Acessibilidade / Reportar erro

Trajetória profissional das enfermeiras obstétricas egressas da Escola de Enfermagem da Universidade de São Paulo: um enfoque da fenomenologia social

Professional trajectory of obstetric nurses from the University of São Paulo College of Nursing: a focus on social phenomenology

Trayectoria profesional de las enfermeras obstetras egresas de la Escuela de Enfermería de la Universidad de São Paulo: un enfoque de la fenomenología social

Resumos

Este estudo objetivou compreender a experiência vivida pelas ex- alunas dos cursos de habilitação ou de especialização em Enfermagem obstétrica da EEUSP. Os dados foram coletadas por meio de entrevistas realizadas com ex-alunos, com trajetórias distintas, depois da sua formação. A proposta de investigação foi fundamentada no referencial teórico metodológico da Sociologia Fenomenológica, de Alfred Schutz, considerando-se que as pessoas expressam, em suas ações socialmente vividas, os significados dessas vivências. Os resultados apontaram para dois tipos sociais: aquelas que continuam na área, porque gostam do que fazem, acreditam na enfermagem obstétrica, sentem-se realizadas, e aquelas que não atuam na área porque se decepcionaram, sentem-se frustradas, com falta de autonomia profissional. Os motivos alegados para deixarem de atuar na área sugerem pontos importantíssimos para serem repensados por aquelas que estão exercendo a profissão, pelas entidades de classe e pelos responsáveis pela formação desses profissionais.

enfermagem obstétrica; satisfação no trabalho


This study aimed at understanding the experiences of students that were enrolled in the Obstetric Nursing Program offered by the University of São Paulo College of Nursing. Data were collected through interviews with the former students, who had different life histories after their graduation. The proposal of this research was based on Alfred Schutz' Social Phenomenology framework, considering that people express, in their actions socially experienced, the meaning of these experiences. Results showed two social types: the ones who continue in the area because they like what they do and the ones who do not work in the area as they were disappointed with the lack of professional autonomy. The reasons mentioned offer important guidelines that must be analyzed by the ones who are still working in the area, by the class associations and the ones who are responsible for the capacitation of these professionals.

obstetric nursing; job satisfaction


El estudio tubo como objetivo comprender la experiencia vivida por las enfermeras obstetras egresadas de la Escuela de Enfermería de la Universidad de São Paulo, Brasil. La investigación se fundamentó en el referencial teórico- medotodológico de la fenomenología social de Alfred Shutz. Los datos fueron recolectados por medio de entrevistas con exalumnos que tuvieron diferentes trayectorias profesionales después de su formación. Los resultados mostraron dos tipos sociales: aquellas que continúan en el área por les gusta lo que hacen, creen en la enfermería obstetrica y se sienten realizadas, y aquellas que abaldonaron el área porque se decepcionaron, se sienten frustradas, con falta de autonomía profesional, Los motivos alegados para dejar de actuar en el área sugieren puntos importantes para la reflexión por parte de aquellas que están ejerciendo la profesión, los dirigentes de las organizaciones profesionales y de los responsables por la formación de estos profesionales.

enfermería obstétrica; satisfacción en el trabajo


ARTIGO ORIGINAL

Trajetória profissional das enfermeiras obstétricas egressas da Escola de Enfermagem da Universidade de São Paulo: um enfoque da fenomenologia social

Professional trajectory of obstetric nurses from the University of São Paulo College of Nursing: a focus on social phenomenology

Trayectoria profesional de las enfermeras obstetras egresas de la Escuela de Enfermería de la Universidad de São Paulo: un enfoque de la fenomenología social

Miriam Aparecida Barbosa Merighi

Doutor em Enfermagem. Professor Associado da Escola de Enfermagem da Universidade de São Paulo, e-mail: lesami@ig.com.br

RESUMO

Este estudo objetivou compreender a experiência vivida pelas ex- alunas dos cursos de habilitação ou de especialização em Enfermagem obstétrica da EEUSP. Os dados foram coletadas por meio de entrevistas realizadas com ex-alunos, com trajetórias distintas, depois da sua formação. A proposta de investigação foi fundamentada no referencial teórico metodológico da Sociologia Fenomenológica, de Alfred Schutz, considerando-se que as pessoas expressam, em suas ações socialmente vividas, os significados dessas vivências. Os resultados apontaram para dois tipos sociais: aquelas que continuam na área, porque gostam do que fazem, acreditam na enfermagem obstétrica, sentem-se realizadas, e aquelas que não atuam na área porque se decepcionaram, sentem-se frustradas, com falta de autonomia profissional. Os motivos alegados para deixarem de atuar na área sugerem pontos importantíssimos para serem repensados por aquelas que estão exercendo a profissão, pelas entidades de classe e pelos responsáveis pela formação desses profissionais.

Descritores: enfermagem obstétrica, satisfação no trabalho

ABSTRACT

This study aimed at understanding the experiences of students that were enrolled in the Obstetric Nursing Program offered by the University of São Paulo College of Nursing. Data were collected through interviews with the former students, who had different life histories after their graduation. The proposal of this research was based on Alfred Schutz' Social Phenomenology framework, considering that people express, in their actions socially experienced, the meaning of these experiences. Results showed two social types: the ones who continue in the area because they like what they do and the ones who do not work in the area as they were disappointed with the lack of professional autonomy. The reasons mentioned offer important guidelines that must be analyzed by the ones who are still working in the area, by the class associations and the ones who are responsible for the capacitation of these professionals.

Descriptors: obstetric nursing, job satisfaction

RESUMEN

El estudio tubo como objetivo comprender la experiencia vivida por las enfermeras obstetras egresadas de la Escuela de Enfermería de la Universidad de São Paulo, Brasil. La investigación se fundamentó en el referencial teórico- medotodológico de la fenomenología social de Alfred Shutz. Los datos fueron recolectados por medio de entrevistas con exalumnos que tuvieron diferentes trayectorias profesionales después de su formación. Los resultados mostraron dos tipos sociales: aquellas que continúan en el área por les gusta lo que hacen, creen en la enfermería obstetrica y se sienten realizadas, y aquellas que abaldonaron el área porque se decepcionaron, se sienten frustradas, con falta de autonomía profesional, Los motivos alegados para dejar de actuar en el área sugieren puntos importantes para la reflexión por parte de aquellas que están ejerciendo la profesión, los dirigentes de las organizaciones profesionales y de los responsables por la formación de estos profesionales.

Descriptores: enfermería obstétrica, satisfacción en el trabajo

INTRODUÇÃO

A progressiva hospitalização para assistência ao parto, a incorporação crescente da tecnologia e a elevação das taxas de cesarianas produziram um impacto negativo sobre as oportunidades de capacitação e atuação da enfermeira obstétrica no parto.

Ultimamente, nas discussões organizadas pela Secretaria de Estado da Saúde de São Paulo, relacionadas ao índice de cesárea* * O Estado vem apresentando nos últimos 4 anos, uma média de 50,3% de nascimentos por cesárea sendo que no Brasil ocorreram 40,5% de nascimentos por cesárea (1) e à qualidade de atenção ao nascimento e parto, tem sido ressaltada a necessidade da participação de profissionais não-médicos no atendimento à gestante e parturiente, inclusive na realização do parto. A assistência obstétrica, tal como está organizada, delega ao médico a responsabilidade de realizar os partos, e ele, por sua vez, não tem disponibilidade para acompanhar o trabalho de parto, que dura, em média, 10 a 12 horas, sendo que a cesárea, com horário marcado, é a solução encontrada por esse profissional.

Visando à redução do índice de morbimortalidade materna e perinatal, em maio de 1998, o Ministro da Saúde, José Serra, assinou a Portaria nº 2815, de 29/5/98, que considera a importância do acompanhamento do trabalho de parto, o pagamento e treinamento de enfermeiras obstétricas para realizar partos normais em hospitais e em domicílio(2). Essa portaria despertou várias polêmicas por parte dos conselhos regionais e sociedades médicas de Ginecologia e Obstetrícia, os quais se posicionaram veementemente contra a decisão do Ministério da Saúde. Por outro lado, a classe das enfermeiras obstétricas tem-se mostrado revoltada e indignada com a postura das entidades médicas.

Atualmente, a mídia está valorizando a profissional "enfermeira obstétrica", e existem vários movimentos da comunidade científica com a finalidade de resgatar o parto como um acontecimento fisiológico, humanizado e com qualidade. Esses movimentos estão sendo gerados pela necessidade de diminuir as taxas de cesáreas, as mortes maternas e perinatais e para aumentar os atuais reduzidos números de partos normais, acompanhados por enfermeiras obstétricas ou obstetrizes.

Por outro lado, a formação dos profissionais enfermeiros vem ocorrendo de forma descontínua e decrescente e tem sido questionada, principalmente no que se refere à adequação do modelo de formação quanto à capacitação para a assistência ao parto. Essa temática costuma ser defendida quando são discutidas as estratégias para redução das taxas de cesariana no país.

Enquanto docente da Disciplina de Enfermagem Obstétrica da Escola de Enfermagem da Universidade de São Paulo (EEUSP), há 21 anos, observo que há um número cada vez mais expressivo de enfermeiras obstétricas frustradas, descontentes com a profissão e, até mesmo, não atuando na área específica, o que me causa várias inquietações e que me leva a questionar sobre o que pensam nossas ex-alunas em relação a sua prática da Enfermagem Obstétrica. Para tanto, optei por realizar este estudo com os egressos dos cursos de habilitação e especialização em Enfermagem Obstétrica da EEUSP, em dois momentos:

No primeiro momento, de caráter exploratório, a proposta foi caracterizar os egressos dos cursos de habilitação e especialização em Enfermagem Obstétrica na EEUSP, em 15 anos, de forma a traçar um perfil, relacionando as características individuais e as características da profissão(3). O universo a ser estudado naquela pesquisa foi composto por 202 enfermeiras obstétricas formadas pela EEUSP, de 1980 a 1995, sendo que, destas, localizamos 141 (69,8%) para as quais enviamos o questionário que foi respondido no período de junho a outubro de 1999, por 92 (65,2%) ex-alunas que constituíram a amostra do estudo. Ressalto que, dentre os resultados obtidos neste primeiro momento da pesquisa, no que se refere à trajetória profissional das 92 egressas, 41 (44,5%) sempre atuaram na enfermagem obstétrica, 35 (38,2%) só atuaram logo após a formação; 11 (11,9%) nunca atuaram, e 5 (5,4%) atuam recentemente, porém não atuaram logo após a formação. No tocante à satisfação na profissão, das 46 enfermeiras obstétricas (50,0%) que estão atuando na área, 71,7% responderam estar satisfeitas, e 28,3%, insatisfeitas profissionalmente.

Esta análise inicial, viabilizada pela avaliação qualitativa dos dados para caracterização das enfermeiras obstétricas egressas dos curso de enfermagem obstétrica da EEUSP, foi seguida pela análise qualitativa, constituindo o segundo momento do estudo, que apresento a seguir e que teve como objetivo: Compreender a experiência vivida pela ex-alunas dos cursos de habilitação ou de especialização da EEUSP, na sua trajetória profissional.

CONSIDERAÇÕES SOBRE A ESCOLHA DA METODOLOGIA

Partindo do pressuposto de que a realidade social não se esgota nas informações quantitativas, a pesquisa qualitativa impôs-se como estratégia imprescindível a este estudo.

Nesse momento, trilhei pelo caminho da busca da compreensão do fenômeno. O investigador social parte de sua própria vivência, do seu mundo da vida, enquanto mundo social, para, então, refletir acerca do sentido que esse fenômeno tem para si mesmo e para aqueles com quem compartilha o mundo vivido(4).

Esperei, assim, que os sujeitos fossem capazes de descrever o que estavam experienciando de modo mais adequado que eu poderia fazer e, ainda, que fossem capazes de experienciar o fenômeno de maneira não imaginada por mim.

Assim sendo, a trajetória desse estudo esteve voltada para a compreensão do fenômeno "alunos egressos do curso de habilitação e especialização em enfermagem obstétrica", a partir do vivido por essas pessoas no seu cotidiano, pois são elas, enquanto pessoas que atuam, interagem e se compreendem dentro do chamado mundo social, que possibilitam o desenvolvimento do fenômeno, o conhecimento de sua existência transcendente a partir de uma perspectiva de ser-no-mundo.

Entendendo que o significado nunca é individual, pois, embora cada um de nós o vivencie, num contexto objetivo de significação, está contextualizado na intersubjetividade, configurando um grupo social, utilizei-me dos fundamentos da Sociologia Fenomenológica, de Alfred Schutz.

Como este estudo possibilita a reflexão do vivido pelas pessoas em relação a um assunto tão controvertido, que tem gerado tantas polêmicas, acredito que, nesta abordagem, o conhecimento advindo do vivenciar dessas pessoas constitui uma possibilidade de direção para o ensino e a prática da enfermagem obstétrica.

Assim, a escolha pelo referencial de fenomenologia social foi posterior ao início das reflexões sobre o tema em questão. Ela apareceu como um esforço e possibilidade de adotar uma sistemática de investigação que viesse garantir uma melhor compreensão dos aspectos sociais para os quais busquei obter um maior significado a partir de minhas inquietações. Inquietações não satisfeitas completamente com a busca quantitativa, mas, sim, aguçadas.

Minha intenção foi aprender a trajetória profissional das egressas dos cursos de obstetrícia da EEUSP, considerando que as pessoas, ao optarem por uma profissão e optarem por abandoná-la ou não, agem de modo consciente, intencional, e, considerando, ainda, que as pessoas expressam, em suas ações socialmente vividas, o significado dessa vivência.

A Fenomenologia Social, de Schutz, visa compreender o mundo com os outros em seu significado intersubjetivo, tendo, como proposta, a análise das relações sociais, admitida como relações mútuas que envolvem pessoas. Trata-se da estrutura de significados na vivência intersubjetiva da relação social do face a face, voltando-se, portanto, para entender as ações sociais que têm um significado contextualizado, de configuração social, e não puramente individual. Schutz, portanto, busca em Husserl a compreensão da ação na vivência da consciência; considerando as vivências originárias como uma série de vivências intencionais(7).

A ação social é uma conduta dirigida para a realização de um determinado fim, e esta ação, motivo-para, só pode ser interpretada pela subjetividade do ator, pois somente a própria pessoa pode definir seu projeto de ação, seu desempenho social. Nesse sentido, a compreensão do social volta-se para o comportamento do social em relação aos motivos, para as intenções que orientam a ação e para as suas significações para o ator da ação(5).

Por motivo, entende-se: "um estado de coisas, o objetivo que se pretende alcançar com a ação". Assim, motivo para é a orientação para a ação futura, e motivo por que está relacionado às vivências passadas, com conhecimentos disponíveis (6).

O motivo para é, portanto, um contexto de significado que é construído ou se constrói sobre o contexto de experiências disponíveis no momento da projeção (essa categoria é essencialmente subjetiva). O motivo por que refere-se a um projeto em função de vivências passados e é uma categoria objetiva, acessível ao pesquisador. O contexto do significado do verdadeiro motivo por que é sempre uma explicação posterior ao acontecimento(5).

Para construir um modelo científico do mundo social, o sociólogo recorre à tipificação. O modelo é feito de tipo de ação em processo e de tipos ideais de pessoas. Essa tipificação é diferente da que se realiza na análise do mundo vivido, enquanto mundo social.

Para a Fenomenologia Social, o que importa investigar não é o comportamento de cada indivíduo em particular, mas o que pode constituir-se em uma característica típica daquele grupo social que está vivendo aquela situação do comportamento vivido(7).

O tipo vivido emerge da descrição vivida do comportamento social que permite encontrar algo que tipifica (convergências nas intenções dos sujeitos, ou seja, motivos para e motivos por que) como uma estrutura vivenciada única, uniforme, contínua, que pode ser analisada e descrita porque tem um valor de significação e que pode ser transmitida pela comunicação e pela linguagem significativa, na relação interpessoal(6).

Diante dessas considerações sobre os conceitos trabalhados por Schutz, pretendi chegar à compreensão da significação da ação social de ex alunas que optaram pelo curso de enfermagem obstétrica à luz dos motivos para e por que que levam as pessoas a agir.

TRAJETÓRIA METODOLÓGICA

Minhas colaboradoras nesta pesquisa foram ex-alunas dos cursos de habilitação e de especialização em enfermagem obstétrica, da Escola de Enfermagem da Universidade de São Paulo (EEUSP), que participaram do primeiro momento deste estudo e que tinham trajetórias diversificadas, no entanto, pertenciam a um mesmo grupo social, qual seja: enfermeiras obstétricas egressas do curso de obstetrícia, da EEUSP.

Na tentativa de compreender os motivos para e por que de suas trajetórias, foram escolhidas para participar desta etapa do estudo egressas que: sempre atuaram na obstetrícia; atuaram anteriormente, mas, no momento, não atuam mais nesta especialidade; não atuaram e agora exercem função nesta área e que nunca atuaram na área.

Dessa forma, o número de sujeitos não foi estabelecido previamente. À medida que as entrevistas foram ocorrendo, em função do conteúdo e abrangência das próprias descrições, definiu-se o número de sujeitos. Assim, minhas colaboradoras nesta pesquisa foram 9 ex-alunas dos cursos de obstetrícia da EEUSP.

Por meio de contato telefônico, solicitei novamente a colaboração para realização da entrevista, respeitando suas preferências de data, horário e local, garantindo-lhes o sigilo e anonimato e o que reza a Resolução 196/96, do Conselho Federal de Saúde, sobre pesquisas com seres humanos(8).

Embora, na primeira fase do estudo, eu já tivesse esclarecido os objetivos da minha pesquisa, antes de cada entrevista, expliquei, novamente, o objetivo dessa parte do estudo, por que o estava realizando e procurei esclarecer as dúvidas em relação a eles. Além disso, solicitei consentimento para a gravação das descrições e utilização dos dados. Pedi às entrevistadas que relatassem sua trajetória profissional, desde a opção pelo curso até os momentos atuais. Procurei deixá-las seguir, espontaneamente, a linha de seus pensamentos e de suas experiências dentro do foco por mim localizado, tomando o cuidado de não interromper o raciocínio da entrevistada.

Algumas entrevistas foram realizadas nas residências das egressas, e outras foram feitas nas dependências da EEUSP, e ainda outras, no hospital onde a enfermeira exercia suas atividades.

As entrevistadas foram abordadas com duas questões norteadoras: Como se deu sua opção pelo curso de habilitação e especialização em enfermagem obstétrica? Como tem sido sua trajetória profissional, desde o início da sua formação até o momento atual?

A transcrição do conteúdo gravado foi feita integralmente por mim. Considerei esse momento uma oportunidade para familiarizar-me com as descrições e iniciar a identificação de aspectos relevantes, relacionados ao objeto do estudo.

MOMENTOS DA ANÁLISE COMPREENSIVA

Os conteúdos foram emergindo naturalmente, de tal maneira que o vivido das egressas dos cursos de obstetrícia foi se mostrando em seus aspectos mais relevantes, dando origem às categorias.

Destaco, ainda, que não esteve em relevo a vivência da pessoa, pois as trajetórias apresentadas eram distintas, mas, sim, o vivido típico na relação social de um para o outro, pois todas eram oriundas dos cursos de obstetrícia da EEUSP; portanto, a diversidade formou uma riqueza de experiências inter-relacionadas.

Nessa fase de análise dos relatos das egressas, o objetivo do estudo, bem como as questões norteadoras, como mencionado anteriormente, estiveram implícitos durante todo o momento. Sendo assim, procurei captar, por meio da leitura, aquilo que se mostrou subjetivo, e trazer para uma visão objetiva, a fim de possibilitar o agrupamento de aspectos afins dos significados da ação das egressas dos cursos de obstetrícia da EEUSP, com vistas à categorização. Nesse sentido, agrupei trechos das falas, ou seja, aspectos relacionados ao significado da trajetória destas ex-alunas que compõem as categorias concretas identificadas; o próximo passo foi a compreensão das vivências das ex-alunas dos cursos de obstetrícia, em relação à sua trajetória profissional, por meio da análise compreensiva. Isto é, atentei novamente aos significados para verificar o que eles revelaram sobre aspectos essenciais e recorrentes do fenômeno a partir da compreensão dos significados atribuídos, tentei interpretar as vivências das ex-alunas, a partir do tipo das falas, discutindo-as conforme os conceitos da fenomenologia social.

Para as denominações e identificação das diferentes entrevistas e com o intuito de preservar o anonimato, passei a denominá-las de E1, E2, E3, E4, E5, E6, E7, E8 e E9.

Faz-se necessário acrescentar que a tipologia do vivido foi obtida a partir da organização e categorização do material obtido pelo pesquisador em ciências sociais(9).

Verifiquei, a princípio, que as situações experienciadas são divergentes, no entanto, lendo e relendo as entrevistas, foram emergindo categorias concretas de significado do vivido das ex-alunas, contextualizadas a partir das falas, que reuniram, na totalidade, o invariante do fenômeno trajetória profissional das egressas dos cursos de obstetrícia da EEUSP, que foram: Optando pela enfermagem; Optando pela especialidade; Mudando de trajetória profissional; Identificando projetos futuros e buscando autonomia profissional.

ANÁLISE COMPREENSIVA

A categoria Optando pela Enfermagem representa um dos motivos para cursarem enfermagem.

Algumas ex-alunas verbalizaram que sua área de interesse não era a enfermagem. No entanto, os motivos que as levaram a optar por essa área surgiram para resolver a questão do ingresso em uma Universidade e, preferencialmente, não paga.

Como a enfermagem ainda é pouco conhecida pela sociedade, a opção por essa profissão é dificultada, também, pelos tabu e preconceito que a acompanham.

Ao iniciarem o relato sobre sua opção pela especialidade, em um primeiro momento, algumas egressas referiram-se à opção pelo curso de enfermagem. Nesse sentido, destaco alguns trechos das falas.

... Não queria fazer enfermagem, eu não gostava de enfermagem... mas as pessoas falaram que o curso de obstetrícia vale mais que o curso de enfermagem... (E1)

... Na verdade não foi por opção que eu entrei na enfermagem... Eu queria odontologia porque eu gostava muito. Prestei vestibular, só que eu não passei... (E6)

... Ser enfermeira era uma coisa muito assustadora... (E6)

... Eu tinha entrado em odontologia na Metodista só que era noturno e pago, na USP era período integral e não precisava trabalhar. Na realidade, eu pensei, acho que vou fazer odonto e de dia vou trabalhar. As pessoas da minha família disseram que não tinha cabimento eu ter passado na USP e fazer faculdade particular, disseram que eu não precisava trabalhar... (E9)

Assim, algumas ex-alunas verbalizaram que sua área de interesse não era a enfermagem. No entanto, os motivos que as levaram a optar por esta área surgiram para resolver a questão do ingresso em uma Universidade e, preferencialmente, não paga.

Observa-se, para algumas entrevistadas, o quanto foi difícil esse processo de opção profissional, gerando várias incertezas e conflitos e que, geralmente, a escolha da profissão se dá pelas facilidades em fazer um curso superior em uma universidade pública, em função da impossibilidade de custeio dos estudos e pelo "status" social que essa Universidade proporciona.

Optando pela especialidade

As egressas, ao responderem ao questionamento sobre como se deu sua opção pelo curso de habilitação ou de especialização em enfermagem obstétrica, revelaram que passaram pela disciplina Enfermagem Obstétrica, do curso de graduação em enfermagem. As unidades de significados que compõem esta categoria estão repletas de motivos, como se pode constatar nas falas das egressas:

... na matrícula chamou-me a atenção que estava escrito: "Curso de Enfermagem e Obstetrícia" e eu pensei: "Nossa, obstetrícia! Deve ser uma coisa muito gostosa... maternidade, parto..." foi a palavra obstetrícia que me motivou a fazer o curso de enfermagem...(E6)

... a disciplina de obstetrícia para mim foi um encanto... já tinha certeza que ia fazer o curso de Especialização em Enfermagem Obstétrica... Na disciplina de Enfermagem Obstétrica, na graduação, na sala de parto, os alunos ficaram só observando e auxiliando o médico... Eu tinha vontade de colocar a mão na barriga de uma mulher para ver como era a contração, e o interno falava que não podia pôr a mão, porque estimulava... eu me sentia totalmente reprimida e pensava: "Só de raiva vou fazer obstetrícia e vou poder ter uma mulher só para mim, vou poder até fazer o parto e além de tudo atuar no puerpério... (E6)

As egressas, em seus relatos, apontaram diferentes motivos para a opção. Para algumas, a escolha foi realizada de forma consciente, para outras a opção se deu pelas facilidades em fazer um curso superior em uma Universidade Pública.

Por meio desses relatos, notou-se o quanto é difícil este processo de opção profissional pela especialidade, gerando várias incertezas e conflitos.

Em relação a E1, ficou evidente a questão do "status" profissional. No entanto, ao experienciar a vida profissional percebe que foi um opção errada:

... hoje, olhando para trás e vendo o que aconteceu... eu vejo que foi uma opção errada, no sentido de que eu só gosto de obstetrícia, eu não gosto nada de enfermagem... mas eu fiz enfermagem, consegui passar pelo curso, mas, hoje, eu vejo como eu passei por este curso... passando... na realidade, no fundo, no fundo eu não gostava do que fazia, porque eu era administradora... (E1)

Diante dessas considerações, retomo aos apontamentos de Schutz, quando afirma que, na realidade de senso comum, que chama de situação biográfica, cada pessoa interpreta a realidade de senso comum, segundo a perspectiva de seus interesses particulares(6).

A interpretação das falas que embasam essa categoria, permitiu, também, o repensar sobre a característica da especialidade de enfermagem obstétrica, característica diferente das outras, pois trata-se do fenômeno do nascimento, o que a faz lembrar de vida, de alegria, o que desperta, às vezes, nas pessoas, o interesse pela área, fato que pode ser constatado por meio das verbalizações:

... ser enfermeira era uma coisa assustadora... hospital... doentes... fui fazendo o curso... no 2º ano tive aquela crise do 2º ano, onde todo mundo quer desistir... porque eu comecei a ter contato com o hospital, com os pacientes terminais, o que realmente me abalou muito... tanto é que quase desisti... (E6)

... no 2º ano que começou a parte prática, doentes, sofrimento, morte, eu já não me senti bem... Na área hospitalar, vendo aqueles doentes, eu pensei: "Acho que não vai dar para mim"... (E9)

As categorias, optando pela enfermagem e optando pela especialidade, têm como elemento impulsionador a motivação: os motivos para, que desencadearam a ação de assistir em enfermagem obstétrica.

Como mencionado anteriormente, o projeto é uma fantasia da atividade espontânea da consciência, é um produto da imaginação, consiste na concepção imaginária do ato. Enquanto a ação está sendo realizada, a atitude reflexiva não foi adotada, o agente só tem em vista os "motivos para", que são eminentemente subjetivos.

No entanto, para algumas ex-alunas, a ação foi projetada, mas o ato não aconteceu ou deixou de acontecer, pois, ao exercerem as atividades, sentiram-se insatisfeitas, sobrecarregadas, com falta de autonomia profissional e, sendo assim, acabaram mudando sua trajetória profissional.

Mudando de trajetória profissional

Algumas ex-alunas, ao experienciarem o exercício da prática, decidiram pela mudança da trajetória profissional, isto é, seguiram caminhos distintos, atribuindo diversos motivos para essa escolha.

... Logo que me formei, trabalhei 6 meses no... uma coisa horrorosa... eu fazia parto em condições péssimas, os médicos não davam atenção, era frente de batalha mesmo... sai de lá, fui para o ... só que não fui para o centro obstétrico, era proibido enfermeira fazer parto, fui para o berçário. Eu não gostava de nada, a não ser do centro obstétrico, eu era no berçário uma administradora... (E1)

... A vida em hospital é difícil, sábado, domingo e feriado... eu trabalhava por trabalhar... eu era solteira... aí começou a pressão do namorado, ele achava lindo o que eu fazia de 2ª a 6ª feira, sábado, domingo e feriado era mais complicado... (E1)

... nós éramos reconhecidas, tínhamos autonomia, a estrutura era boa, mas, em compensação, tinha uma sobrecarga muito grande... Surgiu uma oportunidade no laboratório... estava bastante insatisfeita com a sobrecarga porque não conseguia desenvolver um projeto, fazer um estudo, era muito estressante... Aí quando surgiu esta proposta que ia mudar totalmente minha vida... e aí eu vim para o laboratório... (E5)

... Às vezes, eu sinto falta da obstetrícia, sinto saudade mas eu não me arrependi, aqui tive muitas oportunidades... Valeu muito em relação à remuneração, compensou muito... Os finais de semana também... todos os sábados, domingos e feriados eu estou de folga, então é uma qualidade de vida que não se discute... (E5)

... depois do Hospital xx eu vim para o Hospital xxx onde eu trabalhei demais, era um absurdo, fazia 12 partos em uma noite, ... só dava tempo de trocar as luvas, ... só ficava aparando... quase que fazia dois partos de uma só vez... pedi demissão... Fiquei um ano na disciplina de Enfermagem obstétrica da Escola de Enfermagem da USP mas... eu não gostei de dar aula... a minha condição era ficar na disciplina só para acompanhar os alunos na sala de parto... No entanto uma vez na área de ensino tínhamos que seguir a vida acadêmica... tinha que fazer Mestrado, Doutorado, pesquisa... Eu sou uma pessoa muito simples, nada desse negócio todo... pedi demissão... optei pelo curso de massagem e acupuntura... (E9)

Alguns relatos levaram-me a refletir sobre a importância de optar-se por uma profissão de forma consciente, o que significa escolher uma profissão pela qual se tem interesse, algum tipo de afinidade ou gosto. No entanto, como se pode constatar nos relatos anteriormente mencionados, mesmo para as enfermeiras obstétricas que fizeram uma opção consciente, o vivido levou ao motivo por que.

Identificando projetos futuros

Para interpretar essa categoria, retorno aos dizeres de Schutz sobre ação social. Para esse autor, a ação refere-se a uma unidade constituída no âmbito do projeto, tem caráter de subjetividade em seu fundamento e depende do aqui e agora em que se formula o projeto. Todo projeto consiste na antecipação da ação futura(5).

Na identificação de projetos futuros percebi, mais uma vez, que, para algumas ex-alunas, a ação social, que é a execução de um ato projetado, não se concretizou, ou seja, a permanência na área de obstetrícia não aconteceu.

... eu cheguei à conclusão de que eu nunca mais vou voltar para a enfermagem... agora estou feliz onde estou... tenho retorno financeiro... está muito legal... (E1)

... eu não me sinto muito mais enfermeira, eu gostaria de investir na área de recursos humanos, de treinamento, estou pensando em fazer o mestrado e dar aulas... (E2)

As enfermeiras que continuam na especialidade, no entanto, mostraram-se preocupadas com sua projeção profissional, fato que se constitui em aspecto altamente favorável para o desenvolvimento da profissão.

... eu tentei mestrado o ano passado, mas não consegui entrar... (E4)

... eu quis fazer o Mestrado porque, às vezes, eu acho que o meu futuro vai ser numa sala de aula, ou então acompanhando estágio... O que adianta fazer o Mestrado e só querer ficar aqui, eu vou querer continuar... (E6)

... uma vez que eu sempre quis ter uma boa formação eu também tenho que fazer com que isso ocorra, eu preciso estudar, me preparar para isso, isto é, motivação... (E6)

Considerei interessante destacar o trecho da E9 que mencionou não querer exercer mais atividades relacionadas à enfermagem obstétrica.

... agora enfermeira obstétrica, por enquanto, eu não quero mais. Embora outro dia eu estivesse lendo o jornal e me chamou a atenção a notícia sobre a casa de parto, que só trabalha com enfermeira obstétrica... esse era o meu sonho. Puxa! como eu queria só trabalhar com enfermeiras obstétricas, sem médicos ou residentes que ficam querendo fazer os partos... sempre gostei de atuar sozinha... Então eu penso... puxa se tivesse algum concurso para a casa de partos de xxx eu faria... (E9)

Quando essa ex-aluna mencionou que poderia atuar em casa de parto, percebo que ela vivencia um conflito pois a atuação em casa de parto também faz parte das atividades da enfermeira obstétrica. Parece-me que, na realidade, esse conflito está relacionado à autonomia profissional.

Buscando autonomia profissional

Nesta categoria, verifica-se, por meio das falas das entrevistadas, o conflito da identidade profissional.

... no decorrer do curso o que mais me chamou a atenção foi a disciplina enfermagem obstétrica, o que mais me identificou, o que mais gostei... o que eu achava que tinha maior autonomia... na realização do parto, de poder realizar umas ações que eu não via nas outras áreas. Por isso acabei escolhendo enfermagem obstétrica... (E5)

... A estrutura hospitalar é muito rígida. A enfermagem segue padrões limitados. Aqui é uma outra visão, a autonomia é tua, você é quem sabe, você é responsável, então você quem decide se vai ser assim ou não vai. Então realmente aqui tem-se liberdade de atuação, com os técnicos, com os médicos. É uma outra visão com relação ao hospital, é bem diferente. Tem uma autonomia, tem muitas oportunidades de crescimento... (E5)

... Então, quando chegou a disciplina de obstetrícia, falei: "Nossa! Acho que dá para eu ser enfermeira, dá para eu ser enfermeira porque eu adorei obstetrícia". Então foi a minha salvação na enfermagem quando eu tive a disciplina de Obstetrícia. Porque eu vi uma série de atividades que eram minhas, que eu podia realizar sem depender dos outros... porque sempre o que me deixava muito decepcionada com a questão da enfermagem era o fato da autonomia, ... a autonomia do meu trabalho... (E7)

... Puxa. como eu queria só trabalhar com enfermeiras obstétricas, sem médicos residentes que ficam querendo fazer os partos, ... sempre gostei de atuar sozinha... tanto é que a enfermagem obstétrica tem muito mais autonomia para você poder atuar... você tem autonomia dentro da sala de parto... (E9)

A autonomia profissional é a capacidade de controlar por si mesmo os aspectos técnicos de seu próprio trabalho(10).

Em pesquisa realizada sobre a questão do poder em enfermagem, comenta-se que os enfermeiros que participaram de seu estudo, ao mesmo tempo que querem o poder, expressam de maneira contundente seu medo, face ao que ele representa. Angustiam-se com sua situação de alguém que se percebe dominado e submisso ao poder médico. Têm consciência de seu condicionamento cultural, da influência de existir em uma profissão composta, em sua maioria, por mulheres e tenta superar, afirma, também, que a falta de autonomia compromete a relação concreta no âmbito de possibilidade de participação do outro em projetos comuns(11).

Essas categorias concretas do vivido nos permitiram a tipologia do vivido, não no âmbito da tipificação de singularidade, mas do tipo vivido, do grupo social, pessoas que fizeram o curso de obstetrícia na EEUSP.

CONSTRUÇÃO DO TIPO VIVIDO

Tipo vivido "ex-alunas que fizeram o curso de obstetrícia na EEUSP e que atuam na enfermagem obstétrica"

As categorias concretas do vivido, constituídas a partir do sentido da ação subjetiva, permitiram descrever o tipo vivido "ex-alunas que fizeram o curso de obstetrícia na EEUSP e que atuam na área de enfermagem obstétrica" como sendo a pessoa que optou por essa especialidade de maneira consciente, convicta de sua escolha e que, na sua trajetória profissional, motiva-se com o que faz, luta para conquistar espaço, principalmente no que se diz respeito à execução do parto normal, percebe-se como um elemento importantíssimo na assistência à mulher, sente-se com autonomia e credibilidade, valoriza seu trabalho e, certamente, vislumbra um futuro melhor para a profissão.

Tipo vivido "ex-alunas que fizeram o curso de obstetrícia na EEUSP e que não atuam na área de enfermagem obstétrica"

As categorias concretas do vivido, constituídas a partir do sentido da ação subjetiva, permitiram descrever o tipo vivido "ex-alunas que fizeram o curso de obstetrícia na EEUSP e que não atuam na área de enfermagem obstétrica", como sendo a pessoa que optou pela enfermagem obstétrica, porém essa opção não satisfaz e, na sua trajetória profissional, vivenciou o conflito da sobrecarga de serviço, da não adaptação na estrutura hospitalar, do retorno financeiro, da limitação da profissão, da alienação, da falta de autonomia profissional e, conseqüentemente, restou-lhe apenas o âmbito dos sentimentos da acomodação, insatisfação e desmotivação.

CONSIDERAÇÕES GERAIS DO ESTUDO

Apesar de os depoimentos, aqui apresentados, estarem arraigados no grupo de enfermeiras obstétricas que se formaram na EEUSP, refletem o todo no contexto onde ocorrem. Contexto este que propicia satisfação e frustrações no âmbito pessoal e profissional.

De acordo com os dados obtidos neste estudo, as ex-alunas demonstraram uma dificuldade pela opção em enfermagem, entretanto identificaram-se com a área de enfermagem obstétrica ou por meio do nome do curso ou quando cursaram a disciplina enfermagem obstétrica do curso de graduação em enfermagem. Ao identificarem-se com a área, as alunas acreditaram que essa especialidade permitiria uma atuação com mais autonomia e que não teriam contato com doença, dor, sofrimento e teriam maior possibilidade de confrontar-se com questões relacionadas a vida, alegria, nascimento e menos probabilidade de deparar-se com situações que dizem respeito à morte.

Ao optarem pela enfermagem obstétrica, as ex-alunas projetaram perspectivas futuras, no entanto, no exercício profissional (no ato concreto) uma parte revelou sentir-se insatisfeita, sobrecarregada, sendo que, com isso, o ato não se concretizou, ficando somente em nível de projeto. Esse fato pode justificar a evasão da área de 50,0% das ex alunas que participaram desta pesquisa.

No que diz respeito à autonomia profissional, tão destacada nos depoimentos das egressas, acredito que o fato de as enfermeiras obstétricas não poderem exercer as atividades que são de sua competência, garantidas pela própria Lei do Exercício Profissional, gera conflitos, insatisfação e, conseqüentemente, desmotivação.

Considero que a influência de existir em uma profissão composta, em sua maioria, por mulheres; o fato de perceber-se submissa e dominada pelo poder médico; de ter consciência de seu condicionamento histórico e cultural são fatores que contribuem para o aumento da ansiedade e da insatisfação profissional.

Diante disso, as enfermeiras obstétricas não conseguem interagir, sentem-se incompreendidas, não conseguem estabelecer intersubjetividade em nível de possibilidade de participação do outro e de projetos comuns, sentindo-se inautênticas.

Nesse sentido, o exercício da enfermagem obstétrica aparece por meio do modo de existir inautêntico e impróprio da enfermeira obstetra que se percebe como estranha na equipe de saúde, na qual não consegue inserir-se, sendo assim, não alcança a confirmação e aprovação necessárias e o reconhecimento profissional. Nessa situação de "inautenticidade" e de "não ser", a enfermeira obstétrica mostra-se insegura, incapaz, solitária e se vê na busca permanente de espaço e aprovação social.

Considero imprescindível a reorientação da nossa prática de ensino a fim de favorecer o desenvolvimento da autonomia dos estudantes de enfermagem. Penso que, enquanto docente de enfermagem, temos a oportunidade e obrigatoriedade de auxiliar os estudantes na definição do papel profissional, tanto no que diz respeito às competências técnicas específicas como na incorporação de valores, atitudes e comportamentos, como funcionamento independente e auto-confiante com a finalidade de fortalecer o papel da enfermeira, em todos os ângulos do período perinatal.

É nossa responsabilidade oferecer à comunidade o maior número de informações sobre o campo de enfermagem. Os alunos não têm como visualizar o futuro se não lhes forem proporcionados conhecimentos sobre a profissão, os requisitos necessários à sua formação e o mercado de trabalho com o qual irão se deparar(12).

Acredito, também, que a autonomia profissional é um caminho para uma melhor interação consigo e com o outro e que estimular o desenvolvimento da autonomia pessoal e profissional das enfermeiras seria uma forma de ação em âmbito individual que promoveria o crescimento da enfermagem enquanto profissão, pois a imagem profissional é constituída a partir do papel desempenhado pelo profissional.

É possível dizer que este estudo aponta para uma intervenção ético-política, a fim de que o almejado no exercício da prática de uma profissão sejam valores reais e não apenas ideais. Essa intervenção deve ser iniciada em sala de aula, no sentido de conscientizar os alunos para que assumam essa atitude ético-política, por meio de reflexões profundas sobre a atual realidade onde se dá a prática da enfermagem obstétrica e sobre o atual contexto onde acontece a assistência às mulheres que se encontram no período grávido-puerperal. É a partir do espírito crítico, inovador, assumido no momento que surgirão estratégias para provocar mudanças neste contexto, considerando-se todas as possibilidades.

Penso que a enfermeira obstétrica deve ser considerada como elemento permanente na equipe obstétrica, com a tarefa de preservar o espaço da fisiologia da assistência. Nesse sentido, o primeiro passo já foi dado, com o reconhecimento de seu trabalho pelo Sistema Único de Saúde (SUS). Essa medida tomada pelo Ministério da Saúde representa um passo no sentido de reverter a situação dramática da assistência obstétrica como altas taxas de cesáreas e, conseqüentemente, índices elevados de morbimortalidade materna e perinatal.

A remuneração do parto realizado por enfermeira obstétrica representou um avanço para a profissão, pois representa estímulo na absorção desta profissional no mercado de trabalho e um estímulo para investir na qualificação, capacitação e atualização dessa profissional, fazendo cursos de pós graduação e participando de eventos científicos.

O desafio maior, contudo, constitui-se na reformulação de modelos assistenciais intervencionistas para modelos baseados na fisiologia, isto é, fundamentados nos princípios da humanização, a qual leva a uma mudança de paradigma na assistência.

Assim, enquanto enfermeira obstétrica e docente de enfermagem obstétrica, sinto-me compromissada com essa formação ético-política, para que os futuros profissionais tenham a percepção do real contexto que os envolve e determina sua prática profissional. Nós, docentes de enfermagem obstétrica, temos um importante papel a cumprir, pois representamos uma parte da perspectiva dessa mudança. Assim sendo, faz-se necessário nosso envolvimento nos órgãos decisórios de política de saúde e, também, repensarmos o ensino, investindo em modelos assistenciais pouco intervencionistas, desvinculados do modelo médico e, assim, resgatar o paradigma do parto natural, ou fisiológico.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

1. Ministério da Saúde (BR) Sistema Único de Saúde. Datasus Tabnet: nascidos vivos. Brasil, 1996. [citado em 8 jan 1999] Disponível em: URL: http://www.datasus.gov.br

Recebido em: 31.7.2001

Aprovado em: 30.4.2002

  • 2. Portaria n.2.815 do Ministério da Saúde de 29 de maio de 1998. Diário Oficial da União, 2 jun. 1998. Seção 1, p.47-8.
  • 3. Merighi MAB. Enfermeiras Obstétricas egressas da Escola de Enfermagem da Universidade de São Paulo: caracterização e trajetória profissional. [tese]. São Paulo (SP): Escola de Enfermagem/USP; 2000.
  • 4. Capalbo RYS. Metodologia das ciências sociais: a fenomenologia de Alfred Schutz. 2. ed Londrina: UEL; 1998.
  • 5. Jesus MCP. A educação sexual na vida cotidiana de país e adolescentes: uma abordagem compreensiva da ação social. [tese]. São Paulo (SP): Escola de Enfermagem/USP; 1998.
  • 6. Schutz A. El problema de la realidad social. Buenos Aires: Amorrortu; 1974.
  • 7. Schutz A. Fenomenologia del mundo social. Buenos Aires: Paidos; 1972.
  • 8. Mistério da Saúde (BR). Conselho Nacional de Saúde. Resolução n.196 de 10 de Outubro de 1996. Diretrizes e normas regulamentadora de pesquisa em seres humanos. Mundo Saúde 1996; 21(1): 52-61.
  • 9. Parganina L, coordenador. Estudo das informações não estruturadas do ENDEF e de sua integração com os dados quantificados. Rio de Janeiro: IBGE; 1976.
  • 10. Machado MH. Sociologia das profissões: uma contribuição ao debate teórico. In: Machado MH. Profissões de saúde: uma abordagem sociológica. Rio de Janeiro: Fiocruz; 1995.
  • 11. Bussinguer ECA. A questão do poder na enfermagem uma tentativa de compreensão a partir da fenomenologia de Alfred Schutz. [tese]. Rio de Janeiro (RJ): Escola de Enfermagem Alfredo Pinto/Universidade do Rio de Janeiro; 1990.
  • 12. Takahashi RT. A opção profissional do aluno de enfermagem: um estudo na Escola de Enfermagem da USP. [tese]. São Paulo (SP): Faculdade de Educação/USP; 1994.
  • *
    O Estado vem apresentando nos últimos 4 anos, uma média de 50,3% de nascimentos por cesárea sendo que no Brasil ocorreram 40,5% de nascimentos por cesárea
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      26 Ago 2003
    • Data do Fascículo
      Out 2002

    Histórico

    • Recebido
      31 Jul 2001
    • Aceito
      30 Abr 2002
    Escola de Enfermagem de Ribeirão Preto / Universidade de São Paulo Av. Bandeirantes, 3900, 14040-902 Ribeirão Preto SP Brazil, Tel.: +55 (16) 3315-3451 / 3315-4407 - Ribeirão Preto - SP - Brazil
    E-mail: rlae@eerp.usp.br