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O legado do cuidado como aprendizagem reflexiva

Resumo

Objetivo:

analisar se o uso de estratégias reflexivas por parte da tutora de estágio clínico estimula a reflexão nos estudantes. A intenção é descobrir qual tipo de estratégias podem ajudar a fazê-lo e como as tutoras e os estudantes se comportam no contexto prático.

Método:

foi adotado um enfoque qualitativo de cunho etnográfico em que participaram 27 estudantes e 15 tutores de três centros de saúde que haviam recebido formação específica sobre tutoria clínica reflexiva. A análise foi realizada por meio de comparações constantes das categorias.

Resultados:

os resultados demonstram que o uso de estratégias reflexivas como a interrogação didática, a empatia didática e o silêncio pedagógico por parte das tutoras, contribui para fomentar a reflexão do estudante e sua aprendizagem significativa.

Conclusões:

a prática reflexiva é a chave para a formação dos tutores e para a aprendizagem dos estudantes.

Descritores:
Educação em Enfermagem; Preceptoria; Educação Superior; Aprendizagem; Estágio Clínico; Formação de Conceito

Abstract

Objective:

to analyze whether the tutor's use of reflexive strategies encourages the students to reflect. The goal is to discover what type of strategies can help to achieve this and how tutors and students behave in the practical context.

Method:

a qualitative and ethnographic focus was adopted. Twenty-seven students and 15 tutors from three health centers participated. The latter had received specific training on reflexive clinical tutoring. The analysis was developed through constant comparisons of the categories.

Results:

the results demonstrate that the tutors' use of reflexive strategies such as didactic questioning, didactic empathy and pedagogical silence contributes to encourage the students' reflection and significant learning.

Conclusions:

reflexive practice is key to tutors' training and students' learning.

Descriptors:
Education, Nursing; Preceptorship; Education, Higher; Learning; Clinical Clerkship; Concept Formation

Resumen

Objetivo:

analizar si el uso de estrategias reflexivas por parte de la tutora de prácticas clínicas fomenta la reflexión en los estudiantes. Se trata de conocer qué tipo de estrategias pueden ayudar a hacerlo y cómo se comportan tutoras y estudiantes en el contexto práctico.

Método:

se ha utilizado un enfoque cualitativo de corte etnográfico en el que participaron 27 estudiantes y 15 tutores de tres centros sanitarios que habían recibido formación específica sobre tutoría clínica reflexiva. El análisis se ha realizado mediante las comparaciones constantes de las categorías.

Resultados:

los resultados demuestran que el uso de estrategias reflexivas como la interrogación didáctica, la empatía didáctica y el silencio pedagógico por parte de las tutoras contribuye a fomentar la reflexión del estudiante y su aprendizaje significativo.

Conclusiones:

la práctica reflexiva es la clave para la formación de los tutores y para el aprendizaje de los estudiantes.

Descriptores:
Educación en Enfermería; Preceptoria; Educación Superior; Aprendizaje; Prácticas Clínicas; Formación de Concepto

Introdução

Partindo da noção de prática reflexiva11. Tikkamäki K, Hilden S. Making work and learning more visible by reflective practice. Res Post-Compulsory Educ. 2014;19:(3):287-301.-22. Tembrioti L, Tsangaridou N. Reflective practice in dance: a review of the literature. Res Dance Educ. 2014;15(1):4-22. e considerando-a como um processo complexo que gera conhecimento profissional e em que intervêm aspectos tão relevantes como a intuição, a criatividade, as experiências e vivências da pessoa33. Belvis E, Pineda P, Armengol C , Moreno V. Evaluation of reflective practice in teacher education. Eur J Teacher Educ. 2013;36(3):279-92., parece necessário começar a cultivar um saber reflexivo que dê sentido à ação profissional. Neste sentido, a prática reflexiva é um meio apoiador para uma prática inovadora44. East M. Mediating pedagogical innovation via reflective practice: a comparison of pre-service and in-service teachers' experiences. Reflect Pract: Int Multidisciplinary Perspect. 2014;15(5):686-99.) e que permite analisar a capacidade de refletir sobre as experiências vividas55. Tikkamäki K, Hilden S. Making work and learning more visible by reflective practice. Res Post-Compulsory Educ. 2014;19(3):287-301.. Na prática profissional, continuamos influenciados pelas premissas do paradigma positivista. Os estudantes imitam os profissionais sem nenhum processo individual de reflexão66. Trede F, Smith M. Teaching reflective practice in practice settings: students' perceptions of their clinical educators. Teaching Higher Educ. 2012;17(5):615-27.. A prática reflexiva é a grande mudança. Trata-se de desenvolver uma cultura que valorize o descobrimento e a experimentação contínua55. Tikkamäki K, Hilden S. Making work and learning more visible by reflective practice. Res Post-Compulsory Educ. 2014;19(3):287-301.. O aspecto-chave seria como contribuir para que os estudantes captassem o objetivo da função assistencial e sejam capazes de adaptá-la às situações concretas e individuais do paciente e da situação da prática?

Seria uma nova forma de aprender e um novo papel para os docentes, um modelo mais centrado no estudante e na experiência44. East M. Mediating pedagogical innovation via reflective practice: a comparison of pre-service and in-service teachers' experiences. Reflect Pract: Int Multidisciplinary Perspect. 2014;15(5):686-99.. Os programas formativos são confrontados cuidados enfermeiros de qualidade superior, favorecendo o crescimento e o desenvolvimento profissional77. Shepherd R, Pinder J. Reflective practice in addiction studies: promoting deeper learning and de-stigmatising myths about addictions. Reflect Pract: Int Multidisciplinary Perspect. 2012;13(4):541-50.. Na enfermagem, repensar a prática supõe desenvolver capacidades reflexivas e incrementar a consciência sobre a complexidade e a diversidade do cuidado88. Collin S, Karsenti T, Komis V. Reflective practice in initial teacher training: critiques and perspectives. Reflective Practice. 2013;14(1):104-17..

O objetivo é analisar se o uso de estratégias reflexivas contribui para fomentar a reflexão nos estudantes.

Método

Desenho qualitativo de cunho etnográfico em que participaram 27 estudantes de três Escolas Universitárias de Enfermagem (7 homens e 20 mulheres, com idades entre 21 e 26 anos) e 15 tutores de três centros de saúde (2 homens e 13 mulheres, com idades entre 27 e 48 anos), que tinham recebido formação específica sobre a tutoria clínica reflexiva. Os dados foram coletados através da triangulação de métodos: observação não participante das práticas de formação e das tutorias reflexivas entre tutores e estudantes, entrevistas em profundidade e grupos de discussão realizados ao longo de 3 anos pela pesquisadora do estudo (MRG), naquele momento professora de uma escola de enfermagem com experiência assistencial de 12 anos. A duração dos cursos foi de 30 horas, com uma parte teórica, em que os profissionais experimentaram o Enfoque de Tutoria Reflexiva de Supervisão Clínica e algumas das estratégias reflexivas; e uma parte prática, em que as tutoras e estudantes participaram de conversas reflexivas sobre uma situação da prática que tinham compartilhado. Entre a parte teórica e a prática, os tutores tinham um período de treinamento. Os critérios de seleção dos tutores foram a disponibilidade e coincidência no tempo entre seu trabalho de tutoria e os cursos de formação. Os estudantes foram aqueles atribuídos a sua função. Foi solicitada a participação voluntária, explicando-lhes previamente os objetivos de sua participação. A relação com os participantes foi estabelecida durante o curso de formação. A todo momento, contamos com a presença dos responsáveis de formação de cada centro. Na última sessão de cada curso, os resultados preliminares eram apresentados aos tutores e estudantes.

Paralelamente, os períodos de observação foram realizados nas distintas unidades e as entrevistas em profundidade foram realizadas com os tutores e grupos de discussão com os tutores e estudantes. Ao total, foram realizadas 115 horas de observação não-participante, duas entrevistas individuais com tutoras, duas entrevistas grupais com tutoras, quatro entrevistas grupais com estudantes e foram gravadas 22 tutorias reflexivas entre tutor e estudante. A duração das entrevistas e grupos de discussão foi de no máximo 2 horas. Os dados foram registrados em um caderno de notas de campo, em uma câmara de vídeo, para transcrição posterior. Todos foram validados pelos tutores e estudantes. A coleta de dados foi finalizada quando foi alcançada a saturação dos dados. O método seguido para realizar a análise de dados foi o das comparações constantes proposto por Glaser e Strauss99. Glaser B, Strauss A. The discovery of Grounded Theory. Chicago: Aldine; 1967.. A análise se inicia com a busca dos conceitos de primeira ordem1010. Van Manen M. Investigación educativa y experiencia vivida. Barcelona: Idea; 2003., descrições e interpretações que os tutores e estudantes deram aos fenômenos. A análise foi realizada pela pesquisadora. Emergiram 68 conceitos de primeira ordem. No segundo nível de análise, surgiram 8 núcleos temáticos emergentes ou conceitos de segunda ordem: reflexão como fonte de aprendizagem, experiência como fonte de conhecimento, relação tutor-estudante, atividades pedagógicas, a arte da pergunta, o papel do tutor, o papel do estudante e o legado da identidade profissional. Após a análise linear e transversal dos núcleos temáticos, foram desenvolvidos os três construtos teóricos que denominamos vetores qualitativos e que subsumiam toda a realidade analisada: a relação pedagógica, a aprendizagem experiencial y a aprendizagem reflexiva. Neste trabalho apresenta-se uma síntese do terceiro vetor: a aprendizagem reflexiva. Para facilitar a sistematização e rigorosidade na busca e recuperação dos dados, foi utilizado o software Atlas-ti, versão 6.2.

Resultados

A seguir são apresentadas as estratégias reflexivas observadas e estudadas na investigação; tudo isso a partir das vozes dos protagonistas.

A interrogação didática

Durante o trabalho de campo, pudemos observar como as tutoras frequentemente dialogaram com as estudantes. Por meio de perguntas e respostas, incorporavam o pensamento das estudantes num processo dialético de reflexão e aprendizagem. No exemplo a seguir sobre os cuidados prestados a um paciente que dá entrada no setor de emergência com infarto agudo do miocárdio, diagnosticado pela equipe de emergências extra-hospitalares que lhe trouxe ao hospital, veremos como a tutora, por meio das perguntas, direciona a aprendizagem por meio de perguntas e respostas, pelas quais o pensamento da aluna é levado ao descobrimento das ideias e/ou procedimentos que a tutora deseja mostrá-la. A estudante começa explicando as ações praticadas para se manter uma boa ventilação.

Daí uma das enfermeiras se posiciona ao lado esquerdo e é ela que aplica o pulsioxímetro para medir a saturação, quando observa que chega com dispneia e que seu nível de saturação é de 90%. Seus óculos são trocados e uma máscara com 50% é instalada (E).

A tutora formula uma primeira pergunta, detectando no relato da estudante uma omissão de aspectos relevantes do cuidado enfermeiro: a posição do paciente.

Antes disso, o que faria? Um passo um pouco mais simples que a instalação da máscara. Algo com que o paciente poderia melhorar muito mais do que com uma máscara (T).

Abrir sua via? (E)

Diante desta resposta, a tutora percebe de imediato que a estudante não percebeu determinadas ações efetivamente realizadas para estimular a ventilação do paciente e então busca aquelas perguntas que pudessem ajuda-la melhor a direcionar o pensamento da estudante para a aprendizagem desejada. A seguir, por meio de novas perguntas e respostas, redireciona a reflexão da estudante para submergi-la no caso real da forma como aconteceu.

Pensando a partir da base de que o paciente chega com dispneia, mas respirando: via aérea permeável. Mas e você, quando engasga, o quê faz? (T).

Tossir (E).

E qual é sua postura? (T).

Inclinada (E).

Você se inclina. Exatamente. Faríamos o mesmo com o paciente. Colocá-lo numa posição de 30-45º. Assim melhorará a atividade respiratória e diminuirá a ansiedade do paciente. Sempre com ansiedade aumenta o consumo de oxigênio do miocárdio (T).

Como vimos, neste tipo de diálogo, pode-se recorrer a uma ampla variedade de perguntas e dar orientações que, na forma de dicas, ajudam os alunos a construir novos conhecimentos. A todo momento, a tutora, partindo das respostas do estudante, vai introduzindo conteúdos e ideias importantes sobre a prática profissional. Mas este episódio mostra também que a tutoria reflexiva sempre exige uma certa conexão mental entre tutora e estudante, no arcabouço de uma ação conjunta, através da qual as tutoras têm acesso intencional à mente das estudantes para conhecer suas perspectivas, perguntando-se como chegaram a essa ideia ou noção. Graças a estas "interpretações", as tutoras sintonizam com as estudantes e "diagnosticam" in situ a pertinência de suas compreensões com relação ao conteúdo que se deve aprender.

A tutoria reflexiva: ensinar perguntando.

A tutora como profissional reflexiva deve dominar a arte da pergunta e deve ter consciência da necessidade de estimular continuamente o estudante para que ponha em prática seus processos de reflexão individual, de reflexão em e sobre a ação. As tutoras usam quatro formas de perguntas que dão origem a contextos/ambientes diferenciados de aprendizagem.

Perguntas reflexivas

Estas preguntas reflexivas são as que provocam maior possibilidade de reflexão no estudante, já que lhe obrigam a refletir o cuidado como objeto de análise. Diante do seu enorme potencial formativo, são as que o tutor deveria usar mais. Surgem de forma espontânea por iniciativa da tutora e frequentemente marcam o início do dialogo reflexivo ou das conversas socráticas. Provocam no estudante momentos de reflexão em e sobre a ação:

O senhor não tem uma parada cardiorrespiratória, estava respirando e tinha pulso. Porque pensa que foi trazido o carro de reanimação cardiopulmonar? (T).

Perguntas que respondem a outras perguntas

A tutora levanta estas preguntas para favorecer que o próprio estudante responda à pergunta que ele mesmo acabou de fazer ao tutor. Surgem por iniciativa do estudante e é o tutor quem as reconverte em perguntas reflexivas, adotando ao mesmo tempo outra estratégia reflexiva que veremos mais adiante: o silêncio pedagógico. Implicam na capacidade da tutora de identificar que lacuna de compreensão está por trás da pergunta e imaginar uma nova pergunta com o objetivo intencional de se obter uma resposta que serviria como "ponte ou limiar cognitivo". Ao cruzá-la, "aproxima" o estudante da solução de sua primeira pergunta. No seguinte diálogo, tutora e estudante refletem sobre as vias centrais e a pressão venosa central:

O que é isso? (o aluno pega nos dos cabos do sistema arterial) si isso leva à artéria, onde vai este? (E).

O que estamos medindo por aí? (T).

Ao invés de responder diretamente, a tutora inicia um diálogo socrático, não responde ao estudante para que ele mesmo encontre o conhecimento. Inicia sua linha de raciocínio introduzindo perguntas cada vez mais complexas à medida que o aluno vai respondendo. O aluno adota um gesto reflexivo.

Vou lhe dizer, medimos uma pressão venosa central, por onde pode medir uma pressão venosa central? (T).

Por onde? (E).

Sim (T).

Então, diretamente da via central que canalizou (o aluno aponta para seu pescoço) (E).

De qualquer via central, um cateter pulmonar, por qualquer cateter central serve? (T).

Sim (E).

Exatamente, a pressão venosa central, o que é isso? O que está medindo? (T).

Então, a pressão que tem no ventrículo direito (E).

Portanto, terá que colocá-lo no lúmen que vá para o ventrículo direito, certo? Numa via central qual lúmen leva ao ventrículo direito? (T).

Ah sim, é mesmo, você comentou isso outro dia na aula (E).

Perguntas retóricas

São perguntas que a tutora faz como forma de desenvolver sua argumentação para ela mesma respondê-las. São perguntas que não favorecem a reflexão da outra parte porque fazem parte dos processos reflexivos da pessoa que as utiliza. Poderiam ser úteis para manter a atenção no próprio discurso e gerar reflexão em si mesmo. O poder deste tipo de perguntas está na capacidade de gerar reflexões na ação ao centro de uma argumentação, geralmente do tutor e, às vezes, do estudante:

Se chegar um pequeno volume de sangue, terá pouca pressão venosa, se chegar grande volume de sangue terá muita pressão. Então, o que terá que fazer para subir essa pressão venosa? Aumentar o volume, entende? (T).

"Chuva" de perguntas

Consiste em vincular uma série de perguntas reflexivas que costumam ser formas distintas de questionar sobre um mesmo aspecto do cuidado. Geralmente são utilizadas para ajudar o estudante a compreender a pergunta que está sendo feita. Mesmo que o efeito inicial que tendem a gerar no estudante seja de ansiedade e confusão, quando a tutora começa a oferecer as respostas e mostrar as relações entre elas, dá uma boa oportunidade de "andaime" para que os estudantes possam integrar diferentes conhecimentos que até o momento percebem como desconexos.

Por que tem que medir a pressão venosa? No caso de pressão venosa baixinha, o que vai indicar? (T).

Conforme vimos até aqui, as tutoras podem desenvolver estratégias reflexivas como a interrogação didática e o ensinar perguntando porque têm um conjunto de esquemas que lhes ajudam a perceber nos diálogos com os estudantes a desordem, a falta de compreensão ou a necessidade de explicar algum aspecto do cuidado. A partir daí por meio de perguntas e respostas, as tutores incorporam o pensamento das estudantes num processo dialético de reflexão e aprendizagem, que se molde em função das sequências de perguntas e respostas que vão aparecendo. Neste tipo de conversas, a tutora recorre a perguntas e orientações que ajudam as estudantes a solucionar um problema ou a alcançar uma compreensão profunda do tópico que está sendo abordado.

A empatia didática e seu efeito na aprendizagem prática do estudante.

Os tutores, através da empatia didática, valorizam a resposta do estudante, principalmente porque essas respostas mostram como o aluno compreende a situação em questão, quer dizer, mostram ao tutor suas hipóteses de compreensão*. Com esta estratégia, a tutora faz o esforço contínuo de colocar-se no lugar do aluno e valorizar suas respostas ou comentários, a partir da perspectiva do estudante e nunca da sua visão como especialista. As hipóteses de compreensão do estudante são o ponto de partida da tutora, para ir introduzindo conceitos mais complexos da prática.

Vejamos um exemplo desse processo de "inclusão" no seguinte fragmento de conversação reflexiva sobre o procedimento de intubação endotraqueal e a função do balão endotraqueal.

O que faríamos com o tubo? (T).

Então, teria que verificar a pressão (E).

Sim, o balão endotraqueal (T).

Teríamos que verificar que não estava inflado antes. Seria introduzido 10cm de ar. Após a verificação o tubo já poderia ser introduzido (E).

Esse balão, após instalado, para que serve? (T).

Para que não escape, para que a sonda instalada seja fixada (E).

Concordo: para que mais? Lembra? (T).

Poderia conter hemorragias, não é verdade? (E).

*Qualquer intervenção do estudante, seja na forma afirmativa ou interrogativa, mostra à tutora como os alunos estão tratando de dar significado ao conteúdo (a partir dos conhecimentos prévios que já têm) para torna-lo compreensível. Na tutoria reflexiva, estas ideias ou representações elaboradas por alunos são consideradas a "matéria prima" com que o tutor trabalha um aspecto ou situação do cuidado.

Aqui o estudante sente-se autorizado a levantar abertamente à tutora suas dúvidas sobre a intubação endotraqueal e, mesmo que suas duas respostas não sejam o que sua tutora esperava, esta as considera importantes e de novo reformula a pergunta.

Sim, tem sua lógica, se tem hemorragia, por exemplo, com as cânulas de traqueostomia, muitas vezes a traqueia fica muito inflamada e o balão ajuda a coibir a hemorragia. Sim, tem sua lógica, realmente, mas para que serve? (T).

A tutora não buscava esta resposta da aluna, mas surpreende como tenta traduzir a todo momento o que os estudantes dizem para que faça sentido e encontre o motivo de terem dito isso. A aluna continua pensando mas não sabe o que a tutora quer dizer, ela lhe ajuda.

Um paciente intubado teria que inclinar um pouquinho, porque sempre tem que estar um pouquinho inclinado. (A tutora começou a desenhar num papel, ao mesmo tempo explicando ao aluno seu raciocínio). Se não incha o balão, o que acontece? (T).

Ah, que o ar se perde pelas laterais do tubo endotraqueal. (A tutora continua desenhando) (E).

Se inchar o balão ... (E).

Já tem isolado tudo (E).

Realmente, obrigada. E não só com conteúdo gástrico, mas também com as secreções orais (T).

É verdade, porque as secreções também eram aspiradas (E).

Por isso era tão importante lavar a boca do paciente intubado e aspirar essas secreções e manter essa boca um pouco limpa, certo? (T).

Sim, sim, sim (E).

O silêncio pedagógico e seu efeito na reflexão

Nas vozes das tutoras, este "aprender a calar-se" não é fácil. O silêncio pedagógico provoca muitos momentos de reflexão, quando os estudantes se veem "forçados" a um discernimento mais profundo sobre determinados aspectos das práticas. Porém, para que o silêncio pedagógico gere reflexão, o estudante necessita de tempo e deve existir uma relação pedagógica com o tutor baseada na confiança e no respeito mútuo. Uma das tutoras explica porque utiliza o silêncio.

Para não solucionar sua dúvida, muitas vezes até começo a fazer perguntas para orientá-los, mas estão acostumados e jamais terão uma pessoa atrás que vai dando dicas, pode fazer isso no começo... (T)

Para os estudantes, a busca de respostas pressupões um grande esforço e contribui para que essa aprendizagem que estão descobrindo se transforme numa aprendizagem significativa.

Os alunos fazem perguntas porque é mais fácil que você lhes responde do que eles mesmos terem que pensar (T).

A tutora tornou-se a pessoa diante de quem o estudante pode questionar-se, ao invés da pessoa a quem perguntar.

Discussão

Um dos pontos fortes da presente pesquisa é que foram adotadas as diretrizes COREQ. Existe uma série de estratégias reflexivas usadas pelos tutores dos estágios clínicos de enfermagem. Apesar de que existem muitos estudos sobre prática reflexiva, quase todos foram desenvolvidos no âmbito acadêmico e não na prática1111. Dubé V, Ducharme F. Nursing reflective practice: An empirical literature review. J Nurs Educ Pract. 2015;5:(7):91-9., o que ilustra a importância desta investigação. À luz dos resultados alcançados, parece necessário orientar e dar um feedback contínuo aos estudantes para ajuda-los em sua viagem reflexiva1212. Shepherd RM, Pinder J. Reflective practice in addiction studies: promoting deeper learning and de-stigmatising myths about addictions. Reflective Practice: Int Multidisciplinary Perspect. 2012;13:(4):541-50.. Deve-se cultivar nos futuros profissionais a consciência de que as ações cotidianas devem ser acompanhadas de pensamentos e reflexões que visam dar significado a essa prática, para que sirvam de guia para melhorar os cuidados1313. Nelumbu LN. Reflective practice programme for registered nurse in training hospitals in Windhoek. Int J Nurs Stud. 2015:4:(2):94-102.. Manifesta-se que o enfoque reflexivo da tutoria clínica ajuda os estudantes, a quem falta experiência profissional, a transformar em palavras esses pensamentos e reflexões, que serão conscientes e intencionais a princípio mas que, com os anos de experiência profissional66. Trede F, Smith M. Teaching reflective practice in practice settings: students' perceptions of their clinical educators. Teaching Higher Educ. 2012;17(5):615-27.,1414. Smith M, Trede F. Reflective practice in the transition phase from university student to novice graduate: implications for teaching reflective practice. Higher Educ Res Develop. 2013;32(4):632-45.. Trata-se de aprender a fazer as coisas pensando no que se está fazendo, de tal forma que cada ato executado é em si mesmo uma nova lição que ajuda a melhorar a ação. O abandono das rotinas e ações automáticas parece ser a premissa necessária para que o estudante adquira o hábito da reflexão1515. Cornish L, Jenkins KA. Encouraging teacher development through embedding reflective practice in assessment. Asia-Pacific J Teacher Educ. 2012;40(2):159-70.. O diálogo entre tutoras e estudantes manifesta que as estratégias reflexivas estimulam o estudante a elaborar de maneira mais consciente seus próprios processos de pensamento, de forma a gerar seu próprio conhecimento e a alcançar uma aprendizagem significativa. Alguns estudos sobre a prática reflexiva têm chamado estes diálogos de "conversas de aprendizagem" ou "encontros diretos com o outro"1616. Simpson C, Trezise E. Learning conversations as reflective practice. Reflect Pract: Int Multidisciplinary Perspect. 2011;12:(4):469-80.. As conversas reflexivas representam no contexto prático um dos mecanismos mais potentes de reflexão colaborativa sobre aspectos do cuidado, que deveriam acontecer habitualmente durante a formação prática dos alunos. Estes encontros reflexivos podem variar desde tutorias planejadas a encontros informais que surjam durante a prática. Podem surgir nos momentos preliminares à prestação dos cuidados, durante a assistência ou depois da ação. Além disso, as reflexões podem resultar da análise da atividade feita pelo estudante, o que seria o mais benéfico; pela tutora ou por outro profissional. O papel das tutoras como práticas-reflexivas é fundamental. Para ajudar os estudantes a refletir, as tutoras previamente devem ter se tornado profissionais reflexivas1717. Queirós PJP. The knowledge of expert nurses and the practical-reflective rationality. Invest Educ Enferm. 2015;33(1):83-91. e têm de receber a formação necessária para fazer seu trabalho com qualidade1818. Jokelainen M, Jamookeeah D, Tossavainen K, Turunen H. Finnish and British mentors' conceptions of facilitating nursing students' placement learning and professional development. Nurse Educ Pract. 2013;13(1):61-7.-1919. Wilson A. Mentoring student nurses and the educational use of self: A hermeneutic phenomenological study. Nurse Educ Today. 2014;34(3):313-8..

Na tutoria, tem papel importante a relação estabelecida anteriormente entre tutora e estudante. O estudante tem que se sentir livre e confiante para mostrar à tutora como está compreendendo determinado aspecto ou situação profissional. É fundamental que não se sinta inibido para que possa questionar-se diante da tutora e para que possa cometer erros em sua presença, sem medo de sentir-se recriminado2020. Rudolph J, Foldy E, Robinson T, Kendall S, Taylor S, Simon, R. Helping without harming: the instructor's feedback dilemma in debriefing--a case study. Simulation Helthcare. 2013;8(5):304-16.. Entre ambos deve ser estabelecida uma relação pedagógica baseada no diálogo e na confiança mútua2121. Sinclair P, Pich J, Hennessy M, Wooding J, William J, Young S, Schoch M. Mentorship in the health disciplines. Renal Soc Australia J. 2015;11(1):41-6.. A tutora como profissional reflexiva durante os estágios clínicos deve assumir o papel de guia e o estudante tem que assumir um papel mais ativo e de maior protagonismo2222. Sandvik H, Erikson K. Scand J Caring Sci. 2014; 29(1):62-72..

Algumas das limitações do estudo foram a estadia no campo determinada pela permanência dos estudantes no estágio clínico e pelo planejamento de trabalho dos tutores. Outra limitação a ser considerada foi a atitude de desconfiança e receio dos profissionais ao serem observados em sua atividade profissional. Esta reticência pôde ser minimizada pelo conhecimento prévio do contexto, as relações com os protagonistas e a permanência no campo. Mesmo assim, foi considerado no início dos períodos de observação nas unidades e se buscou estabelecer vínculo com os protagonistas o mais cedo possível.

Conclusões

Evidencia-se que o tutor tem a sua disposição uma série de estratégias que usa com seus alunos durante os estágios clínicos e que favorecem a prática reflexiva. Também se observa que a aprendizagem prática dos estudantes acontece no seio de uma relação pedagógica, em que o estudante deve continuar com seu tutor de estágio clínico, para que exista uma relação de confiança e liberdade.

Tanto o estudante como o tutor devem incorporar a reflexão como hábito em sua prática diária. As conversas reflexivas entre tutor e estudante representam um dos mecanismos mais valiosos para que flua a reflexão sobre os aspectos essenciais do cuidado. O tutor tem que ser capaz de pôr em prática suas habilidades reflexivas no intuito de levar o estudante em direção à compreensão dos fenómenos complexos da prática. Por isso, é importante que os tutores estejam capacitados e treinados no uso das estratégias reflexivas. Durante estes encontros reflexivos, as tutoras usarão a interrogação didática, adotarão diferentes tipos de perguntas, terão que ser empáticos mediante o uso do silêncio. Através da empatia didática, o tutor tem de ser capaz de colocar-se no lugar do estudante, compreendendo os próprios processos de pensamento do aluno. Além disso, tem que ser consciente de que o uso do silêncio tem valor pedagógico para o aluno. O estudante tem a responsabilidade de encontrar suas próprias respostas aos dilemas da prática, assumindo um papel ativo em seu processo de aprendizagem. O tutor será um guia que acompanhe o estudante, sem impor seu critério e zelando pela autonomia do aluno. A prática reflexiva representa um legado fundamental na formação dos futuros profissionais de enfermagem.

Este estudo contribui para uma maior compreensão do processo de aprendizagem que acontece durante os estágios clínicos dos estudantes de enfermagem. Por meio da prática reflexiva melhora-se a formação de tutores de estágios e assegura-se a aprendizagem significativa dos estudantes.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    2016

Histórico

  • Recebido
    28 Mar 2015
  • Aceito
    19 Out 2015
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