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Os cuidados de manutenção dos potenciais doadores de órgãos: estudo etnográfico sobre a vivência da equipe de enfermagem

Resumos

Trata-se de estudo etnográfico que teve como objetivo compreender a vivência da equipe de enfermagem na manutenção de potenciais doadores de órgãos. Os dados foram coletados através de entrevistas etnográficas, observação participante e análise documental e submetidos à analise de domínio, taxonômica e temática. No processo de imersão nos dados coletados, foi identificado o significado de morte encefálica, que desvelou a inter-relação entre as categorias, constituindo-se no tema cultural deste estudo: "não é uma pessoa". O significado de transplante atribuído pela equipe de enfermagem é marcado pela descrença em razão de experiências anteriores vivenciadas na unidade de terapia intensiva. Assim, as crenças e valores dessa subcultura interferem ou determinam distanciamento do paciente e conseqüente prejuízo na assistência adequada para a manutenção do doador e qualidade dos órgãos doados.

cuidados de enfermagem; transplante de órgãos; obtenção de tecidos e órgãos


This ethnographic study aimed to understand a nursing team's experience on the maintenance of potential organ donors. Data were collected through ethnographic interview, participative observation and documental analysis and analyzed in thematic, cultural domain and taxonomical terms. The research enabled us to identify the meaning of brain death, revealing the interrelation between the categories (units, nursing team and patient), which constituted this study main theme: "it is not a person". The transplant meaning held by the nursing team is marked by disbelief due to some previous experiences in the Intensive Therapy Unit. Thus, beliefs and values of this subculture interfere or determine a distancing from the patient with a consequent loss in the maintenance of the potential donor and quality of the organs donated.

nursing care; organ transplantation; tissue and organ procurement


Se trata de un estudio etnográfico que tuvo como objetivo comprender la experiencia del equipo de enfermería en la manutención de los potenciales donadores de órganos. Los datos fueran recolectados a través de encuestas etnográficas, observación participante y análisis documental y sometidos a análisis del dominio, taxonómico y temático. En el proceso de inmersión de los datos recogidos fue identificado el significado de la muerte encefálica, que desveló la interrelación entre las categorías (unidades de terapia intensiva, equipo de enfermería y pacientes), constituyéndose en el principal tema de ese estudio "no es una persona". El significado del transplante atribuido por el equipo de enfermería es marcado por la no creencia, motivada por experiencias anteriores vividas en las unidades de terapia intensiva. Así, las creencias y valores de esa subcultura interfieren o determinan un distanciamiento del paciente y un consecuente prejuicio en la atención adecuada para la manutención del donante y calidad de los órganos donados.

atención de enfermería; trasplante de órganos; obtención de tejidos y organos


ARTIGO ORIGINAL

Os cuidados de manutenção dos potenciais doadores de órgãos: estudo etnográfico sobre a vivência da equipe de enfermagem

Maria Madalena Del Duqui LemesI; Marisa Antonini Ribeiro BastosII

IEnfermeira, Mestre, Docente da Universidade Católica de Goiás, Brasil, e-mail: m.madalena@ucg.br

IIEnfermeira, Professor doutor aposentado da Escola de Enfermagem, da Universidade Federal de Minas Gerais, Brasil, e-mail: marisa@enf.ufmg.br

RESUMO

Trata-se de estudo etnográfico que teve como objetivo compreender a vivência da equipe de enfermagem na manutenção de potenciais doadores de órgãos. Os dados foram coletados através de entrevistas etnográficas, observação participante e análise documental e submetidos à analise de domínio, taxonômica e temática. No processo de imersão nos dados coletados, foi identificado o significado de morte encefálica, que desvelou a inter-relação entre as categorias, constituindo-se no tema cultural deste estudo: "não é uma pessoa". O significado de transplante atribuído pela equipe de enfermagem é marcado pela descrença em razão de experiências anteriores vivenciadas na unidade de terapia intensiva. Assim, as crenças e valores dessa subcultura interferem ou determinam distanciamento do paciente e conseqüente prejuízo na assistência adequada para a manutenção do doador e qualidade dos órgãos doados.

Descritores: cuidados de enfermagem; transplante de órgãos; obtenção de tecidos e órgãos

INTRODUÇÃO

Os cuidados aos pacientes com insuficiência renal crônica os tornam dependentes das máquinas de hemodiálise. Essa dependência é mantida até o momento em que os mesmos se submetam ao transplante renal, com sucesso. No transplante renal, a modalidade de doação se constitui de duas formas: com doador vivo e com doador cadáver.

Em Goiânia, GO, desde 1984, os transplantes renais eram feitos, via de regra, com doador vivo relacionado. Somente no final do ano de 1998, é que se iniciaram os transplantes com doador cadáver, embora as unidades de terapia intensiva não estivessem preparadas para proceder adequadamente a manutenção do indivíduo com morte encefálica como potencial doador.

Os problemas que surgiram com esse procedimento não foram diferentes daqueles de outros centros transplantadores. A literatura disponível aponta somente para falhas no processo de doação de órgãos provenientes de pessoas com morte encefálica, ligadas às posturas da negação familiar e às condições técnicas do trabalho de profissionais, sobretudo os cuidados de manutenção inadequados com o potencial doador de órgãos(1).

Em trabalho desenvolvido no Instituto de Ciências Neurológicas de Glasgow (EUA), foram descritas as causas que inviabilizam o aumento de potenciais doadores de órgãos, entre elas a falta de disponibilidade médica, a relutância em solicitar a doação aos familiares, as falhas nos testes de comprovação de morte encefálica e a comunicação inadequada com a equipe de transplante(2).

A experiência da pesquisadora, aqui, em Unidade de Terapia Intensiva (UTI) mostra que o paciente com morte encefálica (ME) era o menos cuidado, sendo as atenções direcionadas aos pacientes potencialmente recuperáveis. Assim a proposta foi a desenvolver estudo sobre o envolvimento da equipe de enfermagem dessas unidades no processo de manutenção de pessoas internadas com morte encefálica como potenciais doadores de órgãos, uma vez que a manutenção dos potenciais doadores de órgãos se constitui na segunda causa da não efetivação da doação de órgãos no Brasil.

O interesse foi estudar quais os significados que a equipe de enfermagem atribui ao paciente em morte encefálica, compreendendo a vivência desses profissionais no cotidiano dos cuidados de manutenção do potencial doador de órgãos. Portanto, este estudo teve como objetivo compreender a vivência da equipe de enfermagem em relação aos cuidados de manutenção de potenciais doadores de órgãos.

REFERENCIAL TEÓRICO-METODOLÓGICO

Para compreender o universo simbólico compartilhado pela equipe de enfermagem, optou-se pela pesquisa etnográfica. A etnografia é um método adequado para descrever um sistema de significados culturais de determinado grupo, a partir da visão de mundo do nativo dessa cultura(3).

O cenário cultural constituiu-se pela representatividade de dois hospitais que integram o processo de doação-transplante na cidade de Goiânia, GO: uma unidade de terapia intensiva e uma unidade de emergência.

A coleta dos dados foi realizada através da observação participante, da entrevista etnográfica e da análise documental(3).

O registro descritivo das observações foi em relação ao meio ambiente, às condições de atuação da equipe de enfermagem intensivista e da emergência, comportamentos, ações e atividades dos informantes, diálogos com os informantes, gerando os registros reflexivos acerca do método e da teoria utilizada no estudo.

As entrevistas etnográficas foram realizadas durante o período de trabalho dos informantes, num momento determinado pelos mesmos, para que não houvesse prejuízo no desenvolvimento da assistência prestada e nem interferência durante a entrevista, uma vez que essas unidades têm como característica a imprevisibilidade.

As entrevistas foram gravadas, com a anuência do informante, e os registros transcritos na íntegra. Além do registro dos dados coletados, através da observação participante, utilizou-se o diário de campo para anotações durante e após as entrevistas e para anotações das reflexões, enquanto pesquisadora.

Foram analisados documentos oficiais como a legislação brasileira, que regulamenta a doação de órgãos, além de outros documentos técnicos, como relatório e planejamento da Central de Notificação, Captação e Doação de Órgãos de Goiás, prontuários dos pacientes com morte cerebral, relatórios de enfermagem e relatórios da Coordenação de Transplante Renal e da Comissão Intra-Hospitalar de Transplante.

Fizeram parte deste estudo quatro enfermeiros e treze técnicos e auxiliares de enfermagem, que trabalham na unidade de terapia intensiva e na unidade de reanimação, amostra intencional de tamanho determinado pelo processo de saturação dos dados.

Os critérios de inclusão dos informantes foram aqueles que, voluntariamente, se propuseram a participar do estudo, os que trabalhavam na unidade há mais de seis meses e os que cuidaram de pacientes com morte encefálica.

A permanência da pesquisadora no local do estudo foi de 100 horas. Houve momentos de até 10 horas consecutivas de observações no processo de manutenção do potencial doador de órgãos, compreendendo o diagnóstico da morte encefálica, o primeiro exame clínico, o segundo exame clínico, a abordagem familiar e a solicitação para transferir o paciente para a unidade de terapia intensiva.

Este estudo seguiu a resolução 196/96 do Conselho Nacional de Saúde. O projeto foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa da UFMG e os participantes assinaram o termo de consentimento livre e esclarecido.

Buscou-se extrair valores e crenças que pudessem guiar as ações da equipe de enfermagem, da UTI e da reanimação, em relação à manutenção do potencial doador de órgãos através da análise de domínios culturais, das taxonomias e temática. Entende-se por análise de domínio a organização dos termos próprios da linguagem dos informantes, ou seja, os termos mais comuns e próprios da equipe de enfermagem que cuida do potencial doador de órgãos. A análise taxonômica se caracteriza pela organização da estrutura interna do domínio cultural. A análise temática dá uma visão holística da cultura em estudo(3).

DESCREVENDO A CULTURA DA EQUIPE DE ENFERMAGEM

O contato com os pacientes e o desconhecimento de lidar com a morte encefálica

A freqüência do contato com pacientes com morte encefálica pode ser explicada pela casualidade, uma vez que podem ser admitidos a qualquer momento. A maioria deles é encaminhada no período noturno, nos finais de semana e nos feriados. Alguns informantes relatam que já cuidaram de muitos casos de morte cerebral, uns dez, se não for mais...

No entanto, os informantes expressaram o desconhecimento sobre como cuidar, dizendo: que não sabiam por onde começar, que não foram chamados para treinamento, relatando, portanto, falta de conhecimento. A gente cuida porque é o que a gente acha que tem que ser feito, mas que a gente teve alguma orientação, não, nunca tivemos nada não. Nem preparar a gente psicologicamente ninguém nunca preparou.

A educação com a participação dos profissionais de saúde e da sociedade é um dos fatores determinantes para o sucesso ou o fracasso dos programas de transplantes. Ao retratar a importância de programas de educação continuada, a equipe de enfermagem é citada como elemento fundamental em todo o contexto do procedimento(2,4-5), uma vez que a aprendizagem significa mudança no comportamento da pessoa devido à incorporação de novos hábitos, atitudes, conhecimentos e destrezas.

Aprendendo com o médico e com a supervisora foi uma maneira de adquirir conhecimento para assistir o potencial doador de órgãos ...foi uma rotina que a gente foi pegando de acordo com os médicos. Chega e vão orientando: faz isso, faz aquilo.

Os treinamentos, cursos, textos e palestras foram referidos como estratégias de adquirir conhecimento sobre a morte encefálica. Os informantes relatam que receberam treinamento da central de transplante. Foi uma semana de curso, com 40 horas de duração. Foi um curso muito bom que a gente viu desde a legislação até a parte burocrática de AIH. Da mesma forma, relatam que aprenderam sozinhos, com o passar do tempo, no dia-a-dia, vendo prescrições médicas e vendo com os colegas.

A assistência de enfermagem ao paciente com morte encefálica

O cuidar de potenciais doadores de órgãos requer a manutenção de ventilação artificial, pois há alteração na troca gasosa em decorrência do edema pulmonar neurogênico, do trauma pulmonar, de infecção e das atelectasias. Aspirar secreção traqueal, sempre que necessário, é medida que tem por finalidade viabilizar a respiração artificial com maior eficiência e, conseqüentemente, melhor oxigenação tecidual(6-7).

Nos discursos dos informantes foram também identificadas essas demandas da assistência ao paciente com morte encefálica, pois relatam a necessidade de cuidar das vias aéreas,de vigiar a função renal, controlar a reposição de líquido, olhar volume e diurese. Essa assistência é realizada no sentido de controlar a disfunção endócrina que decorre da ruptura do eixo hipotálamo-hipofisário, que se caracteriza pela presença de diabetes insipidus que, quando não tratado, desencadeia perda volumosa de líquido, provocando diferentes distúrbios eletrolíticos(6-7).

Aquecer o paciente, olhar a temperatura, colocar cobertor são cuidados fundamentais, pois na morte encefálica há perda do centro termorregulador hipotalâmico, desencadeando hipotermia que pode gerar a depressão do miocárdio, as arritmias, a diminuição do transporte de oxigênio, o aumento da afinidade da hemoglobina pelo oxigênio, a disfunção renal, a pancreatite e as coagulopatias. Aquecer os fluidos endovenosos é cuidado que responde à necessidade de controlar a temperatura corporal(6-7).

Verificar e anotar a pressão arterial, olhar a perfusão, os sinais vitais devem ser realizados em razão da disfunção cardiovascular, que se manifesta através de severa hipertensão, seguida de hipotensão progressiva e, conseqüentemente, hipoperfusão tecidual. Tem como origem a vasodilatação sistêmica, decorrente da perda da atividade motora. A função miocárdica é alterada pelos distúrbios eletrolíticos, das perdas renais e por distúrbios hormonais. Além disso, deve-se atentar para a causa da hipotensão que pode ser multifatorial(6-7).

Cuidar das córneas através da umidificação foi também relatado como fundamental, uma vez que é um dos tecidos mais transplantados na atualidade. A córnea deve ser mantida umedecida e protegida com pomada para evitar ceratites(6-7).

Os cuidados identificados nos depoimentos dos informantes referiam-se a manter rigoroso controle de assepsia, com o intuito de evitar processos infecciosos. Tais cuidados são descritos na literatura, tais como a prevenção de escaras de decúbito e a necessidade da higiene corporal para que diminua os riscos de infecção(6-7).

Outros cuidados relatados pelos informantes são também citados na literatura, entre eles verificar e anotar o valor da glicemia. A hiperglicemia, decorrente da falência na secreção da insulina, altera o estoque de glicogênio, necessitando de reposição de insulina. Outros cuidados na manutenção do potencial doador, como observar e anotar a coagulação sangüínea devem ser realizados, uma vez que essa está relacionada ao grau de destruição cerebral. É também preconizado o uso da bomba de infusão quando administrar dopamina, medicação usada quando há resposta adequada à reposição volêmica(6-7).

As reações da equipe de enfermagem diante do paciente com morte encefálica

As reações da equipe frente ao paciente com morte encefálica são descritas como: ficando desumano, tendo dificuldade para cuidar e cuidando com amor. Assim, quando o paciente está em morte cerebral, aí ele é o mais esquecido. Alguns ignoram, acham que está em morte cerebral...

O profissional da saúde se fragmenta, se isola, nega e perde contato com uma forma de ação que, embora desconfortante, faz parte de sua história e de sua essência, ao lidar com situações angustiantes, o que poderá explicar a dificuldade dos informantes para cuidar do potencial doador de órgãos(8).

Assim, ao se aperceberem de suas condições humanas, os profissionais vivenciam momentos que os afetam, provocando sentimentos como a insegurança, incapacidade, o constrangimento, a impotência, o sofrimento e dor(9-10). Essas reações foram expressas pelos informantes: cuidar de alguém com morte encefálica se tornou doloroso. [...] Então é assim doído. Quando é criança então nossa, nem me coloca pra cuidar que eu não dou conta. Eu acho que eu não estou no fundo, no fundo, totalmente preparada pra lidar com isso...

Os profissionais de saúde não apreendem a morte e a vida como pertencendo também à esfera da natureza e da cultura, apesar de sua formação científica tratar os fenômenos da vida e da morte como eventos da esfera biológica(9).

Apesar de toda a experiência vivida e da dor sentida ao cuidar do paciente com morte encefálica, os profissionais de enfermagem que negligenciam a abordagem de seus sentimentos com referência à vida, ao processo de morte e à morte em si não desenvolvem a capacidade de analisar e encarar as próprias necessidades pessoais. O fato de conseguirem lidar com suas emoções e seus conflitos internos poderá levá-los a não prestar assistência qualificada ao potencial doador de órgãos(11).

Em estudo que analisou as atitudes de enfermeiras em relação à manutenção de doador de órgãos em uma unidade de terapia intensiva pediátrica, constatou-se que 32% das enfermeiras cuidam do doador sem se preocupar com ele; 25% acreditam nos benefícios que esses pacientes podem proporcionar a outras pessoas e 25% relatam que cuidar do doador de órgãos é uma experiência "vazia"(12).

No presente estudo, constatou-se que a equipe também cuida com esperança, pois o paciente está em morte cerebral, mas tem um órgão bom, tem que cuidar dele direitinho pra gente sentir assim, satisfeita, que um rim bom dele vai curar muitas vidas, é, salvar muitas vidas...

O significado de morte encefálica atribuído pela equipe de enfermagem

Para o enfermeiro, é importante o conhecimento científico da situação de morte do paciente e o aspecto fisiopatológico(13). Contudo, isso não é suficiente para inserir a cultura do transplante em uma equipe de muitas histórias pessoais.

Dos depoimentos dos informantes, emergiu o significado de morte encefálica como doador de órgãos. A idéia de que o paciente com morte encefálica, recebido na unidade, é para doar os órgãos indica que parte dessa subcultura assimila a concepção do processo doação-transplante, incorporado à equipe desde 1998, quando se iniciou esse procedimento nos serviços em Goiânia. Segundo os informantes, aqui acontece muito de chegar paciente com morte cerebral, já vem pra retirar os órgãos. Ele tem uma importância enorme, tem tanta retirada pra passar pra outro. A gente tem que imaginar que está ajudando uma outra pessoa, uma outra vida..

Em outros depoimentos dos informantes ficou evidente que os conceitos e valores de morte encefálica diferem da política atual do processo doação-transplante, uma vez que consideram que o paciente em morte encefálica está morto, não é paciente e não é uma pessoa. Aquele ali morreu o cérebro, então aquilo ali só está o coração batendo e sem a outra parte não vai funcionar. Pra mim o paciente com morte cerebral não é um paciente, não é uma pessoa, não tem aquele apego, aquele sentimento mesmo...

Em um trabalho qualitativo desenvolvido com graduandos de enfermagem, intitulado "estar educando para a morte", constataram a importância do tema "morte" para a formação desses estudantes, abrindo caminho que possibilita transcender o aspecto ôntico do exercício de enfermagem, na medida em que contempla a dimensão ontológica do homem que se cuida. Esse homem tem a morte como possibilidade concreta de sua existência(8).

A morte encefálica é também considerada pelos informantes como um paciente grave o que contribui para o sucesso da doação. Segundo os critérios de manutenção do potencial doador de órgãos, o mesmo deve ser mantido em uma unidade de terapia intensiva e tratado como paciente grave(6).

O significado atribuído ao transplante pela equipe de enfermagem

As implicações filosóficas mais amplas e as implicações éticas mais completas da era dos transplantes alvoreceram com o transplante cardíaco, que desencadeou o processo de desmistificação de que a medicina era uma ciência isenta de valores. Ou seja, a transplantação de órgãos passou a ser um assunto fundamental nas relações humanas(14).

Embora relatem experiências anteriores com transplantados não favoráveis, alguns informantes acreditam no transplante como sendo uma chance de vida para os transplantados que poderão ter uma vida normal. Segundo a equipe de enfermagem, o significado do transplante é de ajuda, uma ajuda muito grande. Todo mundo tinha que conscientizar e doar...É uma continuidade, pois quem precisa de um órgão para continuar....para ter uma melhora de vida.

Em 2002, na cidade de São Paulo, houve a "I Mini Maratona de Transplantados de Órgãos do Brasil", que foi um sucesso. Os objetivos dessa maratona foram de retornar à sociedade os resultados positivos do "sim" que ela deu no ato da doação de órgãos, de nortear a qualidade de vida dos transplantados e a inserção deles no convívio social. Acredita-se que uma sociedade se pauta em resultados positivos e em torno dos membros, ela amplia a sua conscientização de doar(15), permitindo à população acreditar no processo doação-transplante.

No entanto, alguns desacreditam nos transplantes, trazendo a idéia de que é algo ainda questionável sob o ponto de vista da qualidade de vida e dos riscos das complicações que podem levar o paciente a óbito mais rápido, assim: a gente sabe que pra ele ficar bom e normal demora muito tempo. Ultimamente está tendo muito pós-transplante na UTI com septicemia. Não sei por que fazer transplante, os pacientes morrem...

TEMA CULTURAL: NÃO É UMA PESSOA

A subcultura estudada elaborou um universo simbólico em relação ao potencial doador de órgãos. E esse universo simbólico norteou comportamentos, atitudes e ações. Assim, no processo de análise da vivência da equipe de enfermagem na manutenção de potenciais doadores de órgãos, emergiu o significado da morte encefálica para esses profissionais.

Em consonância com a literatura, os nativos souberam descrever os cuidados adequados para a manutenção dos pacientes em morte encefálica, ou seja, hidratar as córneas, hidratar o paciente, avaliar perdas de líquidos corporais, aquecer o corpo, manter ventilação mecânica e monitorização cardíaca, usar droga para manter a força contrátil do coração e drogas que preservam os outros órgãos. Conhecem, também, que há necessidade de realizar dois exames clínicos, devidamente registrados, para a avaliação da morte encefálica.

A manutenção se restringiu, contudo, ao banho no leito, à medicação de horário, à troca da roupa do leito e aquecer o paciente e não àqueles cuidados necessários para a efetiva manutenção do potencial doador de órgãos.

Do início da implantação do programa de transplante com doador cadáver, gradativamente, a equipe de enfermagem foi adquirindo conhecimentos para assistir o paciente com morte encefálica. Aprenderam no dia-a-dia, com o colega ou com alguns médicos, e apenas alguns informantes referiram ter participado de cursos específicos sobre o processo doação-transplante.

A falta de treinamento da equipe de enfermagem, no início da implantação do programa de transplante com doador cadáver, permitiu que crenças e valores se constituíssem em razões para que esses profissionais de enfermagem não se tornem doadores de órgãos, além de mostrar o despreparo diante do conceito de morte encefálica e da política vigente sobre doação-transplante.

No processo de imersão nos dados coletados identificou-se o significado de morte encefálica, que desvelou a inter-relação entre as categorias, constituindo-se no tema cultural deste estudo: não é uma pessoa.

As reações da equipe de enfermagem, diante da morte encefálica, foram desveladas através de sentimentos de dó, é dolorido, é difícil, choca, não se apega ao cuidar do potencial doador de órgãos, ocasionando diminuição da atenção dispensada à sua manutenção.

CONCLUSÃO

A compreensão dos valores, crenças e conhecimentos compartilhados pela equipe de enfermagem que vivencia os cuidados de manutenção de potenciais doadores de órgãos, revela conceito que é recorrente nos domínios culturais, ou seja, ele se repete na linguagem própria dos informantes.

O significado de transplante atribuído pela equipe de enfermagem é marcado pela descrença em razão de experiências anteriores, vivenciadas na unidade de terapia intensiva. Assim, as crenças e valores dessa subcultura interferem ou determinam distanciamento do paciente e conseqüente prejuízo na assistência adequada para a manutenção do doador e qualidade dos órgãos doados, podendo, talvez, justificar a manutenção do potencial doador de órgãos como segunda causa da não efetivação da doação de órgãos.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

Recebido em: 18.8.2006

Aprovado em: 1º.6.2007

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    17 Dez 2007
  • Data do Fascículo
    Out 2007

Histórico

  • Aceito
    01 Jun 2007
  • Recebido
    18 Ago 2006
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