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Um psicanalista e seu desejo

A psychoanalyst and his desire

Fundamentos da psicanálise de Freud a Lacan. Vol. 3 - A prática analíticaJorge, Marco Antonio Coutinho. Rio de Janeiro: Zahar, 2017, 298 págs.

Tendo seu trabalho reconhecido no Brasil e em diversos países da Europa, Marco Antonio Coutinho Jorge é capaz de transmitir, com sua escrita clara e generosa, os principais conceitos que sustentam o edifício teórico da psicanálise na trilogia intitulada Fundamentos da psicanálise de Freud a Lacan. A prática analítica é o tema desenvolvido no terceiro volume da trilogia, que percorre os textos do período denominado pelo autor de ciclo da técnica, bem como os momentos essenciais da obra de Freud, em que a questão da prática analítica será tratada de forma direta pelo criador da psicanálise. Vemos também que autor apresenta sua visão pessoal da prática clínica, construída ao longo de um percurso iniciado em sua formação médico-psiquiátrica.

Fundamentos da psicanálise de Freud a Lacan: a prática analítica está dividido em três partes. Na primeira parte, o autor delimita a importância da palavra como instrumento essencial da práxis analítica, construindo um mapa cartográfico no qual delineia os caminhos percorridos por Freud, que vão desde o abandono da hipnose e do método sugestivo nas sessões, até o estabelecimento do registro simbólico por Lacan.

Dando prosseguimento, Coutinho Jorge apresenta o ciclo da técnica, período da produção freudiana que se estende entre os anos de 1912 e 1915, quando são publicados seus escritos técnicos. O autor anuncia que em nenhum momento “os escritos técnicos se mostram peremptórios, e vê-se que Freud faz questão de manter sempre aberta para cada analista a possibilidade de encontrar a melhor forma de conduzir sua tarefa analítica e de construir, em sua prática clínica, seu próprio laboratório de psicanálise” (Coutinho Jorge, 2017Coutinho Jorge, M. A. (2017). Fundamentos da psicanálise de Freud a Lacan (Vol. 3), A prática analítica. Rio de Janeiro, RJ: Zahar., p. 65). O surgimento do desejo do analista é o que permitirá que o analista, a exemplo de Freud, abstenha-se de ocupar o “lugar de mentor do seu paciente”, sendo este o pressuposto do que Lacan introduz como sendo a dimensão ética da psicanálise, ou seja, que o analista certamente dirige o tratamento e não o analisando. Cumpre ao analista permitir que o analisando “entre em contato com a verdade de seu desejo inconsciente, ao qual ele dará algum destino diverso daquele produzido pelo recalque” (Idem, p. 110).

Na segunda parte do livro, a questão da ética do desejo será aprofundada pelo autor. Coutinho Jorge mostrará que o percurso de Lacan foi marcado por um constante questionamento a respeito dos desvios éticos cometidos pelos analistas pós-freudianos, especialmente diante das questões suscitadas na clínica em relação à transferência e ao seu manejo. Mostra que Lacan, ao evidenciar a existência de uma determinação simbólica, recoloca a prática analítica novamente nos trilhos, já que é a fala do sujeito a matéria com a qual trabalha o analista. No percurso analítico, o comparecimento da angústia evidencia o modo pelo qual o sujeito se relaciona com o desejo. O que está em jogo na angústia é esse momento em que o sujeito se torna nada, objeto a, quando falta o desejo, ou seja, quando falta a falta.

A relação entre o luto e a culpa fechará a segunda parte do livro. Coutinho Jorge demonstra toda sua percepção a respeito da prática analítica na medida em que nos brinda com a exposição de dois casos em que foi convocado, como analista, a escutar a dor, o sofrimento que advém da perda do objeto amado. Nesse ponto, chama atenção a forma como o autor se coloca no texto, expondo detalhes tanto de seu manejo, como de sua visão pessoal a respeito da prática analítica. Fazendo referência a determinado caso trabalhado, afirma: “Nessa situação e em algumas outras, tive de compreender que, na sua análise, precisaria operar sem qualquer rigidez e tolerar as transgressões mais variadas de determinados preceitos técnicos supostamente padrão. Com certos limites, claro, que dizem respeito ao primum vivere, ou seja, ao princípio formulado por Lacan de que é sempre necessário, em primeiro lugar, preservar o vínculo analítico” (Idem, p. 218). Coutinho Jorge nos ensina mais uma vez que é no caso a caso, na escuta do que é singular a cada sujeito, que o analista deve centrar o manejo do tratamento, construindo um estilo que lhe é próprio.

Ele fecha o livro retomando o aforismo lacaniano de que cada analista deve reinventar a psicanálise e faz uma importante advertência ao afirmar que reinvenção não significa recriação, mas sim uma disposição que leva o analista a colocar algo de si em sua prática, o que ele chamou de “improvisação” (Idem, p. 241). Retomando Freud e Lacan, nos incita a transformar a prática da psicanálise em um laboratório, no qual suas próprias regras são constantemente submetidas à investigação.

Assim como no volume anterior - A clínica da fantasia - Coutinho Jorge encerra seu trabalho versando sobre o desejo de despertar e seu correspondente, o despertar do desejo. Indica que “a psicanálise é a operação de despertar o desejo por meio da travessia da fantasia, que, ao sustentá-lo, o aprisiona, podendo-se supor que o que aciona essa operação é o desejo de despertar” (Idem, p. 260). Assinala que o desejo de despertar caminha no sentido oposto à homeostase, implicando uma “abertura para o novo e a criação”, e com isso destaca a “vertente criacionista da pulsão de morte”. Convoca cada sujeito a não ceder de seu desejo, o que seria o mesmo que cometer uma traição, ou seja, “o sujeito trai a sua via, se trai a si mesmo”. O desejo do analista seria, nesse aspecto, o que levaria o analisando à vivência do despertar, pois, como afirma Lacan: “o desejo do analista não é um desejo puro. É um desejo de obter a diferença absoluta, aquela que intervém quando, confrontado com o significante primordial, o sujeito vem, pela primeira vez, à posição de se assujeitar a ele. Só aí pode surgir a significação de um amor sem limite, porque fora dos limites da lei, somente onde ele pode viver” (Lacan, 2008Lacan, J. (2008). O Seminário. Livro 11. Os quatro conceitos fundamentais da psicanálise. Rio de Janeiro: Zahar. (Trabalho original publicado em 1964)., p. 260).

A forma como os conceitos são trabalhados em sua obra evidencia o empenho do autor em transmitir a psicanálise pelo viés da escrita. Coutinho Jorge consegue, com seu traço, desmistificar os conceitos, aproximando-os do leitor e é nisso que reside a importância do seu trabalho: a ausência de qualquer resistência no que concerne à transmissão da psicanálise. Seus leitores podem comemorar o fato de que um quarto volume da série sobre os fundamentos da psicanálise foi anunciado recentemente para ser publicado no próximo ano, que se chamará O laboratório do analista.

Referências

  • Coutinho Jorge, M. A. (2008). Fundamentos da psicanálise de Freud a Lacan (Vol. 1), as bases conceituais Rio de Janeiro, RJ: Zahar.
  • Coutinho Jorge, M. A. (2010). Fundamentos da psicanálise de Freud a Lacan (Vol. 2), A clínica da fantasia. Rio de Janeiro, RJ: Zahar.
  • Coutinho Jorge, M. A. (2017). Fundamentos da psicanálise de Freud a Lacan (Vol. 3), A prática analítica Rio de Janeiro, RJ: Zahar.
  • Lacan, J. (2008). O Seminário. Livro 11. Os quatro conceitos fundamentais da psicanálise Rio de Janeiro: Zahar. (Trabalho original publicado em 1964).
Editora/Editor: Profa. Dra. Marta Regina de Leão D’Agord

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    25 Jan 2021
  • Data do Fascículo
    Dez 2020

Histórico

  • Recebido
    13 Nov 2020
  • Aceito
    15 Nov 2020
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