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Ódio, cúmplice do Eu

Hass, Komplize des Ich

Odio, cómplice del Yo

Hatred, accomplice of the ego

Haine, complice du Moi

Resumos

Ingrediente da trama intersubjetiva, o ódio está presente na vida psíquica em circunstâncias diversas e é na situação clínica que revela suas múltiplas faces. Aqui focalizamos a forma positiva com que, na perspectiva psicanalítica, o ódio pode se revestir, como afeto essencial e elemento dinâmico de afirmação do eu. Uma história clínica ilustra essa discussão. O texto ressalta, em suma, a necessidade de ampliar a escuta analítica do ódio, cuja interpretação e manejo devem variar, a depender da vicissitude que assume e de seus propósitos na economia psíquica.

Psicanálise; psicopatologia fundamental; ódio; ódio positivo; Eu


Der Hass ist eine Komponente der intersubjektiven Vernetzung und ist in verschiedenen Situationen im psychischen Leben gegenwärtig. Doch in der klinischen Situation enthüllt er seine vielseitigen Facetten. Hier werden wir aus psychoanalytischer Perspektive die positive Form behandeln, mit der sich der Hass tarnen kann, als essenzieller Affekt und dynamisches Behauptungselement des Ichs. Diese Diskussion wird durch einen klinischen Bericht verdeutlicht. Im Text wird, zusammengefasst, das Bedürfnis hervorgehoben, in erweiterter Weise analytisch auf die Äußerungsformen des Hasses zu hören. Die folgliche Interpretation und Handhabung muss variieren, entsprechend der veränderten Form, die er annimmt und seiner Absichten in der psychischen Wirtschaft.

Psychoanalyse; Funtamentalpsychopathologie; Hass; positiver Hass; Ich


Ingrediente de la trama intersubjetiva, el odio está presente en la vida psíquica en diferentes circunstancias, y es en la situación analítica que revela sus varias facetas. Aquí nos centramos en la forma positiva con que, en una perspectiva psicoanalítica, el odio puede revestirse como afecto esencial y elemento dinámico de afirmación del Yo. Una historia clínica ilustra la discusión. El texto destaca la necesidad de ampliar la escucha analítica del odio, cuya interpretación y manejo deben variar en dependencia de la vicisitud de que se reviste y de sus propósitos en la economía psíquica.

Psicoanálisis; psicopatología fundamental; odio; odio positivo; Yo


Hatred as an ingredient of inter-subjective workings is present in psychic life in different circumstances. In the clinical situation it reveals its multiple faces. Here we focus on the positive form that hatred can take on from a psychoanalytical perspective, as essential affect and a dynamic element in the affirmation of the ego. A clinical case illustrates this discussion. In brief, the paper stresses the need to amplify the analytical listening to hatred, its interpretation, and its management, which vary according to the vicissitudes it takes up and its purposes in psychic economy.

Psychoanalysis; fundamental psychopathology; hatred; hate; positive hate; ego


Ingrédient de la trame intersubjective, la haine est présente dans la vie psychique à diverses occasions et c'est dans la situation analytique qu'elle révèle ses multiples facettes. Nous mettons l'accent ici sur la forme positive que peut revêtir la haine dans la perspective psychanalytique, comme affect essentiel et élément dynamique de l'affirmation du moi. Une histoire clinique illustre cette discussion. Le texte souligne, en somme, la nécessité d'accroître l'écoute analytique de la haine, dont l'interprétation et le maniement doivent varier, selon les vicissitudes qu'elle présente et ses objectifs dans l'économie psychique.

Psychanalyse; psychopathologie fundamental; haine; haine positive; Moi


ARTIGOS

Ódio, cúmplice do Eu* Correspondence: Maria Neuma Carvalho de Barros Psicanalista; Doutoranda em Psicologia Clínica no Programa de Pós-graduação em Psicologia Clínica da Universidade Católica de Pernambuco - Unicap (Recife, PE, Br); Membro do Laboratório de Psicopathologia Fundamental da Unicap e do Labore - Laboratório de Psicopatologia Fundamental do EPSI (João Pessoa, PB, Br); sócia-fundadora do EPSI - Espaço Psicanalítico (João Pessoa, PB, Br). Rua Nevinha Cavalcanti, 46 - Miramar 58043-000 João Pessoa, PB, Br E-mail: neumabarros@epsi.com.br

Hatred, accomplice of the ego

Haine, complice du Moi

Odio, cómplice del Yo

Hass, Komplize des Ich

Maria Neuma Carvalho de BarrosI; Zeferino de Jesus Barbosa RochaII

IUniversidade Católica de Pernambuco - Unicap (Recife, PE, Brasil)

IIUniversidade Católica de Pernambuco - Unicap (Recife, PE, Brasil)

Correspondence Correspondence: Maria Neuma Carvalho de Barros Psicanalista; Doutoranda em Psicologia Clínica no Programa de Pós-graduação em Psicologia Clínica da Universidade Católica de Pernambuco - Unicap (Recife, PE, Br); Membro do Laboratório de Psicopathologia Fundamental da Unicap e do Labore - Laboratório de Psicopatologia Fundamental do EPSI (João Pessoa, PB, Br); sócia-fundadora do EPSI - Espaço Psicanalítico (João Pessoa, PB, Br). Rua Nevinha Cavalcanti, 46 - Miramar 58043-000 João Pessoa, PB, Br E-mail: neumabarros@epsi.com.br

RESUMO

Ingrediente da trama intersubjetiva, o ódio está presente na vida psíquica em circunstâncias diversas e é na situação clínica que revela suas múltiplas faces. Aqui focalizamos a forma positiva com que, na perspectiva psicanalítica, o ódio pode se revestir, como afeto essencial e elemento dinâmico de afirmação do eu. Uma história clínica ilustra essa discussão. O texto ressalta, em suma, a necessidade de ampliar a escuta analítica do ódio, cuja interpretação e manejo devem variar, a depender da vicissitude que assume e de seus propósitos na economia psíquica.

Palavras-chave: Psicanálise, psicopatologia fundamental, ódio, ódio positivo, Eu

ABSTRACT

Hatred as an ingredient of inter-subjective workings is present in psychic life in different circumstances. In the clinical situation it reveals its multiple faces. Here we focus on the positive form that hatred can take on from a psychoanalytical perspective, as essential affect and a dynamic element in the affirmation of the ego. A clinical case illustrates this discussion. In brief, the paper stresses the need to amplify the analytical listening to hatred, its interpretation, and its management, which vary according to the vicissitudes it takes up and its purposes in psychic economy.

Key words: Psychoanalysis, fundamental psychopathology, hatred, hate, positive hate, ego

RÉSUMÉ

Ingrédient de la trame intersubjective, la haine est présente dans la vie psychique à diverses occasions et c'est dans la situation analytique qu'elle révèle ses multiples facettes. Nous mettons l'accent ici sur la forme positive que peut revêtir la haine dans la perspective psychanalytique, comme affect essentiel et élément dynamique de l'affirmation du moi. Une histoire clinique illustre cette discussion. Le texte souligne, en somme, la nécessité d'accroître l'écoute analytique de la haine, dont l'interprétation et le maniement doivent varier, selon les vicissitudes qu'elle présente et ses objectifs dans l'économie psychique.

Mots clés: Psychanalyse, psychopathologie fundamental, haine, haine positive, Moi

RESUMEN

Ingrediente de la trama intersubjetiva, el odio está presente en la vida psíquica en diferentes circunstancias, y es en la situación analítica que revela sus varias facetas. Aquí nos centramos en la forma positiva con que, en una perspectiva psicoanalítica, el odio puede revestirse como afecto esencial y elemento dinámico de afirmación del Yo. Una historia clínica ilustra la discusión. El texto destaca la necesidad de ampliar la escucha analítica del odio, cuya interpretación y manejo deben variar en dependencia de la vicisitud de que se reviste y de sus propósitos en la economía psíquica.

Palabras clave: Psicoanálisis, psicopatología fundamental, odio, odio positivo, Yo

ZUSAMMENFASSUNG

Der Hass ist eine Komponente der intersubjektiven Vernetzung und ist in verschiedenen Situationen im psychischen Leben gegenwärtig. Doch in der klinischen Situation enthüllt er seine vielseitigen Facetten. Hier werden wir aus psychoanalytischer Perspektive die positive Form behandeln, mit der sich der Hass tarnen kann, als essenzieller Affekt und dynamisches Behauptungselement des Ichs. Diese Diskussion wird durch einen klinischen Bericht verdeutlicht. Im Text wird, zusammengefasst, das Bedürfnis hervorgehoben, in erweiterter Weise analytisch auf die Äußerungsformen des Hasses zu hören. Die folgliche Interpretation und Handhabung muss variieren, entsprechend der veränderten Form, die er annimmt und seiner Absichten in der psychischen Wirtschaft.

Schlüsselwörter: Psychoanalyse, Funtamentalpsychopathologie, Hass, positiver Hass, Ich

Como psicanalistas, o ódio nos convoca

Afeto recorrente no cotidiano das relações com o outro, o ódio convoca amor, sadismo, indiferença. Ingrediente da trama intersubjetiva, suas des-cargas energéticas e potência, suas redes indissolúveis e seus objetos de destino se insinuam e se revelam em desejos, discursos, sintomas e fantasias. Expressão do narcisismo, o ódio está presente na vida psíquica em circunstâncias e momentos diversos.

Suas múltiplas faces e marcas incestuosas, seus fins e deslocamentos emergem na relação transferencial - campo em que se insurge sua economia, movida por inscrições psíquicas que não são mediadas pela palavra e demandam tradução, simbolização. A presença do ódio na situação analítica habita paciente e analista e é de tal forma marcante, que requer do terapeuta cuidadosa compreensão das tramas e dos sentidos que encobre: exigência que se impõe tanto pela complexidade de seus diferentes matizes quanto pela força de sua presença na transferência e contratransferência.

A cada dia, a clínica nos desafia a buscar subsídios na teoria, que abrem novos caminhos e nos remetem de volta à clínica: assim se apresenta a articulação, aparentemente banal e sempre reeditada, entre teoria e clínica.

Ao longo da produção de antigo trabalho clínico, debruçamo-nos sobre a função que o ódio assumia na dinâmica psíquica de uma jovem paciente. Em suas defesas e relações se infiltravam afetos de ódio que, cúmplices do eu, acionavam um trabalho psíquico a serviço da preservação de sua integridade narcísica, protegendo-a, para que não se deixasse invadir pela problemática familiar. Tal compreensão certamente produziu efeitos tanto na escuta como no manejo do ódio, inaugurando, a partir de então, novas perspectivas para o caso em questão.

Por ser particularmente marcante e inusitada, essa constatação nos instigou a investigar teoricamente os impulsos de ódio. Uma descoberta nos chamou a atenção: a confrontação, no campo terapêutico, com uma dimensão do ódio tanto quanto diversa da face destrutiva consensualmente evidenciada nas leituras que dele se faz. Apesar de referida no âmbito da teoria psicanalítica, só no caso clínico em questão pudemos constatar que o ódio poderia assumir valência positiva. Daí, nossa decisão de elegê-lo objeto de estudo, tendo em vista nomeá-lo, conceituá-lo e compreender seus impasses e possibilidades, para então apreender a polissemia que encarna e, num plano mais geral, amplia a inteligibilidade do pathos.

As reflexões desenvolvidas neste trabalho tiveram origem, portanto, na clínica: espaço de escuta e acolhimento de um discurso, sobre o qual a produção de um saber se impõe. Este artigo analisa, em síntese, a dimensão positiva com que, na perspectiva psicanalítica, o ódio pode se revestir, como afeto necessário na vida psíquica e elemento dinâmico de afirmação do eu. A história clínica1 1 História clínica descaracterizada de modo a evitar a identificação do(a) paciente. mais adiante incluída ilustra, portanto, essa discussão e aponta a transferência e a contratransferência como abrigos para o ódio, exilado nos confins da subjetividade.

Ódio - constituinte do sujeito psíquico

Em 1915, Freud se voltou para as adversidades perturbadoras dos primórdios da vida psíquica. O eu - em sua condição originária de desamparo e invadido pelas pulsões - é levado a se defender e se mover em direção à sua primeira realização: incorporar a si o que é prazeroso e expulsar o que é desprazeroso. Mais antigo que o amor, o ódio nasce "do repúdio primordial do eu narcísico ao mundo exterior, aportador de estímulos" (1915/2004, p. 161). Para Freud, o ódio "é uma exteriorização da reação de desprazer provocada pelos objetos e mantém sempre estreito vínculo com as pulsões de autoconservação do Eu" (p. 161). É manifestação econômica, ferida que irrompe pela fenda estreita que se abre entre o eu e o outro e pela qual escapa a realidade implacável da exterioridade - fato que impõe o abandono da autossuficiência ilusória, característica do nascimento da subjetividade. Indelével, o ódio se mantém no âmago do eu e inexoravelmente atualiza o encontro primordial do eu com o outro-hostil-exterior, ameaçado com descontinuidade e aniquilação.

A primeiríssima relação do eu com o mundo exterior, por conseguinte, "tem o sentido primordial do odiar" (Freud, 1915/2004, p. 159): odiar, diante da constatação da alteridade do outro, da exigência de reordenamento narcísico e do mal-estar advindo da experiência do encontro com o exterior. Nesse contexto, não mais se sustenta a premissa de que "o seio é uma parte de mim, eu sou o seio" (Freud, 1941[1938]/1975, p. 335): o seio pertence à mãe e tal percepção demanda a representação irreversível do objeto e da exterioridade. Assim, em sua onipotência, o eu é atingido pela inevitável cisão eu-ambiente, que gera ruptura na unidade primordial.

O primeiro laço com o outro implica uma dinâmica, de que o ódio é ingrediente e polo de um campo de forças que desde sempre marcará as relações entre o sujeito e o outro. O ódio surge lá, onde nascem sujeito e objeto, e é atravessando-o que ambos se constituem como tais. Sobre ele (e, certamente, também sobre o amor) se fundamenta toda relação intersubjetiva.

Elemento de resistência, o ódio viabiliza a separação e diferenciação eu-objeto, movimento constituinte no processo de subjetivação; tem dimensão essencial, na medida em que promove a afirmação e conservação do eu e, ao mesmo tempo, abre a sensibilidade ao diverso e dá passagem ao amor, que sempre quer o apagamento da alteridade. Quando existe sem distância, ausência ou separação, sem ambivalência e sem ódio - só amor - , é "o mal se querendo", como fala Riobaldo, personagem de Grande sertão, veredas, de Guimarães Rosa.

O ódio tem, portanto, presença vigorosa na estruturação do psiquismo e, como pertinentemente afirma R. Dorey (1986), fundamenta "(...) a ação negadora pela qual o sujeito constrói sua identidade (...)" (p. 93). Desempenha, pois, papel fundamental tanto no processo de individuação, que supõe a existência do outro em sua alteridade, quanto no processo de separação, pelo qual o objeto se constitui como tal. Freud destacou que o objeto é conhecido no ódio e, simultaneamente, o suscita. Essencial à permanência do objeto, somente no ódio o outro pode ser reconhecido como outro e a realidade como realidade.

Ódio exilado nos confins da subjetividade: uma escuta analítica

Passamos a apresentar uma síntese da história clínica de Ana: história de ódio exilado nos confins do eu.

Ana, 25 anos, não fora desejada nem o fora sua irmã mais velha: sua mãe tentou abortar suas duas gestações, quis "mandar todas embora". Ao nascer, era feia e esquisita, segundo sua mãe, e, quando criança, vivia atormentada por muitos medos; era triste, retraída, não se sentia amada nem reconhecida. Detestava o odor do pai drogado, que impregnara sua infância.

Para ela, sua própria estranheza tinha relação com uma experiência marcante: um tio muito próximo sempre a acariciava em troca dos bombons de que ela mais gostava. Sua vida, desde então marcada pela desesperança, fora encoberta pela névoa do estranhamento.

Em resumo: nasceu menina quando a mãe esperava um filho; tinha vergonha do pai drogado, era molestada por um tio, comparada pelos de casa a uma prima maluca, e ela própria se identificava apenas com a irmã homossexual: todos da casta dos desvalidos, em que a própria Ana se incluía. O contato com o ambiente adverso lançou-a em uma via entre estranhamento e ódio e deixou-a fixada em uma posição de ressentimento e defesa narcísica.

Enlaces e desenlaces do ódio transferencial

Ana era prisioneira da estranheza fundante de seu ser, oriunda do olhar de estranhamento da mãe, que desde sempre a fizera se perceber estranha e estrangeira. Seu recorrente sentimento de inferioridade era intensificado pelos impasses da castração, que a lançaram na encruzilhada da experiência de sedução incestuosa e a impediam de renunciar à satisfação pulsional. Agastada e desconfiada, só tinha olhos para o negativo.

Ana se considerava herdeira da inferioridade originária dos que chegam ao mundo como integrantes da nau dos humilhados. E suas relações interpessoais, caracterizadas por permanente desconfiança e mal-estar, reeditavam a matriz originária da relação primeira com a mãe bem como a experiência de abuso de que fora vítima.

Para Ana, o sempre atribulado encontro com o outro era pouco contrabalançado pelo investimento libidinal da parte dos objetos, com os quais se via impedida de estabelecer uma aproximação confiante e promissora. Sempre na defensiva, não conseguia se relacionar diferentemente, e o ódio que nutria, e que lhe servia de escudo contra as tensões de seus primeiros laços intersubjetivos, tinha dimensão narcísica.

Acreditando-se privada de um amor a que achava ter direito, vivia a falta como espoliação e, os objetos, como usurpadores de seu acolhimento. Para nós, Ana reivindicava amor e gratificação por meio do ódio, instrumento com ajuda do qual tentava se desembaraçar dos desvarios que herdara.

Os conflitos afetivos, como Freud mesmo assinalou (1915/2004), apresentam--se por pares, como amor e ódio. Na história de Ana predominava apenas ódio. Onde estaria o amor para mitigá-lo e a ele integrar-se? Em sua mais íntima essência, seu ódio era expressão de sua busca por reconhecimento e pelo amor do outro. Ódio, portanto, à espera de seu par, o amor.

Evocando a interpretação dada por L. C. Figueiredo2 2 Em intervenção no Colóquio sobre o ódio, realizado no dia 30 de setembro de 2012 pelo Laboratório de Psicopatologia Fundamental do EPSI - Espaço Psicanalítico, João Pessoa (PB). ao ódio persistente, entendemos que o ódio a protegia, como defesa diante da ameaça de violação de sua integridade e autoestima. Entretanto, ao persistir como blindagem defensiva, dificultava o contato com o outro, resultando num modo de relacionamento incompatível com a saúde.

Para Ana, o ódio era expressão de sua luta por autoconservação e afirmação. Sua hostilidade era também continuação do ódio experienciado pela mãe, que vira nascer uma menina quando, na verdade, desejava um menino. Incapaz de acolher a filha e de se constituir em fonte de prazer, a mãe não pudera se identificar emocionalmente com Ana, de modo a lhe apaziguar as tensões ante o desprazer do encontro primeiro com o outro. Por sua vez, o pai, que a envergonhava, não fora capaz de mediar nem de lhe afiançar trocas afetivas favoráveis à predominância de experiências prazerosas: em sua travessia edípica, por conseguinte, Ana permaneceu enredada em relações objetais marcadas pelo negativo. Sozinha, tivera de se contrapor aos sentimentos e ao lugar que de outros herdara, restando-lhe o ódio, como eixo de sustentação e vínculo.

Ao longo do processo de análise, a economia de sua hostilidade se infiltrava densamente em suas palavras, mas, para além dos ressentimentos e da negatividade, nela persistia a esperança de um devir promissor. Movida pela transferência, Ana pôde aos poucos resgatar o sentido originário dos afetos hostis, nomear e elaborar o próprio ódio e a falta de trânsito com os que a rodeavam. Em suma, sua análise paulatinamente viabilizou a vivência, expansão e simbolização do ódio, e, por conseguinte, o reordenamento subjetivo.

Sem dúvida, nossa presença e disposição foram fundamentais para dar sustentação a Ana, acompanhar seu discurso com atenção flutuante, acolher suas vivências afetivas, deixando advir o inesperado e podendo nos "deparar com o surpreendente enigmático" (Berlinck & Magtaz, 2012, p. 71). Igualmente fundamental foi nossa disponibilidade em receber o impacto de suas transferências negativas - seus movimentos marcadamente ambivalentes, sua irritação, insatisfação e exigências. Acolher sua experiência emocional, eivada de negatividade, foi certamente um desafio que implicava: dar livre acesso ao ódio transferencial; concomitantemente, a ele sobreviver e dele participar; consentir, enfim, o predomínio da contratransferência como instrumento para a compreensão, interpretação e manejo desse ódio.

Por vezes, o cansaço e a irritação nos dominavam e, só posteriormente, chegamos a compreender a importância de uma intervenção em que nos surpreendemos dizendo enfaticamente a Ana: "Pare com isso! Chega de tanto ver apenas o negativo! Por que só se volta para o que há de ruim em você ou à sua volta? Você não está se dando conta de suas conquistas!" Ao que ela respondeu: "É... falando assim, posso acreditar no que diz!" (Barros, 2004, p. 82).

O momento acima foi crucial: nossa intervenção - com certeza, suscitada pelo ódio - produziu efeito inesperado e, a partir de então, Ana começou a se desvencilhar de suas intransigências e animosidades, tornando-se mais relaxada no contato e na comunicação com o outro, agora muito mais fecundos. Tal ocorrência corroborou a concepção winnicottiana de que, do lugar de analista, é fundamental que acolhamos o ódio surgido na contratransferência, que pode ser proveitosamente utilizado pelo analista para ampliar sua compreensão do paciente (cf. Winnicott, 1947).

O ódio como força unificadora

De nosso ponto de vista, o ódio pode preservar a autoestima, tal como revelado no processo analítico de Ana, que nele se fortaleceu para fazer frente à desestruturação característica do meio em que vivia, sem deslizar de vez na problemática familiar. Como anteriormente afirmamos, tal compreensão produziu efeitos extremamente significativos tanto na escuta quanto no manejo do ódio, inaugurando, a partir de então, novas perspectivas para o caso em questão.

P.-L. Assoun (1995) afirma que "o ódio é uma forma [de o indivíduo] se autoconservar, em apoio às pulsões de vida" (p. 143). Encravado no interior do eu, o ódio permanece como marca ativa e decisiva da diferenciação/separação do eu em relação ao outro; ou seja, da afirmação do sujeito frente ao objeto: ódio como ponto de ancoragem, "velando Eros". Nesta perspectiva, podemos pensar o ódio de Ana como expressão do narcisismo positivo, que A. Green (1988) concebe como "(...) fator unificador que parte do ego, onde sua libido - opondo-se à libido do objeto - se empenha em realizar a coesão do ego: esse narcisismo inclina-se para a Unicidade" (p. 18).

Podemos tomar o ódio como força psíquica que fortalece a identidade e representação de si, aguça percepções, potencializa o eu e suas fronteiras, demarcando limites e, dessa forma, mantendo necessária distância do outro.

Para concluir: da clínica à teoria, da teoria à clínica

A clínica nos desafia constantemente e, para ultrapassar seus impasses e obstáculos, vimo-nos impelidos a buscar subsídios na teoria, tendo em vista formular hipóteses e vislumbrar novos caminhos para a compreensão e o manejo clínico de situações instigantes. Dia a dia, a pretensamente banal articulação entre teoria e prática é reeditada, a exemplo do que ocorreu ao depararmos com a complexidade do caso clínico acima mencionado e tivemos de recorrer à teoria para deslindar e aprofundar nossa leitura sobre o ódio e suas nuances.

Constatamos que o ódio - conhecido ingrediente da experiência humana - é comumente concebido como um sentimento adverso, associado a rancor, raiva, aversão, repugnância, antipatia, desprezo e ao desejo de causar o mal. Portanto, a referência notadamente explícita e frequente que se faz ao ódio diz respeito unicamente à sua face destruidora e negativa. Por isso mesmo todos tentam mantê-lo distante; quem sabe, inconscientemente movidos pelos vestígios do primeiro ódio: sentimento que em nós desde sempre habita. Daí, a tendência a considerá-lo algo indesejável, que deve ser sempre rejeitado, combatido.

A literatura psicanalítica também se restringe, basicamente, ao ódio destrutivo, apesar de a clínica dia a dia evidenciar que nem sempre o ódio quer a destruição e, por vezes, desempenha função positiva. Tal como sugere, por exemplo, C. Bollas (1984), que chama a atenção para o ódio que conserva o objeto e pode ser substituto do amor, representando uma forma inconsciente de amor (p. 222).

Apesar de o ódio ser aparentemente tão conhecido, tropeçamos na hora de interpretá-lo e explicá-lo. As várias dimensões a ele inerentes requerem pesquisa que venha a analisar: sua natureza e dinâmica, o funcionamento de sua economia, as diversas tramas que enreda, o trabalho psíquico que põe em movimento e os destinos que pode tomar - tudo isto apenas para ressaltar o caráter complexo da problemática do ódio e dos afetos em geral.

Na experiência clínica vislumbramos, por intermédio do ódio transferencial, sua dimensão paradoxal e contingente: ora se manifesta como ódio destrutivo - ruptura, força destruidora, sem objeto nem lugar de legitimação; ora se apresenta como ódio positivo - afeto necessário, estruturante, a serviço da afirmação psíquica do eu - dimensão essencial que realçamos neste texto.

Isto só demonstra a necessidade e importância de considerarmos o mesmo fenômeno sob diversos ângulos - razão pela qual o analista precisa incrementar sua escuta, para que possa alcançar as múltiplas nuances, os limites e possibilidades ao ódio inerentes, como afeto atuante na economia psíquica. A depender da vicissitude que o ódio assume, interpretação e manejo devem variar; e o reconhecimento de seus diversos propósitos na economia psíquica demanda sensibilidade clínica e criatividade na forma de traduzi-lo.

A experiência clínica não nos apresenta senão dimensões paradoxais e ambíguas dos afetos. Ódio positivo e ódio negativo são faces que se alternam e/ou se combinam. O homem, ser pulsional em sua essência mais profunda, não é, apenas, "bom" ou "mau". Suas moções pulsionais que consideramos más podem, nas vicissitudes de suas transformações, tornar-se boas ou altruístas. Depois do segundo dualismo pulsional introduzido por Freud em 1920, a pulsão passou a ser vista como uma força impulsionadora que tanto pode estar a serviço do bem da cultura quanto de sua destruição.

No processo analítico de Ana nos deparamos com um dado intrigante: a presença do ódio como elemento de afirmação e preservação do eu. Com Ana aprendemos que o ódio é mensagem a ser decodificada, traduzida e ressignificada: um texto com dimensão de linguagem, história e sentido, "à procura de um autor", como os Seis personagens à procura de um autor, de Luiggi Pirandello - dramaturgo perspicaz e analista das contradições e dramas do homem.

Zeferino de Jesus Barbosa Rocha

Psicanalista; Mestre em Filosofia e Teologia pela Pontifícia Universidade Gregoriana de Roma (1952) (Roma, Itália); doutor em Psicologia pela Universidade de Paris X (1973) (Paris, França); Professor no Programa de Pós-graduação em Psicologia Clínica da Universidade Católica de Pernambuco - Unicap (Recife, PE, Br); Membro-fundador e sócio-honorário do Círculo Psicanalítico de Pernambuco (Recife, PE, Br).

Rua Conselheiro Portela, 139/502 - Espinheiro

52020-030 Recife, PE, Br

E-mail: zephyrinus@globo.com

Recebido/Received: 2.12.2012/ 12.2.2012

Aceito/Accepted: 19.3.2013 / 3.19.2013

Financiamento/Funding: Os autores declaram não terem sido financiados ou apoiados / The authors have no support or funding to report.

Citação/Citation: Barros, N. & Rocha, Z. (2013, dezembro). Ódio, cúmplice do Eu. Revista Latinoamericana de Psicopatologia Fundamental, 16(4), 518-528.

Editor do artigo/Editor: Prof. Dr. Manoel Tosta Berlinck

Copyright: © 2009 Associação Universitária de Pesquisa em Psicopatologia Fundamental/University Association for Research in Fundamental Psychopathology. Este é um artigo de livre acesso, que permite uso irrestrito, distribuição e reprodução em qualquer meio, desde que o autor e a fonte sejam citados / This is an open-access article, which permits unrestricted use, distribution, and reproduction in any medium, provided the original author and source are credited.

Conflito de interesses/Conflict of interest: Os autores declaram que não há conflito de interesses / The authors declare that has no conflict of interest.

Nota de reconhecimento: Os autores manifestam seu mais imenso agradecimento a Cleide Barros, pela competente e primorosa revisão do presente texto.

* O presente texto tem por base a dissertação de mestrado, O ódio e suas vicissitudes (Unicap, 2004), de autoria de Neuma Barros, sob a orientação do prof. dr. Zeferino Rocha. Desde então, os autores desenvolvem estreita colaboração acadêmico-profissional.

  • Assoun, P.-L. & Zafiropoulos, M. (1995). La haine, la jouissance et la loi Paris: Anthropos.
  • Barros, M. N. (2004). O ódio e suas vicissitudes. Um estudo teórico-clínico à luz da psicanálise freudiana e kleiniana Recife: Unicap. (Dissertação de Mestrado).
  • Berlinck, M. Tosta & Magtaz, A. C. (2012 março). O caso clínico como fundamento da pesquisa em Psicopatologia Fundamental. Revista Latinoamericana de Psicopatologia Fundamental, São Paulo, 15(1), 71-81, mar.2012.
  • Bollas, C. Loving hate (1984). Annual of Psychoanalysis, 12, 221-237.
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  • Freud, S. (1975). Achados, ideias e problemas. In Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud (v. XXIII[1937-1939], pp. 335-336). Rio de Janeiro: Imago. (Trabalho original publicado em 1941[1938]).
  • Green, A. (1988). Sobre a loucura pessoal Rio de Janeiro: Imago.
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  • Correspondence:
    Maria Neuma Carvalho de Barros
    Psicanalista; Doutoranda em Psicologia Clínica no Programa de Pós-graduação em Psicologia Clínica da Universidade Católica de Pernambuco - Unicap (Recife, PE, Br); Membro do Laboratório de Psicopathologia Fundamental da Unicap e do Labore - Laboratório de Psicopatologia Fundamental do EPSI (João Pessoa, PB, Br); sócia-fundadora do EPSI - Espaço Psicanalítico (João Pessoa, PB, Br).
    Rua Nevinha Cavalcanti, 46 - Miramar
    58043-000 João Pessoa, PB, Br
    E-mail:
  • 1
    História clínica descaracterizada de modo a evitar a identificação do(a) paciente.
  • 2
    Em intervenção no Colóquio sobre o ódio, realizado no dia 30 de setembro de 2012 pelo Laboratório de Psicopatologia Fundamental do EPSI - Espaço Psicanalítico, João Pessoa (PB).
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      03 Fev 2014
    • Data do Fascículo
      Dez 2013

    Histórico

    • Recebido
      02 Dez 2012
    • Aceito
      19 Mar 2013
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