forma%C3%A7%C3%A3o_em_sa%C3%BAde_marco_regulat%C3%B3rio_financiamento_e_as_pol%C3%ADticas_setoriais
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).

A Lei de Diretrizes e Bases (LDB), de 1996, é considerada pela maioria dos autores como a base do processo de privatização do ensino superior no Brasil. Contudo, a participação de IES privadas com intenção de lucro, de forma explícita ou não, já existia desde a década de 1960(77 Durham ER. O Ensino Superior no Brasil: público e privado. [Internet]. São Paulo: NUPES-USP; 2003 [acesso 20 ago 2020]. Disponível em: http://nupps.usp.br/downloads/docs/dt0303.pdf
http://nupps.usp.br/downloads/docs/dt030...
,1919 Franco TAV. A participação de instituições de ensino superior privadas na formação em saúde : marco regulatório, financiamento e as políticas setoriais [dissertação]. Rio de Janeiro: Universidade do Estado do Rio de Janeiro; 2016 [Acesso 4 ago 2020]. Disponível em: https://www.academia.edu/30527571/A_participa%C3%A7%C3%A3o_de_institui%C3%A7%C3%B5es_de_ensino_superior_privadas_na_forma%C3%A7%C3%A3o_em_sa%C3%BAde_marco_regulat%C3%B3rio_financiamento_e_as_pol%C3%ADticas_setoriais
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-2020 Sguissardi V. Modelo de expansão da educação superior no Brasil: predomínio privado/mercantil e desafios para a regulação e a formação universitária. Educ Soc. [Internet] 2008 [Acesso 4 ago 2020];29:991-1022. Disponível em: https://www.scielo.br/scielo.php?pid=S0101-73302008000400004&script=sci_abstract&tlng=pt
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).

Nos anos 2000, o mercado privado de IES foi estimulado por políticas públicas associadas a mecanismos de financiamento público, o que favoreceu a expansão do ensino superior. Na última década, o crescimento, a consolidação e a fusão de grupos controladores de IES possibilitaram a transformação de inúmeras empresas educacionais em conglomerados empresariais, com a possibilidade de novos formatos de organização, como a formação de oligopólios(2121 Chaves VLJ. Expansão da privatização/mercantilização do ensino superior brasileiro: a formação dos oligopólios. Educ Soc. [Internet]. 2010 [Acesso 4 ago 2020];31:481-500. Disponível em: https://www.scielo.br/scielo.php?pid=S0101-73302010000200010&script=sci_abstract&tlng=pt
https://www.scielo.br/scielo.php?pid=S01...
).

Vinculada ao fenômeno da privatização está a mercantilização da educação superior brasileira, onde se destaca a expansão das instituições com finalidade lucrativa e a adoção de estratégias de mercado orientadas para a financeirização, oligopolização e internacionalização. Essas transformações no modelo educacional brasileiro abrem margem à compreensão da educação como um produto comercializado, objeto de lucro e benefícios aos proprietários e acionistas. O interesse por esse ramo é evidenciado pela diversificação dos “produtos”, como a oferta de cursos presenciais e à distância, a produção de materiais didáticos, a presença de consultorias empresariais e o fortalecimento do marketing educacional, entre outros(2222 Oliveira RP. A transformação da educação em mercadoria no Brasil. Educ Soc. [Internet]. 2009 [Acesso 4 ago 2020];30:739-60. Disponível em: https://www.scielo.br/scielo.php?pid=S0101-73302009000300006&script=sci_abstract&tlng=pt
https://www.scielo.br/scielo.php?pid=S01...
).

A tendência de crescimento de escolas de enfermagem no Brasil

Até o final de década de 1940 existiam 20 cursos de enfermagem no país, quatro em IES privadas. A partir de 1949 o Estado brasileiro estimulou a criação de novas escolas, ao tornar obrigatório o curso de enfermagem em todas as universidades ou sedes de faculdades de medicina(2323 Brasil. Lei n. 775, de 6 de agosto de 1949. Dispõe sôbre o ensino de enfermagem no País e dá outras providências. Diário Oficial da União, 13 ago 1949.). A Lei nº775, de 1949, sinalizava uma forte vinculação da formação em enfermagem com o mercado de trabalho da época e, portanto, foi centrada no modelo clínico intrínseco à ampliação dos hospitais(2424 Leonello VM, Miranda Neto MV, Oliveira MAC. Educação em enfermagem no Brasil: uma perspectiva histórica. Rev Esc Enferm USP. [Internet]. 2011 [Acesso 4 ago 2020];45:1774-9. Disponível em: http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0080-62342011000800024&lng=en
http://www.scielo.br/scielo.php?script=s...
). Só nos anos 1950, 14 novas escolas de enfermagem foram criadas, oito delas privadas (57%).

Após a Reforma Universitária de 1968, a graduação em enfermagem volta a encontrar um terreno fértil para a expansão. Se na década de 1960 apenas três novos cursos foram criados, a década de 1970 contou com o surgimento de 39 novos cursos, 28 em IES públicas e 11 em privadas. De 1980 a 1990 foram criadas 62 escolas de enfermagem, 42 em instituições públicas. A participação das IES privadas se manteve estável até a década de 90, quando a promulgação da LDB em 1996 promoveu um alinhamento das políticas educacionais do país com a flexibilização, liberalização, diversificação de financiamento e redefinição do papel do Estado na educação. Logo, é a partir do final dos anos 1990 que o crescimento no setor privado supera o público na oferta de cursos e de vagas em enfermagem, conforme nos mostra a Figura 1.

Figura 1
Evolução dos cursos de enfermagem e vagas, 1991-2020. Brasil

O setor público detinha mais da metade do número de matrículas até 1998, porém, no ano seguinte, em 1999, as matrículas em cursos privados representavam 54,5% do total no país, continuando a crescer no decorrer dos anos. Vários fatores contribuíram para a ampliação substancial dos cursos e vagas de enfermagem no país e em consequência, no número de egressos: i) documentos legais e normativos relacionados a alocação dos profissionais de enfermagem em serviços; ii) flexibilidade do mercado de trabalho; iii) políticas públicas que corroboraram na ampliação do mercado de trabalho no setor saúde; e iv) políticas educacionais que tornam as IES mais tolerantes e autônomas(2525 Amâncio Filho A, Vieira ALS, Garcia ACP. Oferta das graduações em Medicina e em Enfermagem no Brasil. Ver Bras Educ Med. [Internet]. 2006 [Acesso 4 ago 2020];30:161-70. Disponível em https://www.scielo.br/scielo.php?pid=S0100-55022006000300007&script=sci_abstract&tlng=pt
https://www.scielo.br/scielo.php?pid=S01...
).

Entre os anos de 1991 e 2004, o número de vagas disponíveis aumentou dez vezes, passando de 7.460 para 70.400, das quais somente 8% eram do setor público. O quantitativo de cursos ativos nesse período também aumentou expressivamente, passando de 108 em 1991 para 415 em 2004, num incremento total de 291,5%, confirmando o protagonismo do setor privado com um crescimento de cerca de 616%. A LDB contribuiu fortemente para essa expansão, pois no período de 1991 até 1996, por exemplo, o percentual de crescimento do ensino superior em enfermagem foi de apenas 4,71%, enquanto entre 1996 e 2004 foi de aproximadamente 287%. A mesma tendência foi percebida nos anos seguintes. Em 2003 havia 243 cursos de graduação em enfermagem ofertados pelo setor privado e 89 pelo público, em 2004 esses números foram para 322 e 93, respectivamente. As vagas ofertadas em 2003 somavam 41.937 no setor privado e 5.410 no público, no ano seguinte os números saltaram para 64.803 e 5.597, respectivamente, um aumento de 154,5% de vagas no setor privado. A Figura 2 apresenta a distribuição proporcional da categoria administrativa dos cursos de enfermagem no período considerado.

Figura 2
Distribuição percentual da categoria administrativa dos cursos de enfermagem no Brasil entre 1890 e 2020. Brasil

Contudo, ainda que o número de vagas para estudantes de graduação em enfermagem tenha ampliado consideravelmente, o número de egressos não seguiu de forma ajustada a mesma evolução, em média o percentual de evasão das vagas de enfermagem é historicamente maior nos cursos privados do que nos cursos públicos e corresponde a 38% nas instituições públicas e 62% nas privadas(2626 Magalhães SS, Rodrigues AMM, Guerreiro MGS, Queiroz MVO, Silva LMS, Freitas CHA. Expansão do ensino de enfermagem no Brasil: evidências históricas e perspectivas da prática. Enferm Foco. [Internet]. 2013 [Acesso 4 ago 2020];4:167-70. Disponível em: http://revista.cofen.gov.br/index.php/enfermagem/article/view/542
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). Os piores percentuais de aproveitamento das vagas foram registrados nos anos 2002, 2003 e 2004, com o equivalente a 18% no setor privado.

Em 2006 foram criados os primeiros cursos de enfermagem à distância. Distribuídos em 14 polos, em 2019 foram oferecidos 130 cursos por 9 instituições, somando o total de 82.000 vagas disponíveis na modalidade EAD. Atualmente, essa modalidade representa 28% do total de vagas ofertadas para graduação em enfermagem no Brasil. No setor privado, comparado com a modalidade presencial, o ensino à distância representa 30,8% das vagas oferecidas.

Tendência de distribuição das escolas de enfermagem no Brasil

O crescimento do número de cursos não foi uniforme pelas regiões do país, apresentando desigualdades entre estados e cidades e concentrações sobretudo nas capitais e regiões metropolitanas, onde, em geral, há um maior Produto Interno Bruto (PIB), e consequentemente, maior poder econômico e maior concentração de renda da população, além de uma prévia capacidade instalada, tanto de recursos humanos quanto de estrutura física. Também ocorreu nessas localidades a maior fração de investimentos públicos.

A região Sudeste, seguida pela região Sul, manteve-se como epicentro da expansão de cursos e vagas. No entanto, considerando a proporção de ampliação no período de 1991 a 2004, foi a região Centro-Oeste que teve um aumento mais expressivo, 480%, ainda que em números absolutos o número de escolas (n=29 em 2004) fosse bem inferior ao quantitativo das regiões Sudeste e Sul (n=220 e 84 respectivamente, para o ano de 2004). Na Tabela 1 observa-se a distribuição geográfica atual dos cursos e vagas no Brasil.

No que se refere às matrículas, no ano de 2018 as instituições privadas receberam 91,5%, sendo a maioria delas distribuídas pela região Sudeste (37,8%), seguida pela região Nordeste (31,1%). As regiões Centro-Oeste e Norte tiveram um índice de pouco mais de 10% (10,9% e 10,5%, respectivamente) e a região Sul teve menor índice de matrículas (9,7%). A região Sudeste se destaca por deter os maiores índices de matrícula nos últimos anos, conforme observado na Tabela 1.

Tabela 1
Distribuição de cursos presenciais e vagas de graduação em enfermagem no Brasil em 2020

Nove IES oferecem cursos de enfermagem na modalidade EaD, com polos em quase todos os estados brasileiros. Duas IES sediadas no Estado de São Paulo concentram quase 80% de todas as vagas oferecidas, conforme observado na Tabela 2.

Tabela 2
Oferta de vagas em cursos de enfermagem a distância por IES. Brasil, 2020

Discussão

A formação em saúde é um componente vital para a sustentabilidade e o funcionamento efetivo de qualquer sistema de saúde. As responsabilidades e papéis dos enfermeiros enquanto profissionais clínicos, líderes, decisores políticos, investigadores, cientistas e professores são fundamentais para o funcionamento eficaz e prático da educação.

A tendência à privatização do ensino em saúde parece ter uma dimensão global. Na China, com o incentivo governamental, as instituições privadas para a educação de profissionais de saúde se desenvolveram rapidamente, excedendo ao que as instituições públicas eram capazes de oferecer, porém com desequilíbrio da distribuição geográfica e questionamentos sobre a capacidade técnica e educacional(2727 Hou J, Wang Z, Luo Y, Kolars JC, Meng Q. China's private institutions for the education of health professionals: a time-series analysis from 1998 to 2012. Hum Resour Health. [Internet]. 2018 [cited Aug 5, 2020]. Available from: https://human-resources-health.biomedcentral.com/articles/10.1186/s12960-018-0308-6
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). No Bahrain, no Oriente Médio, há forte incentivo para entrada de alunos no setor privado, onde um emprego na esfera privada lhes é garantido por escrito, para quando se formarem(2828 Awadhalla M, Al-Mohandis B, Al-Darazi F. Transformation of nursing education: the experience of Bahrain. E Mediterr Health J. [Internet]. 2018 [cited Aug 5, 2020]. Available from: https://applications.emro.who.int/emhj/v24/09/EMHJ_2018_24_09_959_964.pdf
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).

Na Tailândia em 2006, 19,6% do total de enfermeiros formados no país eram egressos de instituições privadas, em 2010 este percentual aumentou para 24,1%, confirmando a importância do setor privado na formação desses profissionais(2929 Reynolds J, Wisaijohn T, Pudpong N, Watthayu N. A literature review: the role of the private sector in the production of nurses in India, Kenya, South Africa and Thailand. Hum Resour Health. 2013;11(1):14. doi: https://doi.org/10.1186/1478-4491-11-14
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). Dados de 2010 já sinalizavam uma grande participação do setor privado no Quênia, com 51%(3535 Winters JRF, Prado ML, Lazzari DD, Jardim VLT. Nursing higher education in MERCOSUR: a bibliometric study. Rev Bras Enferm. [Internet]. 2018 [cited Aug 5,2020];78 (Suppl 4). Available from: https://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0034-71672018001001732&lng=en&tlng=en
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) das 68 IES de enfermagem(2929 Reynolds J, Wisaijohn T, Pudpong N, Watthayu N. A literature review: the role of the private sector in the production of nurses in India, Kenya, South Africa and Thailand. Hum Resour Health. 2013;11(1):14. doi: https://doi.org/10.1186/1478-4491-11-14
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-3030 Rao M, Rao KD, Kumar A, Chatterjee M, Sundararaman T. Human resources for health in India. Lancet. 2011;377:587-98. doi: 10.1016/S0140-6736(10)61888-0
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). Na Índia, neste mesmo ano, 88% de todas as instituições de ensino de enfermagem eram privadas, produzindo 95% do total da força de trabalho de enfermagem. Em 2017, o total de instituições privadas já atingia 90,3%. Na Arábia Saudita, em 2017, das 39 IES 13 (33%) são privadas(3131 Aljohani KS. Nursing Education in Saudi Arabia: History and Development. Cureus. 2020;12(4):e7874. doi: 10.7759/cureus.7874
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).

A participação do setor privado na formação de enfermagem em todo o mundo é muito expressiva e levanta questões, que de forma geral orbitam em torno de quatro tópicos: i) a contribuição do setor privado na formação de profissionais de enfermagem; ii) a concentração/distribuição; iii) a tendência para se vincular também ao setor privado; e iv) a qualidade do ensino(99 Fehn AC. O ensino médico privado- expansão e tendências na Índia e no Brasil [tese]. Rio de Janeiro: Instituto de Medicina Social da UERJ; 2019. Disponível em: https://pesquisa.bvsalud.org/portal/resource/pt/biblio-1015350
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).

No Brasil, esse movimento de expansão pode ser associado a dois fatores: uma redução de financiamento no setor público e uma flexibilização e relaxamento da regulação, incluindo o surgimento e o aumento de cursos à distância, que traz à discussão o componente da qualidade da formação.

A despeito da distribuição/concentração das escolas de enfermagem no país, percebe-se que na verdade o argumento de que a expansão do setor privado serviria para preencher as lacunas do setor público corresponde a uma oportunidade de expansão do mercado. Este padrão urbano-centrado de distribuição das IES privadas também é percebido na Índia, Quênia, África do Sul e Tailândia(2929 Reynolds J, Wisaijohn T, Pudpong N, Watthayu N. A literature review: the role of the private sector in the production of nurses in India, Kenya, South Africa and Thailand. Hum Resour Health. 2013;11(1):14. doi: https://doi.org/10.1186/1478-4491-11-14
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), por exemplo, além de ser igualmente identificado para as escolas médicas(3232 Scheffer M, Cassenote A, Guilloux AGA, Miotto BA, Mainardi GM, Matijasevich A, et al. Demografia Médica no Brasil 2018. [Internet]. São Paulo: CREMESP; 2018 [Acesso 5 ago 2020]. Disponível em: http://www.flip3d.com.br/web/pub/cfm/index10/?numero=15&edicao=4278#page/3
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). Da mesma forma, os hospitais privados no Brasil estão concentrados em cidades com melhores economias e o mesmo acontece com as escolas médicas privadas, a maioria delas localizadas no sudeste (41,4%), especialmente em São Paulo e Minas Gerais, onde a maioria dos hospitais privados tem fins lucrativos (57,8%)(3333 Matarazzo H, Zoca B, Melo N. Cenário dos Hospitais no Brasil - 2018. Relatório da situação dos hospitais privados no Brasil. [Internet]. 2018 [Acesso 4 ago 2020]. Disponível em: http://fbh.com.br/cenario-dos-hospitais-no-brasil-2018/
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). A preocupação com o desequilíbrio na distribuição geográfica também ocorre na China, onde 97 IES privadas localizam-se na China Ocidental e Central, regiões economicamente mais vantajosas, ao passo que somente 26 estão na China Oriental(2727 Hou J, Wang Z, Luo Y, Kolars JC, Meng Q. China's private institutions for the education of health professionals: a time-series analysis from 1998 to 2012. Hum Resour Health. [Internet]. 2018 [cited Aug 5, 2020]. Available from: https://human-resources-health.biomedcentral.com/articles/10.1186/s12960-018-0308-6
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).

As disparidades indicam a forma como a interação entre o sistema educativo e o sistema de saúde foi mediada pelo mercado de trabalho em enfermagem, tendo em conta os desafios da governança e da regulação. Os resultados revelaram desequilíbrios e desajustes críticos da procura e da oferta de enfermeiros, especialmente em localidades fora do eixo dos grandes centros urbanos. Na Índia, por exemplo, apenas 9% das escolas de enfermagem estão em localidades com escassez desses profissionais(2929 Reynolds J, Wisaijohn T, Pudpong N, Watthayu N. A literature review: the role of the private sector in the production of nurses in India, Kenya, South Africa and Thailand. Hum Resour Health. 2013;11(1):14. doi: https://doi.org/10.1186/1478-4491-11-14
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). Embora a oferta de enfermeiros tenha crescido, ela coexiste com baixas taxas de absorção desses profissionais pelo setor público, frequentemente devido a ineficiências de recrutamento ou condições de trabalho precárias. Cenário semelhante foi descrito no Quênia e na Índia, cujo desequilíbrio entre a produção (oferta) e a absorção do mercado de trabalho (demanda) favoreceu fortemente a migração de enfermeiras nesses países (20% e 25% das enfermeiras formadas pelo setor privado no Quênia e na Índia, respectivamente)(2929 Reynolds J, Wisaijohn T, Pudpong N, Watthayu N. A literature review: the role of the private sector in the production of nurses in India, Kenya, South Africa and Thailand. Hum Resour Health. 2013;11(1):14. doi: https://doi.org/10.1186/1478-4491-11-14
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). As análises recentes das projeções da OMS estimam que a procura global efetiva por enfermeiros aumentaria em cerca de 33% entre 2019 e 2039, no entanto mais de 220.000 profissionais não seriam absorvidos nem pelo setor público, nem pelo privado(88 World Health Organization. State of the world's nursing 2020: investing in education, jobs and leadership. [Internet]. [cited 3 ago 2020]. Available from: https://www.who.int/publications/i/item/nursing-report-2020
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).

Ainda que o Brasil não seja tradicionalmente um país “exportador de mão-de-obra de enfermagem”, a tendência de crescimento do número escolas e a elevada oferta de vagas, aliada à incapacidade de empregabilidade desses profissionais, sugerem um potente espaço para a migração. A existência, nos países mais ricos, não só de uma força de trabalho majoritariamente mais velha e com idade próxima à aposentadoria, como também de empresas de recrutamento internacional que além de subsidiarem o curso de idiomas oferecem boas condições de emprego e benefícios sociais, tem aumentado o interesse nos profissionais de enfermagem dos países pobres e de baixa e média renda (PBMR).

Paralelamente, contextos de recessão econômica, amplamente vislumbrados nesses países, afetam todos os setores da economia, incluindo os profissionais de saúde. Os enfermeiros, sendo o maior grupo profissional do setor da saúde, são fortemente afetados pelas tentativas de equilíbrio orçamental, cuja alternativa mais simples e rápida de ajuste é a redução na oferta de trabalhadores(3434 Alameddine M, Baumann A, Laporte A, Deber R. A narrative review on the effect of economic downturns on the nursing labour market: implications for policy and planning. Hum Resour Health. 2012 [acesso em 04 agosto 2020];10(1):23. Disponível em: https://human-resources-health.biomedcentral.com/articles/10.1186/1478-4491-10-23
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). Outro aspecto é a diminuição ou o congelamento dos salários da enfermagem, ampliando o número de horas trabalhadas e/ou de múltiplos empregos na busca de garantir a renda pessoal/familiar(3434 Alameddine M, Baumann A, Laporte A, Deber R. A narrative review on the effect of economic downturns on the nursing labour market: implications for policy and planning. Hum Resour Health. 2012 [acesso em 04 agosto 2020];10(1):23. Disponível em: https://human-resources-health.biomedcentral.com/articles/10.1186/1478-4491-10-23
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). Neste contexto, a possibilidade de migrar para o exterior com a garantia de um contrato de trabalho pode indicar uma tendência no mercado de trabalho em enfermagem. Nas Filipinas, por exemplo, grande parte das escolas privadas de enfermagem possui participação de grupos internacionais, especialmente ingleses e europeus, que contribuem financeiramente para a abertura e funcionamento dessas instituições, além de traçarem as diretrizes e orientações curriculares da formação desses profissionais, de modo que sejam compatíveis e equivalentes aos padrões exigidos em seus países, estimulando fortemente a migração dessa força de trabalho.

O crescimento exponencial do setor privado alerta para a falta de qualificações do corpo docente, que de forma geral, nessas instituições, apresenta maior rotatividade e critérios menos rigorosos e mais flexíveis para a seleção de professores. Outro ponto importante é que o aumento no número das escolas amplia a competitividade pelos professores universitários mais qualificados não somente entre as IES privadas, mas também com as instituições públicas(1111 Demin MR. Universities on the Market: Academic Capitalism as a Challenge and a Window of Opportunity. Russ Educ Soc. 2017;59:465-85. doi: https://doi.org/10.1080/10609393.2017.1433912.
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). Ainda no âmbito da avaliação da qualidade do ensino, vale destacar a existência de uma lacuna de estudos sobre a qualidade do corpo docente nas instituições de ensino públicas e privadas e o percentual comparativo de doutores e mestres, por exemplo. Sabe-se, entretanto, que as IES privadas no Brasil, em sua imensa maioria, não direcionam o currículo à pesquisa e, geralmente, o protagonismo no campo científico da investigação é centrado nas instituições públicas.

Internacionalmente, alguns estudos sugerem que as instituições públicas, de forma geral, estão em melhor posição para responder aos requisitos de FTS(3434 Alameddine M, Baumann A, Laporte A, Deber R. A narrative review on the effect of economic downturns on the nursing labour market: implications for policy and planning. Hum Resour Health. 2012 [acesso em 04 agosto 2020];10(1):23. Disponível em: https://human-resources-health.biomedcentral.com/articles/10.1186/1478-4491-10-23
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) dos países, em termos de alinhamento de programas de admissão e treinamento de alunos com as mudanças no perfil sociodemográfico e nas necessidades da população, manutenção dos padrões de saúde, criação de escolas de formação em áreas rurais e colaboração com o sistema público de saúde, como ambientes de estágio durante a graduação(99 Fehn AC. O ensino médico privado- expansão e tendências na Índia e no Brasil [tese]. Rio de Janeiro: Instituto de Medicina Social da UERJ; 2019. Disponível em: https://pesquisa.bvsalud.org/portal/resource/pt/biblio-1015350
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,3333 Matarazzo H, Zoca B, Melo N. Cenário dos Hospitais no Brasil - 2018. Relatório da situação dos hospitais privados no Brasil. [Internet]. 2018 [Acesso 4 ago 2020]. Disponível em: http://fbh.com.br/cenario-dos-hospitais-no-brasil-2018/
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). No entanto, são urgentes estudos mais atuais.

A ausência de um mecanismo efetivo de regulação por parte do Estado na educação superior privada brasileira pode ser considerada um incentivador na expansão deste setor(1111 Demin MR. Universities on the Market: Academic Capitalism as a Challenge and a Window of Opportunity. Russ Educ Soc. 2017;59:465-85. doi: https://doi.org/10.1080/10609393.2017.1433912.
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,3535 Winters JRF, Prado ML, Lazzari DD, Jardim VLT. Nursing higher education in MERCOSUR: a bibliometric study. Rev Bras Enferm. [Internet]. 2018 [cited Aug 5,2020];78 (Suppl 4). Available from: https://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0034-71672018001001732&lng=en&tlng=en
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). Ainda que a regulação do ensino superior seja monitorada pelo Ministério da Educação, faltam a esta instituição mecanismos e ferramentas mais ajustadas à realidade da expressiva quantidade de IES e, no caso específico da enfermagem, do massivo número de vagas ofertadas, especialmente na modalidade à distância.

Dessa forma, ainda que o presente estudo apresente algumas limitações e dificuldades, derivadas do uso de diferentes nomenclaturas e modalidade de cursos na área e, apesar da grande quantidade de dados coletados, a análise, paradoxalmente, ainda é exploratória. Devido às inconsistências e vazios de conhecimento sobre esses processos, ele contribui substancialmente com o conhecimento científico das pesquisas de enfermagem na área da gestão e da avaliação do ensino em saúde, cuja produção entre os anos de 2006 e 2015 se limitou a 11%. Paralelamente, este estudo busca ampliar e potencializar a discussão da força de trabalho em saúde através da lente do mercado de trabalho, propondo uma análise sobre o crescimento do setor privado de ensino e seu impacto nos sistemas de saúde.

Conclusão

Este estudo examina três grandes questões sobre as escolas de enfermagem: a primeira referente à forte expansão do ensino superior em enfermagem, ao lado de outras profissões de saúde, que resultou no fortalecimento de instituições privadas de ensino superior associadas a grupos econômicos e à concentração regional. A segunda diz respeito à distribuição geográfica dos cursos e vagas, que é desigual no país. E por fim, a existência da modalidade de ensino à distância. Trata-se de método ainda controverso e bastante questionado em cursos na área da saúde, uma vez que a formação não prescinde de interação pessoal, especialmente para o objeto fim do exercício da enfermagem, o cuidado. Preocupações acerca da qualidade relativa ao aumento expressivo do número de cursos e de vagas e da qualidade da formação da enfermagem e das demais profissões da saúde são fundamentais para um planejamento efetivo da força de trabalho em saúde.

O número crescente de escolas e vagas não parece estar ligado a estratégias articuladas para resolver o problema da crescente demanda por uma força de trabalho de saúde suficiente e qualificada. Essa situação é semelhante à de muitos países em desenvolvimento que não conseguiram estabelecer relação orgânica entre a educação multiprofissional e o sistema de saúde. Estratégias inovadoras para abordar esta questão devem ser desenvolvidas, de forma a contribuir para o alcance da cobertura e acesso universal em saúde.

No contexto atual da pandemia do novo coronavírus (COVID-19) a modalidade do ensino à distância tornou-se prioridade na agenda das IES, mesmo sem muitas informações sobre seu desenvolvimento ou seu impacto na qualidade da formação dos profissionais e no mercado de trabalho em saúde, exceto pela tendência à concentração da oferta educacional em poucas IES. Essa é uma agenda de pesquisa necessária e urgente no contexto do ensino das profissões de saúde.

O estudo procurou demonstrar a pertinência e a abrangência do processo de privatização do ensino de enfermagem, fazendo uma reflexão sobre as implicações deste processo no atendimento das demandas do sistema de saúde no Brasil.

Além disso, espera-se que possa contribuir para o desenvolvimento de uma agenda de pesquisa mais prática e participativa envolvendo diferentes atores do governo, da academia, da sociedade civil, do setor privado e das associações, entre outros, bem como para o processo de decisão e escolhas políticas baseadas em evidências.

  • *
    Este artigo refere-se à chamada temática “Recursos Humanos em Saúde e Enfermagem: Formação e Atuação nas Américas”. O presente trabalho foi realizado com apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES) - Código de Financiamento 001, e Fundação Carlos Chagas Filho de Amparo à Pesquisa do Estado do Rio de Janeiro (FAPERJ), FAPERJ- E-26/203.308/2017, Brasil.
  • 3
    Bolsista da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), Brasil.
  • 4
    Bolsista do Conselho Nacional de Desenvolvimento Cientifico e Tecnológico (CNPq), Brasil.

References

Editado por

Editora Associada: Sueli Aparecida Frari Galera

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    28 Jun 2021
  • Data do Fascículo
    2021

Histórico

  • Recebido
    30 Jun 2020
  • Aceito
    17 Set 2020
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