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Do trauma ao sintoma

From trauma to symptom

Chemama, Roland; Hoffmann, Christian. Trauma dans la civilisation. Tolouse, França: Érès, 2018. 137

O livro Trauma dans la civilisation - terrorisme et guerre des identités escrito por dois psicanalistas, Roland Chemama e Christian Hoffmann foi editado pela Éditions Érès em 2018Chemama, R., & Hoffmann, Ch. (2018). Trauma dans la civilisation. Tolouse, França: Éditions Érès. em Tolouse, França. O livro faz parte de uma coleção dirigida por Jean-Pierre Lebrun, Humus, le désir de l’analyste en acte.

Roland Chemama é psicanalista em Paris, foi presidente da Association Lacanienne Internationale e da Fundation Européene pour la psychanalyse, publicou várias obras, algumas traduzidas para o português tais como Elementos lacanianos para uma psicanálise no cotidiano, editado pela CMC, Porto Alegre, 2002. Roland Chemama, com Bernard Vandermersch, Dicionário de Psicanálise editado pela Unisinos, São Leopoldo, em 2007.

Christian Hoffmann é psicanalista em Paris, Professor e diretor da École doutoral de Psychanalyse na Universidade de Paris VII, publicou vários livros, alguns traduzidos para o português entre os quais: Christian Hoffmann, com Joel Birman, Psicanálise e política: uma nova leitura do populismo editado pelo Instituto Langage, São Paulo em 2018. Christian Hoffmann, com Moustafá Safouan, O desejo nas mutações familiares e sociais, editado pelo Instituto Langage, São Paulo em 2016.

Trauma na civilização (2018) aborda psicanaliticamente a relação com o terrorismo vivida na França desde o atentado de novembro de 2015. Os autores partem dos efeitos traumáticos desses acontecimentos sobre algumas vítimas e seus analistas, o que os conduz a interrogar, a partir de uma revisão da noção de traumatismo, os elementos que podem incidir, seja na clínica, seja na política, sobre os efeitos do que Freud chamou de pulsão de morte no mundo contemporâneo.

Chemama e Hoffmann recorrem à filosofia para esclarecer o conceito atual de guerra, sugerindo novas propostas para pensarmos esse estado de tensão entre os seres humanos. Um desses filósofos é o argentino Ernesto Laclau, principalmente na referência ao livro Guerra das identidades, no qual este retoma, em referência a Lacan, que o espaço social é um espaço discursivo. Para Laclau (2015)Laclau, E. (2015). La guerre des identités. Paris, França: La Découverte., os discursos democráticos eram centrados, tradicionalmente, sobre a igualdade além da diferença, e hoje, ao contrário, a democracia está ligada ao reconhecimento do pluralismo e das diferenças. O que ele vai chamar de democracia radical. Outro autor que será debatido e que desenvolve o tema da guerra na atualidade é Frédéric Gros (2006)Gros, F. (2006). États de violence. Essai sur la fin de la guerre. Paris, França: Gallimard. que propõe o conceito de guerra difusa, como essa guerra que não é mais estabelecida entre nações específicas, territórios determinados, mas que se encontra ilimitada na sociedade, como se todos estivéssemos sempre em guerra, a qualquer momento, em uma campo de batalha que pode ser qualquer lugar a qualquer hora, a praia, um bar, a rua, a cidade, o campo, o trabalho, as férias.

O livro está centrado na noção de traumatismo como foi definida por Freud e depois por Lacan. Em Freud, o traumatismo é definido como uma invasão no psiquismo que paralisa o princípio do prazer, conhecido por buscar o mínimo de excitação possível, o que é necessário para guardar a tranquilidade interior, por exemplo, beber quando se tem sede. A invasão, que é o trauma, obriga o psiquismo a encontrar uma outra solução, mais urgente que aquela que busca o prazer, para descarregar esse excesso de excitação introduzida pelo acidente traumático. Mas essa descarga somente pode ser feita por meio da pulsão em sua ligação a uma representação inconsciente. Sem essa ligação inconsciente o excesso de excitação pode ameaçar a integridade do sujeito. Mas de onde viria esse excesso de excitação, tal qual acontece quando somos agredidos ou estamos envolvidos em um acidente de veículos, por exemplo? Nesse momento os autores recorrem a Lacan (1973)Lacan, J. (1973) Le séminaire. Livre XI. Les quatre concepts fondamentaux de la psychanalyse. Paris, França: Le Seuil. (Travail originel publié en 1963-1964). que também fala do real como trauma. O real em Lacan se recorta da representação, ele se subtrai do discurso, no Seminário sobre Os quatro conceitos fundamentais da psicanálise ele fala do real como um encontro entre tiquê e autômaton, entre o acaso e a estrutura. No insucesso da representação do real pelo discurso Lacan vai situar o traumatismo. Conforme os autores:

O que faz do trauma a experiência subjetiva de um real inassimilável. O real vai do trauma ao fantasma, enquanto o fantasma, que é uma leitura do real, constitui igualmente uma tela que o encobre, determinado pela mesma compulsão à repetição. (Chemama & Hoffmann, 2018Chemama, R., & Hoffmann, Ch. (2018). Trauma dans la civilisation. Tolouse, França: Éditions Érès., p. 74)

Seria o trauma como encontro com o real, mas esse encontro é coberto por outro encontro onde nos falta a representação, o que causaria esse excesso de excitação do traumatismo. Como os autores referem, o efeito disso é o olhar vazio, um sujeito vazio.

Chemama e Hoffmann retomam dois neologismos lacanianos para debater a questão do traumatismo, o “troumatismo” onde “trou”, buraco em francês, nos mostra esse buraco na produção de sentido e o “symptraumatique”, junção entre sintoma e trauma que nos indica o trabalho psíquico e analítico a fazer, de poder transformar o trauma em sintoma.

Seguindo essa sequência podemos considerar que o livro de Roland Chemama e Christian Hoffmann Trauma na civilização, apesar de partir de um caso específico, os atentados terroristas na França, proporciona uma reflexão importante, não somente para pensarmos as consequências e tratamentos possíveis advindos do terrorismo no mundo atual, mas porque aponta para o debate sobre uma nova clínica, se assim podemos chamar, na qual os sujeitos que procuram tratamento estão expostos a uma guerra de identidades, uma guerra difusa que tomou conta do mundo globalizado. Nós temos hoje no Brasil, e em vários lugares do mundo, sujeitos expostos ao traumatismo, seja nas cidades, nas favelas, nas diversas formas de diferenças sociais e econômicas que lembram estados de guerra. Encontros de impossibilidade de representação que produzem sujeitos vazios, traumatizados, que chegam aos consultórios sem um sintoma específico, tomados pelo trauma, por esse excesso de excitação, por um gozo ilimitado que alimenta a compulsão a repetição. Essa é uma clínica necessária na atualidade, como passar do trauma ao sintoma, pois cada vez mais recebemos sujeitos traumatizados pelos efeitos da pós-modernidade, essa é a importância desse livro.

Referências

  • Chemama, R., & Hoffmann, Ch. (2018). Trauma dans la civilisation Tolouse, França: Éditions Érès.
  • Gros, F. (2006). États de violence. Essai sur la fin de la guerre Paris, França: Gallimard.
  • Lacan, J. (1973) Le séminaire. Livre XI. Les quatre concepts fondamentaux de la psychanalyse Paris, França: Le Seuil. (Travail originel publié en 1963-1964).
  • Laclau, E. (2015). La guerre des identités Paris, França: La Découverte.

Editado por

Editora/Editor: Profa. Dra. Marta Regina de Leão D’Agord

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    29 Jul 2019
  • Data do Fascículo
    Apr-Jun 2019

Histórico

  • Recebido
    26 Out 2018
  • Aceito
    21 Jan 2019
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