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O dito e o não dito pelos usuários de drogas, obtidos mediante as vivências e da técnica projetiva

What drugs users say and do not say, using experiences and the projective technique

El dito y el no dito por los usuarios de droga, expreso a través de las vivencias y de la técnica descriptiva

Resumos

Neste estudo, procurou-se conhecer alguns significados manifestos e latentes da vivência dos usuários de drogas. As entrevistas foram associadas à Técnica Projetiva (desenho livre e com tema) a partir das quais foram analisados o conteúdo subjetivo e o exteriorizado pelos usuários. Os resultados demonstraram a existência de desestruturação familiar, estigma e preconceito.

drogas ilícitas; enfermagem; saúde mental


This study aimed to get to know some visible and hidden meanings in drugs users' experience. The interviews were associated with the Projective Technique (free and thematic drawing), based on which we analyzed the subjective content and what was expressed by the users. The results demonstrated the existence of family deterioration, stigma and prejudice.

illicit drugs; nursing; mental health


La finalidad de este estudio fue aprender respecto a algunos significados expresos y ocultos en la vivencia de drogadictos. Se asoció las entrevistas a la Técnica Descriptiva (el dibujo libre y con tema), lo que permitió en análisis del contenido subjetivo y expreso por los usuarios. Los resultados mostraron desestructuración familiar, estigma y prejuicio.

drogas ilícitas; enfermería; salud mental


ARTIGO ORIGINAL

O dito e o não dito pelos usuários de drogas, obtidos mediante as vivências e da técnica projetiva1 1 Trabalho extraído da tese de doutorado

What drugs users say and do not say, using experiences and the projective technique

El dito y el no dito por los usuarios de droga, expreso a través de las vivencias y de la técnica descriptiva

Francisca Lucélia Ribeiro de FariasI; Antonia Regina Ferreira FuregatoII

IEnfermeira, Professor Doutor da Universidade de Fortaleza, e-mail: luceliafarias@unifor.br

IIOrientador, Professor Titular da Escola de Enfermagem de Ribeirão Preto, da Universidade de São Paulo, Centro Colaborador da OMS para o desenvolvimento da pesquisa em enfermagem, e-mail: furegato@eerp.usp.br

RESUMO

Neste estudo, procurou-se conhecer alguns significados manifestos e latentes da vivência dos usuários de drogas. As entrevistas foram associadas à Técnica Projetiva (desenho livre e com tema) a partir das quais foram analisados o conteúdo subjetivo e o exteriorizado pelos usuários. Os resultados demonstraram a existência de desestruturação familiar, estigma e preconceito.

Descritores: drogas ilícitas; enfermagem; saúde mental

ABSTRACT

This study aimed to get to know some visible and hidden meanings in drugs users' experience. The interviews were associated with the Projective Technique (free and thematic drawing), based on which we analyzed the subjective content and what was expressed by the users. The results demonstrated the existence of family deterioration, stigma and prejudice.

Descriptors: illicit drugs; nursing; mental health

RESUMEN

La finalidad de este estudio fue aprender respecto a algunos significados expresos y ocultos en la vivencia de drogadictos. Se asoció las entrevistas a la Técnica Descriptiva (el dibujo libre y con tema), lo que permitió en análisis del contenido subjetivo y expreso por los usuarios. Los resultados mostraron desestructuración familiar, estigma y prejuicio.

Descriptores: drogas ilícitas; enfermería; salud mental

INTRODUÇÃO

O uso e o consumo excessivo de drogas são problemas sérios, veiculados na sociedade sob diferentes formas e interpretações. Em função de sua elevada freqüência, esse uso e consumo transformaram-se em problema mundial de saúde pública(1). Na América Latina, estudos sobre o uso de drogas por adolescentes, utilizando como instrumento questionários anônimos e auto-aplicados, indicam que o álcool é a substância mais consumida, sendo as taxas mais elevadas no sexo masculino(2). Esses dados estão presentes em todos os trabalhos que abordam o tema, no entanto, poucos são os que enfocam o dito e o não dito pelos usuários. Neste artigo, procurou-se apresentar, por meio de instrumento adequado, o dito pelo usuário para justificar seu comportamento. Quanto ao não-dito das emoções dos sujeitos pesquisados, esses são elementos subjetivos pouco explorados o que leva a entendê-los, considerando a sua interioridade, onde se acumulam os conflitos não resolvidos e onde as razões das pulsões oscilam entre uma agressividade e uma violência voltadas para o outro e depois redirigidas contra si mesmo, como objeto de amor que não o é(3-4).

Sendo assim, são importantes os estudos sobre drogas psicotrópicas realizados por Bucher, em 1992; Muza et al. em 1997 o mais abrangente deles, realizado pelo Centro Brasileiro de Informações Sobre Drogas Psicotrópicas- CEBRID. Esses levantamentos foram realizados em 10 capitais brasileiras nos anos de 1987, 1989, 1993 e 1997. Os resultados desses estudos indicam que a adolescência é uma época de vulnerabilidade ao consumo de substâncias(1), ocorrendo nessa fase de vida a primeira aproximação com o produto e o seu abuso vai depender do ambiente sociocultural, do produto e da personalidade do sujeito(3-4).

OBJETIVO

Identificar o significado latente e manifesto das vivências, das emoções e dos sentimentos dos usuários de drogas(3).

METODOLOGIA

Do ponto de vista formal, esta investigação pode ser classificada como pesquisa estratégica, pois orienta-se para problemas apresentados pela sociedade e tem como finalidade a ação(5). Quanto aos aspectos metodológicos, esta investigação situa-se no âmbito da pesquisa qualitativa. Essa opção decorre do fato de poder ampliar e inserir o presente estudo no campo do objeto do conhecimento relacionado ao ser humano e à sociedade(6).

CONTEXTO DA PESQUISA

A pesquisa foi realizada no período de janeiro de 1996 a fevereiro de 1997, com um grupo de auto-ajuda que se reúne semanalmente num salão paroquial na cidade Ribeirão Preto-São Paulo. Participava das reuniões a média de 30 dependentes químicos, cuja abstinência variava de um mês a três anos. Como referencial, o grupo utilizava os preceitos dos alcoólicos anônimos (AA), onde o mais importante é a sinceridade apresentada, individualmente, pelas pessoas que precisam de ajuda e/ou que desejam ajudar o outro. Tudo funciona em clima de fraternidade, solidariedade e acolhimento(3).

Para realização deste trabalho, foram utilizados dois momentos: no primeiro, adentrou-se o campo empírico para realizar uma observação e participação no grupo de Alcóolicos Anônimos (AA). Solicitou-se aos organizadores do grupo autorização para a realização da pesquisa, no que houve pronto atendimento. Nessa etapa, foram contatados usuários durante 01 (um) ano, quando se convivia nos grupos, nos passeios aos museus da cidade, visita à fazenda de recuperação e ao confessor espiritual do grupo. O projeto de pesquisa não foi submetido à análise do Comitê de Ética em Pesquisa, pois esses somente foram instituídos após ser editada a Resolução 196/96, do Conselho Nacional de Saúde, de outubro de 1996(7). Portanto, a autorização para a realização da pesquisa ocorreu antes dessa resolução, no entanto, conhecendo essa clientela e sabendo do tratamento excludente que a sociedade presta a ela, solicitou-se que assinassem uma autorização para a participação na pesquisa, de sorte que todos os pesquisados assinaram um termo de compromisso. Após autorização dos usuários, iniciou-se o segundo momento da pesquisa que constou da aplicação da entrevista semi-estruturada e da confecção do desenho-estória-com-tema. O estudo original contou com a participação de dez usuários de drogas. Dessa amostra, extraiu-se dois casos para a presente publicação. A seleção da amostra foi intencional e considerada suficiente para refletir o universo pesquisado, em várias de suas múltiplas dimensões. Numa pesquisa com amostra intencional, são selecionados apenas aquelas pessoas conhecidas como elementos ativos de uma determinada situação, às quais se propõe estudar, favoráveis ou contrárias aos objetivos(8).

A coleta de dados foi realizada nas dependências onde se realizam as sessões do grupo de auto-ajuda e em uma sala de terapia da Escola de Enfermagem de Ribeirão Preto. Para obtenção das informações, utilizou-se a entrevista semi-estruturada, norteada pela questão: "fale-me de sua vida antes de usar drogas e quando se tornou dependente". As entrevistas foram gravadas e transcritas. Também utilizou-se a técnica projetiva sob a forma de desenho-estória-com-tema e desenho-estória-livre. Os desenhos e as verbalizações daí resultantes foram analisados nos moldes da análise de conteúdo. A técnica projetiva foi utilizada como recurso de abordagem, utilizada para temas de acesso difícil em pesquisa(9).

Como relação ao desenho-estória (DE), pode-se dizer que é um procedimento mediante o qual é possível ter acesso às idéias e às emoções do sujeito de forma mais espontânea. Considera-se que, para investigar os aspectos mais profundos da vida de cada sujeito pesquisado, é necessário que se mantenha um relacionamento interpessoal mais próximo e isso em uma pesquisa com usuários de drogas requer muito tempo e a formação de um vínculo de confiança. Sendo assim, o desenho foi a estratégia que propiciou descontração e criou um ambiente favorável para isso. Por isso, lançou-se mão desse recurso. Sendo um processo inconsciente, o desenho retrata, em linguagem gráfica, o sentimento de quem desenhou.

A técnica projetiva

O desenho como técnica projetiva, funciona como estímulo da apercepção temática sob medida, uma vez que o sujeito faz um desenho e conta uma estória sobre o desenho feito(10-12). O desenho e a estória funcionam como agentes facilitadores para acesso aos conteúdos inconscientes e por trazer à tona os conteúdos inconscientes, sendo considerados, dentro da perspectiva winnicottiana, como "área transicional"(11).

Os métodos projetivos podem ser usados no caso em que o pesquisador se depara com dificuldades de expressão do sujeito investigado, entretanto, é através da interpretação dos dados coletados que se pode constatar o significado latente apresentado no conteúdo do caráter projetivo(11).

DESENVOLVIMENTO DA TÉCNICA

Após apresentação dos objetivos da pesquisa e obtenção do consentimento, cada usuário recebia duas folhas de papel sulfite em branco, um lápis preto nº 2 e uma borracha. Inicialmente, solicitava-se que elaborasse um desenho-livre, desenhasse o que quisesse, após o que era estimulado a escrever abaixo do desenho sobre o que havia feito. A seguir, solicitava-se que fizesse outro desenho no qual se dava o tema e se dizia: desenhe o que é para você um usuário de drogas. Era estimulado, após, a escrever abaixo da sua produção gráfica uma estória.

Depois da aplicação das técnicas projetivas, os sujeitos participaram de outra entrevista, o que possibilitou compilar alguns dados pessoais e a trajetória no contato com as drogas.

Esses procedimentos ocorreram em locais e horários negociados individualmente, em clima de acolhimento e respeito à produção e aos sentimentos de cada um. Dessa forma, enquanto colaboravam com o estudo, os usuários conviveram com a enfermeira/pesquisadora, sob o clima de interação terapêutica. Nessa interação, puderam participar de confraternizações familiares e de festividades existentes na cidade.

ANÁLISE DOS RESULTADOS E DISCUSSÃO

Os dados desta pesquisa foram analisados nos moldes da análise de conteúdo(12) que considerou o teor temático das formas discursivas utilizadas pelos sujeitos.

Essa técnica de análise considera toda comunicação como uma dinâmica, em construção de significados (explícitos e/ou implícitos). O pesquisador procura os significados contidos no desenho, nas estórias a ele pertinentes, nos relatos de vida e nas demais expressões que acompanham a comunicação. É um trabalho que exige, inicialmente, organização dos dados, seguido de recortes do conjunto de dados em categorias, projetadas sobre os conteúdos expressos pelo sujeito(12). Pressupõe imersão do pesquisador, por meio de leituras e reflexões, relacionando os dados com a experiência concreta vivida pelos sujeitos.

Quanto ao tema, consiste numa unidade de significação complexa, de comprimento variável; sua validade não é de ordem lingüística, mas de natureza psicossocial. Um tema pode ser constituído tanto por uma afirmação como por uma alusão, podendo contribuir com várias afirmações e ser reenviado para diversos temas(12).

Quanto à técnica projetiva, selecionou-se quatro desenhos-estória de dois usuários, sendo um desenho-livre e outro desenho com tema, além de trechos de suas estórias, seguidos dos comentários analíticos.

César, 31 anos, solteiro, passou 8 meses em uma Fazenda de Recuperação. Começou fumando maconha aos 13 anos. Achava emocionante. Depois, passou a usar outras drogas e também bebida alcoólica ... eu era uma pessoa normal... estudava... era uma pessoa tímida, não gostava muito de grupo, tinha poucos amigos, tinha bom relacionamento com a família, era uma pessoa medrosa, tinha medo de tudo..., com o uso da droga fui me libertando dos medos... fui me desligando da escola, do trabalho... me tornei um alcoólatra ... sou homossexual, tratei e me curei. Fui trabalhar num bar da família... somos muito unidos... causei muito transtorno e todo mundo correu atrás... nunca me abandonou. Tive envolvido com a polícia.... O drogado é uma pessoa que já tem rótulo, está escrito na testa, vai ser perseguido pelo resto da vida porque na verdade a sociedade não acredita nesse negócio de recuperação... é taxado, é rotulado.

DESENHO-ESTÓRIA - A

Título - Ave Maria

Verbalização A - Esta flor significa cada ave-maria que ofereço a Nossa Senhora.

DESENHO-ESTÓRIA COM TEMA - B

Título - O que é ser um usuário de drogas

Verbalização B - O drogado está preso no túnel. É muito escuro... muitas vezes ele procura luz, mas não consegue chegar até lá. É preciso que ele próprio se aceite como realmente é e, conforme o 1º passo, possa admitir que é impotente perante o vício, os hábitos e emoções.

O relato de César é permeado pelos desentendimentos com sua família, tanto por causa das drogas como pela sua preferência sexual, e tal fato, segundo ele, o deixa muito constrangido.

Na verbalização A do desenho, observam-se a presença de símbolos femininos (flor, ave-maria, Nossa Senhora) e a presença de intensa angústia e sentimentos de culpa, os quais foram observados no contato com ele durante a entrevista. A oração sugere a remissão de suas culpas. Podemos afirmar que, culturalmente, essa tem sido uma maneira utilizada pelas pessoas para expiar seus pecados. Sua percepção de usuário de drogas é expressa no 2º desenho, assim como suas dificuldades encontradas na vida e o caminho que deve seguir para conseguir a salvação. Na verbalização B, o usuário refere que foi colocado dentro do túnel, que é muito escuro, demonstrando assim que necessita de ajuda. Entende-se, assim, que é como se ele se visse num beco sem saída, sem perspectiva de apoio, pois, sendo um excluído da sociedade, só pode esperar ajuda mediada por fórmular mágicas. Ele, como muitos outros, não acredita em soluções concretas e apóia-se no místico, no sobrenatural, para conseguir uma reabilitação.

João, 22 anos, mecânico de motos, solteiro. Usou droga pela primeira vez aos 15 anos, oferecida por um "amigo". Começou por curiosidade e só usava na rua com os amigos. Depois que entrei nessa vida não quis saber de mais nada, parei de trabalhar, de estudar, de namorar...

O pai é alcoolista, o irmão usa droga e o clima na família era de hostilidade, confusão, temor. Assim, a lembrança que guarda do pai é de que Toda vez que ele bebia, quando chegava em casa, brigava, quebrava todas as coisas... minha mãe sofreu muito com isso. Toda essa confusão ele fazia na nossa presença. Eu ainda guardo lembranças dessas brigas, mas procuro esquecer e procuro não ficar lembrando dessas coisas, isso me faz muito mal. Mesmo assim eu considero a família tudo para mim; é na minha família onde estão as pessoas que mais gosto nessa vida e as que mais me ajudam. A sociedade, eu vejo como pessoas que usam máscara, são amigos por interesse, no meu caso por causa da droga; na hora que se pede ajuda, desaparecem. A sociedade é assim, só discriminação...

Sua produção gráfica retrata, de maneira nostálgica, suas lembranças da infância. No relato de sua vida, entretanto, expressa os conflitos vividos, a desorganização familiar e refere que procura esquecer aquelas lembranças, das brigas do pai com a mãe na presença dos filhos. No desenho, retrata uma casa onde moravam 7 pessoas (os pais e os 4 irmãos), observando-se assim ele se excluindo do grupo, embora tenha colocado 7 frutinhas na árvore, entendendo-se cada frutinha como cada um dos filhos. No outro desenho, o usuário está lado a lado com a polícia, porém dominado.

DESENHO-ESTÓRIA - A

Título - A casa onde eu morei na infância

Verbalização A - Este desenho lembra a casa onde eu morava no Ipiranga. E aonde eu morava tinha um pomar como este, aonde eu gostava muito de brincar com meus amigos. Nesta época, eu tinha 6 anos e moravam sete pessoas nesta casa, meus pais e meus quatro irmãos.

DESENHO-ESTÓRIA COM TEMA - B

Título - O que é ser um usuário de drogas

Verbalização B - Este desenho representa a vida de um usuário de droga que estava usando droga na rua. Quando acabou a droga, o usuário saiu para roubar uma lanchonete com um revólver 38; levou todo o dinheiro e logo em seguida o dono da lanchonete chamou a polícia e catou o ladrão com algumas pedras de crack.

Os dois rapazes deste estudo participavam do Grupo de Auto-Ajuda e referem-se a esse trabalho de maneira positiva tal como nas falas abaixo.

Aqui nesse grupo eu sei que sou mais um doente, porque o alcoolismo e a dependência de drogas são problemas que não têm cura... a pessoa dependente vai ser sempre um doente em recuperação.

... é muito difícil, elas têm que ter muita perseverança, espero que elas tenham isso e consigam se recuperar, tenham boa sorte e força para elas, e que elas creiam em Deus, porque só Deus resolve todos os nossos problemas.

... eu tenho o grupo como uma força, uns ajudando os outros. Participar do grupo porque o pai ou a mãe quer, não adianta; a pessoa tem que querer sair da droga... só assim ela pode ser ajudada.

Do conteúdo expresso por esses dois rapazes, usuários de drogas, depreende-se que suas histórias permeiam o espaço social da família, da escola e da religião, ressaltando-se dois temas básicos o estigma e as relações sociais.

O uso e o abuso de álcool e de outras drogas são assuntos complexos e requerem profunda reflexão sobre as razões, motivações e dificuldades encontradas pelos usuários para sua dependência.

Merece destaque o fato de que o mesmo meio social que incentiva, concretiza e legitima o uso, cria sanções ambíguas, como a prisão do usuário quando o encontra sob efeito, ou portando, a substância; não oferece um tratamento de recuperação nem para o usuário nem para seus componentes familiares. Não se percebem claramente os limites de domínios, nem as estruturas defensivas, estando talvez permeando o inconsciente das pessoas o medo de sucumbir ao seu poder e o temor de ser incapaz de enfrentamentos efetivos.

Essa ambivalência está presente nos desenhos e verbalizações dos dois rapazes, conforme explicitado na seqüência.

César, falando sobre a flor do seu desenho livre, menciona as ave-marias, que oferece a Nossa Senhora, para quê? Pedindo a expiação pelas culpas? A flor, entretanto, é uma imagem positiva de beleza, de suavidade, de continuidade da vida, de amor, de alegria, prazer, carinho e ternura. João desenha uma casa, com árvore e frutos, acompanhados do desejo do lar, da proteção, da tranqüilidade, da segurança. Tem a melancolia da lembrança de um tempo bom que se foi e, ao mesmo tempo, a esperança de ver a chaminé fumegando, as árvores darem frutos, enfim, a esperança da recuperação e, possivelmente, de ter uma vida tranqüila. No desenho com tema, entretanto, é retratada a realidade que vivencia com todos os seus encontros e desencontros na corrida para preencher sua falta, que é a busca compulsiva pelo seu objeto de prazer - a droga. Como não tem dinheiro para comprá-la, rouba uma lanchonete mas logo é apanhado pela polícia. Nessa situação, o que deve fazer? Quem ele pode procurar para ajudá-lo?

No material produzido pelos usuários de drogas, percebe-se, à primeira vista, a cristalização de sentimentos de angústia, de insegurança e falta de perspectiva social. A crença na possibilidade de recuperação, entretanto, nem sempre dita, é expressa nas imagens da própria vida projetada nos desenhos, como nas orações recitadas diariamente na esperança de um lar compreensivo e sem brigas.

No imaginário social, o usuário de drogas é considerado um transgressor das normas e, portanto, uma ameaça à ordem social. Por outro lado, a própria sociedade incentiva o alívio das tensões sociais, por meio do uso de bebidas e do cigarro, drogas vendidas livremente. O fenômeno do uso de drogas, incluindo aqui o uso de bebidas alcóolicas e de outras substâncias que causam dependência e que são vendidas livremente, envolve tanto os aspectos socioculturais como fonte de perigo e de poder, como também os aspectos psicológicos, uma vez que não chega a todas as pessoas, mas somente a um grupo que, ao fazer uso, ou continua usando ou pára de usar.

O fenômeno do uso de drogas, para determinados segmentos da sociedade, é analisado como uma questão ligada somente à pessoa do usuário. Há, por parte da sociedade, interesse em tentar encobrir a verdadeira lógica da ordem econômica e estrutural que existe nessa situação? Em alguns casos, é até comum relacionar o uso de drogas ao que se chama de contágio simbólico(13), como um problema com tendência à disseminação de um estigma, contagiando as pessoas do meio social que têm relacionamento amistoso com o usuário. Crenças como essas, veiculadas pela sociedade, reforçam as condutas de desprezo, de punição ou de afastamento das pessoas estigmatizadas, o que, certamente, só aumenta mais o problema.

Sob essa perspectiva, a sociedade transfere as verdadeiras causas geradoras de conflitos para o indivíduo, o usuário de drogas, e o define publicamente como inaceitável e repreensível, excluindo-o.

Da família, primeira referência do ser humano, espera-se que propicie, desde a sua concepção, as condições de desenvolvimento biopsicossocial ao indivíduo. Ao mesmo tempo, temos que compreender a família como uma instituição mutável, que se organiza de acordo com os padrões culturais estabelecidos pela sociedade, absorve esses padrões culturais e os transmite para os seus membros. Os fatores de sobrevivência de cada um têm origem na família, como esteio, referência e fonte formadora de comportamentos. São as representações sociais permeando o cotidiano das pessoas na sociedade.

Considerando os relatos dos sujeitos pesquisados, há a percepção de que muitos usuários de drogas tiveram pais, mas não tiveram experiências com eles que lhes permitissem introjetar a figura paterna estável, compreensiva e complementar, que ele pudesse ter uma identificação. Esse fato os tornou psiquicamente órfãos. Nos relatos contidos nas entrevistas, as famílias dos usuários apareceram como permissivas, com pais omissos ou agressivos, alcoolistas e mães vítimas amorosas e, na sua maioria, coniventes com o uso de drogas, uma vez que, para minimizar suas dores, faz uso de benzodiazepínicos, uma droga lícita que também causa dependência.

Do ponto de vista individual-emocional, a drogadição pode ser vista como uma busca narcisista de prazer, arcaica e regressiva(4). O desejo e o prazer com a droga vão substituindo todos os outros desejos e prazeres e sua busca é marcada pela impulsividade e pela urgência de satisfação. Os usuários relatam, nos depoimentos, progressivo abandono de tudo aquilo que eles consideravam bom, aceitável, que dava prazer e motivava sua existência, como namorar, trabalhar e estar presente junto à sua família.

É na fase de prazer que a dependência se instala. Inicialmente, a droga ocupa o lugar de alguma falta arcaica, proporcionando prazer. Na falta de ambos, aparecem o sofrimento, a incerteza, a angústia e a depressão, e a droga passa então a ser desejada intensamente e, quanto mais intensa for a vontade de consumir, maior será o prazer da intoxicação. Assim, torna-se um círculo vicioso, consumo-falta-consumo. Nesse raciocínio, pode-se notar que, onde antes existia a droga, passa a existir a falta, falta que passa a substituir a droga e se transforma em objeto de desejo. Portanto, deve-se entender que é a atitude do usuário diante da falta que vai diferenciar o dependente do usuário eventual(4).

Em relação à religião, pelos seus princípios dogmáticos, é uma das opções encontrada pelas pessoas para minimizar ou até mesmo suportar as durezas desta vida, oferecendo a sensação de proteção contra todos os males e o sentimento de que, por meio dela, podem ser re-ligados a tudo o que os cerca. É uma "mitologização" da própria vida.

Quanto à escola, é oportuno dizer que, como pertencente ao meio social e constituído-se uma extensão da família, essa instituição tem se mostrado aparentemente neutra acerca dessa questão, acreditando-se que os gestores ainda não fizeram cumprir a lei, envidando esforços no preparo de professores para esse fim. É nesse ambiente social, entretanto, que a maioria dos adolescentes inicia o seu contato com a droga(3).

Em uma investigação a respeito do que havia sido escrito sobre drogas nos livros didáticos brasileiros, destinados ao ensino de 1º e 2ºgraus, encontrou-se grande número de textos com uma abordagem que os pesquisadores chamaram de pedagogia do terror. Causam impacto pelo amedrontamento e utilizam-se, por vezes, de informações cientificamente infundadas, abstraindo o verdadeiro quadro epidemiológico do País e as causas macroestruturais da problemática do uso e do abuso de drogas(14).

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A presente pesquisa foi realizada junto a um grupo de auto-ajuda para usuários de drogas, com o objetivo de identificar os significados manifestos e latentes da vivência desses sujeitos.

Foi necessário mais de um ano de convivência e de observações para que se conquistasse a adesão consciente e esclarecida dos colaboradores deste estudo. A seleção foi intencional e suficiente para refletir o universo pesquisado e os procedimentos técnicos foram realizados utilizando-se entrevistas, conduzidas de modo a estimular a livre narrativa do entrevistado, com o mínimo de interferência das pesquisadoras, e da técnica projetiva, que forneceu material suficiente para entendimento das questões subjetivas do entrevistado.

A técnica projetiva mostrou-se adequada para manter o diálogo, para se criar o ambiente favorável à investigação de aspectos difíceis de abordar, para indicar muitas questões subjetivas não reveladas na verbalização e para acessar conteúdos inconscientes, freqüentemente bloqueados e não ditos com o uso de técnicas diretas de abordagens.

A análise dos dados buscou o teor temático das formas discursivas da comunicação que se estabeleceu entre a pesquisadora e o usuário. Os relatos dos casos selecionados para o presente artigo foram apresentados privilegiando os trechos mais significativos, relacionados aos respectivos desenho-livre e desenho-estória com Tema.

Os resultados evidenciam que as estórias dos dois usuários permeiam o espaço da família, da escola, da religião, ressaltando-se o estigma e as relações do sujeito consigo mesmo e com o seu meio social.

Destacam-se os aspectos emocionais do indivíduo, seu ambiente familiar, a escola, as amizades antes e após ser coaptado pela droga.

O ambiente familiar não lhes permitiu introjetar uma figura paterna estável, compreensiva e completa. Observa-se o abandono progressivo dos seus hábitos, costumes e relações para transformar-se num excluído.

O papel do ambiente escolar e do sistema social, a busca pela religião e as dificuldades de recuperação constituem pontos que se destacam a partir da expressão verbal e dos desenhos dos sujeitos, discutidos neste estudo.

Os resultados desta análise são importantes para subsidiar a construção de programas para dependentes químicos que levem em consideração a singularidade do usuário de drogas.

Enfim, entende-se que esta pesquisa é o início de um caminhar difícil que o enfermeiro psiquiátrico deve percorrer para a construção de um trabalho sólido de atendimento ao dependente químico e ao seu familiar, tendo como objetivo a valorização da saúde e o respeito ético e solidário à vida.

Recebido em: 4.8.2003

Aprovado em: 18.7.2005

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  • 1
    Trabalho extraído da tese de doutorado
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      22 Nov 2005
    • Data do Fascículo
      Out 2005

    Histórico

    • Aceito
      18 Jul 2005
    • Recebido
      04 Ago 2003
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