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Queimaduras em ambiente doméstico: características e circunstâncias do acidente

Resumos

Este estudo teve como objetivos caracterizar os acidentes por queimaduras, ocorridos em ambiente doméstico e identificar as circunstâncias desses acidentes quando atingiram crianças, adultos ou idosos que necessitavam de supervisão. Foram coletados dados demográficos e sobre o trauma de 61 vítimas de queimaduras em ambiente doméstico. Dessas, 13 crianças e um idoso, com necessidade de supervisão ou cuidado especial, tiveram os familiares selecionados para entrevista semiestruturada. Foram identificados dois núcleos temáticos: fatores que podem ter contribuído para a ocorrência de acidentes por queimaduras: sociais e ambientais e circunstâncias que envolveram o acidente. Os fatores de risco foram: baixo nível socioeconômico e de instrução das mães e responsáveis pela criança, no momento do acidente, moradias pequenas para o número de residentes e equipamentos de cozinha precários. Não foram identificados casos de violência doméstica, mas de desatenção dos responsáveis. Os profissionais da saúde devem estar atentos para investigar as circunstâncias dos acidentes em indivíduos vulneráveis.

Queimaduras; Acidentes Domésticos; Maus-Tratos Infantis


This study characterizes burn accidents in the domestic environment and identifies the circumstances of accidents affecting children, adults or elderly people who need supervision or care. Demographic data and burn characteristics of 61 domestic environment burn victims were collected. The family members of 13 children and one aged adult, who needed supervision or special care, were selected to answer a semi-structured interview. Two thematic groups were identified: social and environmental factors that might have contributed to the burn accidents and circumstances involving the accidents. Risk factors were: low socioeconomic and educational levels of mothers and those responsible for the children at the moment of the accident, small houses considering the number of occupants and unsafe kitchen equipment. Although cases of domestic violence were not identified there was neglect from caregivers. Health professionals should be attentive and investigate the circumstances of accidents involving vulnerable individuals.

Burns; Accidents, Home; Child Abuse


Este estudio tuvo como objetivos caracterizar los accidentes por quemaduras, ocurridos en ambiente doméstico, e identificar las circunstancias de esos accidentes cuando afectaron niños, adultos o ancianos que necesitaban de supervisión. Fueron recolectados datos demográficos y sobre el trauma de 61 víctimas de quemaduras en ambiente doméstico. De esas, 13 niños y un anciano, con necesidad de supervisión o cuidado especial, tuvieron los familiares seleccionados para entrevista semiestructurada. Fueron identificados dos núcleos temáticos: factores que pueden haber contribuido para la ocurrencia de accidentes por quemaduras: sociales y ambientales y, circunstancias que envolvieron el accidente. Los factores de riesgo fueron: bajo nivel socioeconómico y de instrucción de las madres responsables por el niño en el momento del accidente, habitaciones pequeñas para el número de residentes, y, equipamientos de cocina precarios. No fueron identificados casos de violencia doméstica, pero de si de falta de atención de los responsables. Los profesionales de la salud deben estar atentos para investigar las circunstancias de los accidentes en individuos vulnerables.

Quemaduras; Accidentes Domésticos; Maltrato a los Niños


ARTIGO ORIGINAL

Queimaduras em ambiente doméstico: características e circunstâncias do acidente1

Tatiane Meda VendrusculoI; Carmem Roberta Baldin BalieiroII; Maria Elena Echevarría-GuaniloIII; Jayme Adriano Farina JuniorIV; Lídia Aparecida RossiV

IAluna do curso de graduação em enfermagem, Escola de Enfermagem de Ribeirão Preto, Universidade de São Paulo. Bolsista do Programa de Iniciação Científica do CNPq. E-mail: tatiane_mv@hotmail.com

IIPsicóloga, Mestre em Enfermagem, E-mail: crbalieiro@uol.com.br

IIIEnfermeira, Doutoranda do Programa Interunidades de Doutoramento em Enfermagem, Escola de Enfermagem e Escola de Enfermagem de Ribeirão Preto, Universidade de São Paulo, E-mail: bbpino@hotmail.com

IVMédico, Doutor em Clínica Cirúrgica, Professor Doutor, Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto, Universidade de São Paulo, Brasil. Chefe, Divisão de Cirurgia Plástica, Unidade de Queimados, Hospital das Clínicas, Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto, Universidade de São Paulo, Brasil. E-mail: farinajunior@directnet.com.br

VEnfermeira, Doutor em Enfermagem, Professor Associado, Escola de Enfermagem de Ribeirão Preto, Universidade de São Paulo, Brasil. E-mail: rizzardo@eerp.usp.br

Endereço para correspondência

RESUMO

Este estudo teve como objetivos caracterizar os acidentes por queimaduras, ocorridos em ambiente doméstico e identificar as circunstâncias desses acidentes quando atingiram crianças, adultos ou idosos que necessitavam de supervisão. Foram coletados dados demográficos e sobre o trauma de 61 vítimas de queimaduras em ambiente doméstico. Dessas, 13 crianças e um idoso, com necessidade de supervisão ou cuidado especial, tiveram os familiares selecionados para entrevista semiestruturada. Foram identificados dois núcleos temáticos: fatores que podem ter contribuído para a ocorrência de acidentes por queimaduras: sociais e ambientais e circunstâncias que envolveram o acidente. Os fatores de risco foram: baixo nível socioeconômico e de instrução das mães e responsáveis pela criança, no momento do acidente, moradias pequenas para o número de residentes e equipamentos de cozinha precários. Não foram identificados casos de violência doméstica, mas de desatenção dos responsáveis. Os profissionais da saúde devem estar atentos para investigar as circunstâncias dos acidentes em indivíduos vulneráveis.

Descritores: Queimaduras; Acidentes Domésticos; Maus-Tratos Infantis.

Introdução

A queimadura é sempre um trauma avassalador, já que leva à percepção de que, para sobreviver, se depende de requisitos mínimos. Em poucos segundos, um trauma desse tipo torna uma pessoa, muitas vezes, com a consciência totalmente preservada, completamente dependente e com dores terríveis. Quando atinge crianças, idosos e pessoas que têm pouca ou nenhuma capacidade para se defender, muitas vezes, está associado à violência doméstica, entretanto, esse aspecto ainda é muito pouco investigado no Brasil.

Nas publicações sobre a epidemiologia das queimaduras, há maior enfoque sobre tipos, profundidade e extensão da queimadura, áreas atingidas(1-2), sequelas(3-4), circunstâncias do acidente, local de ocorrência e presença ou não do responsável no momento do acidente(5). Poucos estudos focalizam a perspectiva dos pais ou responsáveis pela vítima sobre os possíveis aspectos que podem ter levado à ocorrência do acidente(6).

Estudos realizados em vários países como na França(4), Brasil(5-6), Peru(7) e Suécia(8) têm mostrado que a maioria dos acidentes por queimaduras ocorre em ambiente doméstico e atinge crianças, sendo a escaldadura o principal agente causador. No Canadá, observou-se alta prevalência de queimaduras em idosos com deficiência neurológica, tendo a água quente da banheira como o principal agente(9). Pacientes com diagnóstico de epilepsia possuem maior risco para acidentes por queimaduras profundas, principalmente quando executam suas atividades diárias no ambiente doméstico, durante uma crise epiléptica(10). Em estudo realizado no Japão, analisaram-se as características dos acidentes por queimaduras sofridos por pacientes neuropsiquiátricos e se observou que esses pacientes apresentaram maior superfície corporal queimada (SCQ) e maior mortalidade, quando comparados com o grupo controle, composto por pessoas saudáveis antes de sofrerem o acidente por queimaduras(11).

Outros autores estudaram os fatores de risco para queimaduras em crianças e concluíram que são fatores que aumentam o risco para a ocorrência desses acidentes: ausência de água encanada, aglomeração de pessoas em um mesmo ambiente familiar e baixos salários; e como menor risco: residências com maior número de cômodos, níveis de escolaridade mais altos dos pais, casa própria e outros indicadores de status socioeconômico mais alto(7). Estudo, realizado na Inglaterra em crianças, apresentou as características dos traumas por queimaduras e a suposição de que a queimadura poderia ser considerada negligência do responsável que esteve presente no momento de sua ocorrência(12).

Estudo realizado no Brasil ressalta a importância de coletar dados da história da vítima, juntamente com o exame físico e o fato de que, se forem observadas inconsistências nos dados, é necessária maior investigação. Esse estudo retrata a gravidade do problema enfrentado no Brasil(13). Segunda dados de uma revisão sistemática da literatura, os seguintes fatores podem levar à suspeita de maus-tratos nos acidentes por queimaduras: escaldaduras com padrão simétrico de distribuição (em extremidades com lesão em meia ou luva), idade inferior a seis anos, incompatibilidade do acidente com a idade da criança, inconsistência da história, pessoas com problemas cognitivos, lesões associadas, história de traumas anteriores e fatores sociodemográficos e socioeconômicos (desemprego e baixa renda familiar e famílias chefiadas por mulheres)(14).

No Brasil, a violência intrafamiliar (ou doméstica) não é problema novo para os profissionais de saúde. No dia a dia, nos ambulatórios ou emergências, os profissionais entram em contato com essa realidade(15). A violência doméstica pode ser vivenciada em todas as culturas e classes sociais, porém, em famílias que praticam maus-tratos pode-se identificar características especificas, como ausência do pai, aumento de famílias chefiadas por mulheres e famílias de baixa renda(15). Crianças que chegam ao hospital com lesões graves, como queimaduras, fraturas, traumatismos ou envenenamentos, provavelmente, teriam sofrido maus-tratos anteriores menos graves não identificados ou notificados(15).

A negligência é caracterizada pela privação de algo que a pessoa necessita, ou seja, pode significar omissão na provisão de cuidados básicos como de medicamentos e alimentos e ausência de proteção contra inclemências do meio (frio, calor)(15). O abandono é um tipo de violência caracterizado pela ausência do responsável, sendo classificado como parcial, quando há ausência temporária do responsável, expondo a vítima a situações de risco, e total, quando ocorre o afastamento do grupo familiar, ficando as crianças sem habitação, desamparadas e expostas a várias situações de risco(15).

Apesar de haver convergência na literatura sobre as características da queimadura que envolve maus-tratos e de as publicações apontarem as circunstâncias da queimadura e a presença ou não de responsáveis no momento do acidente como fatores de risco a serem considerados, nesse tipo de acidente, as pesquisas publicadas sobre o tema não têm explorado suficientemente esses aspectos. Nesse sentido, questão importante a ser investigada é a perspectiva de familiares de vítimas de queimaduras ou responsáveis sobre os fatores que contribuem para a ocorrência do trauma, principalmente no acidente doméstico e quando a vítima é dependente. Assim, este trabalho teve como objetivos caracterizar os acidentes por queimaduras, ocorridos em ambiente doméstico, e identificar as circunstâncias que envolveram esses acidentes ao atingirem crianças, adultos ou idosos que necessitavam de algum tipo de supervisão ou cuidado especial.

Material e Métodos

Utilizou-se como referencial teórico, neste estudo, os conceitos relacionados à violência doméstica(15) e às características para identificação de maus-tratos por queimaduras, apresentadas em uma revisão sistemática de literatura(14).

Trata-se de estudo observacional do tipo série de casos, descritivo, de natureza mista (quantitativo e qualitativo), desenvolvido na Unidade de Queimados do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto (UQ-HCFMRP), após a aprovação do Comitê de Ética em Pesquisa dessa Instituição. Essa unidade atende adultos e crianças e conta com 10 leitos, para atendimento hospitalar, e duas salas para atendimento ambulatorial.

Na primeira etapa do estudo, foram coletados dados de todos os pacientes admitidos na UQ-HCFMRP, no período de julho de 2007 a julho de 2008, na fase aguda de uma queimadura ocorrida em ambiente doméstico. Utilizou-se, nessa fase, o conceito de amostra de conveniência(16).

Este estudo foi desenvolvido em duas etapas com delineamentos metodológicos distintos. Visando o alcance do primeiro objetivo, na primeira etapa, caracterizaram-se os pacientes que sofreram acidentes domésticos admitidos no período estudado. Na segunda, utilizando-se a estratégia de estudo de caso e as técnicas de entrevista e observação direta, cada núcleo familiar foi investigado, buscando-se identificar as circunstâncias que envolveram esses acidentes ao atingirem crianças, adultos ou idosos que necessitavam de algum tipo de supervisão ou cuidado especial.

Os sujeitos da primeira fase deste estudo foram todos os pacientes admitidos na Unidade, na fase aguda da queimadura sofrida em ambiente doméstico, no período estudado, e, da segunda fase, foram crianças, adultos ou idosos que necessitavam de algum tipo de supervisão ou cuidado antes do acidente (por exemplo, aqueles que não conseguem realizar suas atividades rotineiras), crianças menores de 12 anos e pessoas com diagnóstico de epilepsia ou outras doenças que poderiam propiciar a ocorrência de acidente em momento de crise, as pessoas que acompanhavam a vítima no momento do acidente, quando maiores de 12 anos, e os pais ou responsáveis pela vítima. Foram excluídos os familiares ou responsáveis ou acompanhantes da vítima durante o acidente que, mesmo após terem sido convidados por três vezes, não compareceram à unidade.

No período estudado, foram admitidos nessa Unidade 195 pacientes, dos quais 77 foram internados para realização de cirurgia reparadora para correção de sequelas de queimaduras prévias e 118 para tratamento de queimaduras na fase aguda. Dos 118 pacientes, 61 sofreram acidentes domésticos e participaram da primeira fase deste estudo. Dos 61 pacientes que sofreram acidente doméstico, 22 atenderam os critérios de inclusão para participarem da segunda etapa do estudo. Desses, 14 pacientes participaram da segunda etapa, pois não foi possível o contato com oito familiares ou responsáveis, por não terem comparecido à unidade regularmente nos períodos de visita e não terem atendido a solicitação para participar do estudo.

Dentre os pacientes admitidos no período, participaram da segunda fase 13 crianças e um idoso, cujos familiares ou responsáveis foram submetidos à observação direta e entrevista semiestruturada.

Para a coleta de dados foi elaborado instrumento com informações sobre: identificação do paciente, agente causador da queimadura, superfície corporal queimada (SCQ), profundidade, local onde ocorreu o acidente e breve história do evento. Esse instrumento incluiu ainda questões sobre a composição familiar da vítima, status socioeconômico e perspectivas de familiares ou responsáveis pela vítima de queimadura sobre as circunstâncias que envolveram o acidente. O instrumento de coleta de dados foi submetido à apreciação de quatro profissionais que atuam na assistência a pacientes queimados para que realizassem avaliação de aparência e conteúdo do instrumento, possibilitando seu refinamento. Após essa etapa, foi realizado um pré-teste(16).

Os dados de todos participantes, referentes à caracterização do acidente e aqueles sociodemográficos, foram coletados a partir de consulta aos prontuários do paciente da UQ-HCFMRP. Os 14 familiares ou responsáveis, que participaram da segunda fase, após esclarecimentos e assinatura do termo de consentimento livre e esclarecido, foram submetidos a entrevistas semiestruturadas e observações diretas. Na entrevista, foi solicitado aos sujeitos que descrevessem como o acidente aconteceu, o local da casa em que ocorreu, as pessoas envolvidas, pessoas que estavam presentes e o que o responsável estava fazendo no momento. Soliciou-se que descrevessem as residências, o número de pessoas que residiam no mesmo local, o grau de instrução, profissão e a renda familiar. As entrevistas foram realizadas individualmente e gravadas. Foi, também, observada a relação entre os pais ou responsáveis e os pacientes durante a estadia na Unidade de Queimados (na qualidade de acompanhantes, ou de visitantes).

Os dados qualitativos foram analisados considerando-se as seguintes etapas: redução, apresentação dos dados, verificação e conclusão(17). A partir desse processo, foram identificadas as unidades de significados, núcleos de significados e núcleos temáticos. Assim, após a transcrição das entrevistas, foi realizada a identificação dos códigos, agrupamento de códigos semelhantes e construção de categorias. Essas categorias retratam as circunstâncias que envolvem a ocorrência do acidente, aspectos relatados pelos participantes que tentam explicar como e porquê, na perspectiva deles, o acidente ocorreu. Nessa análise, procurou-se identificar ainda as circunstâncias do acidente e, segundo as características, se havia evidências ou suspeita de maus-tratos ou negligência(15). Os dados demográficos e relativos à caracterização do acidente foram analisados usando o programa SPSS 15.0.

Resultados

Em relação à primeira etapa do estudo, dos 61 pacientes que sofreram queimaduras em ambiente doméstico, 20 tinham menos de 12 anos, 34 entre 12 e 59 anos e sete mais de 60 anos. Trinta e seis pacientes eram do sexo masculino. A chama direta, tendo o álcool como agente, foi a causa mais frequente dos acidentes entre os adultos e idosos(16) e a escaldadura entre as crianças(11). A maior parte dos acidentes ocorreu em área externa da residência seguida pela cozinha.

A média da SCQ dos 61 pacientes foi de 14,6%, sendo a média da SCQ entre os adultos e idosos de 16,6% e entre as crianças de 10,9%. A profundidade das queimaduras em sua maioria foi de segundo e terceiro grau.

Em relação à segunda etapa do estudo, das 14 vítimas de queimaduras, a maioria era do sexo feminino (10 pacientes); a média de idade foi de nove anos e três meses (<1 a 80 anos), sendo 11 pacientes com idade inferior a seis anos, dois entre sete e 12 anos e apenas um paciente com 80 anos de idade. Em relação à SCQ, a média foi de 13,8% (0,5% a 34,5%). A escaldadura foi o agente etiológico encontrado na maior parte dos casos, sendo causadora de seis queimaduras, seguida da chama direta(5) e do álcool(3).

Nesse grupo, a cozinha foi o local onde ocorreu a maior parte dos acidentes e todos os acidentes que foram provocados por escaldadura ocorreram nesse ambiente e não apresentaram características de acidente intencional. Entretanto, nos relatos, os familiares informaram que, no momento do acidente, estavam ausentes ou não estavam atentos à proteção da criança frente a situações de risco para queimaduras.

No Tabela 1, são apresentadas as características gerais dos familiares de pacientes que sofreram queimaduras, entrevistados formalmente neste estudo, no que se refere ao sexo, idade, grau de instrução, estado civil e grau de parentesco com a vítima de queimadura.

Todos os familiares entrevistados eram do sexo feminino, sendo a maioria dos participantes mãe da vítima de queimadura(12). A média de idade desses familiares foi de 28,9 anos (Tabela 1). Das 14 mulheres entrevistadas, oito não apresentavam vínculo empregatício e permaneciam em casa.

Observa-se, na Tabela 1, que, dos 14 familiares entrevistados, 11 não haviam concluído o primeiro grau e um nunca havia frequentado a escola, e que a maior parte(11) apresentava renda familiar menor do que dois salários mínimos, incluindo três famílias que possuíam renda inferior a um salário mínimo.

Os 14 participantes residiam em casas com número reduzido de cômodos e pequenas para o número de residentes. Durante as observações e entrevistas, não foi possível notar problemas de relacionamento entre os familiares e os pacientes. Embora tivesse sido explicado os objetivos desta investigação, os entrevistados se mostraram inquietos e expressaram desconfiança durante as entrevistas.

A partir da análise dos dados obtidos com as entrevistas e dos dados que caracterizavam o núcleo familiar, no qual a vítima de queimadura está incluída, foram identificados dois núcleos temáticos: fatores que podem ter contribuído para a ocorrência de acidentes por queimaduras: sociais e ambientais e circunstâncias que envolveram o acidente.

Fatores que podem ter contribuído para a ocorrência de acidentes por queimaduras: sociais e ambientais

Nos depoimentos dos participantes, observa-se que a mãe ou o responsável realiza atividades que envolvem riscos para acidente por queimaduras na presença de crianças, ou permitem que elas mesmas realizem atividades que envolvem risco para queimaduras como, por exemplo, brincar utilizando álcool ou cozinhar, ferver água ou outros líquidos na presença de crianças que brincam ao seu redor (...) eu fui no tanque pegar água (...) eu já tinha colocado um pouco de água na panela para eu cozinhar (...) no fogo e ela estava atrás de mim, brincando, então ela gritou e quando eu cheguei lá, ela tinha subido na beirada do fogão (...) e puxou a panela de trás (Familiar 7). Eu estava na cozinha e eu coloquei a gordura para esquentar, então eu virei para pia para lavar louça e ela estava brincando com o rodinho, então ela bateu o rodinho e a panela virou nela (Familiar 9).

Houve relatos de utilização de fogões antigos e com vazamento de gás e de panelas com cabos quebrados. Alguns participantes relataram que não se preocupavam com a organização das panelas sobre o fogão enquanto cozinhavam, mantendo os cabos virados para fora, ao alcance das crianças, como exemplificado nos depoimentos a seguir: (...) Eu punha (as panelas sobre o fogão) de qualquer jeito, como eu estava acostumada a fazer. Sabe, ela brincava sempre na cozinha, mas nunca chegou a fazer isso (puxar a panela) (Familiar 11). (...) Não era um hábito, nunca fiquei preocupada com o cabo para fora, mas agora eu vou colocar para dentro (Familiar 12).

Circunstâncias que envolveram o acidente

Na categoria circunstâncias que envolveram o acidente, apresentam-se aspectos relacionados à história do acidente por queimadura que revelam como o acidente ocorreu e se havia adultos, ou responsáveis, presentes e o que essas pessoas faziam e como agiram após o acidente.

Observou-se, nos depoimentos, que, na maior parte das vezes, o familiar se ausenta por alguns minutos, deixando a criança em situação de risco, como mostram os exemplos a seguir: A vela estava próxima do carrinho, em cima de uma mesinha. Deve ter ventado (...) e deve ter caído em cima do carrinho (...). Eu fiquei deitada e eu peguei no sono. Então foi onde aconteceu o acidente (Familiar 1). Fui fazer café para ela (...) foi coisa de cinco minutos que eu virei minhas costas, ela mexeu em cima do bule, subiu em cima da cadeira e mexeu (Familiar 4).

Todos os acidentes ocorreram na presença de uma pessoa mais velha que a vítima, sendo que, em cinco casos, pode-se afirmar que, de alguma forma, houve contribuição dessa pessoa para a ocorrência do acidente: (...) Ele (o vizinho mais velho) derramou o resto do litro de álcool (no carrinho de latinha), ele já jogou o fósforo e o fogo junto e ela estava na frente, respingou nela e o fogo subiu nela (...) (Familiar 3). (...) Elas (vítima de queimadura e a prima mais velha) estavam tirando o carrapato da cachorra e colocando tudo em uma vasilha com álcool... E no final de tudo colocaram fogo dentro da vasilha com álcool ( ) Ela (prima mais velha) pegou o vidro de álcool fechado e deu na mão dela (...). Aí ela pegou o vidro, na hora que ela virou, o vidro explodiu (Familiar 8). Meu esposo foi colocar fogo no lixo, em frente de casa, então a gente entrou em casa (...), então ele (vítima de queimadura) veio correndo lá de dentro e tropeçou na vassoura que estava com ele (esposo), e caiu com a mão em cima do fogo (Familiar 10). (...) Enquanto eu fui atender o celular no quarto (...), muito rápido, a irmã dele de onze anos, subiu na cadeira e pegou o álcool lá em cima, no armário (...) ela pegou o álcool e o isqueiro, que estava no alto também, deu o álcool na mão dele, correu para o fundo do quintal e mandou ele despejar rápido. Então na hora de acender o isqueiro, o fogo veio nele, que ele estava com o álcool na mão (...) (Familiar 13).

O único idoso participante deste estudo apresentava-se completamente dependente de algum cuidador, porém, não contava com essa atenção e faleceu em decorrência das queimaduras. Essa dependência, reconhecida pelo familiar, pode ser observada no seguinte trecho da entrevista: A maior parte do dia ele ficava sozinho. Eu chegava em casa às cinco horas, cinco e meia, ia dar banho nele, eu ia primeiro cuidar dele, às vezes, o jantar estava lá, eu já esquentava e já dava para ele. Eu que raspava a barba, que cortava a unha dele, porque meu pai teve derrame, então ele perdeu os movimentos dos dedos, ele não mexeu mais as mãos, faz uns nove anos que ele teve o começo de derrame (...). Ele tem um problema no pé, que o pé dele ficou torto. Ele não andava, também, porque ele estava com um problema de coluna também, tomava remédio para coluna, mas acaba que o remédio não mudava nada (...). A gente morava na casa do lado, porque ele ficava mais sozinho, e eu moro do lado e a janela do meu quarto dá com a dele (...). Eu estava dormindo (...) eram sete horas; eu acordei, saí e vi a fumaça (Familiar 6).

Discussão

Em relação às características dos acidentes ocorridos em ambiente doméstico, observou-se que os dados deste estudo não diferem de outros realizados no Brasil(5-6). O ambiente doméstico tem sido identificado como o local onde ocorre a maior parte dos acidentes, atingindo principalmente crianças(4-5,7-8).

Nesse ambiente, a chama direta, tendo como agente o álcool, é o principal causador dos acidentes no Brasil; ocorre principalmente nas dependências externas da casa e atinge crianças em idade escolar e pessoas adultas. Esse tipo de acidente, em adultos, é principalmente relacionado à prática comum de acender churrasqueira com álcool e, em crianças, a brincadeiras no quintal, e atinge principalmente pessoas do sexo masculino(5).

Em relação aos participantes que necessitavam de supervisão ou cuidado especial, nenhuma queimadura apresentou características de não acidental (ou intencional) e, embora durante os depoimentos tenha-se notado desconfiança por parte das mães para fornecerem as informações, neste estudo, não foram encontradas situações que caracterizassem suspeitas de maus-tratos, como história prévia de queimaduras, história inconsistente com a característica do trauma, uniformidade na profundidade da queimadura e distribuição em forma de meia ou luva da queimadura em extremidades(14,18). As características dos acidentes observados, de modo geral, foram aquelas que acometem crianças em ambiente doméstico e estão associadas à população de baixa renda e ao baixo nível de instrução principalmente das mães(3,7). O baixo nível de instrução explica, em parte, o fato de as mães permitirem ou elas mesmas realizarem certas práticas que envolvem risco para acidente por queimaduras como, por exemplo, permitir que a criança fique ou brinque próxima ao fogão enquanto cozinham, despejar gordura quente pela porta da cozinha, eliminar carrapatos com álcool, acender churrasqueira com álcool (atividades realizadas por crianças ou na presença delas). Considerando-se os 14 casos investigados, a escaldadura foi o agente etiológico mais frequente, e a cozinha foi o local onde ocorreu a maior parte dos acidentes, assim como tem sido observado em outros estudos realizados em diferentes países(4,7-8).

A condição precária dos equipamentos utilizados na cozinha, como fogões e panelas, também foi identificada como fator de risco para a ocorrência dos acidentes domésticos neste estudo. Em estudo prévio, a autoria desta pesquisa constatou que os familiares de pessoas queimadas e os próprios pacientes raramente identificam as situações de risco para queimaduras em suas residências(6).

Além disso, as condições de moradia também podem ter favorecido a ocorrência dos acidentes incluídos neste estudo, pois foi relatado pelos participantes que a maior parte das casas é pequena para o número de residentes, com poucos cômodos, permitindo, assim, maior proximidade entre quartos, sala, quintal e cozinha. Fato também relatado em outro estudo que identificou a aglomeração de pessoas em uma mesma casa como fator de risco para a ocorrência de acidentes domésticos(7).

Embora não se tenha identificado situações que podem levar à suspeita de queimaduras não acidentais, encontrou-se, aqui, casos que podem ser caracterizados como negligência(15) como, por exemplo, a privação de cuidados básicos e ausência de proteção em situações de risco para queimaduras e, em algumas situações, aumento da exposição ao risco, como ocorreu com o idoso que permanecia sozinho, embora fosse totalmente dependente para realizar atividades básicas.

Foi possível notar em todos os depoimentos que esses acidentes poderiam ter sido evitados se os adultos estivessem mais atentos à pessoa que necessita de cuidados, protegendo-a nas várias situações que constituem fatores de risco para acidentes. Essas famílias apresentam algumas características que têm sido relatadas na literatura como relacionadas à violência doméstica, por exemplo, a idade das vitimas inferior a seis anos, baixo nível de instrução e de renda familiar(14-15).

Em relação a estudo prévio publicado nesta mesma revista(6), esta investigação contribui para mostrar que, mesmo quando as pessoas necessitam de supervisão e cuidados especiais, os responsáveis não têm se preocupado em protegê-las dos riscos para queimaduras.

Considerações Finais

Este estudo teve como enfoque a queimadura em pessoas que necessitam de cuidados especiais e supervisão, particularmente idosos e crianças, que constituem grupos vulneráveis na sociedade. Embora não tenham sido identificados casos de violência doméstica entre os casos estudados, consideramos importante chamar a atenção dos profissionais da saúde que cuidam desse grupo, para que estejam atentos para investigar as circunstancias que envolvem os acidentes por queimaduras.

No grupo estudado, as queimaduras acometeram principalmente crianças e adultos em idade produtiva. Foram causadas por chama direta tendo como agente o álcool quando atingiram crianças em idade escolar e adultas e por líquidos superaquecidos quando atingiram crianças menos de três anos

Não foram observados neste estudo casos de queimaduras não acidentais, mas os resultados mostraram que as mães com baixo grau de escolaridade com maior freqüência são responsáveis pelas crianças no momento do acidente. Além disso, embora não reconheçam os riscos, essas pessoas vivem em ambientes que propiciam a ocorrência deste tipo de trauma e é possível que não estejam suficientemente atentas à necessidade de proteção que os indivíduos desprotegidos requerem.

Os resultados deste estudo reforçam a necessidade de implementação de programas de prevenção de queimaduras direcionados a pessoas com baixo nível de instrução, enfocando principalmente o ambiente doméstico. O ensino em escolas dirigido também às crianças pode contribuir para prevenção de acidentes, já que as crianças são bastante sensíveis e abertas a novas informações.

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  • Corresponding Author:
    Lidia Aparecida Rossi
    Universidade de São Paulo. Escola de Enfermagem de Ribeirão Preto
    Av. Bandeirantes, 3900
    Bairro Monte Alegre
    CEP:14040-902 Ribeirão Preto, SP, Brasil
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    Article extracted from course conclusion monograph "Queimaduras em ambiente doméstico: características e perspectivas de familiares sobre as circunstâncias do acidente" presented to Escola de Enfermagem de Ribeirão Preto, Universidade de São Paulo, WHO Collaborating Centre for Nursing Research Development, SP, Brazil.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      11 Ago 2010
    • Data do Fascículo
      Jun 2010

    Histórico

    • Recebido
      16 Abr 2009
    • Aceito
      13 Ago 2009
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