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As emoções (1890)

ENSAIO

As emoções (1890)* * Tradução realizada por Daniela Cerdeira e por Gallia Bronowski, de uma seção de "The Emotions", capítulo XXV de The Principles of Psychology, publicado originalmente por Henry Holt and Company, em 1890. Revisão técnica e notas por Guilherme Gutman.

William James

As emoções, pelo menos as emoções brutas,** ** Nossa opção por "brutas" para a tradução de coarser se justifica por alguns fatores. Primeiro, porque ao recorrermos ao Dicionário Analógico da Língua Portuguesa, do Padre Spitzer (Porto Alegre, Globo, 1958), encontramos, dentre a sua torrente maravilhosa de associações para "bruto", algumas que revelam o caráter básico e direto de certas emoções a que W. James parece aludir: "reino animal, fauna, besta (fera), bicho, criatura (animada, viva), animalidade, animação..." (p. 122). Segundo, "bruto" nos remeteu ao brut francês, no sentido utilizado para designar um determinado estágio da produção de espumantes; algo próximo a "cru". Aliás, associação que foi apropriada por Jean Dubuffet para designar a assim chamada art brut. Terceiro, porque consultando o Concise Etymological Dictionary of the English Language de Walter Skeat (London, Oxford, 1956), descobrimos que coarser é oriundo de course (curso), no contexto da frase in course, remetendo-nos fortemente ao espírito da psicologia jamesiana por referência a algo que, tal como o pensamento, "flui" ou "acontece" ("The stream of conciousness", capítulo IX de The Principles of Psychology) (Nota do revisor técnico, doravante, N. da R.). se seguem à expressão corporal.

A nossa forma natural de pensar sobre essas emoções brutas é a de que a percepção mental de algum fato incita a sensação mental denominada emoção, e que este último estado de espírito engendra uma expressão corporal. A minha teoria, ao contrário, é a de que as mudanças corporais se seguem diretamente à percepção do fato existente, e que a sensação causada por essas mudanças no momento em que ocorrem é a emoção. Segundo o senso comum, perdemos a nossa fortuna, lamentamos e choramos; deparamo-nos com um urso, temos medo e fugimos; somos insultados por um rival, temos raiva e revidamos com violência. A hipótese a ser aqui defendida diz que essa ordem de seqüência é incorreta, que um estado mental não é imediatamente induzido pelo outro, que, antes, as manifestações corporais devem a eles se interpor, e que a afirmação mais racional seria a de que nós lamentamos porque choramos, temos raiva porque revidamos, medo porque trememos, e não a de que choramos, revidamos ou trememos porque lamentamos, temos raiva, ou medo, segundo cada caso. Sem que os estados corporais se seguissem à percepção, o último estágio seria puramente cognitivo em sua forma, insípido, descolorido, destituído de calor emocional. Poderíamos então depararmo-nos com um urso, e julgarmos ser melhor fugir, ouvir um insulto e considerarmos como certo revidar, mas não verdadeiramente sentiríamos medo ou raiva.

Formulada dessa maneira crua, é mais do que provável que a hipótese seja confrontada a uma imediata incredulidade. E, no entanto, nem muitas nem implausíveis considerações são necessárias para mitigar seu caráter paradoxal, e possivelmente produzir a convicção de sua veracidade.

Para começar, ninguém que tenha lido os dois últimos capítulos*** *** W. James faz referência ao capítulo XXII, "The production of movement" e ao capítulo XXIV, "Instinct" (N. da R.). tenderá a duvidar do fato de que objetos incitam mudanças corporais através de um mecanismo pré-organizado, ou, ainda, que as mudanças são tão indefinidamente numerosas e sutis que o organismo por inteiro poderia ser considerado uma caixa de ressonância, que cada mudança de consciência, por mais suave que seja, é capaz de fazer reverberar. As várias permutações e combinações a que são suscetíveis essas atividades orgânicas tornam abstratamente possível que qualquer sombra de emoção, mesmo a mais suave, seja acompanhada por uma reverberação corporal tão única, quando vista em sua totalidade, quanto o próprio estado de espírito. O número imenso de partes modificadas em cada emoção é o que faz com que seja tão difícil, para nós, reproduzirmos a sangue frio a expressão total e integral de qualquer uma delas. Podemos, por exemplo, desvendar o mecanismo para os músculos voluntários, mas não para a pele, glândulas, coração e outros órgãos. Da mesma forma que um espirro artificialmente imitado carece de alguma realidade, também é provável que uma tentativa de imitar uma emoção na ausência de sua causa instigadora natural seja "em vão".

A próxima coisa a se notar é a seguinte, que cada uma das mudanças corporais, qualquer que seja ela, é sentida, de maneira aguda ou obscura, no momento em que ocorre. Caso o leitor nunca tenha antes prestado atenção ao tópico em questão, ficará ao mesmo tempo intrigado e impressionado ao descobrir quantas sensações corporais localizadas ele pode detectar em si próprio, como características de seus vários estados de espírito. Talvez fosse muito esperar que ele aceitasse controlar uma forte rajada de paixão em prol de uma análise tão inusitada quanto essa; mas lhe é possível observar estados mais tranqüilos, e que possamos aqui admitir como também verdadeiro para o mais violento o que for demonstrado para um estado tranqüilo. A nossa capacidade cúbica inteira é sensivelmente viva; e cada pedaço contribui com suas pulsações sensitivas, leves ou agudas, agradáveis, dolorosas, ou dúbias, para esse sentido de personalidade quetodos, invariavelmente, carregam em si. É surpreende o quanto pequenos elementos evidenciam esses complexos de sensibilidade. Quando preocupada com algum pequeno problema, uma pessoa pode dar-se conta de que o foco de sua consciência corporal é a contração, freqüentemente quase imperceptível, dos olhos e sobrancelhas. Quando momentaneamente constrangido, é algo na faringe que leva a engolir a seco, limpar a garganta, ou tossir levemente, entre outros tantos exemplos que poderiam ser citados. Sendo o nosso interesse aqui uma visão geral e não os detalhes, não prolongarei essa discussão, e, admitindo o pressuposto de que toda mudança ocorrida deve ser sentida, prosseguirei.

Prossigo agora na defesa do ponto vital de toda a minha teoria, que é o seguinte: Se imaginarmos uma emoção forte, e em seguida tentarmos abstrair de nossa consciência dessa emoção todos os sentimentos de seus sintomas corporais, perceberemos que nada resta, nenhum "estofo mental" a partir do qual uma emoção possa ser constituída, e que tudo o que permanece é um estado frio e neutro dapercepção intelectual. É bem verdade que, apesar de as pessoas, em sua maioria, quando perguntadas declararem que sua introspecção comprova essa afirmativa, outras insistem em dizer que as delas não. Muitos não podem ser persuadidos a compreender a questão. Quando pedimos para que desconsiderem qualquer sentimento de riso ou de propensão a rir de sua consciência do ridículo de um objeto, e para que então digam como seria o sentimento desse ridículo, se seria algo além do reconhecimento de que o objeto pertence à categoria "engraçado", eles insistirão em responder que o que se propõe é uma impossibilidade física, e que eles sempre necessariamente rirão quando diante de um objeto engraçado. É claro que o que aqui se propõe não é o exercício prático de ver um objeto risível e sufocar a tendência a rir, mas o exercício puramente especulativo de subtrair alguns elementos sensitivos de um estado emocional que supostamente existiria numa totalidade, e de apontar quais são os elementos residuais. Não posso me privar de pensar que aqueles que apreenderem corretamente o problema concordarão com a afirmação acima explicitada. Para mim, torna-se completamente impossível imaginar que espécie de emoção de medo restaria se não estivessem presentes nem a sensação de coração disparado ou de respiração ofegante, nem lábios tremendo ou membros dormentes, nem pele arrepiada ou estômago embrulhado. Podemos supor um estado de raiva e não vislumbrar o peito agitado, o rosto vermelho, as narinas dilatadas, os dentes trincados, nenhum impulso em direção a uma ação enérgica? O presente autor, pelo menos, certamente não pode. A raiva fica tão completamente evaporada quanto a sensação das suas chamadas manifestações, e a única coisa que talvez possa supostamente substituí-la será algo como uma sentença judicial fria e serena, confinada inteiramente ao plano intelectual, sugerindo que alguém ou um grupo de pessoas merecem receber um castigo pelos seus pecados. Igualmente para o luto: o que seria dele sem as lágrimas, sem soluços, coração apertado, ou pontadas no meio do peito? Um reconhecimento sóbrio de que certas circunstâncias são lamentáveis e nada mais. Para todas as paixões será invariavelmente a mesma coisa. Uma emoção humana inteiramente desencarnada**** **** No original, temos disembodied, que já encontramos em artigos contemporâneos sendo traduzida por "descorporificada", o que, obviamente, explicita a idéia central contida na referida expressão, qual seja, a de alguma experiência humana da qual o corpo é, por assim dizer, retirado. Todavia, optamos aqui por "desencarnada" que, se por um lado torna menos evidente seu sentido técnico, nos parece mais direta, "bruta" e, afinal, propiciadora de uma rede de associações mais aberta e interessante (N. da R.). é uma "não-entidade". Não estou dizendo que se trate de uma contradição na natureza das coisas, ou que espíritos superiores estejam necessariamente condenados a uma vida intelectualizada e fria; o que digo é que, para nós, uma emoção dissociada de toda sensação corporal é inconcebível. Quanto mais de perto eu analiso os meus estados, mais me convenço de que todos os meus humores, sentimentos e paixões são na verdade constituídos por, e feitos das mudanças corporais que normalmente consideramos como sendo sua expressão ou conseqüência; e parece-me cada vez mais que, se tivesse o corpo anestesiado, ficaria excluído da vida dos sentimentos, tanto dos maus quanto dos bons, sendo assim arrastado para uma forma de existência meramente cognitiva e intelectual. Tal existência, mesmo que pareça ter sido o ideal dos sábios antigos, é demasiado apática para que seja buscada por aqueles que nasceram depois do renascimento do culto da sensibilidade, algumas gerações atrás.

Não deixemos que essa visão seja definida como materialista. Ela não é nem mais nem menos materialista do que qualquer outra visão que estabeleça que nossas emoções são condicionadas por processos nervosos. A princípio, leitor algum deste livro se oporia a uma afirmativa como essa, contanto que fosse expressa em termos gerais; e se alguém ainda vê materialismo na tese aqui defendida, talvez seja por conta dos processos especiais invocados. Esses são processos sensacionais,***** ***** Aqui, por sugestão das tradutoras, optamos por "sensacionais" com a intenção de explorar a ambivalência da expressão, presente tanto no português quanto em língua inglesa, que é a de combinar o sentido mais preciso de sensações fisicalistas, ao sentido mais aberto semanticamente de algo "formidável". A propósito, creio termos aqui um bom, ainda que singelo, exemplo de como um campo do saber - o da tradução - pode iluminar outra área de conhecimento. Como se sabe, muitas vezes somos agraciados com novas chaves de compreensão de nossas disciplinas, pela interseção de áreas distintas quando colocadas em diálogo. Aqui, o vocábulo "sensacional" injeta leveza e algum humor a um texto que, de algum modo, não é apenas um tratado de psicologia. (N. da R.) processos causados por correntes internas engendradas poracontecimentos físicos. É bem verdade que os platonistas da psicologia sempre consideraram que havia algo de peculiarmente base nesses processos. Mas nossas emoções devem sempre ser internamente o que são, independente dos fatores fisiológicos de sua aparição. Se são profundas, puras, legítimas, espirituais em qualquer teoria concebível para a sua fonte fisiológica, continuam não menos profundas, puras, espirituais e legítimas diante da presente teoria sensacional. As emoções carregam com elas a sua própria medida interna de valor; e usar a presente teoria das emoções para provar que processos sensacionais não são necessariamente infames e materiais é algo tão lógico quanto usar essa infâmia e materialidade como prova de que tal teoria não pode ser verdadeira.

Se tal teoria é verdadeira, então cada emoção é o resultado de uma soma de elementos, e cada elemento é causado por um tipo de processo fisiológico já bem conhecido. Todos os elementos são mudanças orgânicas, e cada uma delas é o efeito reflexo do objeto excitatório. Questões concretas vêm então imediatamente à tona - questões muito distintas daquelas que eram as únicas possíveis na ausência dessa teoria. Aquelas eram perguntas de classificação: "Quais são exatamente os gêneros de emoção, e quais espécies se encontram em cada gênero?", ou de descrição: "Por quais manifestações cada emoção é caracterizada?" As questões agora são causais: Quais são as mudanças incitadas por este objeto, quais aquelas incitadas por aquele objeto?" e "Por que razão eles incitam essas mudanças em particular e não outras?". Passamos de um estágio de investigação mais superficial para um mais profundo. Classificação e descrição são o estágio mais básico da ciência. Elas se tornam parte do pano-de-fundo no momento em que as questões de gênese passam a ser formuladas, e apenas guardam sua pertinência na medida em que facilitam a resposta que buscamos para essas. No momento então em que a gênese de uma emoção é levada em consideração, como sendo o incitamento, por um objeto, de inúmeros atos reflexos que são logo sentidos, vemos imediatamente por que não há limite para o número de emoções diferentes que podem existir, e por que a emoção de indivíduos diferentes pode variar indefinidamente, tanto em termos de constituição quanto em relação ao objeto que as deflagra. Pois na ação reflexa não existe nada que seja sacramentado ou para sempre determinado. Todo tipo de efeito reflexo é possível, e é um fato que reflexos variam indefinidamente, como já sabemos.

Todos nós já vimos uma pessoa muda, em vez de falante, diante da felicidade; todos nós já vimos o medo levar o sangue à cabeça da vítima, em vez de empalidecê-la; todos nós já vimos o luto como um andar e lamentar incessantes, em vez de um sentar curvado e mudo etc., etc., e isso é perfeitamente natural, pois uma única causa pode funcionar diferentemente nos vasos sangüíneos de pessoas diferentes (já que esses não reagem sempre da mesma maneira), além do que, o impulso que vai do cérebro ao centro vasomotor é influenciado diferentemente por impressões anteriores distintas, na forma de lembranças e associações de idéias.1 1 . C. Lange. Ueber Gemüthsbewegungen, uebersetzt Von H. Kurella (Leipzig, 1887), p. 75.

Em suma, toda classificação das emoções pode ser considerada tão verdadeira e "natural" como qualquer outra, na medida em que tem uma utilidade; e uma pergunta como "Qual é a 'verdadeira' ou 'típica' expressão da raiva, ou do medo?" não parece ter sentido objetivo algum. Em vez disso, agora nós temos uma questão sobre como qualquer "expressão" de raiva ou medo pode ter vindo a surgir; e essa é uma questão real, sobre mecanismos fisiológicos por um lado, e sobre história por outro, que (como todas as questões reais) é na sua essência respondível, mesmo que a resposta seja difícil de ser encontrada. Mais adiante mencionarei as tentativas que já foram feitas para tentar respondê-la.

William James (1842-1910)

Psicólogo e filósofo norte-americano, escreveu sobre todos os aspectos da psicologia humana, do funcionamento cerebral às experiências religiosas. E considerado o pai do pragmatismo.

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    Tradução realizada por Daniela Cerdeira e por Gallia Bronowski, de uma seção de "The Emotions", capítulo XXV de
    The Principles of Psychology, publicado originalmente por Henry Holt and Company, em 1890. Revisão técnica e notas por Guilherme Gutman.
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    Nossa opção por "brutas" para a tradução de
    coarser se justifica por alguns fatores. Primeiro, porque ao recorrermos ao
    Dicionário Analógico da Língua Portuguesa, do Padre Spitzer (Porto Alegre, Globo, 1958), encontramos, dentre a sua torrente maravilhosa de associações para "bruto", algumas que revelam o caráter básico e direto de certas emoções a que W. James parece aludir: "reino animal, fauna, besta (fera), bicho, criatura (animada, viva), animalidade, animação..." (p. 122). Segundo, "bruto" nos remeteu ao
    brut francês, no sentido utilizado para designar um determinado estágio da produção de espumantes; algo próximo a "cru". Aliás, associação que foi apropriada por Jean Dubuffet para designar a assim chamada
    art brut. Terceiro, porque consultando o
    Concise Etymological Dictionary of the English Language de Walter Skeat (London, Oxford, 1956), descobrimos que
    coarser é oriundo de
    course (curso), no contexto da frase
    in course, remetendo-nos fortemente ao espírito da psicologia jamesiana por referência a algo que, tal como o pensamento, "flui" ou "acontece" ("The stream of conciousness", capítulo IX de
    The Principles of Psychology) (Nota do revisor técnico, doravante, N. da R.).
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    W. James faz referência ao capítulo XXII, "The production of movement" e ao capítulo XXIV, "Instinct" (N. da R.).
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    No original, temos
    disembodied, que já encontramos em artigos contemporâneos sendo traduzida por "descorporificada", o que, obviamente, explicita a idéia central contida na referida expressão, qual seja, a de alguma experiência humana da qual o corpo é, por assim dizer, retirado. Todavia, optamos aqui por "desencarnada" que, se por um lado torna menos evidente seu sentido técnico, nos parece mais direta, "bruta" e, afinal, propiciadora de uma rede de associações mais aberta e interessante (N. da R.).
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    Aqui, por sugestão das tradutoras, optamos por "sensacionais" com a intenção de explorar a ambivalência da expressão, presente tanto no português quanto em língua inglesa, que é a de combinar o sentido mais preciso de sensações fisicalistas, ao sentido mais aberto semanticamente de algo "formidável". A propósito, creio termos aqui um bom, ainda que singelo, exemplo de como um campo do saber - o da tradução - pode iluminar outra área de conhecimento. Como se sabe, muitas vezes somos agraciados com novas chaves de compreensão de nossas disciplinas, pela interseção de áreas distintas quando colocadas em diálogo. Aqui, o vocábulo "sensacional" injeta leveza e algum humor a um texto que, de algum modo, não é apenas um tratado de psicologia. (N. da R.)
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    . C. Lange.
    Ueber Gemüthsbewegungen, uebersetzt Von H. Kurella (Leipzig, 1887), p. 75.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      12 Jan 2009
    • Data do Fascículo
      Dez 2008
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