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Violência física como prática educativa

Resumos

Estudo descritivo e correlacional, realizado em um hospital de ensino, em 2004, objetivando conhecer se, dentro do contexto de violência doméstica, os pais utilizam a violência física como prática educativa. Utilizou-se entrevista semi-estruturada para caracterizar a população, e situações do cotidiano familiar para identificar a atitude dos pais no processo de educação. Resultados: A situação de maior vulnerabilidade para o uso de violência física foi a de desobediência às ordens pré-determinadas (40%), seguida pela situação na qual a criança furta algo, com 31,7% dos casos. Foi significante (p= 0,020) o uso da violência física como prática disciplinadora, associado ao desemprego. Quarenta por cento da população afirma impor sua vontade sobre seu filho, e 57% ter apanhado de seus pais em situações de impor limites. Julga-se importante o conhecimento e a reflexão dos fatores que envolvem a violência doméstica, para alicerçar programas de prevenção e que sejam capazes de gerar uma consciência coletiva.

violência doméstica; maus-tratos infantis; enfermagem pediátrica


This descriptive and correlational study, carried out at a teaching hospital in 2004, aimed to get to know if, in the context of domestic violence, parents use physical violence as an educational practice. Semistructured interviews were used to characterize the population, and situations of daily family life to identify parents' attitude in the education process. Results: the most vulnerable situation to use physical punishment was disobedience to parents' predetermined orders (40%), followed by the situation when the child steals something (31.7%). The use of physical violence as a disciplinary practice was significant (p=0.020), associated with unemployment. Forty percent of the population reported they imposed their will on their child, and 57% mentioned they had been physically punished by their parents in limit-imposing situations. Knowledge and reflection on factors involving domestic violence are very important to consolidate prevention programs and which could generate a collective consciousness.

domestic violence; child abuse; pediatric nursing


Estudio descriptivo y correlacional realizado en un hospital de enseñanza, en 2004, con el objetivo de conocer, si dentro del contexto de violencia doméstica, los padres utilizan la violencia física como práctica educativa. Se utilizó una entrevista semi-estructurada para caracterizar la población y situaciones del cotidiano familiar para identificar la actitud de los padres en el proceso de educación. Resultados: la situación donde hubo gran vulnerabilidad para el uso de la violencia física fue la de desobediencia a órdenes preestablecidas (40%), acompañada por la situación donde el niño hurta cualquier cosa, con el 31.7% de los casos. Fue significante (p= 0.020) el uso de la violencia física como práctica disciplinadora, asociada al desempleo. El 40% de la población afirmó imponer su voluntad sobre el hijo, y el 57% de haber sido físicamente punido por sus padres en situaciones para imponer límites. Es importante el conocimiento y la reflexión sobre los factores involucrados en la violencia doméstica, para consolidar programas de prevención que sean capaces de generar una conciencia colectiva.

violencia doméstica; maltrato a los niños; enfermería pediátrica


ARTIGO ORIGINAL

Violência física como prática educativa1 1 Pesquisa financiada pelo Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico - CNPq - 2003-2004

Carolina Jacomini do CarmoI; Maria de Jesus C. S. HaradaII

IAluna do 4º ano de Graduação em Enfermagem, bolsista de Iniciação Científica do CNPq, e-mail: carol_epm@yahoo.com.br

IIEnfermeira, Doutor em Enfermagem, Professor Adjunto, e-mail: jjharada@uol.com.br. Escola Paulista de Medicina da Universidade Federal de São Paulo

RESUMO

Estudo descritivo e correlacional, realizado em um hospital de ensino, em 2004, objetivando conhecer se, dentro do contexto de violência doméstica, os pais utilizam a violência física como prática educativa. Utilizou-se entrevista semi-estruturada para caracterizar a população, e situações do cotidiano familiar para identificar a atitude dos pais no processo de educação. Resultados: A situação de maior vulnerabilidade para o uso de violência física foi a de desobediência às ordens pré-determinadas (40%), seguida pela situação na qual a criança furta algo, com 31,7% dos casos. Foi significante (p= 0,020) o uso da violência física como prática disciplinadora, associado ao desemprego. Quarenta por cento da população afirma impor sua vontade sobre seu filho, e 57% ter apanhado de seus pais em situações de impor limites. Julga-se importante o conhecimento e a reflexão dos fatores que envolvem a violência doméstica, para alicerçar programas de prevenção e que sejam capazes de gerar uma consciência coletiva.

Descritores: violência doméstica; maus-tratos infantis; enfermagem pediátrica

INTRODUÇÃO

A violência contra criança e adolescente sempre existiu, não se tratando, portanto, de um fenômeno recente, presente apenas no mundo contemporâneo. É fato que, em determinadas comunidades, os maus-tratos infantis eram aceitos de forma declarada ou velada, chegando, em algumas situações, ao filicídio, elevando as taxas de mortalidade infantil(1).

Atualmente, as violências e os acidentes constituem-se na segunda causa de óbitos no quadro da mortalidade geral brasileira(2). A gravidade desse problema atinge toda a infância e adolescência, e suas conseqüências deixam marcas em seus corpos e mentes por toda a vida.

Entre os atos de violência mais freqüentes, os que ocorrem no ambiente doméstico são os que produzem maior gravidade, podendo levar crianças ao óbito, infelizmente não raro. Existe um consenso de que essas são devastadoras, atingindo não só a vida da criança na degradação emocional e física, mas também a família e sociedade(3-4).

Em nosso país, a violência doméstica começou a ser discutida com maior ênfase a partir da década de 80, quando o "pacto do silêncio" que gira em torno desaa questão começou a dar indícios de fragilidade, da mesma forma que o poder absoluto sobre o destino da criança pelos pais, exercido até então, sofreu um abalo. Dos fatores que contribuíram para o desencadeamento desse processo, o avanço da legislação brasileira no campo dos direitos da criança e do adolescente e a divulgação pela imprensa escrita, televisiva e falada foram alguns dos mecanismos que possibilitaram trazer essa problemática para o cerne de discussão em nossa sociedade(5).

Observa-se, ainda, que houve um grande incremento de produção científica na área de violência contra crianças e adolescentes com diferentes abordagens, concentrando-se grande parte dessas publicações principalmente na segunda metade da década de noventa, o que parece traduzir a grande influência do Estatuto da Criança e Adolescente, promulgado em 1990(6).

A complexidade para o entendimento sobre as diferentes causas da violência, sejam elas política, econômica, cultural, religiosa, étnica, de gênero, etária, dentre outras, torna o seu enfrentamento um grande desafio, exigindo como parte do processo, esforços de pesquisa para melhor compreensão e explicação do problema em situações concretas.

A violência doméstica neste contexto é conceituada como "todo ato ou omissão praticado por pais, parentes ou responsáveis pela criança/adolescente que sendo capaz de causar dano físico, sexual, psicológico à vitima - implica de um lado, uma coisificação da infância, isto é, uma negação do direito que crianças e adolescentes têm de serem tratados como sujeitos e pessoas em condição peculiar de desenvolvimento"(7) .

Dentro desse contexto amplo e complexo da violência doméstica, um dos aspectos que nos parece importante ser estudado se refere ao uso da violência física.

Muitos estudos indicam que a violência física começa no "tapinha", depois, a intensidade vai se agravando, e a forma se diversificando. É importante que pais e educadores acreditem que "é possível impor limites sem recorrer à violência", ou ainda, que "bater não é uma forma de comunicação", como refere o Laboratório de Estudos da Criança e Adolescente (LACRI), ressaltando que a indiferença paterna pode ser igualmente danosa à criança(8).

Estudos desenvolvidos em outros países demonstraram que a prática da violência física é creditada pelos pais como um método para ser utilizado na correção de mau comportamento, como forma de impor limites, ou ainda, como maneira de garantir o poder absoluto sobre a atitude de seus filhos. No Chile, 80% dos pais de alunos de escolas estaduais e 57% dos pais de alunos de escolas privadas admitem usar a violência física. Na Índia, 91% dos homens e 86% das mulheres que estudam em Universidades foram violentados fisicamente na sua infância. No Kwait, 86% dos pais atendidos em clínicas de cuidados primários afirmam acreditar que a violência física é um método para disciplinar criança. A Associação Protetora das Crianças, na Coréia, realizou um estudo em que mostrou que 97% das crianças são violentadas fisicamente e muito severamente. Na Inglaterra, 75% dos pais admitem bater em seus filhos menores de um ano, e 35% das crianças envolvidas nesse estudo apanharam uma vez por semana ou mais freqüentemente, de um ou ambos os pais. Em outros países, como Egito, Estados Unidos da América e Hong Kong, também são percebidas atitudes semelhantes(9).

Dessa forma, pode-se perceber que, atualmente, no mundo, o tema violência desperta uma grande preocupação em razão de suas implicações sociais. A pesquisa, por não estar desvinculada da prática, também deve enfocar estudos que possibilitem aprender quais as causas dessa violência e indiquem estratégias para seu enfrentamento. Contudo, o que se observa na prática é a distância entre a aplicabilidade das intervenções propostas e a diminuição dos índices de morbimortalidade atuais.

Na tentativa de melhor entender essas atitudes, associadas à preocupação de contribuir para minimizar esses acontecimentos, desencadeia-se a seguinte indagação: de que forma o profissional da saúde, em especial o enfermeiro, poderia contribuir para o desenvolvimento de estratégias visando reduzir a violência física contra a criança e o adolescente?

Assente-se que o Setor Saúde não pode se manter alheio a essa problemática, sendo justificável a participação dos profissionais desse segmento da sociedade no desenvolvimento e participação ativa no processo de enfrentamento coletivo contra a violência. Além disso, como membro da população Universitária, temos o dever de assumir um compromisso social com essas crianças, uma vez que somos também responsáveis pela construção, renovação e disponibilização de conhecimento que possam subsidiar condutas de respeito, dignidade e afeto(10).

É nessa premissa que este estudo está pautado. Esta investigação tem por objetivo conhecer, numa determinada população de pais e responsáveis por crianças, assistidas em um hospital de ensino, se estes utilizam a violência física como parte da educação de seus filhos, como também em que situações elas ocorrem mais freqüentemente. Posteriormente, pretende-se dar retorno, por meio de programas educativos.

Utilizar-se-á, para esta investigação, o conceito de violência física como "todo ato violento com o uso da força física, de forma intencional, não acidental, praticada por pais ou responsáveis, familiares ou pessoas próximas da criança ou do adolescente, com o objetivo de ferir, lesar ou destruir a vítima, deixando ou não marcas evidentes em seu corpo"(2).

METODOLOGIA

Estudo descritivo e correlacional, realizado em um hospital de ensino, de nível secundário, de média complexidade, situado à zona norte do município de São Paulo, que atende uma população estimada em 240.000 habitantes, e se destina ao treinamento dos alunos de graduação dos cursos de enfermagem e medicina.

Para delimitação do tamanho da população deste estudo, foi consultado um profissional especialista em estatística, a fim de se estimar o número adequado que possibilitasse a análise dos dados. Decidiu-se por um número em torno de 100 entrevistas com os pais ou responsáveis por crianças internadas nas unidades pediátricas, pois, com esse número, poder-se-ia realizar tratamento dos dados, sem prejuízo da análise, considerando-se o número de variáveis do estudo. Não foi possível realizar cálculo amostral, devido à ausência de dados anteriores na população envolvida, à luz dessa investigação.

A coleta de dados foi realizada no período de agosto de 2003 a janeiro de 2004, após aprovação pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Instituição, parecer nº 0345/03.

Para tanto, foi utilizado um instrumento, do tipo formulário, subdividido em três etapas. A primeira, com identificação dos pais ou responsável, contendo dados sobre sexo, idade, escolaridade, situação empregatícia, estado civil, consumo de álcool ou drogas. A segunda, dados sobre a família: número de filhos, rendimento familiar, reação emocional quanto à gestação, socialização da criança e a forma como, o entrevistado foi educado por seus pais na resolução de problemas. A terceira etapa foi composta pela construção de seis situações do cotidiano familiar, no intuito de avaliar, por meio das respostas obtidas, quais seriam as situações de maior vulnerabilidade para os pais utilizarem a violência física. Destaca-se que, nessa parte da investigação, utilizou-se um gravador a fim de obter maior fidedignidade nas análises das situações propostas, ressaltando-se que esse recurso foi utilizado após consentimento escrito dos participantes.

A análise dos dados foi realizada com base na natureza das variáveis investigadas, apresentando-se as variáveis categóricas, segundo freqüência absoluta, relativa e numérica, segundo média, mediana e desvio padrão, e correlações quando aplicados.

As entrevistas gravadas tiveram as respostas tabuladas em duas categorias: 1) o uso de violência física; 2) não uso de violência física, tendo como base as respostas dos entrevistados em seis situações propostas, independente de terem vivenciado na pratica ou não cada uma dessas situações. As situações foram:

A. Você arrumou toda a casa. Lavou e passou toda a roupa. Depois de um dia muito cansativo, todos vão dormir. No meio da noite seu filho vai chamar você porque fez xixi na cama. O que você faria?

B. O diretor da escola onde seu filho estuda chama você para uma reunião. Nessa reunião, ele diz que seu filho está brigando na escola. O que você faria?

C. Você e seu filho estavam andando na rua e na calçada tem um cachorro dormindo. Ao se aproximar, seu filho pega um pedaço de pau e bate no cachorro. O que você faria?

D. Do lado da sua casa tem uma vendinha de doces (bala, pirulito, sorvete). Um dia você pára pra conversar com a dona que é sua amiga, e seu filho aproveita para roubar um doce. Você percebe que ele está roubando o doce. O que você faria?

E. lactente: seu filho começou a engatinhar. Você se distrai por um tempo e seu filho sai pela casa. De repente você ouve um barulho na cozinha e corre para ver o que aconteceu. Quando chega, percebe que seu filho puxou a toalha da mesa e quebrou a vaso de que você mais gostava. O que você faria?

F. Pré-escolar e escolar: Você ganha um vaso e seu filho pede para ver, mas você não deixa porque acha que ele vai quebrar. Momentos depois seu filho vai mexer no vaso escondido e quebra. O que você faria?

O formulário foi previamente testado com dez entrevistados, antes da implementação da coleta de dados, e incorporaram-se as alterações que se fizeram necessárias.

RESULTADOS

A população do estudo caracterizou-se, na sua maioria por mulheres, representando 86% do total investigado. A mediana da idade dos participantes foi de 26 anos de idade. Com relação à escolaridade, 47% possui ensino fundamental incompleto, seguido de 24% com ensino fundamental completo, 21% com ensino médio completo, 4% com ensino médio incompleto, 2% com ensino superior incompleto e 2% não são alfabetizados. Quanto à situação empregatícia, 69% dos entrevistados estavam desempregados no momento da coleta de dados - considerou-se empregado aquele indivíduo que trabalhava com carteira assinada. A situação conjugal que apareceu com maior freqüência foi a união consensual, com 44% dos participantes, com uma média de 2,5 filhos por família. No que diz respeito ao rendimento familiar, a mediana foi de dois salários mínimos, com uma renda per capita de R$ 96,00. Ressalta-se que o valor do salário mínimo utilizado se refere ao do mês anterior à realização da entrevista, correspondente a R$ 240,00 (Tabela 1).

Uma pequena porcentagem da população investigada, no momento da realização da pesquisa, referiu fazer uso de álcool (14%). Desses, segundo o padrão de consumo de álcool aceitável pela Organização Mundial da Saúde - OMS, somente uma foi considerada dependente. Não houve relato de uso de drogas ilícitas.

Com relação à atitude dos pais ou responsáveis, quanto a impor sua vontade sobre seu filho, 40% dos pais afirmam ter essa atitude, e 60%, não. A maioria (89%) relatou deixar seu filho brincar com outras crianças, e, na mesma proporção, os incentivam a ter amigos.

No que diz respeito a atitudes adotadas pelos pais dos entrevistados para resoluções de problemas do cotidiano familiar, os participantes responderam que 57% dos pais batiam, 19% somente conversavam, 15% castigavam, 7% utilizavam a repreensão verbal, por meio de gritos, palavras inadequadas, e 2%, outras formas (Figura 1).


Por meio das situações propostas para realização dessa investigação, que tinha como principal propósito conhecer as reações dos pais ou responsáveis, frente à tentativa de regular o comportamento de seus filhos no cotidiano familiar, constatou-se que 40% utilizariam a violência física nas situações propostas, e outros 43%, utilizam ou utilizariam outras formas de violência (privações materiais ou de lazer, ameaças verbais, humilhações, dentre outras) como "prática educativa".

Ainda com relação às situações propostas, resolveu-se analisar separadamente somente os casos em que se utilizou ou utilizar-se-ia a violência física. Na situação A, não foi utilizada violência física por nenhum dos participantes. Por sua vez, a situação F foi a de maior vulnerabilidade para a utilização da violência física, seguida pela situação D, em que foi verificado o uso desta prática por 31,7% dos pais, no processo de educação de seus filhos. A situação C representou 16,7% de uso da violência física pelos pais com seus filhos. Com relação à situação E, a reação dos pais frente a essa situação seria de usar a violência física em 8,3% desses casos. Já a situação B utilizaria em 3,3% a violência física contra a criança.

Foi encontrada diferença significante (p = 0,020) entre a situação empregatícia dos pais e o uso de violência física. Destaca-se que, no grupo que utilizou ou utilizaria violência em pelo menos uma das situações apresentadas, 81% estavam desempregados.

A análise de associação entre a idade dos pais e o uso da violência física nos permitiu verificar que não houve diferença estatisticamente significante, nas situações C (p = 0,713), E (p = 0,163) e F (p = 0,257). Porém, na situação D (p = 0,017), houve associação positiva, na qual a média de idade dos pais que utilizaram violência física foi significantemente menor do que a média de idade dos pais que não utilizaram.

Com relação à escolaridade dos pais e o uso de violência física, não foi encontrada diferença estatisticamente significante nas situações C (p = 0,956), D (p = 0,290), E (p = 0,734) e F (p = 0,910), como também em relação ao estado civil dos pais e utilização da violência física nas situações C (p = 0,506), D (p = 0,688), E (p = 0,814) e F (p = 0,832).

Os resultados revelaram, ainda, que não houve associação positiva entre o número de filhos do casal e o uso da violência física nas situações C (p = 0,713), D (p = 0,571), E (p = 0,156) e F (p = 0,402).

Não foi possível aplicar teste estatístico para verificar associação entre a situação B e os demais parâmetros acima descritos, visto que apenas dois pais responderam de forma afirmativa que utilizam a violência física.

DISCUSSÃO

No setor da saúde, um fator que tem contribuído para o distanciamento entre teoria e a prática de enfrentamento da violência contra criança e o adolescente, é a forma como a violência é interpretada pelos profissionais dessa área, sendo ainda visto como um problema essencialmente político, ou seja, um problema cuja resolução depende de órgãos públicos como Conselho Tutelar e Vara da Infância e da Juventude. Conseqüentemente, as ações de enfrentamento ficam restritas ao atendimento dos danos físicos causados por essas ações. Embora se considerem essas ações importantes, existe a necessidade de um maior aprofundamento nessas questões que envolvem a temática.

No caso particular da violência física contra a criança e adolescente, essa visão está associada a uma aceitação cultural, presente em todas as classes sociais, em que o uso da violência física é percebida como um método eficaz para regular o comportamento dos filhos.

Os dados apontam para a importância da atuação dos profissionais de saúde quanto ao esclarecimento de pais e responsáveis sobre adoção de formas não violentas de educação de crianças e adolescentes como ações de educação em saúde. É necessário, por exemplo, que esses pais sejam esclarecidos de que dizer "não" para seus filhos, em determinada situação, é importante para impor limites e para que as crianças constatem que são amadas. Entretanto, se as imposições forem desnecessárias, apenas como demonstração de poder, a criança poderá tornar-se revoltada em razão de que lhe seja negado saber o motivo da proibição.

Alguns pais relatam que, ao proibirem que seus filhos brinquem com outras crianças, os estavam afastando de más companhias e da violência urbana. Esse mesmo motivo foi relatado em estudo sobre representações sociais da agressão física familiar contra crianças e adolescentes, em uma população com características semelhantes(5). Assim, os pais entendem essa proibição como uma forma de proteção a seus filhos, dados os altos índices de criminalidade vigentes na comunidade onde vivem.

No que se refere ao uso de violência física pelos pais dos entrevistados, como uma prática disciplinadora, os dados confirmam os achados da literatura, os quais indicam que vivências anteriores são um importante componente na continuidade do ciclo de violência(4). Interromper esse ciclo é um desafio atual para sociedade.

Nesse sentido, é imprescindível que profissionais da saúde desenvolvam trabalhos educativos e de caráter coletivo, iniciando-se com medidas de identificação da população de risco, e, posteriormente, com encaminhamento para serviços especializados para esse tipo de atendimento e ou acompanhamento familiar.

Neste estudo, foram identificados, ainda, fatores de risco para a prática da violência doméstica, como: baixo nível socioeconômico, pais jovens, pais separados, baixo nível de educação dos genitores, gestações não planejadas e não desejadas, desemprego, entre outros(11). Ressalta-se que, esses fatores não são determinantes, mas favorecem o desencadeamento do ato.

Contudo, houve associação positiva dessas características, com uso da violência física e da variável situação empregatícia (p= 0,020). Acredita-se que o desemprego esteja vinculado ao estresse gerado nessas situações pela instabilidade financeira, a cobrança familiar que, associada ao fato de ficarem mais tempo em contato com a criança, vivenciam, com mais freqüência, situações de vulnerabilidade.

Com relação à idade dos participantes e o uso da violência física, não houve associação significante, contudo, acredita-se que as mães jovens acabam utilizando essa prática com freqüência, ao culparem a criança por tirar sua liberdade, pelas novas responsabilidades e ainda pela cobrança da família(11).

Outro fator de risco que merece ser discutido é a relação entre as gestações não desejadas ou não planejadas e o uso do castigo físico. Neste estudo, não houve associação positiva entre estas variáveis. Porém, apesar de não significante, esse fato é importante no sentido de que o profissional da saúde deve iniciar a intervenção já durante o período gestacional. Nesse aspecto, destaca-se a participação do enfermeiro no processo de implementação e desenvolvimento em programas que favoreça o vínculo da criança com a família, em atividades durante o pré-natal, alojamento conjunto e durante a prática de mãe canguru e de pais participantes(10).

No que diz respeito às outras situações abordadas neste estudo, destaca-se que todos os pais ou responsáveis entrevistados negaram o uso da violência física quando a criança ainda não tem total controle de esfíncter vesical (situação A), mostrando que há, na população estudada, conhecimento sobre essa peculiaridade do desenvolvimento da criança.

Entretanto, uma grande parte mostrou despreparo para lidar com a situação de desobediência às ordens pré-determinadas (situação F). Estudos mostram que, no cotidiano, os pais tentam direcionar o comportamento de seus filhos no sentido de seguir certos princípios morais da comunidade na qual estão inseridos. Por outro lado, também se esforçam para suprimir ou reduzir comportamentos que considerem inadequados. Muitas vezes, o uso dessa prática pode agravar um padrão inadequado de comportamento da criança, pois talvez esse comportamento seja o único modo de conseguir a atenção dos pais. Alguns autores dividem as estratégias utilizadas pelos pais em duas categorias: estratégias indutivas e estratégias de força coercitiva(12).

O uso do castigo físico seria considerado uma estratégia coercitiva. E, segundo esses autores, essa prática soluciona o problema a curto prazo, visto que a criança irá controlar suas atitudes mediante as punições de seus pais. Essas situações, também, podem produzir sentimentos como raiva, medo, ansiedade, que podem diminuir a compreensão das situações. Outros estudos citados por esses autores demonstram que essa prática pode gerar problemas como comportamentos agressivos, hiperatividade, comportamento delinqüente, entre outros.

Quando a criança inicia o processo de entendimento, o diálogo deve ser usado para esclarecer sobre o que é permitido ou não, ou seja, deve-se procurar com que a criança reflita sobre suas atitudes. Desse modo, ela conseguirá adquirir o entendimento da dinâmica social na qual está inserida(13).

A segunda situação de maior vulnerabilidade para o uso da violência física foi relacionada ao furto (situação D), havendo uma associação positiva com pais ou responsáveis com idade inferior a 24 anos. Eles referiram acreditar que, dessa forma, estariam evitando que seus filhos se transformassem em jovens infratores, afirmando, ainda, que sentiriam vergonha na situação exposta,, como pode ser verificado na fala: "Nossa, que vergonha, hein! O que eu faria? Eu teria que falar com o dono do doce, paga o doce e quando chegasse em casa batia nele".

Sabe-se que, na infância, a criança ainda não entende o significado de atos como o furto e pode praticá-lo por diversos motivos, dentre eles, para suprir sua necessidade de afeto, chamar atenção para si, mostrar-se mais audaciosa que seus colegas (mostrar que é capaz), confusão entre "achados" e "roubados", ou para imitar comportamentos observados dentro de casa e/ou de pessoas próximas(14). Assim, os profissionais que cuidam de crianças devem ficar atentos quanto à necessidade de explicar aos pais, essas atitudes, a fim de que eles entendam a necessidade de dialogar com seus filhos, buscando compreender o que desencadeou tal comportamento.

Com relação à situação C, na qual a criança maltrata um animal, observou-se que 16,7% das crianças seriam punidas pelos seus genitores. Segundo alguns estudos, crianças que praticam a violência contra animais domésticos, quando adultas, apresentam maior propensão para cometer atos violentos contra seres humanos(15). Assim, é nossa percepção que os pais estão corretos quanto à intenção de impedir a criança, ou ainda, de mostrar que ela está errada ao agredir o animal, porém discorda-se com a forma como esse assunto está sendo trabalhado entre pais e filhos.

Quanto à situação E, acredita-se que o fato de os pais praticarem violência física poderia ser evitado se estes fossem orientados a deixar o ambiente físico mais seguro para que as crianças desenvolvessem atividades próprias de sua idade, como explorar o espaço onde vivem, não se esquecendo da importância da supervisão durante as atividades diárias da criança frente à prevenção de injúrias não intencionais.

Uma pequena porcentagem de pais referiu usar violência física contra seu filho, quando este tem mau comportamento na escola (situação B). É importante ressaltar que a forma de abordagem dessa situação gerou dúvidas para os pais quanto ao fato de haver ou não a participação de seus filhos nos conflitos do ambiente escolar, que justificassem a convocação de comparecimento à escola. As respostas obtidas devem ser entendidas com ressalvas, pois a maioria dos entrevistados referiu ir à escola para saber o que havia acontecido e, após, tomariam as providências, como exemplificado na fala: Ia investigar se é verdade ou não. Saber o que está acontecendo com meu filho e com quem ele está brigando. Vô investigar. Não vô tomá nenhuma atitude sem investigá..

Diante dos resultados encontrados, julga-se imprescindível a participação dos profissionais de saúde, no enfrentamento contra a violência infantil, iniciando-se com uma reflexão mais ampla dos fatores que envolvem esse fenômeno. Concorda-se com a premissa, "a prevenção requer um exercício de muita paciência, perseverança e, sobretudo, a colaboração e integração dos profissionais de diferentes áreas e da comunidade"(4). Assim, o enfermeiro como elemento da equipe de saúde, não pode ficar alheio a essa problemática. Deve contribuir principalmente no campo da prevenção, por meio de atividades que promovam a educação, tendo como foco central o incentivo de atitudes de responsabilidades nas relações afetivas e familiares, bem como reflexões sobre crenças, tabus e valores culturais que envolvem as relações de poder entre pais e filhos. Essa prática que pode e deve ser desenvolvida no cotidiano da prática assistencial em creches, hospitais, postos de saúde e escolas, no mesmo grau de importância que outras ações de enfermagem durante o processo de cuidar.

CONCLUSÕES

- 40% dos pais afirmam impor sua vontade sobre seu filho;

- a maioria (89%) dos pais/responsáveis relatou que deixaria seu filho brincar com outras crianças e, na mesma proporção, eles os incentivam a ter amigos;

- 57% dos entrevistados revelaram que foram vítima de violência física praticada por seus pais;

- não houve associação positiva entre sexo, idade, escolaridade, número de filhos, estado civil e rendimento familiar e a prática de castigo, violência física;

- foi significante (p= 0,020) o uso da violência física como prática disciplinadora, com relação ao desemprego;

- a situação de maior vulnerabilidade para o uso do castigo ou violência física como prática educativa foi a situação de desobediência às ordens predeterminadas (40%), seguida pela situação na qual a criança furta algo, com 31,7% dos casos, a situação de maus-tratos contra animais domésticos representou 16,7%, e a situação referente à criança explorando o ambiente com quebra de um objeto de estimação contribuiu com 8,3% dos casos e a situação de mau comportamento no ambiente escolar aparece em 3,3% dos relatos.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Na avaliação das pesquisadoras constatou-se que, na categoria de não uso de violência física durante as tabulações das respostas, alguns dos entrevistados referiram o uso de outros tipos de violência, como, por exemplo, a violência psicológica, que não fora aprofundada neste estudo, visto que não se adequava ao objetivo inicialmente proposto. São pontos que serão retomados e estudados posteriormente para melhor elucidação.

Apesar dos resultados obtidos pelo estudo, alguns aspectos serão retomados futuramente, para uma melhor elucidação, tais como: a pesquisa se limitou a algumas situações do cotidiano e, por isso, não é possível afirmar que os pais usariam as mesmas práticas disciplinadoras em outras situações; esclarecimentos quanto à possibilidade que existe de os pais não fornecerem informações muito precisas e confiáveis, por meio de entrevistas, principalmente quando é abordada a relação entre pais e seus filhos; e; se os pais têm medo de fornecer algumas informações a pessoas que trabalham diretamente com crianças, principalmente quando a Instituição é conhecida pela prática de notificação de casos de violência, como é o caso da Instituição na qual foi realizada a pesquisa.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRAFICAS

Recebido em: 24.5.2005

Aprovado em: 3.8.2006

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    Pesquisa financiada pelo Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico - CNPq - 2003-2004
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      09 Fev 2007
    • Data do Fascículo
      Dez 2006

    Histórico

    • Aceito
      03 Ago 2006
    • Recebido
      24 Maio 2005
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