Open-access Maison Verte, 40 anos depois: lugar de vida, lugar de palavra

Maison Verte, 40 years later: place of life, place of speech

Accueillir l’enfant aujourd’hui: La Maison Verte a 40 ans. Actes du colloque de la Maison Verte. L’Harmattan, 2021. 190

Situando-se na encruzilhada entre a psicanálise e a educação, o dispositivo da Maison Verte foi pensado por Françoise Dolto e outros1 pedopsiquiatras, psicólogos e psicanalistas da infância, bem como educadores, na esteira da constatação de que era lamentável ver chegar, aos seus 7, 8 anos, crianças que jamais haviam disposto de um cuidado (Dolto, 2009, p. 319). Dessa constatação resulta o esforço de criação e elaboração de um dispositivo que subverte, em 1979 como ainda hoje, a lógica das políticas públicas de prevenção, operando-a não mais como um fim (ou um objetivo), mas como um efeito produzido em situação, no encontro sempre singular da criança, de seus pais e disso que pode surgir a partir desse contexto de acolhimento (Roy, 2021, p. 62).

Accueillir l’enfant aujourd’hui: La Maison Verte a 40 ans retoma, por meio do testemunho e das considerações de seus acolhedores, atuais e antigos, a história e as razões da criação do dispositivo, seu contexto, os problemas e adaptações encontrados, bem como apresenta e discute os pontos essenciais de seu funcionamento — suas premissas e efeitos. Ao longo do livro, encontraremos discutidas algumas noções operadoras fundamentais, como as de anonimato, colegialidade, função terceira, transmissão psíquica inconsciente e o pensar infantil. Cada um dos acolhedores vai, à sua maneira, reinterrogar as articulações e relações entre as dimensões que participam na prática dessa “aventura” que é inscrever a psicanálise na cidade: as dimensões do acolhimento, da socialização, da educação e da constituição do sujeito psíquico.

Consistindo na apresentação das atas do último colóquio da Maison Verte, realizado em 2019, o livro estrutura-se em duas partes: intervenções da manhã e da tarde, ambas seguidas das transcrições das discussões entre acolhedores e o público que se seguiram às comunicações. O colóquio foi aberto com a comunicação de Marie-Hélène Malandrin, última fundadora ainda viva, e contou, ainda, com a participação de dois acolhedores da To Megalo mas Spiti (Nossa Grande Casa), lugar de acolhimento inspirado pela Maison Verte e criado há sete anos em Atenas.

A acolhedora Anne Marie Canu relembra, em sua intervenção, que quase no fm de sua vida, Françoise Dolto afirmou que “o analista é a criança, a criança pequenina, antes da chegada da fala”. E pondera: “É talvez precisamente o que transforma a vida dos jovens pais” (2021, p. 46). Uma outra acolhedora, Léa Didier, indica que os pais, retornando em função da experiência da parentalidade aos seus próprios “começos”, não sabem o que lhes afeta com tanta intensidade — é que suas crianças vêm convocar e questionar suas próprias vivências infantis (p. 58). Frequentemente elas o fazem por meio de seus sintomas ou fxações de pontos de dificuldade em seu desenvolvimento. Essa leitura encontra-se na base da razão pela qual o dispositivo consiste num acolhimento disponibilizado a crianças de 0 a 4 anos recém-completados, acompanhadas de seus pais ou adulto com quem a criança sinta-se segura. Quanto à expectativa dos fundadores de evitar as patologias psicossociais significativas (la grosse pathologie psychosociale) por meio dos efeitos profláticos do dispositivo, ela se devia à consciência que alcançaram do fato de que este operaria num momento privilegiado pois decisivo na estruturação psíquica, identitária e subjetiva da criança.2

O dispositivo consiste, assim, na manutenção de um espaço de acolhimento e de escuta aberto, poroso aos fuxos rotineiros, familiares, da vida comunitária local. Os frequentadores podem ir e vir ao sabor de sua vontade, sem a necessidade de agendamento prévio, marcações de consulta etc.

Aberto todas as tardes de segunda a sábado, o espaço é sustentado por cinco trios fxos de acolhedores oriundos de formações diversas. Trata-se de um espaço livre para o brincar e para o explorar, local “intermediário” entre o íntimo da célula familiar e as primeiras socializações infantis, onde são acolhidas as palavras e os gestos, as hesitações e inquietudes, as angústias e temores, as questões, os sentimentos e as histórias dos bebês, seus pais e suas famílias.

Num tempo que sofre os efeitos de desativação do coletivo promovidos pela “nova razão neoliberal”3 (Dardot & Laval, 2010; 2019), lugares de acolhimento como a Maison Verte guardam hoje toda a sua pertinência como espaço de encontro, de escuta, de convívio, de socialização, de educação e de paideia4 (cidadania). Projeto inovador em 1979, ainda subversivo em 2022, a Maison Verte segue como uma referência para aqueles que concedem valor à palavra da criança, sustentando-a, defendendo-a e transmitindo-a. Ela é um lugar, sintetiza Christine Roy (acolhedora), onde podemos tomar o tempo para formular nossas questões, onde podemos formulá-la segundo nosso próprio ritmo (no respeito da temporalidade de cada um) (Carré, 2011).

  • 1
    São eles: Marie-Hélène Malandrin, Colette Langignon, Marie-Noël Rebois, Bernard This e Pierre Benoît.
  • 2
    Se nos referirmos brevemente a algumas das elaborações psicanalíticas que discutem esse momento, constatamos que compreende: a entrada gradativa no circuito pulsional (Laznik, 2013); a operação do estádio do espelho e a formação da função do Eu (Je) (Lacan, 1949/1966); a constituição do mundo objetal tal como elaborada nos trabalhos de Freud (1915/2010) e Melanie Klein (1930); e, ainda, as sucessivas operações e inscrições das castrações simboligênicas teorizadas por Dolto, em suas relações com a inscrição da imagem inconsciente do corpo (1984).
  • 3
    Com toda incidência psicopatologizante que esse fenômeno pode promover. Cf. Neoliberalismo como gestão do sofrimento psíquico (Safatle, Silva Junior e Dunker, 2020).
  • 4
    Educação para a cidadania. Cf. a intervenção de Dimitri Weyl (acolhedor) (La Maison Verte, 2021, pp. 141-157).

Referências

  • Carré, J.-M. (2011). Grandir à petits pas [Documentaire]. Les Films Grain de Sable.
  • Dardot, P. & Laval, C. (2019). Anatomia do novo neoliberalismo. Revista Instituto Humanitas Unisinos On-Line Recuperado em 18 maio 2022, de: <http://www.ihu.unisinos.br/78-noticias/591075-anatomia-do-novo-neoliberalismo-artigo-de-pierre-dardot-e-christian-laval>.
    » http://www.ihu.unisinos.br/78-noticias/591075-anatomia-do-novo-neoliberalismo-artigo-de-pierre-dardot-e-christian-laval
  • Dardot, P., & Laval, C. (2010). La nouvelle raison du monde: Essai sur la société néolibérale. Éditions La Découverte.
  • Dolto, F. (1984). L’image inconsciente du corps Seuil.
  • Dolto, F. (2009). Une psychanalyste dans la cité. L’aventure de la Maison Verte. (Coleção Françoise Dolto). Gallimard.
  • Freud, S. (2010). Os instintos e seus destinos. In Obras completas (Vol. 12, pp. 51-81). Companhia das Letras. (Obra original publicada em 1915).
  • Klein, M. (1930). The importance of symbol-formation in the development of the Ego. International Journal of Psychoanalysis, 11, 24-39.
  • La Maison Verte (2017). Prévention, vous avez dit prévention? (Coleção Études Psychanalytiques). L’Harmattan.
  • La Maison Verte (2021). Accueillir l’enfant aujourd’hui: La Maison Verte a 40 ans. Actes du colloque de la Maison Verte, 2019 (Coleção Études Psychanalytiques). L’Harmattan.
  • Lacan, J. (1966). Le stade du miroir comme formateur de la fonction du «Je» tel qu’elle nous est révélée dans l’expérience psychanalytique. In Écrits (pp. 93-100), Seuil. (Trabalho original publicado em 1949).
  • Laznik, M.-C. (2013). A voz da sereia. O autismo e os impasses na constituição do sujeito (Coleção De Calças Curtas). Ágalma.
  • Roy, C. (2021, déc.). Je ne vais pas vous laisser!. Santé Mentale, 263, 61-64.
  • Safatle, V., Silva Junior, N., & Dunker, C. (Orgs.) (2020). Neoliberalismo como gestão do sofrimento psíquico Autêntica.
  • Editor/Editor: Profa. Dra. Marta Regina de Leão D’Agord

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    15 Ago 2022
  • Data do Fascículo
    Apr-Jun 2022

Histórico

  • Recebido
    05 Maio 2022
  • Aceito
    20 Maio 2022
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