Acessibilidade / Reportar erro

Assistência de enfermagem a portadores de anemia falciforme, à luz do referencial de Roy

Nursing care to patiens with sickle cell disease in the light of Roy's model

Atención de enfermería a portadores de anemia falciforme apoyada en el modelo conceptual de Roy

Resumos

O presente estudo busca aplicar os conceitos do modelo de Adaptação de Roy para identificar os comportamentos (adaptativos e inefetivos) de pacientes portadores de anemia falciforme, bem como os estímulos focais, contextuais e residuais responsáveis por tais comportamentos. A coleta de dados foi realizada no Ambulatório de Hemoglobinopatias do HCFMRP-USP. Foram sujeitos 9 pacientes (8 mulheres e 1 homem). Evidenciou-se, no modo fisiológico, o comportamento inefetivo de baixa oxigenação e suas conseqüências (desenvolvimento físico comprometido, retardo sexual, icterícia por hemólise, alterações respiratórias). No modo psicossocial, o autoconceito teve a diminuição da auto-estima como o comportamento mais destacado; o desempenho de papel foi caracterizado por mudanças de ocupação; quanto à interdependência, a mãe foi referida como o outro significante mais freqüente. Identificou-se, predominantemente, como estímulo causador dos comportamentos inefetivos, a vaso-oclusão. Verificou-se que a função fisiológica afetada altera os outros modos adaptativos.

adaptação; anemia falciforme; processos de enfermagem


This study aimed at applying the concepts from Roy's Adaptation Model in order to identify the behaviors (adaptive and ineffective) of patients with sickle cell disease as well as the focal, contextual and residual stimuli that are responsible for such behaviors. Data collection was conducted in the Hemoglobinopathy Outpatient Unit of the University Hospital at the University of São Paulo at Ribeirão Preto School of Medicine. Nine subjects (8 females and 1 male) were investigated. With respect to the physiological aspect, the ineffective behavior of low oxygenation and its outcomes (compromised physical development, sexual retardation hemolysis jaundice, respiratory alterations) were evidenced. Regarding the psychosocial aspects, self-image showed a reduction in self-esteem as the most distinguished behavior; role performance was characterized by occupation change. Considering interdependence, the mother was reported as the most frequent significant "other". Vaso-occlusion was predominantly identified as the causing stimulus for ineffective behaviors. It was verified that the affected physiological function alters other adaptive aspects.

adaptation; anemia; sickle cell; nursing process


Este estudio busca aplicar los conceptos del modelo de adaptación de Roy para identificar los comportamientos (adaptativos e inefectivos) de pacientes portadores de anemia falciforme, así como también como los estímulos focales, contextuales y residuales responsables por estos comportamientos. La recolección de datos fue realizada en la consulta externa de Hemoglobinopatias del HCFMRP-USP. Fueron sujetos 9 pacientes (8 mujeres y 1 hombre). Los resultados evidenciaron, en el modo fisiológico, el comportamiento inefectivo de baja oxigenación y sus consecuencias (desarrollo físico comprometido, retardo sexual, ictericia por hemólisis, alteraciones respiratorias). En el modo psicosocial y considerando el autoconcepto, fue observada la disminución de la auto estima como el comportamiento más destacado; el desempeño del rol fue caracterizado por cambios de ocupación; cuanto a la interdependencia, la madre fue referida como el otro significante más frecuente. Se identificó la oclusión de vasos sanguíneos como estímulo causador de comportamientos inefectivos y se verificó que la función fisiológica afectada altera otros modos de adaptación.

Adaptación; anemia de células falciformes; procesos de enfermería


ARTIGO ORIGINAL

Assistência de enfermagem a portadores de anemia falciforme, à luz do referencial de Roy

Nursing care to patiens with sickle cell disease in the light of Roy's model

Atención de enfermería a portadores de anemia falciforme apoyada en el modelo conceptual de Roy

Maria Lúcia IvoI; Emília Campos de CarvalhoII

IProfessor Doutor junto ao Departamento de Enfermagem da Universidade Federal do Mato Grosso do Sul

IIProfessor Titular da Escola de Enfermagem de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo, Centro Colaborador da OMS para o desenvolvimento da pesquisa em enfermagem, e-mail: ecdcava@eerp.usp.br

RESUMO

O presente estudo busca aplicar os conceitos do modelo de Adaptação de Roy para identificar os comportamentos (adaptativos e inefetivos) de pacientes portadores de anemia falciforme, bem como os estímulos focais, contextuais e residuais responsáveis por tais comportamentos. A coleta de dados foi realizada no Ambulatório de Hemoglobinopatias do HCFMRP-USP. Foram sujeitos 9 pacientes (8 mulheres e 1 homem). Evidenciou-se, no modo fisiológico, o comportamento inefetivo de baixa oxigenação e suas conseqüências (desenvolvimento físico comprometido, retardo sexual, icterícia por hemólise, alterações respiratórias). No modo psicossocial, o autoconceito teve a diminuição da auto-estima como o comportamento mais destacado; o desempenho de papel foi caracterizado por mudanças de ocupação; quanto à interdependência, a mãe foi referida como o outro significante mais freqüente. Identificou-se, predominantemente, como estímulo causador dos comportamentos inefetivos, a vaso-oclusão. Verificou-se que a função fisiológica afetada altera os outros modos adaptativos.

Descritores: adaptação, anemia falciforme, processos de enfermagem

ABSTRACT

This study aimed at applying the concepts from Roy's Adaptation Model in order to identify the behaviors (adaptive and ineffective) of patients with sickle cell disease as well as the focal, contextual and residual stimuli that are responsible for such behaviors. Data collection was conducted in the Hemoglobinopathy Outpatient Unit of the University Hospital at the University of São Paulo at Ribeirão Preto School of Medicine. Nine subjects (8 females and 1 male) were investigated. With respect to the physiological aspect, the ineffective behavior of low oxygenation and its outcomes (compromised physical development, sexual retardation hemolysis jaundice, respiratory alterations) were evidenced. Regarding the psychosocial aspects, self-image showed a reduction in self-esteem as the most distinguished behavior; role performance was characterized by occupation change. Considering interdependence, the mother was reported as the most frequent significant "other". Vaso-occlusion was predominantly identified as the causing stimulus for ineffective behaviors. It was verified that the affected physiological function alters other adaptive aspects.

Descriptors: adaptation, anemia, sickle cell, nursing process

RESUMEN

Este estudio busca aplicar los conceptos del modelo de adaptación de Roy para identificar los comportamientos (adaptativos e inefectivos) de pacientes portadores de anemia falciforme, así como también como los estímulos focales, contextuales y residuales responsables por estos comportamientos. La recolección de datos fue realizada en la consulta externa de Hemoglobinopatias del HCFMRP-USP. Fueron sujetos 9 pacientes (8 mujeres y 1 hombre). Los resultados evidenciaron, en el modo fisiológico, el comportamiento inefectivo de baja oxigenación y sus consecuencias (desarrollo físico comprometido, retardo sexual, ictericia por hemólisis, alteraciones respiratorias). En el modo psicosocial y considerando el autoconcepto, fue observada la disminución de la auto estima como el comportamiento más destacado; el desempeño del rol fue caracterizado por cambios de ocupación; cuanto a la interdependencia, la madre fue referida como el otro significante más frecuente. Se identificó la oclusión de vasos sanguíneos como estímulo causador de comportamientos inefectivos y se verificó que la función fisiológica afectada altera otros modos de adaptación.

Descriptores: Adaptación, anemia de células falciformes, procesos de enfermería

INTRODUÇÃO

Na enfermagem, os Modelos Conceituais compreendem uma organização de conceitos centrais da profissão, expressando como cada autor vê a pessoa que recebe cuidado, sua interação com o ambiente, seu estado de saúde e a assistência de enfermagem. Isso direciona os enfermeiros a coletar dados, identificando alterações, selecionar intervenções e avaliar os resultados.

O Modelo de Adaptação de Roy(1) foi inicialmente baseado na teoria de sistemas. A pessoa é vista como um sistema adaptativo, constantemente respondendo a estímulos do meio ambiente interno e externo. Esses estímulos são caracterizados em: focais, referem-se aos fatores que precipitam os comportamentos observados e afetam imediatamente a pessoa; contextuais, são os outros estímulos presentes que contribuem para o comportamento observado e podem ser identificados pelo estímulo focal; residuais: constituem fatores passíveis de afetar o comportamento, mas nem sempre são conhecidos pelo paciente.

Neste enfoque, o objetivo principal de enfermagem é a promoção da adaptação do cliente nos quatro modos adaptativos. Os modos são:

fisiológico: compreende as respostas físicas aos estímulos e as manifestações das atividades fisiológicas; contempla cinco necessidades básicas (oxigenação, eliminação, nutrição, atividade e repouso e integridade da pele) e os processos de regulação (sentido, líquido e eletrólitos, função endócrina e função neurológica);

autoconceito ou identidade grupal: considera os aspectos psicológicos, morais e espirituais da pessoa. É o conjunto de crenças, valores e sentimentos;

função do papel: é de natureza social e compreende os papéis que a pessoa desempenha na sociedade;

interdependência: também de natureza social, refere-se às interações entre dar e receber amor, respeito e valor. Ao promover a adaptação, a enfermeira contribui para a saúde, a melhoria da qualidade de vida ou morte com dignidade.

Para realizar esse objetivo, a enfermeira faz uma avaliação inicial ou de primeiro nível. Ela avalia os comportamentos do cliente, em cada um dos modos adaptativos, categorizando-os em adaptativos, inefetivos e adaptativos necessitando de reforço. A seguir, seleciona as áreas de interesse e realiza um segundo nível de avaliação dos comportamentos inefetivos e dos que necessitam reforço; passa, então, a identificar os estímulos focal, contextual e residual responsáveis por esses comportamentos. Dessa avaliação, a enfermeira determina o nível de adaptação.

O nível de adaptação indica a ela que o processo de vida encontra-se integrado, compensatório ou comprometido, levando-a a diagnosticar a situação. A seguir, ela estabelece os objetivos, seleciona as estratégias para intervenção e avalia os resultados comportamentais(2). Esses passos compõem o processo de enfermagem nessa abordagem teórica.

Tendo como perspectiva a sistematização da assistência a clientes com anemia falciforme, à luz do referencial de Roy, desenvolveu-se o presente estudo com o seguinte objetivo:

- identificar os comportamentos (adaptativos, inefetivos e os adaptativos necessitando de reforço) e os estímulos (focais, residuais e contextuais) responsáveis por esses comportamentos no cliente portador de anemia falciforme.

MÉTODO E PROCEDIMENTOS

Trata-se de um estudo descritivo que busca retratar as características de um grupo de sujeitos e a ocorrência de determinados fenômenos(3). O projeto foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Instituição que sediou o estudo. Foram sujeitos os pacientes que participaram do programa ambulatorial de transfusão sangüínea do setor de hematologia do HCFMRP-USP. A seleção da amostra seguiu os critérios: diagnóstico médico de Anemia Falciforme; catorze anos de idade ou mais; disponibilidade e vontade de participar do estudo; autorização prévia formal dos clientes ou responsáveis (em casos de menores de 18 anos de idade). Nove sujeitos clientes atenderam aos critérios de inclusão.

A coleta de dados foi realizada por uma das autoras do trabalho; os dados foram obtidos por meio dos métodos de observação - inspeção, palpação, percussão e ausculta -, mensuração e interação, registrados em impressos específicos; os dados foram obtidos nos dias agendados para consulta e tratamento do paciente.

Em ambiente reservado, respeitando a aquiescência do sujeito, seguindo-se um roteiro, foi determinada a condição geral do cliente (avaliação de 1º Nível) quando foram verificadas as respostas adaptativas, inefetivas e as que necessitavam de reforço, e, a seguir, procedeu-se a avaliação dos estímulos que influenciaram tais comportamentos (avaliação de 2º nível).

Os itens do instrumento foram:

- Identificação: sexo, idade (anos), profissão/ocupação, religião, estado civil, nível de instrução e renda familiar.

- Avaliação do modo fisiológico, englobando necessidades básicas (oxigenação, nutrição, eliminação, atividade e repouso, integridade de pele) e os processos de regulação (sentidos, endócrina, fluidos e eletrólitos, e neurológica).

- Avaliação dos modos psicossociais: autoconceito, desempenho do papel e interdependência.

Para análise dos dados, adotaram-se as categorias já descritas, envolvendo a primeira e a segunda etapa do Processo de Enfermagem proposto pela autora (assessment de comportamentos e de estímulos). Face à diversificação e complexidade, estão apresentados, predominantemente, os comportamentos inefetivos.

APRESENTAÇÃO E ANÁLISE DOS RESULTADOS

As respostas da clientela serão apresentadas segundo os modos adaptativos. Inicialmente, serão reportados os dados oriundos da avaliação de primeiro nível.

Em relação ao modo fisiológico, os dados obtidos revelaram inúmeros comportamentos adaptativos, comportamentos que necessitavam de reforço e comportamentos inefetivos. Dentre esses, foram identificados 51 comportamentos que necessitaram de intervenção de enfermagem, relativos às necessidades básicas - oxigenação, nutrição, eliminação, atividade e repouso e integridade de pele – bem como às necessidades de regulação - sentidos, endócrina, fluidos, eletrólitos e funções neurológicas.

Na categoria oxigenação, todos os sujeitos apresentaram comportamentos inefetivos com relação à respiração alterada.

Em relação ao comportamento inefetivo observado, - ...respiração cansada ao realizar caminhadas, subir rampas ou escadas, executar serviços pesados ou deambular depressa, revelado pela totalidade dos sujeitos, acredita-se estar ele relacionado com o nível baixo de hemoglobina desses pacientes, usualmente de 6,5 a 10g/100ml(4).

Na amostra, os resultados laboratoriais registrados no prontuário em relação à Hemoglobina (Hb), registraram valores entre 7,5 e 10,6g/100ml, no período da observação pela Enfermagem.

Vale ressaltar, contudo, a participação regular desses clientes no Programa de Transfusão Sangüínea, com retorno de três em três semanas. Acredita-se que essa terapêutica melhore a qualidade de vida desses sujeitos, mas, por outro lado, predispõem-nos a riscos.

A transfusão pode ser usada como indicação específica no tratamento de clientes com anemia falciforme(5). Quanto ao número de transfusões usadas, porém, isso deve ser o mínimo necessário. Estudiosos alertam para as complicações de transfusão; dentre outras, a sobrecarga de ferro. Todos os sujeitos que receberem mais do que 100 unidades de sangue (25gramas de ferro) devem ser avaliados quanto ao tratamento com desferrioxamina, como quelante de ferro, no organismo.

Quanto à categoria nutrição, verificou-se o comportamento inefetivo, afetando quatro sujeitos da amostra - ...desenvolvimento físico não corresponde à idade.

Em clientes brasileiros com síndromes falciformes, o déficit de crescimento é, provavelmente, o resultado de fatores múltiplos, como: hipóxia tissular, que é causada pelo baixo hematócrito, disfunção endócrina associada à anemia, danos orgânicos crônicos e agudos causados pelo efeito da falcização, ingestão dietética muito pobre e estado socioeconômico muito baixo(6).

Quanto à mucosa sublingual ictérica, encontrada na totalidade da amostra, é possível relacioná-la à anemia hemolítica crônica desses sujeitos. Esse dado, juntamente com a esclerótica ictérica, é significativo para a enfermeira no exame físico e varia em grau de intensidade, de acordo com o nível de hemoglobina do cliente.

Quanto à ingestão líquida, os dados revelaram que alguns desses sujeitos não chegam a tomar 600ml diários. Alguns, devido a complicações, outros por não considerarem a ingestão de líquidos um aspecto relevante a ser observado (dois sujeitos da amostra).

Em relação à ingestão líquida, essa prática deve ser orientada pela equipe de saúde ao cliente(5). A quantidade de líquido recomendada, aproximadamente de 2000 a 3000ml, em 24 horas, tem a finalidade de provocar hemodiluição, dificultando o processo de polimerização, ou seja, buscando prevenir a falcização.

As autoras do trabalho concordam com estudiosos já mencionados, ao enfatizarem que a orientação sobre a ingestão de líquido deve ser dada à criança desde pequena, ou ao seu responsável, de modo que esse comportamento constitua um hábito para o sujeito, para melhorar a sua qualidade de vida.

Na análise da categoria atividade e repouso, constatou-se, em metade da amostra, a presença de deformidades de articulações, resultando em marcha e postura alteradas.

Convém ressaltar a utilização de próteses por alguns desses elementos, em razão de tratamento de necrose asséptica da cabeça femural ou de outras articulações. Salienta-se que esses clientes não estão livres da presença de outras doenças que acometem o ser humano, como artrite reumatóide, verificada em um dos sujeitos.

Quanto ao repouso, observou-se que dois sujeitos apresentaram atrofia muscular, em conseqüência do desuso dos membros. Esse dado deve ser relacionado à idade dos sujeitos; ainda há que se considerar que, devido às oclusões por infartos medulares sucessivos, pode ocorrer medula óssea necrótica, favorecendo o aparecimento de infecções.

Um dado significativo nessa categoria é tocante a exercícios e esportes que os sujeitos, em sua totalidade, revelaram não praticar.

As orientações educacionais devem conter recomendações sobre atividade física aos sujeitos, ou seja que, desde criança, os exercícios e os esportes devem ser praticados, dentro das limitações de cada um(5).

No que se refere à categoria integridade de pele, observou-se alto índice de sujeitos (55%) que desenvolveram úlceras falciformes. Cabe destacar que "o fluxo sangüíneo diminuído devido à vaso-oclusão e à tensão superficial, resultante da posição ereta, predispõe essa clientela à complicação"(5).

Cabe destacar o desconforto que essa ulcera traz ao sujeito afetado, considerando ser ela de difícil cicatrização. Nos sujeitos acometidos dessa lesão, observou-se um certo desânimo quanto à sua cicatrização. Esse fato contribuiu para diminuir a auto-estima, alterando seu autoconceito.

As manchas de úlceras nas regiões maleolares, encontradas em 44% dos sujeitos da amostra, são de um dado expressivo, face à susceptibilidade aumentada desses sujeitos à úlcera. Sabe-se que, quando as úlceras cicatrizam, o tecido cicatrizado fere-se com facilidade. Assim, sugere-se que a enfermagem, em suas orientações a essa clientela, enfatize a proteção às regiões maleolares, favorecendo a circulação na área (tênis apropriado, evitar bota de cano e calça apertada, dentre outras medidas):

Quanto ao processo de regulação, analisar-se-á, dentre suas quatro categorias (sentidos, endócrino, fluidos/eletrólitos e neurológico), apenas as duas primeiras.

Na categoria sentidos, cabe destacar que 44% dos sujeitos apresentaram alterações visuais, e 33%, auditivas. Nessa categoria, incluiu-se a dor(1). Na amostra em pauta, 100% dos sujeitos aludiu às crises dolorosas, com início na infância, sendo esta a manifestação clínica mais comum na anemia falciforme, produzida pelo fenômeno vaso-oclusivo, ou seja, as hemácia falcizadas obstruem os vasos sangüíneos.

A informação sobre como o episódio de dor se desenvolvia revelou que, para a totalidade da amostra, a crise de dor manifestava-se atacando, inicialmente, a região óssea, como articulações, o abdômen e parte inferior das costas; destacou-se que, hoje, os pacientes não são mais acometidos por episódios de dor. Reitera-se o fato de a amostra em discussão pertencer ao programa de transfusão sangüínea periódica.

Na categoria endócrina, destaca-se o comportamento inefetivo apresentado por uma cliente da amostra - maturação sexual não correspondente à cronológica; essa pessoa está na faixa etária de quatorze anos. Seus caracteres sexuais, mama e cabelo púbico, mostravam-se ausentes, refletindo um retardo dessas manifestações sexuais, em comparação com pessoas que não têm anemia falciforme. Outro dado significativo na amostra foi o aparecimento da menarca, na maioria das mulheres incluídas no estudo, dos quinze anos em diante. As pacientes portadoras de síndromes falciformes têm menarca tardia, podendo ocorrer depois de 20 anos. Ao se compararem jovens e adultos, observa-se que, mesmo havendo um atraso para a puberdade, a maturidade sexual normal é obtida posteriormente(6).

Na avaliação de segundo nível da função fisiológica, foram identificados os estímulos focal, residual e contextual. O estímulo focal responsável pela função física (necessidade básica) alterada é a vaso-oclusão, decorrente das hemácias falcizadas. Identificaram-se como estímulos contextuais aqueles desencadeados pelo próprio processo da doença (falta de oxigenação suficiente, idade, cultura dos sujeitos, comportamentos de proteção à saúde reduzidos, medicações, complicações do processo de doença, etc) e, como estímulos residuais, detectaram-se sentimentos de impotência, crenças de transmissão de doenças pelo sangue, crença de que Deus quis que ficassem doentes, dentre outros.

A seguir, serão apresentados os comportamentos inefetivos identificados na avaliação de primeiro nível e os estímulos observados na avaliação de segundo nível para o modo psicossocial que compreende autoconceito ou identidade grupal, função do papel e interdependência.

O autoconceito é o mediador entre o mundo externo e o interno da pessoa. A pessoa necessita saber quem ela é, de forma que possa ser, ou existir, com sentido de unidade. A pessoa encontra-se dividida em duas áreas: eu físico e eu pessoal(7).

O eu físico corresponde ao próprio corpo, englobando atributos físicos, funcionamento do organismo, sensibilidade, aparência, estados de saúde e doença. Compõe-se das seguintes categorias: sensação corporal e imagem corporal. Na primeira, registraram-se dois comportamentos inefetivos:

(I) ... não sinto bem fisicamente ... fraco... em relação à altura e peso para homem ...

(I) ...meu físico não corresponde à minha idade... me acho fraco...

Observou-se que a insatisfação dessas pessoas, frente às sensações corporais, aponta para um baixo sentido de sua autovalorização. Esse sentimento pode diminuir a habilidade dessas pessoas para enfrentamentos das situações. Por outro lado, a imagem corporal significa a percepção da pessoa sobre o seu corpo. Nessa categoria, detectou-se como comportamento inefetivo:

(I) ... estou sofrendo alterações... que estão levando a menos atividade...

Essa percepção é inconsciente, e sua base é afetiva. O corpo é vivido como o primeiro meio de relação com o outro; ênfase deve ser dada a esse comportamento para prevenir que o sujeito inicie o processo de se isolar socialmente.

O eu pessoal refere-se à apreciação do indivíduo sobre suas próprias características. Essa categoria é composta por autoconsistência, auto-ideal e ser moral-ético-espiritual. Destaca-se o comportamento inefetivo observado na categoria pessoal em relação à autoconsistência. Cabe lembrar que a autoconsistência constitui parte do componente do eu pessoal que tenta manter uma auto-organização constante, tendo por fim evitar desequilíbrios.

(I) ... com as complicações da doença... preocupo com o futuro de minha filha...

Esse comportamento revela insegurança frente à anemia falciforme, ou seja, a pessoa não sabe "o que" esperar e "quando" esperar. Outro comportamento subentendido é o medo da morte. Observa-se que esses comportamentos reduzem a auto-estima na pessoa.

A auto-estima é o aspecto penetrante do componente eu pessoal, que se relaciona ao valor que a pessoa tem de si, e a redução da auto-estima é vista como um sentimento negativo de desânimo que dificulta a capacidade de uma pessoa para se daptar ao meio ambiente(8).

No caso da anemia falciforme, a vaso-oclusão, responsável pela lesão lenta dos órgãos, pode levar a pessoa a sentir que sofreu perda de partes ou função do corpo. Esse fato pode conduzi-la, também, a questionar seu valor, alterando, dessa forma, seu autoconceito físico. Se uma pessoa tem baixa auto-estima, ela tende a perceber o meio ambiente como negativo e ameaçador.

A pessoa será capaz de lidar mais ativamente com o ambiente, se os sentimentos de autovalor e segurança foram interiorizados. O indivíduo seguro perceberá menos eventos externos como ameaçadores, portanto terá menos ansiedade; conseqüentemente, terá mais facilidade para modificar ou alterar aspectos do seu eu.

O auto-ideal compreende o que a pessoa gostaria de ser, relacionado àquilo que a pessoa é; na amostra, os nove comportamentos identificados relacionados a essa característica do eu pessoal foram considerados adaptativos.

O ser moral-ético-espiritual corresponde ao sistema de crenças da pessoa e ao sistema avaliador de quem a pessoa diz que é; na amostra, foi identificado um comportamento inefetivo dessa categoria.

(I) ... não me levam satisfação ... como pessoa ... marido me xinga muito ... ele bebe ... acredito que vou vencer ...

Observa-se uma pessoa em conflito com seu sistema de crenças, podendo levar a conflito de decisões.

O modo da função do papel consiste em um conjunto de expectativas, a partir do modo como uma pessoa se comporta ao ocupar uma posição em relação ao outro, de forma que possa agir adequadamente. A posição é o lugar que a pessoa ocupa na sociedade, para as tarefas ou papéis a serem desempenhados(9).

As pessoas podem exercer três tipos de papéis, a saber: primários (determinados por idade, sexo e estágio de desenvolvimento); secundários (que realizam os objetivos de cada etapa do desenvolvimento e são associados ao papel primário); terciários (são livremente escolhidos por uma pessoa, sendo de natureza temporária)(9).

Verificando-se o papel primário dessa amostra de clientes com anemia falciforme, identificaram-se, em sua maioria, os correspondentes ao adulto jovem (sendo seis mulheres e um homem), a um adulto (mulher) e a uma adolescente.

Como papel secundário, foram incluídos neste estudo os papéis de mãe, filha e doente crônico. Vale a pena enfatizar que o papel de doente foi identificado nesses sujeitos como secundário e não terciário, como seria o habitual.

O papel de doente, em função da natureza temporária, geralmente é rotulado como papel terciário(9). No caso, quando a doença se torna crônica, o papel de doente move-se para a posição de papel secundário.

Na amostra, foram identificados como papéis terciários: músico, participante como membro de associação ou clube, jovens pertencentes a Igrejas, estudante, doméstica e vendedor. Verificou-se que o tratamento da anemia falciforme, freqüentemente episódico, leva o cliente, às vezes, a internações, sobrevindo a mudança constante de ocupações. Dessa forma, a própria falta de ocupação e mudança de papéis entre eles é comum, devido à perda de emprego, pela incompreensão dos patrões que não pagam os dias em que faltaram, devido à doença(9). Essa transição de papéis deve ser julgada pela enfermeira se é adaptativa ou inefetiva.

O Modo da Interdependência, cabe lembrar, é o comportamento apresentado em relação ao seu outro significante (refere-se ao indivíduo ao qual o maior significado ou importância é atribuído) e ao seu sistema de apoio (pessoas, grupos ou animais, os quais fornecem as mesmas funções de dar e receber amor, respeito e valor, porém não carrega a mesma intensidade como aquele, em relação ao outro significante)(10).

Destaca-se, nesta amostra, a presença de oito elementos que referiram como outro significante a mãe, e apenas um comportamento atribuido à filha; reportaram-se a elas como receptoras de amor, respeito e valor. Nesse sentido, esses comportamentos são considerados adaptativos. Evidenciam-se, contudo, como inefetivos, os comportamentos de um sujeito da amostra, em relação ao seu outro significante - mãe.

...às vezes me sinto bem... a superproteção me torna insegura... chegando a me prejudicar...

...sinto como um peso para ela...

As preocupações podem ser freqüentemente diminuídas, se os problemas como enfrentamento, dependência/independência, superproteção e uso da doença crônica de uma maneira negativa forem tratados logo na primeira infância(5).

Como sistema de apoio, os sujeitos da amostra relataram: mãe, filha, primos, colegas, patroa, enfermeiros, médicos e irmãos. Apenas um comportamento foi considerado inefetivo, mencionado por uma adolescente:

I ...minha prima brinca de boneca comigo, mas meu pai bebe e xinga eu...

Nesse caso, a construção de uma relação de amizade ou amor parece difícil; a amizade está embasada em cuidar do outro, respeitá-lo, responsabilizar-se por ele(10).

Cabe, ainda, destacar que o sistema de saúde, como sistema de apoio, foi mencionado por apenas 1 dos sujeitos (A): "vocês escutam a gente".

Na avaliação de segundo nível, no autoconceito, foram identificados como estímulos inefetivos os seguintes: estímulos focais (alterações na postura, alterações físicas e participação no programa de transfusão); estímulos contextuais (portadores de anemia falciforme, baixa auto-estima); estímulos residuais (pouco conhecimento sobre a doença). Já na interdependência foram identificados: estímulo focal (necessidade de dar e receber amor, respeito e valor); contextuais (incerteza da eficácia do tratamento: separação dos pais, relações maritais insatisfatórias, dificuldades motoras); estímulos residuais (desejo de salvar o casamento, medo da morte, desejo de viver para criar filho). No desempenho de papel, os estímulos desencadeadores dos comportamentos inefetivos foram: focal (deformidades articulares) contextual (baixa educação em saúde) e residuais (autoconceito baixo e crença divina sobre a doença).

Como se pode observar, há uma inter-relação entre os modos adaptativos; um distúrbio em um dos modos pode afetar os demais.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A pessoa, como sistema adaptativo, deve ser vista como um todo holístico, em seus quatro modos adaptativos: fisiológico, autoconceito ou identidade grupal, desempenho do papel e interdependência em interação contínua com um ambiente em alteração.

Utilizaram-se, neste estudo, os dois primeiros passos do Modelo de Adaptação de Roy: a observação dos comportamentos inefetivos e a identificação dos respectivos estímulos que influenciaram tais comportamentos. Verificou-se que essa abordagem contribui para alicerçar futura assistência de enfermagem a pacientes portadores de anemia falciforme.

Dos resultados, verificou-se que essa amostra em estudo apresentou comportamentos inefetivos prioritários, em conseqüência da oxigenação inadequada. Desse modo, apresentaram-se com desenvolvimento comprometido, respiração cansada devido a esforços, retardo sexual, icterícia devido à hemólise, entre outros. Quanto aos estímulos causadores dos comportamentos inefetivos registrou-se, no modo fisiológico, como focal, a vaso-oclusão. No modo do autoconceito, a diminuição da auto-estima foi o comportamento observado, em razão de o desenvolvimento físico não corresponder à idade cronológica. O desempenho do papel, nesse grupo, foi caracterizado por mudanças constantes de ocupações, devido ao tratamento da doença, que exige ausências constantes ao serviço. Com referência à interdependência, foi revelado, como o outro significante desse grupo, prioritariamente, a mãe.

Tratando-se de doença crônica, torna-se imprescindível que a clientela conheça sua doença para saber o quê e quando esperar em cada situação, colaborando, dessa forma, com sua própria adaptação.

Para tanto, sugere-se a abordagem terapêutica interdisciplinar em saúde, formada por grupo de profissionais (enfermeiros, médicos, psicólogos, assistentes sociais, dentre outros) para assistência aos clientes com anemia falciforme, em seus diversos aspectos, buscando seu melhor nível de adaptação.

Recebido em: 22.3.2000

Aprovado em: 11.10.2002

  • 1. Roy SC. Introduction to nursing: an adaptation model. Englewood Cliffs: Prentice-Hall; 1984.
  • 2. Roy SC, Andrews H. A Roy adaptation model. Englewood Cliffs: Prentice-Hall; 1999.
  • 3. Polit DF, Hungler BF. Fundamentos de Pesquisa em Enfermagem. Porto Alegre: Artes Médicas; 1995.
  • 4. Forget BC. Anemia falciforme e hemoglobinopatias associadas. In: Wyngaarden JB, Smith LH. Tratado de medicina interna. Maryland: Guanabara; 1991. p.824-30.
  • 5. Charache S, Lubin B, Reid CD. Management and therapy of sickle cell disease. Maryland: National Institutes of Health; 1985. (NIH Publication, n.85-2117).
  • 6. Zago MA, Kerbany J, Souza HM, Costa FF, Cruz SMP, Braga JAP, et al. Growth and several maturation of brazilian patients with sickle cell diseases. Trop Geograph Med 1992; 44: 371-421.
  • 7. Buck MH. Self-concept: theory and development. In: Roy C. Introduction to nursing: an adaptation model. Englewood Cliffs: Prentice-Hall; 1984. p.255-82.
  • 8. Driver MJ. Theory of self-concept. In: Roy C. Introduction to nursing: an adaptation model. Englewood Cliffs: Prentice-Hall; 1984. p.255-82.
  • 9. Nuwayhid KA. Role function: theory and development. In: Roy C. Introduction to nursing: an adaptation model. Englewood Cliffs: Prentice-Hall; 1984. p.284-305.
  • 10. Tedrow MP. Interdependence: theory and development. In: Roy C. Introduction to nursing: an adaptation model. Englewood Cliffs: Prentice-Hall; 1984. p.306-22.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    26 Fev 2004
  • Data do Fascículo
    Mar 2003

Histórico

  • Recebido
    22 Mar 2000
  • Aceito
    11 Out 2002
Escola de Enfermagem de Ribeirão Preto / Universidade de São Paulo Av. Bandeirantes, 3900, 14040-902 Ribeirão Preto SP Brazil, Tel.: +55 (16) 3315-3451 / 3315-4407 - Ribeirão Preto - SP - Brazil
E-mail: rlae@eerp.usp.br