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Dificuldades vivenciadas pela equipe multiprofissional na unidade de terapia intensiva

Dificultades vividas por el grupo de atención al paciente en la unidad de tratamiento intensivo

Difficulties experienced by the patient care team at the intensive care unit

Resumos

Trata-se de um estudo de caso com uma abordagem interpretativa, cujo objetivo foi identificar as dificuldades vivenciadas pela equipe multiprofissional que atua na Unidade de Terapia Intensiva. Os dados foram coletados por meio de observações participantes e entrevistas semi-estruturadas com médicos, enfermeiros e auxiliares de enfermagem. Por meio da análise de dados, foram identificadas as categorias: cuidar em terapia intensiva - "é difícil lidar com a morte e informar a família", e cuidar em terapia intensiva - "a falta de recursos materiais e o difícil trabalho em equipe". As dificuldades relatadas estão relacionadas ao contato com os familiares, com o lidar com a morte, com a falta de recursos materiais e, especialmente, com o relacionamento entre os membros da equipe. Os resultados evidenciaram a necessidade de que a equipe promova momentos para reflexão e discussão acerca dos aspectos técnicos, científicos e éticos referentes ao cuidado tanto dos pacientes críticos quanto de seus familiares, tendo em vista a melhoria da qualidade do atendimento e do relacionamento interpessoal.

unidades de terapia intensiva; equipe de assistência ao paciente; pesquisa qualitativa; enfermagem


La finalidad de este estudio de caso interpretativo fue identificar las dificultades vividas por un equipo de profesionales que actúa en una Unidad de Tratamiento Intensivo. La compilación de datos fue realizada a través de observación participante y entrevistas semi-estructuradas llevadas a cabo con médicos, enfermeros y auxiliares de enfermería. El análisis reveló las siguientes categorías: cuidar en el tratamiento intensivo: "la ardua tarea de lidiar con la muerte y informar a la familia del paciente" y cuidar en el tratamiento intensivo: "la escasez de recursos materiales y la dificultad de trabajar en equipo". Las dificultades mencionadas se refieren al contacto con la familia, al afrontamiento de la muerte, a la falta de recursos materiales y especialmente a la relación entre los integrantes del equipo. Por consiguiente, el equipo debe promover discusiones y reflexionar sobre los aspectos técnico-científicos y éticos de la atención, tanto a los pacientes en estado crítico como de la familia de los pacientes, ante una mejor calidad de la atención y de las relaciones interpersonales.

unidades de terapia intensiva; grupo de atención al paciente; investigación cualitativa; enfermería


This interpretative case study aimed to identify the difficulties experienced by the patient care team while working at the Intensive Care Unit. Data were collected through participant observation and semistructured interviews with doctors, nurses and nurse's aides. Two major categories emerged from the data analysis: Care delivery in intensive care - "it is difficult to deal with death and inform the patient's family" and care delivery in intensive care - "the lack of material resources and the difficulty to work in a team". The difficulties are related to the contact with family members, dealing with death and the lack of material resources, and particularly with the relation between team members. Therefore, teams need to promote opportunities and discussions to reflect on the technical, scientific and ethic aspects of care for critical patients as well as family members, with a view to better care quality and interpersonal relations.

intensive care units; patient care team; qualitative research; nursing


ARTIGO ORIGINAL

Dificuldades vivenciadas pela equipe multiprofissional na unidade de terapia intensiva1

Difficulties experienced by the patient care team at the intensive care unit

Dificultades vividas por el grupo de atención al paciente en la unidad de tratamiento intensivo

Maria Abadia LeiteI; Vanessa da Silva Carvalho VilaII

IEnfermeira Assistencial do Hospital Santa Lúcia, Brasília

IIEnfermeira, Mestre em Enfermagem, Doutoranda do Programa Interunidades de Doutoramento em Enfermagem da Escola de Enfermagem de Ribeirão Preto, da Universidade de São Paulo, Membro Efetivo do Núcleo de Ensino e Pesquisa em Saúde e Sociedade da Universidade Católica de Goiás, e-mail: vscvila@uol.com.br

RESUMO

Trata-se de um estudo de caso com uma abordagem interpretativa, cujo objetivo foi identificar as dificuldades vivenciadas pela equipe multiprofissional que atua na Unidade de Terapia Intensiva. Os dados foram coletados por meio de observações participantes e entrevistas semi-estruturadas com médicos, enfermeiros e auxiliares de enfermagem. Por meio da análise de dados, foram identificadas as categorias: cuidar em terapia intensiva - "é difícil lidar com a morte e informar a família", e cuidar em terapia intensiva - "a falta de recursos materiais e o difícil trabalho em equipe". As dificuldades relatadas estão relacionadas ao contato com os familiares, com o lidar com a morte, com a falta de recursos materiais e, especialmente, com o relacionamento entre os membros da equipe. Os resultados evidenciaram a necessidade de que a equipe promova momentos para reflexão e discussão acerca dos aspectos técnicos, científicos e éticos referentes ao cuidado tanto dos pacientes críticos quanto de seus familiares, tendo em vista a melhoria da qualidade do atendimento e do relacionamento interpessoal.

Descritores: unidades de terapia intensiva; equipe de assistência ao paciente; pesquisa qualitativa; enfermagem

ABSTRACT

This interpretative case study aimed to identify the difficulties experienced by the patient care team while working at the Intensive Care Unit. Data were collected through participant observation and semistructured interviews with doctors, nurses and nurse's aides. Two major categories emerged from the data analysis: Care delivery in intensive care - "it is difficult to deal with death and inform the patient's family" and care delivery in intensive care - "the lack of material resources and the difficulty to work in a team". The difficulties are related to the contact with family members, dealing with death and the lack of material resources, and particularly with the relation between team members. Therefore, teams need to promote opportunities and discussions to reflect on the technical, scientific and ethic aspects of care for critical patients as well as family members, with a view to better care quality and interpersonal relations.

Descriptors: intensive care units; patient care team; qualitative research; nursing

RESUMEN

La finalidad de este estudio de caso interpretativo fue identificar las dificultades vividas por un equipo de profesionales que actúa en una Unidad de Tratamiento Intensivo. La compilación de datos fue realizada a través de observación participante y entrevistas semi-estructuradas llevadas a cabo con médicos, enfermeros y auxiliares de enfermería. El análisis reveló las siguientes categorías: cuidar en el tratamiento intensivo: "la ardua tarea de lidiar con la muerte y informar a la familia del paciente" y cuidar en el tratamiento intensivo: "la escasez de recursos materiales y la dificultad de trabajar en equipo". Las dificultades mencionadas se refieren al contacto con la familia, al afrontamiento de la muerte, a la falta de recursos materiales y especialmente a la relación entre los integrantes del equipo. Por consiguiente, el equipo debe promover discusiones y reflexionar sobre los aspectos técnico-científicos y éticos de la atención, tanto a los pacientes en estado crítico como de la familia de los pacientes, ante una mejor calidad de la atención y de las relaciones interpersonales.

Descriptores: unidades de terapia intensiva; grupo de atención al paciente; investigación cualitativa; enfermería

INTRODUÇÃO

O interesse pela realização deste estudo advém de nossa experiência profissional e do contato contínuo com o ambiente da Unidade de Terapia Intensiva (UTI). A observação tem nos mostrado que a realidade vivenciada pela equipe multiprofissional que atua em terapia intensiva é permeada por variados sentimentos e emoções e, ainda, que a rotina exige uma excelente capacitação técnico-científica e preparo profissional para lidar com a perda, com a dor e com o sofrimento.

Os serviços de terapia intensiva ocupam áreas hospitalares destinadas ao atendimento de pacientes críticos que necessitem de cuidados complexos e especializados. Esses serviços têm como objetivos: concentrar recursos humanos e materiais para o atendimento de pacientes graves que exigem assistência permanente, além da utilização de recursos tecnológicos apropriados para a observação e monitorização contínua das condições vitais do paciente e para a intervenção em situações de descompensações(1-2).

Em virtude da constante expectativa de situações de emergência, da alta complexidade tecnológica e da concentração de pacientes graves, sujeitos a mudanças súbitas no estado geral, o ambiente de trabalho caracteriza-se como estressante e gerador de uma atmosfera emocionalmente comprometida, tanto para os profissionais como para os pacientes e seus familiares(3).

Na UTI, a equipe multiprofissional convive com outros fatores desencadeadores de estresse, tais como: a dificuldade de aceitação da morte, a escassez de recursos materiais (leitos e equipamentos) e de recursos humanos e a tomada de decisões conflitantes relacionadas com a seleção dos pacientes que serão atendidos(2). Esses são alguns dos dilemas éticos e profissionais vivenciados cotidianamente pela equipe que atua em terapia intensiva. Essas situações criam tensão entre os profissionais e, em geral, influenciam, negativamente, a qualidade da assistência prestada aos clientes.

Resultados de pesquisas têm demonstrado que a má utilização dos recursos tecnológicos e a falta de compromisso de alguns profissionais têm tornado mecanicista a assistência, ou seja, têm afastado o cliente (paciente e família) da equipe multiprofissional, descaracterizando o cuidado como ação humana(2,4-5).

Nessa perspectiva, a compreensão da realidade vivenciada pela equipe multiprofissional que atua em terapia intensiva requer, entre outras coisas, a identificação dos fatores que dificultam a sua atuação, os quais podem estar contribuindo para a despersonalização do atendimento ao paciente e sua família, gerando o distanciamento, o estresse e o sofrimento da equipe.

TRAJETÓRIA METODOLÓGICA

Para desenvolvermos este trabalho, optamos pela realização de um estudo de caso que consiste no estudo aprofundado e exaustivo de um ou de poucos casos (uma pessoa, um grupo, uma comunidade), de forma a permitir o seu conhecimento amplo e detalhado. A preocupação central deste tipo de pesquisa é a compreensão do caso, que pode ser simples ou complexo, individual ou coletivo, pois constitui uma representação singular da realidade que é multidimensional e historicamente situada(6-7).

"O estudo de caso é um estudo empírico que investiga um fenômeno atual dentro de seu contexto real, quando as fronteiras entre o fenômeno e este contexto não estão claramente definidas"(8).

Enquanto estamos estudando um caso, os nossos esforços estão concentrados na tentativa de compreender sua complexidade. O propósito deste tipo de estudo não é representar o mundo, mas representar o caso, que é singular e bem delimitado a um cenário cultural específico(7).

Dentre suas características, ressaltamos: a descoberta, a ênfase na interpretação do contexto, a construção de um retrato da realidade de forma completa e profunda, a variedade de fontes de informação e a preocupação com a representação dos diferentes e, às vezes, conflitantes pontos de vista presentes numa situação social(9).

Assim como outros tipos de pesquisa qualitativa, o estudo de caso poderá ser desenvolvido segundo diferentes paradigmas: positivista, interpretativo e crítico(10). O estudo de caso realizado neste trabalho caracteriza-se como interpretativo, segundo os pressupostos teórico-metodológicos da hermenêutica moderna. Esse referencial concebe o conhecimento do pesquisador e do sujeito como construções históricas, e as relações sociais, como tendo natureza dialógica e intersubjetiva. Nas relações sociais, acontece "o confronto dos horizontes culturais do pesquisador e do pesquisado", constituindo uma relação "entre dois universos culturais que se interpenetram, sem se anularem e também sem anularem as posições históricas dos interlocutores"(11). Nessa perspectiva, a realidade é constituída tanto pelo que pode ser visto quanto pelo que pode ser representado pelas linguagens verbal e não-verbal.

Consideramos, então, que a realidade vivenciada no cenário cultural da UTI é uma construção sociocultural, com significados individuais e coletivos construídos socioculturalmente e compartilhados intersubjetivamente, que, portanto, poderão ser apreendidos.

Com base nesse referencial, a cultura é definida como uma trama de significados construída pelo próprio homem, significados estes que são compartilhados e servem de orientação para a conduta de um grupo(12). Assim, para compreendermos a cultura de um grupo, é preciso interpretar seus comportamentos sob o seu próprio ponto de vista. Disso se depreende que a versão interpretativa da cultura consiste em analisar as formas simbólicas da vida humana e sua relação com os acontecimentos sociais e as situações concretas.

O presente estudo de caso focalizou a realidade vivenciada pela equipe multiprofissional que atua na UTI de um hospital público de grande porte, vinculado à Fundação Hospitalar do Distrito Federal. A UTI possui seis leitos destinados ao atendimento de pacientes em estado crítico, ou potencialmente crítico, de ambos os sexos, adultos e portadores de patologias diversas.

Os sujeitos da pesquisa foram os membros da equipe multiprofissional que atuam nessa unidade, nos diferentes turnos de trabalho, e que concordaram em participar do estudo. É importante esclarecer que, neste tipo de estudo, o número de participantes não é estabelecido previamente, mas, sim, à medida que os dados vão sendo coletados. Para delimitar o número de sujeitos, foram estabelecidos alguns parâmetros. Primeiro, a amostra ideal é aquela na qual os sujeitos sociais que detêm os atributos que se pretende investigar são considerados em número suficiente, de tal forma que permita a reincidência das informações, sem que outras informações relevantes sejam desprezadas. Segundo, o conjunto de participantes deve ser diversificado de tal modo que possibilite a apreensão de semelhanças e diferenças. Finalmente, a escolha do local e do grupo de observação deve conter o conjunto das experiências e expressões que se pretende objetivar com a pesquisa(13).

Após apreciação e aprovação pelo Comitê de Ética e Pesquisa da Fundação Hospitalar do Distrito Federal, iniciamos o trabalho de campo. Os dados foram coletados de fevereiro a maio de 2002. Como sujeitos deste estudo foram selecionados 15 participantes: três médicos, quatro enfermeiros e oito auxiliares de enfermagem, que atenderam aos critérios de inclusão propostos para o estudo. Antes de iniciar a coleta de dados, o objetivo do trabalho foi explicado a todos os participantes, os quais assinaram o termo de consentimento livre e esclarecido e autorizaram a gravação da entrevista, a fim de que pudéssemos utilizar os dados para análise, conforme especificado na Resolução 196/96, do Conselho Nacional de Saúde, que trata da pesquisa envolvendo seres humanos(14).

Os dados foram coletados por meio de observações participantes e entrevistas semi-estruturadas. Neste estudo, as observações foram conduzidas pela seguinte questão: Como a equipe multiprofissional cuida do paciente crítico nos diferentes turnos de trabalho? Para responder a esse questionamento, observamos as atividades realizadas pela equipe multiprofissional em cada turno de trabalho. Os dados coletados foram registrados em um diário de campo logo após cada sessão de observação.

Simultaneamente à observação participante, também foram realizadas entrevistas cujo objetivo era apreender os sentidos atribuídos pela pessoa que estava sendo entrevistada, aos fatos e às coisas do mundo, ou seja, foi empreendido um esforço para acessar a sua perspectiva, sem a induzir, e encontrar coisas que dificilmente seriam observadas diretamente, tais como: sentimentos, pensamentos e intenções(15).

As entrevistas semi-estruturadas nortearam-se pelas seguintes questões: Para você, o que significa cuidar do paciente crítico? Como você se sente trabalhando em UTI? Como é o seu dia-a-dia de trabalho na UTI?

Vale ressaltar, aqui, que a qualidade das informações obtidas depende da habilidade do pesquisador. Este deve ser capaz de reconhecer, durante a interação com o participante da pesquisa, aspectos que necessitam ser esclarecidos e aprofundados para que se possa atingir o objetivo do estudo(15).

Após ser estabelecido um contato prévio com os participantes, foram agendadas as entrevistas de acordo com a disponibilidade de cada um. Elas foram realizadas na UTI, na sala de repouso da equipe multiprofissional, por ser um local que garantia a privacidade.

À medida que os dados iam sendo coletados, procedia-se à análise dos mesmos. Na seqüência, ocorreram as etapas de codificação, categorização e interpretação dos dados(16). Inicialmente, procedemos às transcrições das entrevistas e, posteriormente, realizamos a sua leitura exaustiva, identificando os códigos semelhantes. Estes foram agrupados em duas categorias principais, possibilitando a identificação dos fatores que dificultam o trabalho da equipe multiprofissional que atua em terapia intensiva: cuidar em terapia intensiva - "é difícil lidar com a morte e informar a família" e cuidar em terapia intensiva - "a falta de recursos materiais e o difícil trabalho em equipe".

ANÁLISE DOS DADOS

Na categoria cuidar em terapia intensiva - "é difícil lidar com a morte e informar a família", estão identificadas as manifestações dos participantes sobre as dificuldades de lidar com a morte e com a família no contexto da terapia intensiva.

Os entrevistados expressaram que lidar com a morte é "a parte mais delicada", ao afirmarem: ... quando um paciente morre, pergunto: Será que a gente fez tudo que deveria ser feito? (E, auxiliar de enfermagem) ... eu nunca vi tanta gente morrendo na vida, como eu vi em um mês na UTI, eu não me sinto preparado (...) é uma grande dificuldade... (D, auxiliar de enfermagem) ... é horrível ligar para avisar o óbito e a pessoa largar o telefone, e você ficar ouvindo os gritos, é muito difícil... (G, enfermeiro) ... Por mais que os anos tenham te ensinado, às vezes você é surpreendido de maneira negativa, são derrotas (...) que você não esperava para o doente... (L, médico).

Diariamente, os profissionais que atuam em unidades críticas, como a terapia intensiva, lidam com a morte, o que, ainda hoje, é reconhecido como um fator estressante.

Observamos que, para os sujeitos deste estudo, a morte representa a impotência, o sofrimento, a perda. Ficou evidente a relutância dos profissionais em aceitar a morte como parte do processo vital, como verdade conhecida e irrefutável e não decorrente de falha do tratamento(2).

A equipe multiprofissional, em sua prática, lida constantemente com as perdas alheias, portanto é necessário aprender a superá-las ou desenvolver mecanismos de adaptação, fortalecendo-se como pessoa para, dessa forma, apoiar os pacientes e familiares nos momentos de suas perdas(17).

As ações da equipe devem favorecer a geração de condições para que o cuidado possa produzir crescimento e transformação, a despeito das circunstâncias, pois a finalidade do cuidado é ajudar o indivíduo a crescer, seja para viver ou para morrer(4). Assim, é fundamental que exista um espaço para se falar sobre a morte e o morrer, pois vivenciar esse processo é condição inerente aos profissionais que lidam com a vida e dela cuidam(18).

Os participantes expressaram suas dificuldades em lidar com a família: "... é difícil informar", conforme revelam as falas a seguir: ... no início, você é intolerante à família, porque você está mais voltado ao sofrimento do doente (...) você acha que a família é um estorvo (...) ainda me sinto impaciente... (L, médico) ... eu sempre peço para não trabalhar no horário da visita, porque mexe muito comigo, as pessoas fazem perguntas, tenho medo de dizer alguma coisa que possa prejudicar... (E, auxiliar de enfermagem) ... a relação com os familiares é um estresse, a família quando vem visitar o doente, tem uma impressão ruim, eles enxergam a UTI como sala da morte (...) os funcionários não se preocupam com os familiares (...) os familiares entram e ficam alheios, vê o paciente deitado, cheio de aparelhos (...) e não sabem o que estão fazendo ali (...) só sabem que têm que lavar as mãos ... (M, auxiliar de enfermagem) ... O acompanhante liga para saber notícia (...) o funcionário atende e fala: não podemos dar informação agora, ligue mais tarde (...) a informação na UTI tem sido falha... (M, auxiliar de enfermagem) ... na UTI, por telefone, eu já observei que a gente acaba falando: o paciente está bem, está entubado, está consciente ou inconsciente, ou seja, é pouca informação para os familiares... (N, auxiliar de enfermagem).

Os relatos dos participantes revelaram que lidar com a família envolve duas ações importantes: fornecer a informação adequada e condizente com o nível de entendimento dos familiares e fazer a sua necessária preparação para que possam entrar na UTI e ver o seu ente querido em condições de extrema invasão corpórea, exigida para a sua recuperação.

A informação adequada e o preparo emocional da equipe para lidar com o sofrimento da família são estratégias imprescindíveis para que a equipe multiprofissional possa cuidar integralmente de seu cliente (paciente e família).

Observou-se que a atenção dispensada à família na UTI, é restrita ao horário de visita ou ao contato por telefone. A equipe, muitas vezes, fica alheia às condições emocionais dos familiares. Quando os visitantes entram na UTI, recebem a ordem para lavar as mãos, mas não é explicado a eles que esse procedimento permitir-lhes-á tocar o paciente, sem risco de contaminá-lo. Outro fato observado foi o de que não se informa previamente o estado do paciente aos familiares, os quais, normalmente, não estão preparados para ver o doente sedado e com tantos equipamentos. Conseqüentemente, os familiares, ao entrarem, ficam chocados com o cenário e saem desesperados e chorosos, sem receber, muitas vezes, uma explicação ou um consolo por parte da equipe multiprofissional.

Outra prática importante observada no local em estudo refere-se à inflexibilidade das normas e rotinas relacionadas com o horário de visitas. É permitida a entrada de apenas dois visitantes por dia, em um único horário, não havendo exceção nem mesmo nos finais de semana.

É necessário que os profissionais da UTI criem um bom relacionamento com a família, facilitando sua participação no tratamento do paciente. Além disso, é preciso que haja reformulação de algumas normas e rotinas, sobretudo daquelas que dizem respeito aos horários de visitas, ao tempo de permanência dos familiares junto ao paciente e ao modo como as informações são fornecidas.

Não é suficiente permitir a entrada da família na UTI. É necessário prepará-la e acompanhá-la durante a visita, identificando e esclarecendo suas dúvidas, observando as reações e comportamentos e, especialmente, compreendendo seus sentimentos. Os profissionais precisam reconhecer que, nesse momento, a família também está ansiosa e sente-se isolada, com medo da morte e sem controle da situação(18).

Na categoria cuidar em terapia intensiva - "a falta de recursos materiais e o difícil trabalho em equipe", foram agrupados os relatos dos profissionais sobre os aspectos referentes às dificuldades que interferem na atuação da equipe e na qualidade da assistência prestada em terapia intensiva.

Os depoimentos revelam a existência de uma equipe que necessita ser treinada e motivada para atuar em equipe, e mencionam, ainda, problemas relacionados à escassez de recursos materiais. Os profissionais entrevistados referiram-se à falta de recursos materiais como "um grande problema" e afirmaram que, muitas vezes, é preciso improvisar, e isso nem sempre traz benefícios ao paciente.

No período em que realizamos as observações, constatamos que, realmente, a UTI passava por um momento difícil em relação à falta de material, com evidentes prejuízos aos cuidados prestados aos clientes, conforme revelam os relatos: ... nesse momento está faltando tudo (...) não falo de aparelhos caros e sim de material básico, como gazes, sonda ... (B, auxiliar de enfermagem) ... a estrutura tem que mudar (...) falta equipamentos para agilizar o atendimento ... (C, enfermeira) ...existem dificuldades naturais da fundação hospitalar, que é a falta de material de trabalho (...) às vezes estamos usando omeprazol, no dia seguinte não tem omeprazol, só tem ranitidina (...) causa grande transtorno... (F, médico) ... a falta de materiais é um problema (...) sou especializado em determinado procedimento que beneficia o paciente, e a UTI não me permite realizar, falta estrutura ... (H, médico) ... a falta de material e equipamento é uma dificuldade (...) não tem tomógrafo, transferir o paciente grave para fazer exame dificulta o trabalho... (I, enfermeira) ...têm falhas por causa de medicamentos, aparelhagem relativamente moderna, sempre tem carências de equipamentos e recursos materiais... (L, médico).

Em geral, o processo de cuidar torna-se frustrante, sobretudo por causa das dificuldades decorrentes das condições de trabalho. O que se observa é que, ante a escassez de recursos materiais e humanos, os profissionais acabam fazendo o melhor que podem, mas isso culmina em prejuízo para a qualidade do cuidar(4).

Sabe-se que nem sempre é possível proporcionar o melhor atendimento. Uma boa estrutura de UTI envolve: pessoal em número suficiente e treinado para fornecer assistência específica e observação contínua, planta física elaborada com equipamentos especiais e manutenção constante e organização administrativa preocupada em manter padrões de assistência e programas de educação continuada(18).

Outro importante aspecto mencionado foi a dificuldade para se trabalhar em equipe: "não sabemos como agir". Os relatos revelaram que um dos principais fatores causadores de estresse para a equipe multiprofissional é a própria equipe. Esse fato é decorrente da falta de compromisso de alguns membros da equipe, o que interfere negativamente na qualidade da assistência prestada ao cliente: ... tenho dificuldades em lidar com os colegas (...) gostaria que fôssemos uma equipe unida que pensasse no paciente e nos colegas de trabalho... (D, auxiliar de enfermagem) ...a falta de atitude da maior parte da enfermagem (...) às vezes me faz sentir mal, me faz perder o entusiasmo(...) a falta de atitude seria o mesmo que afirmar que as pessoas não vestem a camisa (...) não estamos interessados em resolver como equipe... (F, médico) ...em relação à enfermagem, às vezes sinto um grande desencanto, posso afirmar que hoje só tem duas pessoas interessadas em resolver como equipe, a grande maioria não parece ter interesse... (F, médico) ...o pessoal não tem uma postura homogênea, alguns trabalham porque têm um contrato, cumprem as horas (...) isso prejudica a equipe... (H, médico) ...a chefia, não quer saber se você tem família ou problema (...)eu nunca tinha visto uma unidade funcionar como essa... (M, auxiliar de enfermagem) ... aqui temos dificuldades até para confiar no colega, isso nos estressa (...) não temos proteção nenhuma, nos estressamos, muitas vezes acabamos nos estranhando... (M, auxiliar de enfermagem).

O ambiente das UTIs é bastante estressante, e o grupo que atua nesse local requer cuidados, pois o resultado do trabalho depende da equipe como um todo.

Saber o que esperam do nosso trabalho é algo que diminui a ansiedade. Dessa forma, dizer o que esperamos de cada um da equipe, encorajar o profissional a ser responsável pelos próprios atos e deixar claro o impacto que esse trabalho tem para a equipe como um todo é essencial para uma assistência de qualidade(18).

Vale ressaltar que a maior parte dos integrantes da equipe da UTI analisada tem mais de um emprego. O ambiente da UTI é instável. Na maioria das vezes, os plantões transcorrem em um ambiente de agitação, o que exige atenção e cuidado rigoroso de todos os integrantes dessa equipe. As atividades são intensas, especialmente quando ocorre admissão de pacientes muito graves. Essa situação, de certa forma, dificultou as observações, pois, às vezes, as atividades eram tão intensas que sobrecarregavam os funcionários que eram obrigados a solicitar o auxílio da pesquisadora.

A análise desse quadro leva à conclusão de que a capacidade de relacionamento da equipe deve ser estimulada para que as boas relações possam acontecer, pois um dos maiores estressores enfrentados pelos funcionários é a falta de coleguismo e de compromisso da equipe de saúde. Portanto, é preciso que os líderes de equipe avaliem as atitudes de cada profissional, busquem o equilíbrio e atuem no sentido de coibir atitudes arrogantes e vaidosas. Convém destacar a importância de que insistam no diálogo construtivo, valorizem a honestidade e a amizade e exijam respeito mútuo. É preciso também motivar o grupo para a construção de uma equipe unida, harmoniosa e comprometida com a assistência de qualidade, possibilitando, assim, a melhoria da qualidade de vida do paciente, da família e da própria equipe(19).

CONCLUSÕES

A realização deste trabalho possibilitou a reflexão e a compreensão das dificuldades vivenciadas pela equipe multiprofissional que atua em um ambiente estressante, como a terapia intensiva. Observamos que a equipe multiprofissional enfrenta dificuldades relacionadas ao lidar com a morte e com a informação aos familiares, bem como as dificuldades relacionadas com a ausência de trabalho em equipe e com a falta de recursos materiais.

A situação de despreparo dos profissionais para lidar com a morte, considerada, nesta pesquisa, "a parte mais delicada" da prática profissional, é geradora de estresse, ansiedade e insegurança, e dificulta a atuação da equipe em relação ao apoio e ao conforto necessários aos familiares.

Constatou-se que o contato com os familiares é restrito ao horário de visita e às comunicações telefônicas. Em geral, a equipe não oferece suporte às necessidades emocionais da família, transformando a experiência de internação em UTI num processo negativo e frustrante.

Foi observado, também, que os profissionais enfrentam grandes problemas causados pelo fato de alguns membros não saberem atuar em equipe. Essa situação desencadeia o estresse e a frustração no grupo de trabalho. Alguns participantes relataram que se sentem desmotivados, e isso produz relações de trabalho inadequadas. Quanto à estrutura, os relatos dos profissionais apontam para a falta de recursos materiais, que dificulta e interfere na qualidade da assistência prestada ao paciente crítico.

Das considerações feitas até aqui, vale ressaltar a necessidade de que seja dada a necessária ênfase às relações humanas. Dessa forma, será possível a concretização de ações primordiais: assegurar a reintegração da equipe multiprofissional, possibilitar a discussão e a reflexão sobre os dilemas da prática profissional e viabilizar o desenvolvimento de mecanismos de adaptação que tornem a equipe apta para lidar com a morte e com a família, no contexto da terapia intensiva.

Recebido em: 6.10.2003

Aprovado em: 23.11.2004

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    Trabalho extraído da monografia de Conclusão do Curso de Enfermagem do Departamento de Enfermagem e Fisioterapia da Universidade Católica de Goiás
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      10 Jun 2005
    • Data do Fascículo
      Abr 2005

    Histórico

    • Aceito
      23 Nov 2004
    • Recebido
      06 Out 2003
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