Resumos
O artigo investiga o paradoxo da empatia em pacientes com transtorno de personalidade borderline. A hipótese central é que a hipersensibilidade reativa desses pacientes ao inconsciente do outro reflete uma modalidade específica de empatia. O objetivo é explorar as implicações dessa empatia peculiar, sua relação com dinâmicas arcaicas e seu impacto nas relações interpessoais. O método consiste em uma revisão narrativa da literatura e análise de casos clínicos ilustrativos. Os resultados indicam que essa sensibilidade busca estabilizar relações de objeto internalizadas, mas, aliada à desconfiança no comportamento consciente, compromete vínculos interpessoais e contribui para a disfunção social. Compreender essa dinâmica é essencial para reduzir o estigma e aprimorar o manejo clínico.
Palavras-chave:
Empatia; transtorno de personalidade borderline; paradoxo empático
This study investigates the paradox of empathy in patients with borderline personality disorder. Its central hypothesis states that the reactive hypersensitivity of these patients to the unconscious of others reflects a specific modality of empathy. This research aims to explore the implications of this peculiar empathy, its relation with archaic dynamics, and its impact on interpersonal relationships. Its method consists of a narrative literature review and an analysis of illustrative clinical cases. The results indicate that this sensitivity seeks to stabilize internalized object relations, but combined with the distrust of conscious behavior, compromises interpersonal bonds and contributes to social dysfunction. Understanding this dynamic is essential to reduce stigma and improve clinical management..
Keywords:
Empathy; borderline personality disorder; empathic paradox
Cet article explore le paradoxe de l’empathie chez les patients souffrant du trouble de la personnalité borderline. L’hypothèse centrale est que l’hypersensibilité réactive de ces patients à l’inconscient de l’autre reflète une modalité spécifique d’empathie. Nous explorons les implications de cette empathie particulière, sa relation avec les dynamiques archaïques et son impact sur les relations interpersonnelles. La méthode consiste en une revue narrative de la littérature et une analyse de cas cliniques illustratifs. Les résultats indiquent que cette sensibilité vise à stabiliser les relations d’objet intériorisées mais que, combinée à une méfiance envers le comportement conscient, elle compromet les liens interpersonnels et contribue au dysfonctionnement sociale. Comprendre cette dynamique est essentiel pour réduire la stigmatisation et améliorer la prise en charge clinique.
Mots-clés:
Empathie; trouble de la personnalité; borderline; paradoxe empathique
Este artículo investiga la paradoja de la empatía en pacientes con trastorno límite de la personalidad. La hipótesis central es que la hipersensibilidad reactiva de estos pacientes al inconsciente de los demás refleja una modalidad específica de empatía. El objetivo es explorar las implicaciones de esta empatía peculiar, su relación con dinámicas arcaicas y su impacto en las relaciones interpersonales. El método consiste en una revisión narrativa de la literatura y un análisis de casos clínicos ilustrativos. Los resultados indican que esta sensibilidad busca estabilizar las relaciones de objeto internalizadas, pero en combinación con la desconfianza hacia el comportamiento consciente compromete los vínculos interpersonales y contribuye a la disfunción social. La comprensión de esta dinámica es crucial para reducir el estigma y mejorar el manejo clínico.
Palabras clave:
Empatía; trastorno límite de la personalidad; paradoja empática
Introdução
No presente artigo, será tratada a premissa de que existe uma manifestação da empatia que é específica do paciente borderline. Não específica no sentido de um fenômeno exclusivo de uma população clínica, mas de uma organização da empatia que se vê nessa população. Justamente por estar correlacionada ao grupo clínico, tem-se um desdobramento negativo do potencial empático que estaria associado às possíveis qualidades desse modo de sentir as experiências alheias.
A importância de identificar essa modalidade de comunicação interpessoal está no fato de que a sensibilidade borderline é reconhecida como característica recorrente nesses pacientes (Gunderson et al., 2018). Assim, independentemente de quaisquer tipos de fidelidades teóricas - ou seja, da consistência em relação às bases epistemológicas e metapsicológicas dos clínicos envolvidos no manejo desses pacientes -, é preciso compreender a dinâmica sensível a que o clínico está submetido ao tratar desses casos (Kernberg, 1977; Beggi & Gordon, 2022).
Em outros termos, é frequente observar - e se impressionar - com a disposição turbulenta da emocionalidade borderline, capaz de levar os analistas a reações contratransferenciais intensas, à interrupção precoce de tratamentos ou mesmo a reações iatrogênicas (Stern, 1938; Searles, 1994). Essa turbulência será frequentemente evocada ao longo deste texto como um princípio que rege o funcionamento borderline e que, embora bastante explorado no âmbito psicanalítico, é bem exemplificado sob a perspectiva da literatura, como propõe Labatut (2023) em sua definição:
Enquanto um dos grandes mistérios da Física, a turbulência é um fenômeno súbito pelo qual qualquer líquido de fluxo suave se desintegra em um caos selvagem de redemoinhos dentro de redemoinhos de redemoinhos, correndo em tantas direções ao mesmo tempo, que seu movimento não pode ser previsto por nenhum modelo conhecido. A turbulência é ubíqua na natureza, tão comum, de fato, que até mesmo crianças pequenas brincando nas águas brancas de um riacho têm algum conhecimento inconsciente de seus mecanismos, mesmo que não estejam cientes de que ela também está presente na torrente de sangue que seus corações de filhote fazem correr pelas veias; ela pode ser vista nas substâncias mais mundanas, invocada por uma gota de leite em uma xícara de café ou uma simples baforada de fumaça, e, no entanto, matematicamente, a turbulência é desconcertante e profunda. (pp. 27-28)
No que diz respeito ao funcionamento da turbulenta emocionalidade borderline - ora demonstrando capacidade significativa de compreender estados mentais profundos do outro, ora se mostrando absolutamente ignorante da mais simples percepção de que o outro possui um mundo mental próprio -, de um ângulo que certamente não é o das boas práticas clínicas, costuma-se acusar esse paciente de manipulação. É opinião dos autores que tal comentário ultrapassa a vulgaridade e a estigmatização; por certo, tem-se que o estudo da empatia borderline pode ser mais uma contribuição no caminho de desfazer essa concepção negativa.
Revisitando a concepção borderline: A centralidade da empatia no entendimento clínico
A seguir, apresentamos uma escolha pessoal de autores que exploraram a complexidade da organização borderline, com ênfase nos aspectos empáticos desse funcionamento. Embora existam nosologias consolidadas - sejam elas categoriais, dimensionais ou psicodinâmicas -, consideramos que a revisão dos autores selecionados permite iluminar a essência do problema clínico relativo ao paradoxo empático de tais pacientes.
A responsividade aos impulsos superegoicos de caráter arcaico brota no psiquismo borderline através de imperativos paralisantes ou em imagens de cunho paranoide e relativamente não duráveis, sendo resultado de um senso de Self e de objeto fragmentados (Kernberg, 1975). A experiência que o sujeito borderline tem com os objetos acaba sendo hiperintelectualizada, como forma de controle rígido e altamente especulativo a respeito das expectativas com o outro. Esse cenário interfere peremptoriamente na ressonância emocional que o paciente borderline tem nas relações interpessoais com seu outro significativo, ou seja, esse indivíduo ignora os traços e o estilo de personalidade do objeto, forçando uma estabilidade relacional que não perdura enquanto imagem completa e estável do outro, o que se deve à inibição das funções integrativas de seu próprio ego borderline (Caligor & Clarkin, 2010).
Sendo uma estrutura que mantém a direção e o equilíbrio de forças internas, o ego fará, durante o desenvolvimento da internalização das figuras parentais, uma “metabolização” (Kernberg, 1967) dos derivados das relações interpessoais em estilos e percepções desses objetos internos. Os maneirismos, os hábitos interpessoais e os modos de expressão afetiva captados do outro serão integrados na representação de Self e do objeto que se alocam no ego. Kernberg (1967) segue a vasta tradição de autores que concordam com a ideia geral de uma patologia de ego no paciente borderline. Em linhas gerais, o que há de específico na problemática egoica desses pacientes, e que os difere dos neuróticos e dos psicóticos, está na manifestação de tempestivas, porém episódicas, regressões a estados estruturais precoces, que se verificam pelo amplo uso de processos primários de pensamento. Além disso, ocorre, no funcionamento borderline, a predominância do mecanismo de cisão, que se vê na neurose com baixíssima frequência. Por sua vez, a cisão do Eu (Freud, 1938/2004) enquanto processo de defesa tem sua etiologia no trauma e produz efeitos pela mecânica de reconhecimento de perigo atribuído à determinada exigência pulsional e, ao mesmo tempo, a uma recusa da realidade (Ferenczi, 1931/2003d). Essa dinâmica impinge o sujeito a um modo de agir que é diferente daquele visto como efeito da repressão.
Tendo em vista essa necessidade de abordar a problemática do ego borderline em sua relação com a percepção do outro, a respeito do que seria a primeira exploração sobre as especificidades do estilo empático do paciente borderline, o psicanalista estadunidense Alan Krohn (1974) escreve um texto chamado “Borderline ‘empathy’ and differentiation of object representations: a contribution to the psychology of object relations”, derivado de seu trabalho no William White Institute. Nesse material, ele apresenta o que propõe ser um paradoxo de funcionamento empático. Krohn (1974) enumera que o sujeito borderline se mantém alienado do contato com as expectativas e as experiências que o outro tem sobre ele. Esse paciente também falha em construir uma representação do outro, interna em seu psiquismo, que seja contínua e coerente, não respondendo com precisão àquilo que vem do sistema consciente de crenças do outro, e, ao mesmo tempo, costumeiramente, o paciente borderline é capaz de “ouvir” com clareza os desejos inconscientes arcaicos e as forças superegoicas mais tirânicas do outro. Dessa paradoxal sensibilidade empática, emerge a experiência borderline que deve ser explorada neste artigo: o sentimento que o paciente tem do outro como “falso”, “enganador” ou “fraudulento”1. Ademais, esse tipo de paciente sente que traços como a resiliência, as defesas maduras e as representações de Self erigidas sob motivações conscientes do ego do objeto são artificiais e não confiáveis, porque - uma vez mais - os impulsos do Id, as fantasias superegoicas e os conteúdos inconscientes são captados e sentidos pelo borderline em fortíssimo contraste com o que o outro demonstra em seus comportamentos sociais (Krohn, 1974, p. 151).
Com a definição acima, pretendeu-se demonstrar a dinâmica específica da empatia no quadro borderline. Com isso, quer-se apontar para a relevância clínica de ficarmos atentos à capacidade desses pacientes não só de ler o ambiente, mas de mentalização do outro, que, por um lado, reflete sua hipersensibilidade aos estados mentais alheios, de modo patológico (Fonagy et al., 2013), mas também indica uma qualidade psíquica que precisa ser reconhecida antes de receber qualquer conduta clínica.
Explorando a dinâmica paradoxal borderline
Tratando-se de uma patologia de maior complexidade, os borderlines de Krohn seriam pessoas que não reconhecem “traços do ego” permanentes ou deixados como rastros, de forma mais ou menos duradoura, quando ocorrem mudanças emocionais em resposta à interação social. A maneira como essas pessoas reagem empaticamente ao outro seria como a experiência de brincar com um caleidoscópio, que, com seus cristais brilhantes, muda as formas espetaculares que apresenta, imediatamente e sem deixar rastros, diante de mínimas torções do cilindro apontado contra a luz.
A explicação de Krohn inspira a reflexão àqueles que estão familiarizados com a clássica descrição fenomênica da estável instabilidade das atitudes borderline. Ao detalhar como esses indivíduos percebem de forma intensa e crua as experiências arcaicas com os outros, Krohn ajuda os psicanalistas a evitarem olhar para a transferência borderline confundindo-a com uma modalidade psicótica. Não há alienação ou mergulho do sujeito em um mundo subjetivo que exclui a realidade compartilhada; na verdade, a transferência borderline nos coloca diante de um enigma empático: como sujeitos que fazem leituras tão precisas do estado emocional alheio (eventualmente desconhecido para o próprio sujeito) se mantêm cegos e alheios para outros? Como as pistas empáticas podem ser lidas com tanta perícia e, ao mesmo tempo, serem imediatamente referidas a uma lógica distorcida?
Princípios fundamentais e dinâmicas interpessoais
Desde o início de seu texto, Krohn declara seu compromisso com princípios fundamentais das teorias psicopatológicas e da nosologia dos pacientes borderline. Por exemplo: quando o autor reafirma que a difusão de identidade funciona como o elemento patognomônico do quadro, retomando a teoria de Kernberg (1967) sobre a formação da imagem de Self e de imagem de objeto, ou quando presentifica em sua leitura uma visão desenvolvimentista a respeito da integração do psiquismo, colocada como processo psíquico natural que teria sido interrompido na patologia borderline. Em todas essas articulações, o autor demonstra como a relação objetal clivada, a presença de díades relacionais, o sangramento psíquico derivado de ansiedades alimentadas por uma libido agressiva e não contida, impactam negativamente a capacidade do paciente de se regular emocionalmente, formar uma imagem de si mesmo e dos outros coesa e coerente, e estabelecer um solo propício para as relações interpessoais saudáveis.
Na dinâmica interpessoal, o que frequentemente diverge no funcionamento de indivíduos borderline são as dificuldades e frustrações ao tentar entender e prever as ações alheias, o que, em casos mais severos, compromete até o exercício mais comum do discernimento. Embora possa parecer leviano ou preconceituoso, esse argumento verdadeiramente é corroborado pelos próprios pacientes. Eles frequentemente reportam um transbordamento de seu mundo interno - pulsional, fantasístico e representacional - que os expõe a uma intensa intempérie emocional. Essa instabilidade disruptiva nas relações interpessoais também costuma ser associada a diversas comorbidades do tipo evitativo ou fóbico-social, assim como a manifestação de defesas do tipo obsessivas, para controlar tais rompantes de angústia. Tais manifestações são muito conhecidas e demonstram a pluralidade de apresentações que o paciente borderline traz à primeira vista (Stern, 1938), variando apenas na forma como é descrito por cada autor (Stone, 1986). No que diz respeito ao tema deste artigo, a principal diferença no quadro da empatia borderline é o prejuízo de sua função pró-social. Todavia, o que há de inspirador no argumento de Krohn é a distinção feita por ele entre as projeções que um paciente borderline faz sobre a imagem fragmentada de um objeto e a habilidade surpreendentemente precisa que tais pacientes têm para captar as manifestações mais arcaicas de outrem, vivenciadas pelo objeto no campo de seus conflitos íntimos. Assim, o paciente borderline, sensível e observador, fica chocado ao se deparar com objetos que não correspondem às aparências.
Em termos de desenvolvimento do psiquismo, o incremento das capacidades do ego infantil dá, à criança em desenvolvimento saudável, condições de compreender eventos interpessoais com maior rigor, modulando a experiência através de diferenciações que tornam os eventos menos esmagadores. Por seu turno, Krohn (1974) argumenta sobre um caminho que vai da introjeção à identificação; sabemos que, inicialmente, a introjeção refere-se à incorporação de aspectos do objeto de forma primitiva, sem distinção clara entre o self e o outro. Pois, como explica Ferenczi (1912/2003a) a introjeção possui um caráter não exclusivamente neurótico, mas de normalidade, derivado do processo de expandir os interesses do ego precoce sobre todos os objetos do mundo, servindo mesmo de raiz para o primeiro amor objetal e o primeiro ódio objetal (p. 181). Essa etapa é seguida, por sua vez, pela identificação, um estágio mais elaborado, no qual a criança internaliza não apenas as características do objeto, mas também os significados atribuídos a ele, consolidando essas representações em seu psiquismo.
Observando a variável do desenvolvimento, Margaret Mahler (Mahler et al., 1975) faz um comentário sobre o processo de separação-individuação que merece detalhamento. Ela sugere que o desenvolvimento pode ser organizado conforme agrupamentos bem delimitados, que vão de uma primeira fase autística e simbiótica, passando por um complexo caminho de separação-individuação que abarca a diferenciação, exploração, reaproximação e, finalmente, à consolidação e constância objetais.
Para os propósitos deste artigo, interessa o olhar da autora para a terceira subfase do desenvolvimento, chamado de reaproximação (Mahler et al., 1975). Específico desse momento (posterior ao deslumbre que a criança em desenvolvimento saudável tem diante de seu poder de explorar o mundo, mas anterior ao pleno domínio de sua segurança emocional), a autora sublinha a importância da manutenção de uma relação emocional com o cuidador primário em que a criança pequena, depois de ter se afastado dessa figura para explorar o ambiente, retorna em sua busca para reabastecimento narcísico. É específica desse momento a “ambitendência”: uma experiência em que a criança vive sentimentos ambivalentes e contraditórios de proximidade e independência, oscilando entre uma necessidade intensa de aproximação e a rejeição ativa da figura do cuidador. Essa oscilação reflete o conflito interno da criança, em seu desejo crescente de autonomia e busca pela segurança emocional proporcionada pelo cuidador primário. É típico, então, haver uma “crise de separação”, sentida como um processo de vulnerabilidade psíquica, no qual a criança sofre severa diminuição da autoconfiança.
Entre a mãe e a criança, a comunicação simbiótica anterior já está prejudicada, e a empatia pré-verbal não é mais suficiente para manter o vínculo emocional. Mahler e seus colaboradores (1975) enfatizam que a forma como a mãe lidará com a ambivalência da criança determinará a formação de representações do eu dessa criança, sendo a sua capacidade de tolerância fundamental para a consolidação da identidade infantil. A resolução desse período de crise se desdobra do fato de a criança conseguir estabelecer uma distância ideal de sua mãe - através do sentimento de manejo da ansiedade da separação pela própria díade mãe/criança -, que pode ser observada nas crianças que passam a internalizar algumas regras, diferenciar seus próprios processos de regulação emocional daqueles de outras crianças e passam a expressar desejos e fantasias mais pessoalizadas por meio de suas brincadeiras.
Socialmente, as atitudes empáticas da criança sofrem transformações importantes a partir desse momento do desenvolvimento. A internalização de regras leva aos primeiros sentimentos de culpa e a tentativas de reparação um pouco mais voltadas às necessidades do outro ao invés do mero apaziguamento da “angústia empática” (Hoffman, 1991a). Além disso, a criança que começa a compreender a pessoalidade e distinção de seus próprios sentimentos em comparação com os dos outros transita de uma “empatia quase-egocêntrica” para uma “empatia verídica” (Hoffman, 2007). Essas crianças passam a reconhecer que o outro está fisicamente separado delas e já não misturam o sofrimento alheio imediatamente com o próprio; a angústia empática agora ganha melhor precisão pró-social, na medida em que a criança busca ajudar o outro em sofrimento. Contudo, ainda ocorre mistura a respeito de que tipo de ajuda é eficiente para o outro, em seu contexto próprio - pois essas crianças ainda se confundem com a falta de representação sobre os estados que realmente são internos do outro, apesar de já conseguirem se beneficiar de informações provenientes da alteridade e de já começarem a entender, de forma mais clara, os sentimentos alheios como independentes e como evidência de que há um mundo interno pertencente à alteridade (Hoffman, 2007).
É importante destacar que esses processos que tanto solucionam a crise da reaproximação quanto estabelecem a continuidade do desenvolvimento dos processos empáticos só pode ocorrer se não houver uma “sabotagem do prazer” (Figueiredo, 2000). Ou seja, um conflito emocional em que a criança experimenta excessiva tensão no binômio composto pelo seu desejo de autonomia e medo de perder a conexão com o objeto amado. Com isso, Figueiredo amplia o escopo visto por Mahler, ao afirmar que o cuidador primário da criança pode sentir angústias relacionadas ao medo de ser abandonado ou excessivamente requisitado e, consequentemente, devorado pela criança insaciável. Essa sabotagem leva à formação dos padrões disfuncionais de empatia que vêm sendo discutidos, especialmente no contexto borderline, aqui mencionado, onde a empatia está presente desde suas formas mais arcaicas-projetivas, em ambos os polos da dinâmica relacional.
A importância de ressaltar o processo que se apropria da consolidação de identificações e culmina na produção de uma fase final de internalização da identidade, chamada por Kernberg (1967) de “identidade do ego”, se deve ao fato de que essa unificação permite dois processos. O primeiro é a consolidação das estruturas do ego conectadas por um senso de continuidade do Self, sentido como um progressivo senso de domínio das habilidades de adaptação que estabiliza seu funcionamento nas mais amplas áreas da vida2. Em segundo lugar, uma percepção da permanência, da lógica e da continuidade de um “mundo de objetos” também será efeito dessas introjeções arcaicas e identificações fundamentais.
Ao longo do desenvolvimento precoce, as atitudes e comportamentos do sujeito passam a ter um padrão, que é atribuído pelo ambiente à sua volta como parte do caráter daquele indivíduo, e esse reconhecimento de padrões nas diversas interações passa a ser uma característica que dá, ao ambiente, previsibilidade suficiente e confirmação de estabilidade e segurança. Com a formação da identidade do ego, as experiências arcaicas são integradas tanto ao Self quanto à imagem do objeto (Kernberg, 1977). A conclusão efetiva de uma identidade do ego leva as imagens do objeto a se tornarem ricas, variadas, consistentes e mais congruentes com os objetos na realidade. Caso contrário, as internalizações arcaicas prevalecem e constituem imagens de objeto seletivas e parciais.
Krohn (1974) se baseia nessas ideias de Kernberg (1967, 1975, 1977) para narrar como a experiência geral que o sujeito borderline tem do outro é uma modificação radical entre idealizações completas e rejeições absolutas. Consequentemente, como já amplamente verificado na literatura (Stone, 1986), o sujeito borderline possui uma maneira de se relacionar com o outro baseada em uma impulsiva e desesperada busca por gratificação, que é alimentada por um contínuo medo de que sua própria fúria e “fome” possam destruir o objeto que ele tanto precisa (Bollas & Gurfinkel, 2003).
Apesar da concordância entre os autores, Krohn (1974) contribui com uma ressalva. Dirá ele que Kernberg (1967) privilegia uma leitura estrutural e metapsicológica dos fenômenos borderline, deixando em segundo plano a importância da experiência subjetiva que esse paciente vive com os objetos. A partir disso, o autor se dedica a investigar microscopicamente a natureza da experiência borderline com os objetos, ressaltando, daí, o que seria uma “frequentemente observada, porém raramente descrita, ‘empatia’ no borderline” (p. 144), que estaria na base das representações de objeto para esses pacientes.
Dois casos clínicos, exemplos do paradoxo da empatia borderline
Com o objetivo de explorar o que seria essa empatia, Krohn (1974) apresenta um caso clínico de um homem de 26 anos que “parecia apenas marginalmente capaz de manter a representação da continuidade nas atitudes do terapeuta e de suas qualidades” (p. 153). Esse paciente transformava cada sessão em um esforço para desfazer a imagem do analista como frio, distante e sádico, diante de suas necessidades desesperadas - uma situação típica na clínica borderline. Ele se encaixava bem nos critérios de Kernberg (1975) para a organização borderline, alternando abruptamente entre ver o analista como admirável e inalcançável ou como um charlatão humilhante e interessado apenas em dinheiro.
Esse paciente tinha imagens de si mesmo igualmente binárias e radicais: por vezes, todo-poderoso e, em outros momentos, absolutamente impassível de socorro. Apesar disso, ele mantinha razoavelmente intactas as fronteiras do Self, não sendo invadido por experiências psicóticas. Por último, um dos elementos mais patognomônicos da problemática borderline também estava presente: o paciente sentia que a potência de seu ódio residia na iminência de ele vazar e que isso acarretaria uma espécie de apocalipse.
Do caso clínico, Krohn ressalta a infamiliar habilidade borderline de reconhecer alguns dos impulsos e julgamentos mais privados das outras pessoas. Costumeiramente reconhecido como alguém capaz de responder à atmosfera emocional da enfermaria que frequentava, esse paciente demonstrava grande sinergia com os sentimentos de seu analista, que o confrontava diretamente quando corretamente percebia a raiva do analista diante da frustração que sentia com o tratamento. Nessas situações, o paciente dizia “Por que você me odeia? Por que você quer me ver morto?”. Mais ainda, o autor comenta sua expectativa em assumir uma diferença entre o modo de reação desse paciente daquilo que se veria em um neurótico, que “provavelmente permaneceria ignorante sobre os sentimentos e pensamentos do analista”. Por seu turno, esse homem de 26 anos conseguia “frequentemente colocar em palavras as associações privadas do analista imediatamente no momento em que elas ocorriam”, e isso era “como se ele estivesse sintonizado às associações e impulsos imediatos do analista” (Krohn, 1974, p. 146).
Tal articulação feita por Krohn também pode ser vista no trabalho de Harold Searles (1975/1994), My work with borderline patients, ocasião em que esse autor trata a transferência borderline levando em consideração a especificidade da empatia ao dizer que, “apesar de os conflitos inerentemente ‘pertencerem’ ao paciente, eles poderão ser conhecidos por ele apenas através de sua identificação com o analista com quem eles podem fluir, como se fosse pela liquidez de uma transferência simbiótica” (p. 191). Conforme o leitor pode compreender da leitura de Searles, tendo em vista que a maior parte do funcionamento egoico do paciente borderline ocorre de forma simbiótica e pré-individual, frequentemente o analista será a pessoa que primeiro irá articular verbalmente e conceituar conscientemente os conflitos inconscientes que o paciente borderline vive, isso porque o analista entra em contato com o paciente pelas suas próprias experiências inconscientes, coisa que também não deixa de ter relação com a empatia3.
É de notório saber, tanto nos modelos categóricos de diagnóstico presentes no DSM-5-TR, como em nossa lógica psicodinâmica, que a organização da personalidade borderline rende ao paciente uma sempre presente ameaça de separação e perda. Ele está permanentemente sob essa iminência - seja por sua precária identidade individual, pela fusão com o outro, ou por sua frágil habilidade relacional, por uma incontrolável fuga para o isolamento autista ou psicótico (Searles, 1975/1994). A modalidade empática perturbadora do paciente borderline impõe ao analista os componentes mais arcaicos de sua personalidade. Esses conteúdos projetados, quando captados pelo analista, tendem a ser reprimidos ou projetados de volta, criando situações de contratransferência típica (Gabbard, 1993; Cassorla, 2008; Bateman, 2018). Além do conceito de identificação projetiva, Krohn (1974) sugere que esses conteúdos podem ser comunicados empaticamente, despertando afinidade empática no analista. Assim, o paciente borderline possui uma qualidade empática que percebe e se relaciona com o funcionamento arcaico dos outros, e muitos de seus comportamentos destrutivos são reações de autoagressão às introjeções das partes arcaicas do funcionamento egoico do analista.
Essa hipótese, flagrada no primeiro caso clínico trazido por Krohn (1974), abre algumas questões. Haveria uma superlativa capacidade de se relacionar com os objetos? Como é possível que um tipo de paciente cujas experiências com os objetos sejam vividas de forma tão arcaica, fluida e marcadamente narcísica também manifeste esse nível incomum de sensibilidade às experiências do analista? Como esses pacientes podem ser tão sensíveis às mínimas manifestações emocionais não verbais dos outros e, ainda assim, se manter dentro do problemático quadro de uma alienação? Esse é um paradoxo da empatia que merece ser investigado e que recebeu o olhar do autor a partir da clínica psicanalítica.
Em nova descrição de caso, Krohn (1974) comenta sobre uma paciente de 17 anos, internada depois de uma série de atuações envolvendo abuso de substância, comportamentos antissociais e perigosos componentes psicóticos. Essa paciente não tolerava ser separada de sua mãe, que, por sua vez, agia sempre com apenas duas posturas diante da filha. Se a menina não correspondia emocionalmente, compartilhando das fobias, inibições e preocupações mórbidas de sua mãe (e consequentemente demonstrando algum grau de independência), a mãe retirava o investimento emocional direcionado à menina, levando-a ao estado de desespero deprimido de quem vive uma ameaça de extermínio direta sobre seu Self. Por sua vez, quando ocorria submissão completa da menina em compartilhar os conteúdos maternos, ela era imediatamente gratificada com atenção e um tipo de acolhimento que remetia a relação ao cuidado de uma criança indefesa e frágil.
Durante as sessões, quando o terapeuta incentivava a paciente a ser independente e madura, ela o via como sádico e cruel, incapaz de entender sua fragilidade (imputada pela mãe). Quando percebia atitudes protetoras nele, idealizava sua figura, adotando uma fala infantilizada e uma postura flertadora. Essa estereotipia de reações mostra que seu mundo interno era cindido e simples, dividido entre ser frágil e infantil ou alienado e distante. Ela raramente via qualidades complexas nos outros, percebendo-os apenas como fracos e seguros ou distantes e ameaçadores.
Esse quadro típico da clínica borderline destaca o estilo empático no funcionamento desses pacientes, conforme ressaltado por Krohn. A paciente conseguia “detectar estranhas ‘vibrações’ na equipe [da enfermaria]”, revelando uma capacidade quase infalível de adivinhar estados emocionais, que Krohn atribui a esses pacientes (Krohn, 1974, p. 147). A sra. L, por exemplo, tinha uma sensibilidade notável à turbulência em outros pacientes e funcionários. Ela percebeu estranhas “vibrações” de um membro da equipe que, posteriormente, foi descoberto estar passando por agitação devido a experiências traumáticas de guerra. A paciente comentou: “há algo de errado com ele; ontem, quando ele presenciou a discussão, olhei para ele e ele parecia estar vendo alguém sendo morto”. De fato, ele estava mesmo preocupado com pensamentos sobre as brutalidades que testemunhou em combate (Krohn, 1974, p. 147). A importância desse trecho se deve a três fatores. O primeiro deles diz respeito à sensibilidade que o paciente borderline tem para compartilhar estados afetivos turbulentos. A necessidade dessa partilha decorre da teoria de Bollas (2021) sobre identidade e relacionamentos interpessoais, onde a turbulência e o outro perturbador são centrais na formação do Self. Segundo Bollas, o sujeito borderline não vive o “eu” como uma entidade autônoma, mas como algo formado reativamente pela interação com outros desestabilizadores. O “eu” borderline só se mantém através de contínuas relações com esses objetos perturbadores, sejam reais ou evocados por pensamentos e memórias. Assim, o “eu” borderline é mais um efeito residual de relações turbulentas do que um agente ativo.
O esquema de Bollas & Gurfinkel (2003) e Bollas (2021), assim como o de Searles, ilumina a experiência borderline de evitação do medo de abandono - real ou imaginário -, descrita como um fator patognomônico (DSM-5-TR). Esse descritor da turbulência ajuda a entender que qualquer tentativa de separação ou de estabelecimento de uma identidade autônoma é vivida como ameaça existencial, levando a uma luta contra esses esforços, interpretados como formas de perseguição. O indivíduo não só rejeita a autonomia, como também perturba os outros para forçá-los a definir seu lugar e identidade. Essa dinâmica é, paradoxalmente, o meio pelo qual o indivíduo sente amor e conexão, escolhendo a turbulência como o único representante autêntico de sua identidade. Krohn (1974) descreve como o paciente borderline capta a turbulência emocional alheia, algo difícil de explicar fora da clínica. Com o desenvolvimento do construto da empatia e de instrumentos adequados à sua medição (Sampaio et al., 2011; Salgado, Pedroso & Bastos--Leite, 2020), tornou-se possível conhecer mais especificamente as características empáticas patológicas dos pacientes borderline (Dinsdale & Crespi, 2013), sem eclipsar as impressionantes experiências que o clínico vivencia na prática, onde o estranhamento e a rejeição tomam conta do setting, forçando uma análise das motivações inconscientes na contratransferência.
Finalmente, um terceiro ponto diz respeito à descrição do fenômeno empático para Krohn. Não parece haver, em seu texto, uma vontade metódica de explicar o que é o estilo empático borderline em detalhes ou passos, mas pode-se ver, no exemplo acima, uma descrição aproximada daquilo que Ferenczi (1928/2003c) diversas vezes remetia à empatia, a capacidade de adivinhar intenções e pensamentos alheios. Uma vez mais, algo que precisa ser ressaltado é como Krohn valoriza a sensibilidade de responsividade imediata dos estados emocionais alheios, o que não se mantém de forma substancial na imagem permanente do analista. É justamente nesse ponto que reside a força do argumento do autor, pois, como ele diz, a paciente “era terrivelmente responsiva ao id e ao superego inconsciente imediatamente emergentes, ao mesmo tempo em que era alienada dos aspectos permanentes do ego do terapeuta ou de sua representação de self” (Krohn, 1974, p. 148). Faz-se notar os grifos no texto, feitos pelo próprio autor, para ressaltar o jogo de forças entre o permanente e o efêmero4 que tanto assombra o paciente borderline.
Implicações clínicas
Krohn (1974), seguindo a tradição dos autores clássicos (Rosenfeld, 1987; Bateman, 1998), que descrevem o grupo borderline de pacientes como sujeitos de “pele fina”5, defende que tal atitude ultrapassa uma mera modalidade defensiva. Para Krohn (1974), “frequentemente os terapeutas desses pacientes dizem que eles têm ‘sonhos telepáticos’, onde os sonhos contêm imagens que se referem surpreendentemente a eventos reais na vida do terapeuta ou suas fantasias” (p. 148). Isso sugere que essa modalidade não é uma atitude defensiva, mas uma reação direta a uma experiência não filtrada de contato com o objeto. Conforme a hipótese de Krohn (1974), esse grau de sensibilidade deve ser fruto do estado em que as imagens do objeto aparecem para esses pacientes. A alta finura, a fluidez e a transitoriedade são os componentes típicos das representações de imagens objetais que fomentaram a causalidade de uma ausência de diferenciação, elaboração e profundidade na imagem do outro, ou seja, a maneira instável de perceber os outros é derivada da difusão da própria identidade.
Normalmente essa fenomenologia clínica é vista apenas em seu aspecto patológico, mas é justamente essa condição que permite ao sujeito borderline uma experiência mais imediata e direta com os aspectos mais crus do Id e do superego, que costumam ser atenuados nas subjetividades que se consolidaram mediante processos de recalcamento e que transicionaram para a posição depressiva (Kernberg, 1975). Nesse contexto, Krohn (1974) explica que os pacientes borderline muitas vezes não conseguem “ouvir psiquicamente” os hábitos egoicos dos outros, manifestando importante dificuldade em captar informações consistentes que derivam das tendências, estilos e padrões de relacionamento estabelecidos pelos outros (p. 149). O autor prossegue destacando que isso resulta em um constante senso de surpresa diante das ações e reações alheias, uma sensação de estar à deriva nas relações interpessoais, o que leva a uma incapacidade de prever comportamentos reais nos outros.
A sensibilidade borderline é desadaptada ao funcionamento interpessoal, conforme os padrões da cognição social. Krohn (1974) explica que o sujeito borderline tenta antecipar as ações dos outros ouvindo “apenas a parte latente dos seus sonhos”, ou seja, o desejo mais profundo e verdadeiro, mas inacessível na vida diurna. Ele compara essa experiência a alguém que responde intensamente a uma obra de arte sem conhecer a história do estilo, as limitações do meio ou a história do artista. Krohn afirma que tal experiência “tem suas vantagens e limitações, mas, de qualquer forma, é certamente muito diferente da experiência do historiador de arte, que coloca a obra imediatamente em um marco conceitual elaborado” (p. 149). Essa metáfora ilustra como o sujeito borderline percebe e reage ao mundo de maneira intensa e imediata, porém descontextualizada. Sem ingenuidades que supervalorizariam o lugar da cognição ou do intelecto, tem-se, nesses comentários, uma compreensão de que o estilo empático borderline funciona como uma ressonância com a vida inconsciente do outro, proveniente das emanações estéticas do objeto. Pode-se ver também como existem bons motivos para valorizar a experiência empática borderline, pois, de modo bem diferente do neurótico, esses pacientes captam justamente o que está além do modo ajustado e funcional. Dito de outro modo, enquanto o sujeito organizado neuroticamente se limita a racionalizações e precisa de uma análise que flexibilize seu funcionamento recalcador para destravar uma criatividade constrangida, o paciente de organização borderline se beneficia de outra coisa: uma relação que ajude na mentalização das experiências (Fonagy & Bateman, 2006) e na integração das partes clivadas (Clarkin & Kernberg, 2015) para poder, então, fazer bom uso de sua sensibilidade especial.
Das ideias de Krohn (1974), a questão que vem sendo encaminhada aqui diz respeito à qualidade do estilo empático vivido pelo paciente borderline. Quais seriam as vicissitudes desse estilo empático? Ao se manter profundamente fora de contato com as partes mais consensualmente percebidas do outro e, ao mesmo tempo, ficando diretamente exposto às partes mais arcaicas dele, o paciente borderline vive uma vulnerabilidade social. Essa é a forma paradoxal de contato empático com a qual a clínica se choca e que vulgarmente é reduzida apenas àquilo que se traduz pela inadequação interpessoal que estaria ancorada na emocionalidade exacerbada.
Especificidades da empatia borderline: divergência e ordinal
Para finalizar a argumentação deste artigo, parece necessário fazer uma distinção clara entre o que seria a empatia ordinária e a empatia borderline. Sistematicamente, o que vem sendo dito é que a empatia borderline diz respeito à sensibilidade aumentada para os impulsos inconscientes, mas com a impossibilidade de verificar a coesão egoica alheia como aparato organizador adequado. Já o que é comumente compreendido como empatia é aquela que dá ao sujeito a condição de compreender o sentimento alheio, mantendo distinção com os próprios sentimentos e fornecendo arcabouço emocional para a cooperação e oferta da quantidade e qualidade de amparo e ajuda adequada ao momento. Ainda assim, é importante evitar a ingenuidade de acreditar que a empatia normal seria uma espécie de altruísmo puro, estando livre das influências de interesses egoicos inconscientes, voltados ao alívio de angústia ou desconforto vicário (Hoffman, 1991b).
No contexto da patologia em questão, a capacidade de percepção do paciente a respeito da contratransferência foi objeto de análise de Carter & Rinsley (1977), que comentam, a partir de um caso clínico, como uma paciente internada era capaz de captar esses elementos, mas exagerava fortemente na qualidade afetiva daquilo que captava de seu analista e da equipe. Segundo os autores, a paciente parecia não acreditar ou compreender que os afetos podem ser modulados pelos outros. Tomando a experiência alheia como se fosse a própria, para ela, era como se o afeto alheio percebido fosse tão intenso quanto aquele que ela mesma costumava experimentar.
Dessa consideração, pode-se interpretar a nuance da empatia borderline como um modo de manter, fomentar ou tentar resgatar o laço simbiótico com o outro (Carter & Rinsley, 1977). Isso porque, por via dessa forma de empatia, os elementos persecutórios, rejeitadores, idealizadores e infantis são ativados e fortalecidos na relação com o outro. Tal estímulo demonstra a impressionante sensibilidade do paciente borderline para produzir leituras da comunicação não verbal, somada à manutenção de funcionamentos sociais carregados de sofrimento sem maiores elaborações dos processos envolvidos na ativação dessas emoções ou da capacidade de compreender causas e circunstâncias, ou seja, de um uso não adaptado da capacidade empática plenamente desenvolvida.
Se estivéssemos falando do desenvolvimento emocional não patológico, como se vê na relação entre um cuidador e sua criança, a sintonia empática abarcaria a possibilidade de separação. Em outros termos, um cuidador primário efetivamente responderia às necessidades emocionais de uma criança, compreendendo-as como diferentes de seus próprios aspectos emocionais. O efeito disso é primordial, pois, ao lidar com a criança “onde ela está”, e não apenas levando em conta a óbvia dependência que ela tem, fomenta-se o desenvolvimento da autonomia e da diferenciação. Toda e qualquer empatia que não seja borderline é entendida, aqui, como o resultado de um processo natural de separação que vem da fase de maior dependência.
Quando o cuidador primário é atento às necessidades idiossincráticas da criança, o reconhecimento do outro enquanto ser único e o desfecho da fase de separação-individuação envolverão a construção de confiança nas relações humanas e a crença na estabilidade e previsibilidade das interações. Assim, seja no paciente neurótico ou no indivíduo não borderline, a empatia será vivida como uma percepção a respeito dos sentimentos de outra pessoa, um reconhecimento de ser capaz de sentir algo semelhante, em circunstâncias similares, a partir de uma recapitulação de seus próprios sentimentos como base para essa congruência (Shapiro, 1974; Hoffman, 1975).
A empatia normal permite ao indivíduo perceber e compreender os sentimentos alheios, mantendo uma distinção entre os próprios sentimentos e fornecendo um arcabouço emocional para a cooperação e oferta de ajuda adequada. O cuidador primário reconhece as necessidades emocionais da criança como diferentes das suas, fomentando o desenvolvimento da autonomia e diferenciação. Com a maturação, a resposta emocional ao sofrimento alheio se torna mais complexa e orientada para o outro, ao invés de focar no alívio do desconforto pessoal ou em ganhos de aprovação social (Hoffman, 1991b).
Em franco contraste, o sujeito borderline usa sua atenção empática como um sistema de alerta de emergência, um radar avançado e estratégico para antecipar o imprevisível e se adaptar rapidamente ao que é ameaçador (Ferenczi, 1924/2003b). Carter & Rinsley (1977) descrevem: “o indivíduo borderline precisa da sua dolorosa consciência como um ‘sistema de alerta precoce distante’ para antecipar a imprevisibilidade - e, portanto, o perigo - que ele projeta, induz e percebe em seu ambiente” (p. 326). A identificação projetiva6, usada com maestria pelo paciente borderline, faz emergir no outro os conteúdos arcaicos mais virulentos da relação. Os afetos percebidos nos outros são intensificados e tomados como próprios, mantendo ou fomentando o laço simbiótico disfuncional com o outro e reforçando projeções idealizadoras, persecutórias e rejeitadoras.
Conclusão
Diante do exposto, este artigo analisou a natureza da empatia borderline, explorando o paradoxo empático apontado por Krohn (1974). Recentes demonstrações empíricas das teorias psicanalíticas na psicopatologia do desenvolvimento (Fonagy & Target, 2004) têm conectado diversas áreas das ciências psicológicas, incluindo psicologia clínica, psicanálise, neurociência e psiquiatria. Apesar dos avanços, a associação entre empatia e pacientes borderline ainda requer mais estudos, conforme o paradoxo empático de Krohn continua sendo um desafio (Dinsdale & Crespi, 2013; Salgado, Pedroso & Bastos-Leite, 2020). As explorações apresentadas neste artigo mostram desenvolvimentos no campo psicanalítico, destacando a importância de considerar que esses pacientes absorvem e reagem aos fenômenos arcaicos do psiquismo do analista, evitando o erro de atribuir todas as reações emocionais a projeções. Ferenczi (1928/2003c) já enfatizava a importância da metapsicologia do analista e sua higiene pessoal nas experiências transferenciais, aspecto fundamental, embora não exclusivo, no manejo clínico desses pacientes.
A hipótese de Krohn (1974) e Carter & Rinsley (1977) sugere que a hipersensibilidade empática em pacientes borderline é uma resposta compensatória às intrusões parentais. Esses pacientes desenvolvem hipersensibilidade às variações sutis do inconsciente parental para manter estáveis as relações de objeto internalizadas. Essa tendência de buscar motivações ocultas nos outros e ser altamente sensível aos seus sinais, aliada à desconfiança do comportamento consciente, prejudica a capacidade de desenvolver relações estáveis, resultando em disfunção social. Ainda é necessário investigar se há correlação entre os componentes da empatia e a organização de personalidade do paciente com TPB, sendo esse o próximo passo na pesquisa.
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1
No original: “he does not respond accurately to the system of conscious beliefs in the other; he feels often that the other's beliefs or self-presentations are phony, because what he ‘hears’ more clearly psychically are the primitive unconscious wishes and severe superego dicta in the object, which drown out, as it were, the more overt stance of the object”.
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2
Didaticamente sistematizadas por Kernberg (1995) através de sua entrevista estrutural, que aborda os tópicos: (a) trabalho e estudo; (b) vida social; (c) vida íntima e sexualidade; (d) criatividade.
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3
Certamente, aqui está sendo apontada a empatia do analista (ver Ferenczi, 1928/2003c), tema que não faz parte desse trabalho e que, portanto, ocupa pouco espaço de argumentação. Para um pouco mais de detalhamento, ver Vieira (2017) e Kupermann (2022).
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4
A escolha por “efêmero” disputou com “transitório”, “impermanente” e “instável”. Preferi a primeira opção por achar que é a que mais se aproxima daquilo que, além de inconstante não possui garantias de retorno. Tenho a impressão de que boa parte do sofrimento borderline, tão bem descrito por Masterson com seu termo “depressão borderline”, se resume nesse sentido.
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5
Pessoas extremamente tímidas, agitadas e ansiosas ao se relacionarem com os outros, muitas vezes sobrecarregadas pelos próprios sentimentos.
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6
Apesar de não ser o objeto de análise de nosso estudo, se fez necessário indicar uma definição sobre a identificação projetiva, para o leitor mais arguto. Conforme Melanie Klein (1996), a identificação projetiva se refere a um mecanismo de defesa no qual partes do self são projetadas em um objeto externo, que então é experimentado como se contivesse essas partes. Essa dinâmica se diferencia da simples projeção, pois envolve uma tentativa de controlar ou influenciar o objeto, estabelecendo uma conexão inconsciente que frequentemente afeta as relações interpessoais. Desse entendimento, devemos ressaltar que nossa visão sobre a empatia paradoxal borderline, é parcialmente influenciada por dinâmicas de identificação projetiva, mas não se reduz a ela, posto que enquanto a identificação projetiva envolve uma tentativa de moldar ou influenciar o outro, a empatia paradoxal descrita no artigo reflete uma hipersensibilidade às emoções e estados inconscientes do outro, frequentemente acompanhada de desconfiança e cisão com as próprias características egoicas conscientes.
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Datas de Publicação
-
Publicação nesta coleção
13 Jun 2025 -
Data do Fascículo
2025
Histórico
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Recebido
17 Nov 2024 -
Aceito
07 Dez 2024