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Freud e a hermenêutica de Darwin

Freud and Darwin’s hermeneutics

Freud et l’herméneutique de Darwin

Freud y la hermenéutica de Darwin

Resumos

Este artigo pretende mostrar em que medida Darwin inaugurou uma hermenêutica e como ela pautou a posição epistemológica de Freud. Para tanto, busca-se afastar, antes de mais nada, certa concepção corrente, mesmo entre biólogos, segundo a qual o darwinismo se resumiria à ideia da seleção natural. Visto que boa parte dos leitores de psicanálise e psicopatologia desconhecem essa espécie de discussão, o artigo procura dar atenção especial a ela. Em seguida, busca-se mostrar como Freud insere sua contribuição à ciência na esteira da de Darwin. Ambos revelaram - cada um à sua maneira e com propósitos distintos - ser possível uma investigação materialista da psique amparada numa hermenêutica naturalista. Por fim, retoma-se a crítica feita pela filosofia da psicanálise às interpretações de Habermas e Ricoeur com o intuito de ressaltar, com a ajuda de aspectos enfatizados por Lacan, o quanto as posições teórica e clínica vinculadas a tais interpretações se distanciam das posições de Freud.

Palavras-chave
Freud; Darwin; hermenêutica; materialismo; ciência


This article analyzes to what extent Darwin created a hermeneutics and how this hermeneutics guided Freud’s epistemological position. For this purpose, it first moves away from a certain widespread conception, even among biologists, according to which Darwinism could be reduced to the idea of natural selection. Since most readers of psychoanalysis and psychopathology ignore this type of discussion, the article seeks to give special attention to it. Then, it shows how Freud inserts his contribution to science following that of Darwin. Both revealed - each in his own way and with different purposes - that a materialistic investigation of the psyche based on a naturalistic hermeneutic is possible. Finally, it resumes the critiques made by the philosophy of psychoanalysis to Habermas and Ricoeur’s interpretations to highlight, with the help of aspects emphasized by Lacan, how the theoretical and clinical positions linked to such interpretations differ from Freud’s proposals.

Keywords
Freud; Darwin; hermeneutics; materialism; science


Cet article analyse dans quelle mesure Darwin a créé une herméneutique et comment celle-ci a orienté la position épistémologique de Freud. Pour ce faire, on s’éloigne d’une certaine conception répandue, même chez les biologistes, selon laquelle le darwinisme pourrait être réduit à l’idée de sélection naturelle. Comme la plupart des lecteurs de psychanalyse et de psychopathologie ignorent ce genre de discussion, l’article cherche à lui accorder une attention particulière. Ensuite, on montre comment Freud insère sa contribution à la science dans le sillage de celle de Darwin. Tous deux ont révélé - chacun à sa manière et avec des objectifs différents - qu’une investigation matérialiste de la psyché basée sur une herméneutique naturaliste est possible. Enfin, on reprend les critiques faites par la philosophie de la psychanalyse aux interprétations de Habermas et de Ricœur pour mettre en évidence, à l’aide des aspects soulignés par Lacan, comment les positions théoriques et cliniques liées à ces interprétations diffèrent des positions de Freud.

Mots-clés
Freud; Darwin; herméneutique; materialisme; science


Este artículo pretende mostrar hasta qué punto Darwin inauguró una hermenéutica y cómo orientó la perspectiva epistemológica de Freud. Para ello, primero se aleja de la concepción difundida, incluso entre los biólogos, de que el darwinismo se resumiría a la idea de selección natural. Dado que la mayoría de los lectores de psicoanálisis y psicopatología desconocen este tipo de discusión, este artículo pretende prestarle especial atención. A continuación, se busca mostrar cómo Freud inserta su contribución a la ciencia en la estela de la de Darwin. Ambos revelaron - cada cual a su manera y con diferentes propósitos - que es posible una investigación materialista de la psique apoyada en una hermenéutica naturalista. Por último, se retoma la crítica a las interpretaciones de Habermas y Ricoeur realizada por la filosofía del psicoanálisis para poner de manifiesto, con la ayuda de los aspectos destacados por Lacan, cuánto difieren las posiciones teóricas y clínicas vinculadas a dichas interpretaciones de las posiciones de Freud.

Palabras clave
Freud; Darwin; hermenéutica; materialismo; ciencia


Desde que as meticulosas investigações historiográficas de Lucille Ritvo vieram à lume, a influência de Charles Darwin sobre Sigmund Freud foi largamente documentada. A autora salientou a importância de Fritz Müller, Ernst Haeckel e Carl Claus na constituição da biologia darwiniana no mundo germânico, recenseou as fontes de transmissão dessa biologia ao então jovem Freud - Claus especialmente, mas também Theodore Meynert e seu Psychiatrie -, arrolou o grande número de obras sobre a temática da evolução que Freud possuía, muitas delas repletas de anotações, e examinou algumas ideias evolucionárias da obra freudiana, como a da horda primeva, remontando aos escritos de Darwin (Ritvo, 1992Ritvo, L. B. (1992). A influência de Darwin sobre Freud: um conto de duas ciências. Imago.). Outras descobertas cruciais se seguiram a essas - como as de Sulloway (1992)Sulloway, F. J. (1992). Freud, Biologist of the Mind: Beyond the Psychoanalytic Legend. Harvard University Press. a respeito da centralidade das reflexões de Darwin para a sexologia e da reabilitação de Wilhelm Fließ, portador de notáveis ideias darwinianas --, mas foram os trabalhos de Ritvo, realizados a partir dos anos 1960, os responsáveis por atestar, com base em documentos, a dimensão do influxo das ideias de Darwin sobre Freud.

Comparando com o que se assistiu nessa espécie de trabalho historiográfico, os trabalhos com enfoques epistemológico, metodológico e, especialmente, clínico sobre a relação entre os dois autores ainda se mostram, porém, incipientes. Noutros termos, o que resta não é mais comprovar a influência de Darwin sobre Freud - seja mediante um resgate do contexto histórico “darwiniano” (Ritvo, 1992Ritvo, L. B. (1992). A influência de Darwin sobre Freud: um conto de duas ciências. Imago.; Sulloway, 1992Sulloway, F. J. (1992). Freud, Biologist of the Mind: Beyond the Psychoanalytic Legend. Harvard University Press.), seja por meio das próprias referências de Freud a Darwin (Assoun, 1996Assoun, P. L. (1996). Freudisme et Darwinisme. In P. Tort (Org.), Dictionnaire du Darwinisme et de l’evolution ( pp. 1741-1763). PUF.; Ferretti & Loffredo, 2013Ferretti, M. G., & Loffredo, A. M. (2013). A temática darwiniana em Freud: um exame das referências a Darwin na obra freudiana. Psicologia Clínica, 25(11), 109-130.) -, mas, sim, investigar em que medida se pode dizer que os dois se serviram de modelos explicativos, teorias da prova ou atitudes epistemológicas da mesma estirpe. Carência ainda maior é constatada no que diz respeito à investigação das implicações clínicas do posicionamento epistemológico evidenciado pelo criador da psicanálise.

Este artigo busca contribuir para tais carências mediante uma reavaliação do debate sobre o caráter hermenêutico da psicanálise tal como o delinearam seus maiores expoentes, sobretudo entre nós: Habermas (1968/2011)Habermas, J. (2011). Conhecimento e interesse. Editora UNESP. (Trabalho original publicado em 1968). e Ricoeur (1969/2003)Ricoeur, P. (2003). El conflicto de las interpretaciones: ensayos de hermenéutica. Fondo de Cultura Económica. (Trabalho original publicado em 1969).. Tal caráter foi exposto como resposta às leituras ditas cientificistas (Azcona & Lahitte, 2014Azcona, M., & Lahitte, H. B. (2014). El método de Freud y la tradición hermenéutica en psicoanálisis. Revista Latinoamericana de Metodología de las Ciencias Sociales, 4(2), 1-28. Recuperado de <https://www.relmecs.fahce.unlp.edu.ar>.
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) da obra freudiana, o que inaugurou uma querela que perdura até nossos dias. O presente texto defende que a chave para a cessão dessa querela pode estar na consideração da presença de um posicionamento epistêmico darwiniano na psicanálise freudiana, que determina um horizonte terapêutico bem distinto do da psicoterapia. Portanto, a contribuição que se pretende aqui não é apenas de caráter teórico, tal qual se tem visto nas investigações importantes mais recentes como as de Mezan (2007)Mezan, R. (2007). Que tipo de ciência é, afinal, a psicanálise? Natureza Humana, 9(2), 319-359. e Simanke (2009)Simanke, R. T. (2009). A psicanálise freudiana e a dualidade entre ciências naturais e ciências humanas. Scientiae Studia, 7(2), 221-236., mas também clínico.

Com o intuito de sustentar esses pontos, busca-se afastar, antes de mais nada, certa concepção corrente segundo a qual o darwinismo se resumiria à ideia da seleção natural a fim de que se mostre como e em que medida a tarefa de Darwin é, de fato, hermenêutica - num sentido bem próximo do que caracteriza a tarefa de Freud, mas distante daquele que Habermas e Ricoeur imputaram a ela. Visto que boa parte dos leitores de psicanálise e psicopatologia desconhecem essa espécie de discussão, o artigo procura dar atenção especial a ela. Em seguida, busca-se mostrar como Freud insere sua contribuição à ciência na esteira da de Darwin. Ambos revelaram - cada um à sua maneira e com propósitos distintos - ser possível uma investigação materialista da psique amparada numa hermenêutica naturalista. Por fim, retoma-se a crítica feita pela filosofia da psicanálise às interpretações de Habermas e Ricoeur com o intuito de ressaltar, com a ajuda de aspectos enfatizados por Lacan, o quanto as posições teórica e clínica vinculadas a tais interpretações se distanciam das posições de Freud.

“Darwinismo”, Darwin e hermenêutica

“Quando um biólogo moderno fala de Darwinismo”, afirma Mayr (1998)Mayr, E. (1998). O desenvolvimento do pensamento biológico: diversidade, evolução e herança. Editora da Unb., “ele tem em mente o paradigma da seleção natural” (p. 545). Não obstante, isso não ocorre apenas entre biólogos. Efetivamente, como atesta Gould (1989)Gould, S. J. (1989). O polegar do panda: reflexões sobre história natural. Martins Fontes., de modo geral o “darwinismo” tem sido definido “como a crença de que virtualmente toda a mudança evolutiva é produto da seleção natural” (p. 39). Dessa forma, crê-se que o compromisso do naturalista britânico com a noção de seleção natural tenha sido exclusivo - a despeito dos desmentidos dele próprio a esse respeito:

Mas como as minhas conclusões têm sido muito mal apresentadas ultimamente, e se tem dito que eu atribuo a modificação das espécies exclusivamente à seleção natural, permito-me observar que, na primeira edição deste trabalho e subsequentemente, eu coloquei, numa posição um tanto conspícua - nomeadamente, ao final da Introdução -, as seguintes palavras: “Eu estou convencido de que a seleção natural foi o principal, mas não o exclusivo, meio de modificação”. Isso de nada valeu. Grande é o poder da deturpação constante; mas a história da ciência mostra que felizmente esse poder não resiste por muito tempo. (Darwin, 1872aDarwin, C. (1872a). On the Origin of Species by Means of Natural Selection, or the Preservation of Favoured Races in the Struggle for Lifee (6ª ed). John Murray. Recuperado de <http://darwin-online.org.uk/converted/pdf/1872_Origin_F391.pdf >.
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, p. 421)

Contrariando essa previsão, a “deturpação” perdura desde então, sob a forma de certo catecismo “darwinista” que considera como “não darwinianos” todos os recursos explicativos que não remetem à seleção natural. Ainda que ciente do processo histórico envolvendo a aceitação dessa ideia-chave, que sofreu forte rechaço entre o final do século XIX e o começo do XX, tal catecismo tende a compreender esse período como um lapso. Julian S. Huxley, um dos próceres da Teoria Sintética da Evolução e do chamado neodarwinismo, criou a expressão “eclipse do darwinismo” para se referir a tal período (Bowler, 1989Bowler, P. J. (1989). Evolution: The History of an Idea. University of California Press.) - como se fosse resultado de puro obscurantismo a hesitação ante à ideia naturalmente solar da seleção natural, sobre a qual passariam a gravitar, a partir dos anos 1940, as várias disciplinas biológicas até então dispersas e discordantes entre si. Eis o que teria feito a Teoria Sintética da Evolução: marcado o fim do “eclipse” e o início de um retorno da razão.1 1 É verdade, porém, que o aparecimento da Teoria Sintética acabou impulsionando, pouco tempo depois, estudos críticos da ascensão do evolucionismo. Desde 1959, após Darwin ter sido definitivamente chancelado pelos biólogos, assistiu-se à “efusão de uma sofisticada pesquisa histórica” (Kohn, 1985, p. 2; grifo do autor) sobre o naturalista britânico, a qual possibilitou um exame bastante detalhado dos avatares das concepções darwinianas. Isso gerou um número tamanho de estudos sobre o tema que se chegou a chamar esse fenômeno editorial de “indústria Darwin” (Bowler, 1989, p. 151). Muitos desses estudos dedicaram-se, segundo Bowler (1989, p. 14), a “reinterpretar a imagem ‘ortodoxa’” do “darwinismo” concebida pelos historiadores da ciência anteriores, bem como pelos cientistas que se recusavam a admitir a influência do tecido social e do contexto histórico na constituição dessa teoria.

Evidentemente, trata-se de uma visão anacrônica. A ideia da seleção natural conviveu por décadas com uma série de outras ideias evolucionárias - visões “não mendelianas” acerca da hereditariedade, “neolamarckismos”, teoria da ortogênese -, as quais apenas mediante o cômodo exercício da ilusão retrospectiva poderiam ser taxadas de disparates naquele momento. Portanto, esse fascínio criado pelos arquitetos da Teoria Sintética em torno da seleção natural é “um artefato do compromisso da biologia moderna com a síntese entre selecionismo e genética” (Bowler, 1989Bowler, P. J. (1989). Evolution: The History of an Idea. University of California Press., p. 24; grifo meu), de modo que “a ‘revolução darwiniana’ deve ser reinterpretada como uma conversão ao evolucionismo dentro de uma tradição em larga medida não-darwiniana” (p. 149).

Além disso, nas substanciais alterações feitas por Darwin ao longo das seis edições de A origem das espécies, o destaque à seleção natural diminuiu à medida que a importância de mecanismos subsidiários aumentou. É o caso, por exemplo, do uso e desuso e da herança de caracteres adquiridos, ideias ditas “lamarckistas”, que apareceram desde a primeira edição da obra magna darwiniana, mas que foram ganhando relevo progressivamente. Daí os esforços editoriais dos arquitetos e defensores da Teoria Sintética em disseminarem a primeira edição da obra ao invés da sexta, mediante a qual a maioria das pessoas sempre tomou contato com a teoria darwiniana. Assim, “a grande ênfase hoje sobre a primeira edição de 1859 reflete o espírito [mood] dos neodarwinianos, os quais, um século depois, julgaram que ela se adequa melhor às ideias do darwinismo do que a sexta edição” (Provine, 1985Provine, W. B. (1985). Adaptation and mechanisms of evolution after Darwin: a study in persistent controversies In D. Kohn, The Darwinian Heritage (pp. 825-866). Princeton University., p. 826).

De fato, muito mais do que um compêndio sobre a seleção natural, A origem das espécies é uma plêiade de novas proposições - descendência com modificação, gradualismo, multiplicação das espécies, seleção natural, seleção sexual etc. Ao passo que os seus quatro primeiros capítulos tratam da seleção natural - na verdade, os dois primeiros funcionam como um introito a esta, que é devidamente abordada nos dois capítulos seguintes -, os cinco capítulos finais arrolam evidências para a evolução em si, com o aporte da geologia, geografia, morfologia e embriologia, de forma que o último capítulo retoma os desenvolvimentos anteriores para mostrar como seria improcedente defender a imutabilidade das espécies. Desse modo, o que Darwin apresenta em sua obra magna é, de fato, “um grande aglomerado de teorias” (Mayr, 2004Mayr, E. (2004). What Makes Biology Unique? Considerations on the autonomy of a scientific discipline. Cambridge University Press., p. 162), cujos componentes devem ser identificados a fim de se atinar com a natureza de seu pensamento evolucionário.

Como boa parte da literatura de comentário costuma salientar, Darwin (1859Darwin, C. (1859). On the Origin of Species by Means of Natural Selection, or the Preservation of Favoured Races in the Struggle for Life. John Murray. Recuperado de <http://darwin-online.org.uk/converted/pdf/1859_Origin_F373.pdf>.
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define seu trabalho, no início do derradeiro capítulo de sua obra magna, da seguinte maneira: “todo este volume é um longo argumento [...]” (p. 459). Gould (2002)Gould, S. J. (2002). The Structure of Evolutionary Theory. Belknap Press of Harvard University Press. nota que, a despeito do caráter ambíguo dessa expressão - na medida em que, por um lado, a obra representa um argumento para evolução enquanto tal e, por outro, um argumento a respeito de como esse processo ocorre (seleção natural) -, ela aponta para algo central: “um método de trabalho para a matéria especial da pesquisa evolutiva - isto é, para os dados da história” (Gould, 2002Gould, S. J. (2002). The Structure of Evolutionary Theory. Belknap Press of Harvard University Press., p. 99; grifos do autor). Darwin sabia que o estudo da evolução não ganharia estatuto científico até que um método robusto capaz de organizar esses dados fosse erigido e bem fundamentado. Assim, pode-se afirmar que “o ‘longo argumento’ da Origem representa uma estratégia abrangente e um compêndio de modos para a inferência histórica” (Gould, 2002Gould, S. J. (2002). The Structure of Evolutionary Theory. Belknap Press of Harvard University Press., p. 99; grifos meus).

Como matéria para essa inferência, Darwin dispunha de duas grandes fontes: os registros fósseis e os dados (morfológicos, embriológicos, geográficos etc.) presentes nos organismos modernos. Entre os registros diretos, mas imperfeitos dos primeiros, e os dados indiretos, mas abundantes dos últimos, Darwin escolheu estes (Gould, 2002Gould, S. J. (2002). The Structure of Evolutionary Theory. Belknap Press of Harvard University Press.). A história, para o naturalista britânico, deveria ser inferida sobretudo a partir de seus resultados atuais, que funcionavam como signos a serem interpretados. Não à toa, Darwin se serviu de comparações e metáforas linguísticas para descrever seu objeto de estudo. Basta correr os olhos no Origin para encontrar passagens como: “[...] eu encaro o registro geológico natural como uma história do mundo guardada de forma imperfeita e escrita num dialeto cambiante” (Darwin, 1859Darwin, C. (1859). On the Origin of Species by Means of Natural Selection, or the Preservation of Favoured Races in the Struggle for Life. John Murray. Recuperado de <http://darwin-online.org.uk/converted/pdf/1859_Origin_F373.pdf>.
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, p. 310) ou “[...] órgãos rudimentares podem ser comparados às letras de uma palavra que se tornaram inúteis à pronúncia, mas servem como uma pista para pesquisar sua derivação” (p. 455). Nessa hermenêutica darwiniana, os dados naturais devem ser encarados como verdadeiras lições: “Pode-se dizer que a Natureza se deu ao trabalho de revelar, por meio de órgãos rudimentares e estruturas homólogas, seu esquema de modificação [...]” (p. 480).

Devem-se frisar a particularidade de tal método e os desafios epistemológicos contidos em seu bojo. Ele punha em questão os cânones das ciências naturais ao ter como objeto uma história inobservável e de escalas temporais abissais. Os vestígios deixados nesse processo anônimo e silencioso deveriam ser cuidadosamente identificados e escrutinados, pois neles residia a chave para se reconstituir um devir. Como percebeu Canguilhem (1977)Canguilhem, G. (1977). Ideologia e racionalidade nas ciências da vida. Edições 70., Darwin introduziu uma nova forma de compreensão do tempo e da história, na qual “o tempo da vida não era entendido como um poder, mas considerava-se que ele podia ser percebido diretamente em seus efeitos [...]” (p. 95; grifos meus). Numa palavra, tratava-se de uma forma não mais transcendente, e sim imanente de compreensão dessas dimensões. Daí por que não se podia mais tomá-las como fruto de um desenho ou algo bem-acabado. A condição de sua compreensão era atentar para as falhas, os hiatos, as bizarrices, os anacronismos, enfim, para os “remanescentes do passado que não fazem sentido em termos presentes [...]” (Gould, 1989Gould, S. J. (1989). O polegar do panda: reflexões sobre história natural. Martins Fontes., p. 18).

Quem leu Freud não pode deixar de acompanhar essas linhas sem pensar nas formações do inconsciente - os atos falhos, os hiatos das piadas, as bizarrices dos sonhos, os anacronismos das neuroses e patologias em geral -, mas antes de voltarmos à psicanálise, vejamos em que medida Darwin inaugurou uma hermenêutica.

Retomando a distinção feita por Ernst Mayr entre duas áreas da biologia, Caponi (2000)Caponi, G. (2000). Cómo y por qué de lo viviente. Ludus Vitalis, 8(14), 67-102. Recuperado de <http://www.ludus-vitalis.org/ojs/index.php/ludus/article/view/628/0>.
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mostra em que termos a tarefa darwiniana é de ordem interpretativa. Mayr atinou com o fato de que, na verdade, há dois grandes campos biológicos nos quais operam formas distintas de raciocínio: o da biologia funcional, que se pauta pela pergunta “como?”, servindo-se de causas próximas para respondê-la, e o da biologia evolucionária, o qual se guia pela pergunta “por quê”, encontrando respostas apenas mediante causas últimas. Assim, o biólogo funcional visa a elucidar a interação entre elementos estruturais do organismo, enquanto o biólogo evolucionário, a história de tais elementos. Caponi (2000)Caponi, G. (2000). Cómo y por qué de lo viviente. Ludus Vitalis, 8(14), 67-102. Recuperado de <http://www.ludus-vitalis.org/ojs/index.php/ludus/article/view/628/0>.
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evidencia quão distintas são as “máximas metodológicas” (p. 67) dessas duas formas de enxergar o fenômeno biológico: no primeiro caso, ele é visto segundo suas relações de causa-efeito, ao passo que, no segundo, de acordo com o critério “solução-problema”. Dessa forma, enquanto naquele caso deve-se falar em uma “física do vivente”, neste se deve falar em uma “hermenêutica do vivente [...], cuja lógica é mais próxima da que conduz a análise de um arqueólogo ou de um historiador que busca construir a finalidade de uma ferramenta ou de uma máquina antiga” (Caponi, 2000Caponi, G. (2000). Cómo y por qué de lo viviente. Ludus Vitalis, 8(14), 67-102. Recuperado de <http://www.ludus-vitalis.org/ojs/index.php/ludus/article/view/628/0>.
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, pp. 89-90; grifos do autor). Tal lógica busca a razão pela qual uma determinada estrutura levou uma dada espécie ao êxito reprodutivo, o que, por sua vez, conduz a uma reconstrução do processo mediante o qual tal estrutura foi selecionada. Assim, “a análise darwiniana não explica como uma estrutura produz êxito reprodutivo, mas por que o faz em maior grau que outra” (p. 90; grifos do autor). Trata-se de uma tarefa de natureza interpretativa, e não nomotética.

Essa distinção crucial permite que se enxergue os equívocos das considerações da filosofia da ciência hegemônica acerca do estatuto científico da biologia evolucionária. Embora Caponi (2000)Caponi, G. (2000). Cómo y por qué de lo viviente. Ludus Vitalis, 8(14), 67-102. Recuperado de <http://www.ludus-vitalis.org/ojs/index.php/ludus/article/view/628/0>.
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reconstitua o modelo das “ciências físico-matemáticas”, recuperando seu “ideal de explicação” -formulado de forma típica pelos filósofos da ciência mais cultuados, como Popper e Hempel, os quais, por sua vez, inspiraram-se na tradição neokantiana -, quem salienta o caráter equivocado das críticas desse modelo ao das ditas “ciências históricas” é Richards (1998)Richards, R. J. (1998). La estructura de la explicación narrativa en historia y biología. In S. Martínez, & A. Barahona. Historia y explicación en la biología (pp. 212--246). UNAM/Fondo de Cultura Económica.. Este denuncia o “acesso de enfado lógico” (p. 213) que levou Popper a negar o estatuto de ciência propriamente dita à história e, por conseguinte, à biologia evolucionária. Isso porque estas não poderiam predizer nada e, portanto, nem explicar. Eis a insidiosa “tese da simetria” (em que explicar implicaria prever), abraçada por Popper e autores como Lakatos e Hempel, que apontaram a carência nomológica da história em artigo célebre. Richards (1998)Richards, R. J. (1998). La estructura de la explicación narrativa en historia y biología. In S. Martínez, & A. Barahona. Historia y explicación en la biología (pp. 212--246). UNAM/Fondo de Cultura Económica. demostra que essa tese é inválida para acontecimentos históricos e evolucionários. Contrariamente ao que reza o modelo nomológico-dedutivo - que “continua dominando as considerações em filosofia da ciência” (p. 213) -, tais acontecimentos são regidos por causas evidentemente, mas essas fluem “muito mais além do que é causalmente eficiente” (p. 242). Trata-se de uma complexa relação de causalidades, explicada longamente por Richards, mas que pode ser resumida como sendo uma combinação entre acontecimentos antecedentes e consequentes a qual determina que se transcenda o nível explicativo das causas eficientes e se passe ao plano das causas finais, identificado desde Aristóteles. Portanto, a apreciação do caráter científico da história e da biologia evolucionária com as lentes das ciências físico-matemáticas resulta em erros, imprecisões e julgamentos de ordem valorativa.

Richards (1998)Richards, R. J. (1998). La estructura de la explicación narrativa en historia y biología. In S. Martínez, & A. Barahona. Historia y explicación en la biología (pp. 212--246). UNAM/Fondo de Cultura Económica. indica, ainda, que foi contra essa “soberba dos impertinentes filósofos da ciência” que os maiores filósofos da história contemporâneos, como Ricoeur e Gadamer, insurgiram-se, “acrescentando ladrilhos ao muro que separa a ciência das disciplinas históricas” (p. 233). Dessa forma, em vez de o problematizarem, tais filósofos da história endossaram o juízo dos filósofos da ciência. Ante às críticas destes, aqueles buscam, como Schleiermacher e Dilthey antes deles, garantia da cientificidade das Geisteswissenschaften na tradição hermenêutica. Sem nunca disputar esse suposto caráter unívoco das ciências naturais ou o pretenso caráter binário do campo dos saberes científicos.

Tais questões se afiguraram com clareza a um biólogo como Mayr (2004)Mayr, E. (2004). What Makes Biology Unique? Considerations on the autonomy of a scientific discipline. Cambridge University Press., familiar às demarcações neokantianas que deram origem a um tal binarismo:

De fato, a biologia evolucionária, na qualidade de ciência, é mais similar às Geisteswissenschaften em muitos aspectos do que às ciências exatas. Se traçarmos uma linha divisória entre estas ciências e aquelas, ela atinge em cheio a biologia, vinculando a biologia funcional às ciências exatas e classificando a biologia evolucionária entre as Geisteswissenschaften. Isso, aliás, mostra a fraqueza da velha classificação das ciências, que foi feita por filósofos familiarizados às ciências físicas e às humanidades, mas ignorantes da existência da biologia. (Mayr, 2004Mayr, E. (2004). What Makes Biology Unique? Considerations on the autonomy of a scientific discipline. Cambridge University Press., p. 33)

Retornaremos ao caráter defensivo da estratégia daqueles filósofos da história, mas, por ora, importa ressaltar o caráter hermenêutico da tarefa que Darwin legou à biologia evolucionária. Todavia, distintamente da hermenêutica de Schleirmacher, Dilthey e dos referidos filósofos, a da biologia evolucionária deve buscar reunir as evidências e comprovações materiais. Não interessa, aqui, discutir a natureza delas - Richards (1998)Richards, R. J. (1998). La estructura de la explicación narrativa en historia y biología. In S. Martínez, & A. Barahona. Historia y explicación en la biología (pp. 212--246). UNAM/Fondo de Cultura Económica., por exemplo, as considera unidades narrativas, e não fatos propriamente -, mas a forma segundo a qual são reunidas a fim de que se obtenha uma estrutura coerente, tal qual um mosaico, na feliz imagem de Richard. Daí por que A origem das espécies apresenta uma torrente de comprovações de naturezas diversas - matemáticas, paleontológicas, geográficas, geológicas etc. -, que adquirem ritmo febril em certos momentos do livro. Trata-se de apresentar uma espécie de Gestalt que aponte para o processo evolutivo.

É nesses termos, enfim, que se pode afirmar que Darwin elaborou uma hermenêutica - do vivente ou da natureza. Como se pode ver, trata-se de algo muito mais amplo do que a elaboração de uma ideia como a da seleção natural. O naturalista britânico criou um método de inferência do decurso histórico da natureza. De fato, conforme lembra Richards (1998)Richards, R. J. (1998). La estructura de la explicación narrativa en historia y biología. In S. Martínez, & A. Barahona. Historia y explicación en la biología (pp. 212--246). UNAM/Fondo de Cultura Económica., o apelo à história não era incomum à época, que abrigou intelectos extraordinários nesse campo - Tocqueville, Ranke, Prescott, Macauley e tantos outros, a maioria dos quais Darwin leu com afinco aliás. Todavia, sem dúvida foi uma estratégia “astuta” - e de sucesso, pois sua contribuição para a “aceitação de uma explicação secular do mundo” (Mayr, 2004Mayr, E. (2004). What Makes Biology Unique? Considerations on the autonomy of a scientific discipline. Cambridge University Press., p. 84) foi sem precedentes.

Freud e o tópos darwiniano

Após essa longa, porém necessária retomada da hermenêutica naturalista de Darwin, podemos indicar em que medida esses traços parecem pautar o posicionamento epistemológico de Freud.

Recuperemos uma passagem sobejamente conhecida, endossada e utilizada mesmo por biólogos como Gould (1996)Gould, S. J. (1996). Full House: The Spread of Excellence from Plato to Darwin. Harmony Books., mas infrequentemente enxergada como um importante índice e tal posicionamento:

Todos nós sabemos que as pesquisas de Charles Darwin, seus colaboradores e predecessores puseram fim a essa arrogância do ser humano há meio século. O homem não é nada distinto e nem melhor que os animais. Ele próprio emergiu [Hergehen] do reino animal, sendo mais próximo de algumas espécies, mais distante de outras. Suas aquisições posteriores não conseguiram obscurecer a semelhança evidente no que diz respeito tanto à compleição física quanto às disposições anímicas [Seelichen Anlagen]. Essa é, pois, a segunda afronta, biológica, ao narcisismo humano. (Freud, 1917/1952bFreud, S. (1952b). Eine Schwierigkeit der Psychoanalyse. Gesammelte Werke (Vol. 12, pp. 1-12). Imago. (Trabalho original publicado em 1917)., p. 11; grifo do autor)

Trata-se do excerto em que Freud lista as três ofensas da ciência ao narcisismo humano: a cosmológica, lançada por Copérnico; a biológica, identificada acima, e a psicológica, desferida pelo próprio Freud - e jocosamente designada por Gould (1996)Gould, S. J. (1996). Full House: The Spread of Excellence from Plato to Darwin. Harmony Books. como “uma das afirmações menos modestas da história das ideias” (p. 18).

Em seu estudo hoje clássico, Assoun (1983)Assoun, P.-L. (1983). Introdução à epistemologia freudiana. Imago. mostrou como essa passagem corresponde a uma “referência topológica e histórica do saber freudiano” (p. 217). Histórica porque faz parte de uma parábola que foi objeto de querelas autorais entre Ernst Haeckel e Émile Du Bois-Reymond - ambos colocaram em série Copérnico e Darwin - e que marcou, segundo Assoun (1983Assoun, P.-L. (1983). Introdução à epistemologia freudiana. Imago., pp. 219-222), a defesa da posição naturalista no campo das ciências europeias no final do século XIX. Topológica porque ela ocupa o tópos da denúncia do antropocentrismo - e os textos de Haeckel e Freud são postos lado a lado a fim de mostrar as muitas semelhanças entre eles (Assoun, 1983Assoun, P.-L. (1983). Introdução à epistemologia freudiana. Imago., pp. 223-225). O autor francês nota que, contudo, deve-se distinguir o monismo vitalista de Haeckel, uma verdadeira Weltanschaaung, que “canta a Odisseia do grande retorno do homem à sua pátria originária, a Natureza” (p. 227), do dualismo de Freud, distante das tentações totalizantes, cosmológicas e biogônicas haeckelianas e rente ao plano da “ciência dos organismos” (p. 234).

Assoun (1983)Assoun, P.-L. (1983). Introdução à epistemologia freudiana. Imago., contudo, deixou de notar o quanto a passagem acima expressa o tópos provindo de Darwin, especificamente - e eis o que gostaría- mos de salientar. Os dois aspectos nela frisados por Freud são a ascendência animal do homem e a equivalência entre “compleição física” e “disposições anímicas” - justamente o que Darwin procurou comprovar em suas duas obras sobre a evolução humana. A descendência do homem e a seleção em relação ao sexo (Darwin, 1871Darwin, C. (1871). The Descent of Man, and Selection in Relation to Sex (Vols, 1-2). John Murray. Recuperado de <http://darwin-online.org.uk/converted/pdf/1871_Descent_F937.1.pdf>.
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) e A expressão das emoções no homem e nos animais (Darwin, 1872bDarwin, C. (1872b). The Expression of the Emotions in Man and Animals. John Murray. Recuperado de <http://darwin-online.org.uk/converted/pdf/1872_Expression_F1142.pdf>.
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) buscaram mostrar a ascendência animal do homem de maneira radical, o que significava que não apenas as estruturas físicas humanas, como pelos e dentes, seriam explicadas como resultado de um devir, mas que as emoções, a inteligência, o senso moral e a linguagem do ser humano encontrariam sua razão de ser remontando a causas evolucionárias. Consequentemente, qualquer diferença qualitativa entre homem e animal deveria ser abandonada, mesmo no que tange à constituição mental:

[…] a diferença mental entre o homem e os animais superiores, por maior que seja, é certamente de grau e não de gênero [...] os sentidos, as intuições, as várias emoções e faculdades, tais como o amor, a memória, a atenção, a curiosidade, a imitação, a razão etc., de que o homem se vangloria, podem ser encontradas num estado incipiente ou mesmo bem desenvolvido nos animais inferiores. (Darwin, 1871Darwin, C. (1871). The Descent of Man, and Selection in Relation to Sex (Vols, 1-2). John Murray. Recuperado de <http://darwin-online.org.uk/converted/pdf/1871_Descent_F937.1.pdf>.
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, v. 1, p. 105; grifos meus)

Como Darwin, Freud denunciou o que fere a húbris humana - ou lhe interdita o direito de “vangloriar-se”. Não por acaso, como se viu acima, Freud localiza a ofensa lançada pela psicanálise ao lado e na sequência daquela lançada por Darwin.

Outra conhecida passagem da obra freudiana fornece ainda mais indícios do tópos em questão. Trata-se da 35ª das Novas conferências de introdução à psicanálise, em que o naturalismo freudiano aparece de forma patente e bem fundamentado:

Na qualidade de ciência especial [Spezialwissenschaft], um ramo da psicologia [...] ela [a psicanálise] é incapaz, por completo, de formar [Bilden] uma Weltanschauung própria, devendo aceitar a da ciência [Wissenschaft]. (Freud, 1933/2000bFreud, S. (200b). Neue Vorlesungen zur Einführung in die Psychoanalyse. Studienausgabe (Vol. 1, pp. 448-608). Fischer. (Trabalho original publicado em 1933)., p. 586; grifos meus)

O adjetivo “especial” designa a especificidade dos fenômenos investigados pela psicanálise, um “ramo da psicologia”, e não uma posição de exceção em relação a outros saberes, pois, como o autor esclarece em seguida,

espírito e alma são objetos de investigação científica exatamente da mesma forma como são as coisas diferentes do humano. Nesse sentido, a psicanálise possui um direito especial de defender a Weltanschauung científica, visto que não se pode recriminá-la por ter negligenciado o que é anímico em nossa concepção de mundo. Sua contribuição à ciência [Wissenschaft] repousa, justamente, sobre a extensão da pesquisa ao domínio anímico. A ciência [Wissenschaft], aliás, ficaria muito incompleta sem uma tal psicologia. Porém, se a investigação das funções intelectuais e emocionais dos homens (e dos animais) é incluída na ciência [Wissenschaft], vê-se que nada mudou na atitude científica geral, que não surgem novas fontes de conhecimento e novos métodos de pesquisa. (p. 587; grifos meus)

O tópos darwiniano só se torna claro nessa passagem se tivermos em mente o caráter incendiário e radical da empreitada em A expressão das emoções no homem e nos animais (Darwin, 1872bDarwin, C. (1872b). The Expression of the Emotions in Man and Animals. John Murray. Recuperado de <http://darwin-online.org.uk/converted/pdf/1872_Expression_F1142.pdf>.
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). Até então, o campo da expressão fora abordado sob uma ótica totalmente criacionista. Sir Charles Bell (1774-1842), em seu Anatomia e filosofia da expressão - muito referido por Darwin na obra em questão -, considerara a expressão emocional segundo sua finalidade de comunicação entre os homens, propósito que sinalizaria uma intervenção divina (Richards, 2003Richards, R. J. (2003). Darwin on mind, morals and emotion. In J. Hodge, & G. Radick (Eds.), The Cambridge Companion to Darwin (pp. 95-115). Cambridge University Press.). Enquanto A descendência do homem indicava que as faculdades superiores humanas “tinham-se desenvolvido muito além daquelas que se verificavam em seus progenitores” (Richards, 2003Richards, R. J. (2003). Darwin on mind, morals and emotion. In J. Hodge, & G. Radick (Eds.), The Cambridge Companion to Darwin (pp. 95-115). Cambridge University Press., p. 109), A expressão das emoções considerava que “as emoções humanas e sua manifestação não teriam progredido comparavelmente” (p. 109). Dessa maneira, uma tal investigação poderia fornecer um acesso mais imediato à animalidade do ser humano, como se o passado pudesse ser resgatado e atualizado a cada vez que uma emoção era exprimida.

Darwin mostrou o profundo liame que os movimentos expressivos possuem com a constituição orgânica do indivíduo, produto da evolução, e com o que denominou de hábito, algo mantido por gerações a fio e, por conseguinte, fixado filogeneticamente. Em certos estados de tristeza, por exemplo, os músculos respiratórios sofrem espasmos e o indivíduo sente “como se alguma coisa estivesse subindo por sua garganta, o assim chamado globus hystericus” (Darwin, 1872bDarwin, C. (1872b). The Expression of the Emotions in Man and Animals. John Murray. Recuperado de <http://darwin-online.org.uk/converted/pdf/1872_Expression_F1142.pdf>.
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, p. 179). De especial interesse para nós é o fato de o componente somático das emoções ser tão saliente que as expressões da língua não deixam de reiterá-lo: quando alguém está triste, “todos os traços se alongam; e dizemos que as feições de alguém que recebe uma notícia ruim ficam ‘caídas’” (p. 179); nas expressões de desânimo, há a depressão dos cantos da boca, e por isso se diz “que uma pessoa está ‘murcha’ [down in the mouth]” (p. 194); por fim, quando estamos com raiva e nossas narinas dilatam, “temos expressões como ‘respirando vingança’ [breathing out vengeance] e ‘fumegando de raiva’ [fuming with anger]” (p. 241).

Noutros termos, Darwin buscou a materialidade da expressão e da linguagem para ancorar suas especulações teóricas - estratégia que também se observou em Freud desde a fundação da psicanálise. Lembremos, para começar, que foi justamente esse livro de Darwin que Freud evocou no inaugural “Estudos sobre histeria”, ao destacar a literalidade com que Frau Cäcilie tomara o insulto do marido certa vez, convertido em neuralgia facial (Breuer & Freud, 1895/2011Breuer, J.; Freud, S. (2011). Studien über Hysterie. Fischer Taschenbuch Verlag. (Trabalho original publicado em 1895)., pp. 198-202). Pouco tempo depois, em “Psicopatologia da vida cotidiana” - texto também no qual Darwin é citado, desta vez para comprovar o vínculo entre esquecimento e desprazer (Freud, 1904/1952aFreud, S. (1952a). Zur Psychopathologie des Alltagsleben (Über Vergessen, Versprechen, Vergreifen, Aberglaube und Irrtum). Gesammelte Werke (Vol. 4). Imago. (Trabalho original publicado em 1904)., p. 164) -, conclui-se que, em todos os atos ali examinados, deu-se a ver “um material psíquico [psychisches Material] suprimido de forma incompleta” (p. 270; grifos meus), a despeito da força da repressão. Um material como que petrificado, pois “o princípio arquitetônico do aparelho anímico pode ser inferido como o da estratificação, o da edificação de instâncias que se superpõem umas às outras” (p. 146; grifos do autor). A especificidade da psicanálise residia em conferir acesso a esse material, mediante a análise dos atos falhos, sonhos e sintomas, mas a tarefa de analisá-los era a mesma a que se propunham as demais ciências dedicadas à pré-história humana. Como o autor salientou numa nota em A interpretação dos sonhos (Freud, 1900/2000aFreud. S. (2000a). Die Traumdeutung. Studienausgabe (Vol. 2). Fischer. Trabalho original publicado em 1900).),

podemos esperar obter o conhecimento da herança arcaica do ser humano, o que há de inato em sua alma [das seelisch Angeborene]. Parece que sonho e neurose conservaram em nós a antiguidade da alma [den seelischen Altertümern] mais do que poderíamos supor, de modo que a psicanálise pode reivindicar uma posição elevada entre as ciências [Wissenschaften] que se esforçam para reconstruir as fases mais arcaicas e obscuras da humanidade. (p. 534)

Fédida (1996)Fédida, P. (1996). O sítio do estrangeiro: a situação psicanalítica. Escuta., que nos chamou a atenção para este último excerto, salienta como Freud, desde aquela via aberta por “Estudos sobre histeria”, “acaba por identificar o psíquico à mineralidade” (p. 218). Dessa forma, é impreciso conceber o material psíquico como um texto simplesmente. Quando muito, poderíamos encará-lo como uma espécie de “texto fóssil” (p. 220; grifos do autor), de “escritura sem apagamento a não ser o do esquecimento negligente dos homens” (p. 221). Diferentemente de um texto, o psiquismo, no fundo, não quer dizer algo sobre coisa alguma. Trata-se de um território petrificado e silencioso. Portanto, dar sentido a tal material pode indicar sua história de deposição, mas não o esgota completamente: é preciso apontar seu anacronismo, seu caráter fossilizado. À diferença de Ferenczi e de Jung, nota Fédida, para Freud não se trata de “animar o psíquico pela observação dos sintomas”, e sim de mostrar “o geológico como um destino de devir psíquico da humanidade” (p. 218; grifos do autor). Trata-se de fazer notar certa materialidade telúrica inanimada. Nesse sentido, faz-se oportuna a recordação da comparação feita a certa altura das “Novas conferências introdutórias” entre a eclosão da patologia e a quebra de um cristal: “Se atiramos um cristal ao chão, ele se quebra, mas não arbitrariamente. Quebra-se de acordo com suas linhas de clivagem, em pedaços cujos limites, embora invisíveis, estavam determinados pela estrutura do cristal” (Freud, 1933/2000bFreud, S. (200b). Neue Vorlesungen zur Einführung in die Psychoanalyse. Studienausgabe (Vol. 1, pp. 448-608). Fischer. (Trabalho original publicado em 1933)., p. 497). A interpretação pode identificar tais linhas e reconstituir seu processo de formação, mas a natureza mesma do cristal não é, em si, dotada de sentido.

Passagens como as destacadas acima compõem, assim, um mosaico o qual evidencia que, para o fundador da psicanálise, sua contribuição ao saber científico se inseria na continuidade da contribuição evolucionária de Darwin. Dela extraiu um método de investigação que, no entanto, revelou importante especificidade por se aplicar ao anímico. Assim, por um lado, na visão de Freud, a psicanálise não se serve de novas fontes ou novos métodos de pesquisa, pertencendo ao campo das ciências naturais; por outro, tem o direito de reivindicar um lugar especial entre estas por ter promovido um enfoque naturalista da psique humana.

Daí, de uma parte, o disparate de conceber Freud como um “biólogo da mente” à maneira Sulloway (1992)Sulloway, F. J. (1992). Freud, Biologist of the Mind: Beyond the Psychoanalytic Legend. Harvard University Press., isto é, como alguém que procedeu a uma aplicação (críptica e, ao final, malsucedida, quando não desonesta simplesmente, segundo a perspectiva do historiador norte-americano) dos princípios da biologia evolucionária à mente, sem considerar as especificidades da prática clínica e psicanalítica em relação à investigação biológica. Contudo, daí também, de outra parte, o despropósito de inserir a obra freudiana na esteira da tradição hermenêutica, sem considerar as especificidades da psicanálise em relação à filosofia e à psicologia. É preciso, não obstante, retomar a crítica dessas leituras hermenêuticas para que deixemos ainda mais claro esse último aspecto.

O leito de Procusto da filosofia e a materialidade da palavra

Ao demonstrar os excessos e as agendas das interpretações de Freud feitas por autores como Habermas e Ricoeur, a filosofia da psicanálise no Brasil realizou um serviço inestimável. Não apenas de natureza teórica, deve-se frisar. Nossos filósofos realizaram um exame crítico preciso das tentativas de “forçar a psicanálise no leito de Procusto de um crivo filosófico pré-estabelecido” (Simanke, 2011Simanke, R. T. (2011). A arte da leitura e os efeitos do pensar: uma introdução ao pensamento de Luiz Roberto Monzani. In R. T. Simanke, F. Caropreso, & F. V. Bocc (Orgs.). O movimento de um pensamento: ensaios em homenagem a Luiz Roberto Monzani (pp. 15-38). CRV., p. 28) e preservaram as particularidades da psicanálise tantas vezes reiteradas por seu fundador. Tal exercício tem também um valor clínico infrequentemente ressaltado.

De fato, a tentativa de resgate da psicanálise das garras do cientificismo por parte de Ricoeur e Habermas não deve deixar de ser valorizada em alguma medida. Após lhe ser negada a condição de ciência (natural) “no julgamento do tribunal dos filósofos” (Blight, 1981Blight, J. G. (1981). Must psychoanalysis retreat to hermeneutics? Psychoanalytic theory in the light of Popper’s evolutionary epistemology. Psychoanalysis and Contemporary Thought, 4(2), 147-205., p. 155), especialmente os positivistas e os popperianos, a psicanálise estava desalojada do lugar em que Freud a havia colocado. Foi então que, a partir dos anos 1960, outro grupo de filósofos passou a responder buscando realocá-la no grupo das ciências ditas históricas. Para filósofos como Ricoeur (1969/2003)Ricoeur, P. (2003). El conflicto de las interpretaciones: ensayos de hermenéutica. Fondo de Cultura Económica. (Trabalho original publicado em 1969)., a alocação era óbvia, assim como seu caráter contestatório:

[...] para o analista, a conduta é um segmento de sentido. Daí porque seu método está muito mais próximo das ciências históricas que o das ciências naturais. O problema de uma técnica de interpretação se vincula muito mais à questão de Schleiermacher, de Dilthey, de Max Weber, de Bultmann do que à problemática do behaviorismo, mesmo o menos selvagem. Reconhecer isso é a única réplica válida contra o ataque dos lógicos, semânticos e metodólogos que questionam o caráter científico da psicanálise. (p. 173, grifos meus)

Porém, os excessos de tentativas como essa se revelaram evidentes. Como vimos argumentando até aqui, a atividade interpretativa não se vincula necessariamente “à questão de Schleiermacher, de Dilthey, de Max Weber, de Bultmann”, e, pelo que foi exposto acima, pode-se depreender que um enfoque naturalista da “conduta” não é necessariamente behaviorista. Numa palavra, apesar de mostrarem-se movidos pela reação legítima contra a condenação da psicanálise no cadafalso das ciências nomológico-dedutivas, autores como Ricoeur acabaram por endossar, ao fim e ao cabo, conforme se indicou acima, precisamente o juízo dos positivistas e popperianos.

Resta agora acrescentar que, além desse endosso e da manutenção do caráter binário da ciência, os entusiastas da tradição hermenêutica deitaram a psicanálise no leito de Procusto e extirparam, dentre outras partes, justamente a espécie de materialismo que vimos tentando delinear. Em sua criteriosa análise da interpretação feita por Ricoeur da obra freudiana, Monzani (1989)Monzani, L. R. (1989). Freud: o movimento de um pensamento. Editora da Unicamp. mostrou que “o energético é deslocado para o plano somático e o plano psíquico deveria ser o lugar das correlações de puro sentido” (p. 94). Ora, uma tal interpretação ignora a natureza “mineral”, “fóssil” e estratificada do psiquismo apontada acima.

Prado Jr. (1985)Prado Jr., B. (1985). Auto-reflexão ou interpretação sem sujeito? Habermas intérprete de Freud. In Alguns ensaios (pp. 9-29). Max Limonad., numa fina crítica à interpretação feita por Habermas da obra freudiana, secunda esse ponto ao compará-la à de Ricoeur: “Tanto no caso de Ricoeur como no de Habermas, o pessimismo e o materialismo de Freud são neutralizados em nome da Verdade [...]” (p. 28; grifos meus). Pois tanto Habermas quanto Ricoeur foram animados por aquilo que sempre esteve na raiz da tradição hermenêutica evocada por eles, “sua primitiva ancoragem semântica: leitura do texto sagrado” (p. 27). Seja evocando explicitamente a sutileza da interpretação do Velho e do Novo Testamento (Ricoeur), seja resguardando o marxismo do positivismo invasor (Habermas), o resultado foi o mesmo: a purgação do materialismo.

Prado Jr. (1985)Prado Jr., B. (1985). Auto-reflexão ou interpretação sem sujeito? Habermas intérprete de Freud. In Alguns ensaios (pp. 9-29). Max Limonad. ainda nos brinda com uma avaliação prenhe de consequências clínicas. O exame da tese central habermasiana da psicanálise como autorreflexão - o que, deve-se dizer, a diferencia ao menos um tanto da “hermenêutica das ciências do espírito”, na medida em que “o ato da compreensão, ao qual ela conduz, é autorreflexão” (Habermas, 1968/2011Habermas, J. (2011). Conhecimento e interesse. Editora UNESP. (Trabalho original publicado em 1968)., p. 342; grifos do autor), e não propriamente compreensão de nexos simbólicos - demonstra como o resultado é a redução da “psicanálise a uma psicologia do eu. O eu, essa ilusão justamente que a psicanálise veio a destruir [...]” (Prado Jr., 1985Prado Jr., B. (1985). Auto-reflexão ou interpretação sem sujeito? Habermas intérprete de Freud. In Alguns ensaios (pp. 9-29). Max Limonad., pp. 23-24; grifos do autor). Pois concebê-la como um “processo cognitivo” (Habermas, 1968/2011Habermas, J. (2011). Conhecimento e interesse. Editora UNESP. (Trabalho original publicado em 1968)., p. 348), conduzido por alguém que “orienta o paciente para que ele aprenda a ler os próprios textos, mutilados e deturpados por ele mesmo [...]” (pp. 342-342), significa reconduzir o eu à senhoria de sua própria casa - como se a “afronta” ao “narcisismo humano” que se seguiu à de Darwin nunca tivesse ocorrido. O processo analítico, dessa forma, degenera-se em processo comunicativo, e a materialidade “petrificada” - e, nessa medida, sem sentido originário - das palavras é ignorada.

É preciso recuperar o trabalho de alguém que se manteve o mais distante e crítico possível do “evolucionismo” de Freud para compreender a importância de uma tal materialidade: Lacan. Desde o início de seu ensino, ele nos alertou para os excessos da interpretação ancorada na significação ao visar, antes, os efeitos de sentido. Para tanto, privilegiou aspectos como a homofonia - largamente utilizada, aliás, na forma mesma de transmissão em seus seminários e escritos. Aspectos como esse comprovam a importância da ênfase na materialidade do significante, uma das maiores insistências de Lacan. Pois a linguagem, antes de tudo, “é corpo”, razão pela qual as palavras “podem engravidar a histérica, identificar-se com o objeto do Penis-neid, representar a torrente de urina da ambição uretral ou o excremento retido do gozo avarento” (Lacan, 1956/1998aLacan, J. (1998a). Função e campo da fala e da linguagem em psicanálise. In Escritos (pp. 238-324). Jorge Zahar. (Trabalho original publicado em 1956)., p. 302). Afinal, pensava o psicanalista francês, a contribuição freudiana ao saber residia precisamente nesse ponto: “é mesmo para o suporte do significante, portanto, que somos dirigidos pelas proposições de Freud [...]” (Lacan, 1960/1998bLacan, J. (1998b). Observações sobre o relatório de Daniel Lagache: psicanálise e estrutura da personalidade. In Escritos (pp. 653-691). Jorge Zahar. (Trabalho original publicado em 1960)., p. 665).

Além da insistência nessa materialidade, Lacan ressaltou o caráter desordenado da disposição (e deposição, poderíamos acrescentar) originária dos significantes - a “não organização real pela qual seus elementos se misturam [...]” (p. 665) -, tal qual numa loteria. A função da psicanálise seria a de tocar o inconsciente, esse território desordenado, e mostrar esse aprisionamento do sujeito pela linguagem. Ainda que, como Habermas, ele tenha buscado conferir à psicanálise uma teoria da linguagem melhor do que a de Freud, conforme ressalta Prado Jr. (1985)Prado Jr., B. (1985). Auto-reflexão ou interpretação sem sujeito? Habermas intérprete de Freud. In Alguns ensaios (pp. 9-29). Max Limonad., Lacan, de modo algum, reduziu-a a um trabalho de restituição da agência do eu. Muito pelo contrário: foi um dos que mais denunciaram tal redução, mediante a ênfase na disposição/deposição caótica dos significantes no inconsciente.

É verdade que, como mostrou Cotet (1996/2011)Cotet, S. (2011). O declínio da interpretação. In Ensaios de clínica psicanalítica (pp. 31-42). Contra Capa. (Trabalho original publicado em 1996)., Lacan não conseguiu impedir os arbítrios interpretativos a que se assistiu com a vaga do estruturalismo a partir dos anos 1960 - a despeito de todo esforço “arquimediano” do psicanalista francês em moderar o furor hermenêutico que sobreveio ao pós-freudismo. “Houve, assim, uma ‘religião da escuta’, denunciada pelo próprio Lacan nos 1960, no contexto de Obra aberta, de Umberco Eco, e de certo manejo da letra” (Cotet, 1996/2011Cotet, S. (2011). O declínio da interpretação. In Ensaios de clínica psicanalítica (pp. 31-42). Contra Capa. (Trabalho original publicado em 1996)., p. 33). Daí por que, a partir do final dos anos 1960, Lacan começou a dar mais ênfase à interpretação como um desarranjo, lançando mão de recursos como o rumor, o equívoco, o enigma, a citação.

De todo modo, sua constante insistência na materialidade do significante, nos excessos hermenêuticos e no gozo do sentido deixou sempre clara a diferença radical entre psicanálise e psicoterapia. Conforme sintetiza Soler (1995)Soler, C. (1995). Interpretação: as respostas do analista. Opção Lacaniana, 13, 20-38., “a psicoterapia tenta restaurar a base abalada do sujeito” (p. 23). Ante a divisão instaurada no sujeito, que o faz procurar ajuda, o psicoterapeuta o acolhe e dá mais significações que visam a preencher o fosso provocado pela divisão. Ora, essa é justamente a tarefa que Habermas atribui ao analista. Para o filósofo alemão, a análise visa o “restabelecimento de uma unidade corrompida” (Habermas, 1968/2011Habermas, J. (2011). Conhecimento e interesse. Editora UNESP. (Trabalho original publicado em 1968)., p. 350) - a unidade do eu. Nada mais distante da psicanálise: trata-se de desfazer essa unidade, de separar “o sujeito do objeto do fantasma”, enfim, em vez de visar à restauração das significações, “mostrar o além das mesmas significações [...]” (Soler, 1995Soler, C. (1995). Interpretação: as respostas do analista. Opção Lacaniana, 13, 20-38., p. 23).

As ressonâncias de tais insistências vêm se mostrando presentes em outras abordagens verificadas na psicanálise contemporânea dedicadas aos limites da interpretação (por exemplo, Graña, 2014Graña, R. B. (2014). O declínio da interpretação: experiência e intervenção em psicanálise. Juruá.). De fato, trata-se de um imperativo frente à dificuldade de quadros como os transtornos alimentares, os casos ditos borderline, as psicoses ordinárias, os sofrimentos narcísico-identitários. As nomeações variam conforme o enfoque, mas todos eles apontam para um limite daquilo que, contudo, foi sobrevalorizado por boa parte dos pós-freudianos e por autores como Habermas e Ricoeur. Por mais que estes não tenham se preocupado com as derivações clínicas de suas posições, há nelas um horizonte terapêutico distinto do da psicanálise, como se buscou mostrar. Portanto, considerando-se a posição de Freud, a interpretação de tais autores se mostra problemática não apenas do ponto de vista epistemológico como também por suas implicações clínicas.

Considerações finais

A argumentação avançada neste artigo procurou contribuir para o reexame das leituras hermenêuticas da psicanálise contrapondo-lhes passa- gens e aspectos da obra freudiana que denotam uma posição epistemológica não apenas naturalista, mas, sobretudo, darwiniana. Visto que outros trabalhos de enfoque epistemológico já apresentaram os contornos dessa posição - como o de Simanke (2009)Simanke, R. T. (2009). A psicanálise freudiana e a dualidade entre ciências naturais e ciências humanas. Scientiae Studia, 7(2), 221-236., que caracteriza com precisão o “naturalismo qualificado” de Freud, de feição claramente darwiniana, ou o de Mezan (2007)Mezan, R. (2007). Que tipo de ciência é, afinal, a psicanálise? Natureza Humana, 9(2), 319-359., que indica como Freud e Darwin apresentaram um mesmo “modo de fazer ciência” (p. 349; grifos do autor), na medida em que buscaram construir “uma teoria abrangente a partir de dados que, por sua natureza, não podem passar pela prova da experimentação” (p. 348) -, o presente trabalho visou a derivar do posicionamento freudiano implicações clínicas.

De fato, a estratégia de aliar reflexão epistemológica e clínica parece a mais rara no escopo das investigações sobre o naturalismo de Freud, especialmente no cenário nacional. Nossa filosofia da psicanálise corresponde a uma área de pesquisa já consolidada, vigorosa e reconhecida, inclusive internacionalmente, mas que não parece atrair tanto o interesse dos analistas em geral. Dessa forma, indicar possíveis derivações clínicas de trabalhos realizados nessa área pode ser uma boa maneira de reverter esse cenário, aliando solidez epistemológica a rigor clínico. Espera-se que, com a demonstração do caráter hermenêutico da tarefa de Darwin e da forma como ele pautou a tarefa de Freud, tenha-se podido ao menos divisar como uma aliança dessa espécie poderia enriquecer e renovar o debate sobre a cientificidade da psicanálise.

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    É verdade, porém, que o aparecimento da Teoria Sintética acabou impulsionando, pouco tempo depois, estudos críticos da ascensão do evolucionismo. Desde 1959, após Darwin ter sido definitivamente chancelado pelos biólogos, assistiu-se à “efusão de uma sofisticada pesquisa histórica” (Kohn, 1985Kohn, D. (1985). Introduction: a high regard for Darwin. In D. Kohn (Ed.). The Darwinian Heritage (pp. 1-5). Princeton University., p. 2; grifo do autor) sobre o naturalista britânico, a qual possibilitou um exame bastante detalhado dos avatares das concepções darwinianas. Isso gerou um número tamanho de estudos sobre o tema que se chegou a chamar esse fenômeno editorial de “indústria Darwin” (Bowler, 1989Bowler, P. J. (1989). Evolution: The History of an Idea. University of California Press., p. 151). Muitos desses estudos dedicaram-se, segundo Bowler (1989, p. 14)Bowler, P. J. (1989). Evolution: The History of an Idea. University of California Press., a “reinterpretar a imagem ‘ortodoxa’” do “darwinismo” concebida pelos historiadores da ciência anteriores, bem como pelos cientistas que se recusavam a admitir a influência do tecido social e do contexto histórico na constituição dessa teoria.

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Editor/Editor: Prof. Dr. Nelson da Silva Jr.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    13 Mar 2023
  • Data do Fascículo
    Dez 2022

Histórico

  • Recebido
    14 Set 2022
  • Aceito
    23 Out 2022
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