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A transgressão que salva*1 *1 Trabalho apresentado no Colóquio Internacional sobre a Metapsicologia da Perversão. Laços Sociais da Perversão, realizado em Recife, PE. nos dias 26, 27 e 28 de agosto de 2013.

The transgression that saves

La transgression qui sauve

La transgresión que salva

Die Übertretung, die rettet

Resumos

Este artigo parte da hipótese que toda produção no campo da arte coloca em cena, necessariamente, uma transgressão. A arte precisa de uma transgressão que busque tencionar os códigos instituídos abrindo espaços para novas significações. Contudo, nem toda transgressão é perversão. Este artigo busca fundamentar esta tese discorrendo sobre alguns fundamentos do ato de criação mostrando suas interfaces com o discurso psicanalítico.

Ato criativo; transgressão; perversão; utopia


This article is based on the assumption that all production in the field of the arts necessarily brings some transgression into play. Art needs a transgression aimed at confronting established codes by opening up spaces for new meanings. But not every transgression is perversion. This article seeks to substantiate this thesis by discussing a few basics of the act of creation and showing their interfaces with the discourse of psychoanalysis.

Creative act; transgression; perversion; utopia


Cet article part de l'hypothèse que toute production dans le domaine de l'art met en jeu nécessairement une transgression. L'art a besoin d'une transgression qui cherche à mettre en question les codes établis créant ainsi des espaces pour de nouvelles significations. Cependant, pas toute transgression n'est une perversion. Cet article vise à étayer cette thèse en présentant quelques principes fondamentaux de l'acte de la création en montrant ses interfaces avec le discours psychanalytique.

Acte créateur; transgression; perversion; utopie


Este artículo parte de la premisa de que toda la producción en el campo del arte pone en juego necesariamente una transgresión. El arte necesita una transgresión que intenta confrontar los códigos establecidos para abrir espacios para nuevas significaciones. Sin embargo, ni toda transgresión es perversión. Este artículo pretende fundamentar esta tesis discutindo algunos aspectos fundamentales del acto de creación mostrando sus interfaces con el discurso psicoanalítico.

Acto creativo; transgresión; perversión; utopia


Dieser Artikel geht von der Annahme aus, dass jede künstlerische Kreation zwangsläufig eine Übertretung in Szene setzt. Kunst benötigt eine Übertretung, die durch das Öffnen von Raum für neue Bedeutungen alt eingefahrene Regelwerke ausdehnt. Jedoch, nicht jede Übertretung ist Perversion. Der vorliegende Beitrag soll diese These begründen, indem einige Grundlagen der Handlung des Schaffens erläutert und ihre Überschneidungen mit dem psychoanalytischen Diskurs aufgezeigt werden.

Kreatives Schaffen; Übertretung; Perversion; Utopie


Lá onde está o perigo, cresce também o que salva. Holderlin

"Toda obra de arte é um crime não realizado" escreve Adorno (1980)Adorno, T. (1980). Minima Moralia - réflexions sur la vie mutilée. Paris: Payot. em um dos seus aforismas no livro Minima Moralia - reflexões sobre a vida mutilada (p. 53). Esta indicação inicial será nossa primeira bússola para adentrar o tema em torno do qual nos reunimos neste Congresso. A primeira pergunta que surge é o que fracassa neste crime? Como entender este não realizado? Responder a esta interrogação é fundamental no sentido de podermos nos aproximar um pouco mais do que significa, para o campo da arte, transgredir. O não realizado indica, com todas as letras, que se a arte é um curativo do vazio (Passeron, 2001Passeron, R. (2001). Por uma poïanálise. In E. Sousa, E. Tessler, A. Slavutzky (Orgs.). A invenção da vida - arte e psicanálise. Porto Alegre: Artes e Ofícios. ) não podemos confundir o curativo com a ferida. O que isto significa? Significa dizer que o vazio não se cura, mas podemos, quem sabe, encontrar algumas mediações no campo da linguagem e do simbólico que façam um mínimo contorno ao redor dele. A arte é uma operação de linguagem e responde, portanto, as suas leis. A obra de arte, por mais transgressiva que seja, sustenta sempre o campo da mediação. Refiro-me aqui a obra de arte, obra de espírito e não a uma série de obscenidades ditas "artísticas", tão cultuadas por nossa sociedade, e que nada agregam em termos de valor a uma reflexão sobre linguagem no campo das artes.

O "não realizado" é, portanto, esta infecção à espreita, que nos escapa a todo o momento, mas da qual podemos sentir o cheiro, as fisgadas de dor e de êxtase. A arte renova sempre este curativo, esconde e trata a ferida, mas a ferida nunca cicatriza totalmente. Como poderíamos cicatrizar o vazio? Talvez a perversão seja uma tentativa extrema (e fracassada) também de acreditar que cicatrizar o vazio fosse possível.

A tese que buscarei demonstrar neste artigo é a seguinte: a arte coloca em cena, necessariamente, uma transgressão. A arte precisa da transgressão, pois é este o fundamento de sua existência, contudo, nem toda a transgressão é perversão. Pelo contrário, poderíamos até dizer que a transgressão nos salva de nos vermos capturados em uma instrumentalização do objeto que fica ali congelado em uma posição fetiche para nosso gozo.

O não realizado abre, como sabemos, outra relação ao tempo e foi isto fundamentalmente que Freud nos mostrou com o conceito de inconsciente. É seguindo esta lógica que Jacques Lacan (1964/ 1988)Lacan, J (1988). O seminário. Livro XI. Os quatro conceitos fundamentais em psicanálise. Rio de Janeiro: Jorge Zahar. (Trabalho original publicado em 1964). , no seu Seminário XI - Os quatro conceitos fundamentais em psicanálise, vai propor pensar o inconsciente como da ordem do não realizado.

É esta a falta constitutiva que nos faz olhar para este lugar potencial que nos inunda de enigmas. Marcel Duchamp (1975)Duchamp, M. (1975). O ato criador. In G. Battock (Org.), A nova arte. São Paulo: Perspectiva. vai propor justamente o ato criativo como este corte na continuidade do discurso e que revela o descompasso entre intenção e expressão. Outra forma de marcar o que Freud já anunciara sobre a divisão que nos constitui.

A arte interroga a norma instituída provocando uma expansão da metáfora como se mostrasse as fissuras possíveis da lei, contudo, estes pequenos rasgos, ao contrário do que parece, não destituem a lei do seu lugar de fundamento, mas a interroga em sua consistência.

A transgressão dentro desta perspectiva do ato artístico busca instaurar novos valores e o faz no embate com o campo do instituído. Contudo, seu tensionamento não pressupõe uma destituição de um lugar que possa regular as relações entre sujeito e objeto. O princípio que regula a linguagem é, dentro da perspectiva de Bataille (1987)Bataille, G. (1987). O erotismo. Porto Alegre: LPM. , algo sagrado e, como ele escreve, "o sagrado se abre para transgressões limitadas" (p. 75).

O que estou querendo sustentar aqui é que a arte em seu movimento de transgressão jamais compactua com os traços do laço perverso, pois busca dissolver a estagnação e o congelamento de nossa relação ao objeto para melhor uso dos imperativos do gozar.

A pergunta talvez mais interessante é de saber qual o poder da arte de barrar o gozo sem freio na enxurrada de captura, a qualquer custo, que o mundo dos objetos da lógica capitalista nos impõe.

O que pode a arte? A obra de arte instaura desordem, funda um fora de lugar, cria uma espécie de colapso no sujeito, lembrando que o desafio do artista e (também do psicanalista) é de encontrar o corte certo entre estrutura e colapso. Inspiro-me aqui em uma das proposições artísticas de Gordon Matta-Clark (2010)Matta-Clark, G. (2010). Desfazer o espaço. São Paulo: Museu de Arte Moderna de São Paulo.. É o movimento de acionar desordem que desarma e revela a violência da estagnação da imagem. Neste ponto, o ato de criação cumpre a função da navalha de Buñuel que vemos na abertura do seu clássico filme O cão andaluz. A transgressão da arte destitui o ideal perverso de capturar, de forma meduzante, os sujeitos anulando sua condição desejante. Neste sentido, a arte abriria condições para que o desejo pudesse se recompor e se lançar novamente.

Poderíamos pensar a perversão como mais próxima do campo da ordem que garante posições de uso e que a máquina do capitalismo colocou de forma assustadora em cena, instaurando imperativos de valor que se apresentam como inquestionáveis. Voltamos aqui ao estilo das montagens perversas nos dispositivos burocráticos que, como lembra Christian Dunker (2010)Dunker, C. (2010). A perversão nossa de cada dia. Revista Cult, São Paulo, 13(144), 42-46., é uma forma regrada e metódica de produzir anonimato e álibi para nosso desejo e, portanto, para confirmar a máxima perversa de que "o outro deseja, mas segundo a lei que eu determino" (p. 66).

O ato criativo é fundamentalmente crítico, é uma corrente contra outras formas de linguagens e respeita uma gramática singular.

Apostamos que o ato de criação aponta caminhos de resistência e como diz Bataille (1987)Bataille, G. (1987). O erotismo. Porto Alegre: LPM. : "a transgressão que coloca em cena não é a negação da proibição, ela a ultrapassa e a completa" (p. 59).

Freud já antevia um fluxo do império monetário que viria infectar os circuitos desejantes. Percebia que deveríamos compreender minimamente a economia fantasmática de um determinado tempo, para poder se situar diante das litanias do sofrimento de nossos pacientes. Escreve ele para Fliess em uma carta de 11 de março de 1902: "Aprendi que nosso velho mundo é regido pela autoridade, como o novo mundo o será pelo dólar" (Freud, 1950/1981bFreud, S. (1981a). O poeta e os sonhos diurnos. In Obras Completas. Madrid: Biblioteca Nueva. (Trabalho original publicado em 1908). , p. 3656). Hoje, o dólar, mais do que uma moeda que regula economias psíquicas, é um significante que diz de um estilo de estar com o outro. Então, como perceber este american way of life em nossos circuitos pulsionais? O que você precisa para ficar OK?

Recorro a Jean-Luc Godard para continuar esta reflexão. Este revela em um dos seus filmes que OK surgiu da boca de um general, na guerra de secessão nos Estados Unidos, que ao voltar do front e ser interrogado como foi a ação teria dito: "Zero (O) Killed (K)", ou seja, "OK". Afirmava, portanto, que se nenhum do nosso lado morreu, estamos OK. Pouco importa se do outro lado da fronteira, ou da porta de minha casa, dezenas, centenas, milhares de corpos componham a paisagem.

A transgressão que a arte instaura tenta desfazer esta fronteira, e nos empurra para os espaços que evitamos ver.

Voltemos à nossa pergunta inicial: por que a arte precisa de transgressão? A arte produz o corte que vai reposicionar os sentidos e as formas instituídas. Abre, portanto, um novo lugar de olhar, de sentir e de pensar. É, justamente, por isso que todo ato de criação é um ato utópico.

Ato de criação e utopia

Neste ponto, temos de pensar a utopia muito mais como interdição do presente do que como promessa de um paraíso perdido. A utopia tem a função de interromper o fluxo das lógicas instituídas e abrir o caminho para outros mundos possíveis. A utopia, assim como a arte, abre um espaço crítico como cesura e interrupção, revelando os avessos das "verdades". A arte busca dar forma ao sem forma, dar expressão ao inexprimível. Imaculada Kangussu (1999)Kangussu, I. (1999). Walter Benjamin e Kant: inexprimível - a herança do sublime na filosofia de Walter Benjamin. In M. Selligmann (Org.), Leituras de Walter Benjamin. São Paulo: Annablume. , em um artigo onde busca pensar o conceito de sublime estabelecendo um rico diálogo entre as reflexões de Walter Benjamin e Kant, vai mostrar o quanto estas zonas do sem expressão podem nos aproximar do sublime. Ela lembra que Walter Benjamin afirmava que o sem expressão pode revelar a "sublime violência da verdade". Diz ainda a autora: "O inexprimível é um poder que interrompe o discurso: ele obriga a uma expressão negativa; mostrando que a totalidade não pode ser apresentada, revela a verdade da representação. A obra de arte é um fragmento do mundo verdadeiro: um torso da verdade. E a verdade só aparece como torso" (p. 154).

Aqui percebemos que o ato artístico, mesmo transgressivo, não pode ser confundido com uma voracidade de formas, termo proposto por Lezama Lima (1996)Lima, L. (1996). A dignidade da poesia. São Paulo: Ática., típico da posição perversa que nega o que faz diferença.

Quando Freud (1908/1981a)Freud, S. (1981a). O poeta e os sonhos diurnos. In Obras Completas. Madrid: Biblioteca Nueva. (Trabalho original publicado em 1908). desenvolve uma reflexão sobre o movimento de criação, faz uma aproximação entre o trabalho do poeta e a relação da criança com a linguagem. Ambos experimentariam a liberdade de reinventar a linguagem. São, assim, espécies de tradutores desvelando o mito da língua original, já que a própria tradução lança novos sentidos ao texto de origem. A tradução exige, portanto, novas traduções. Desta forma, podemos efetivamente sentir a impossibilidade estrutural da linguagem de revelar sentidos absolutos e inquestionáveis, como sonharia a estrutura perversa. O que se diz e o que se mostra são ensaios que revelam simultaneamente as zonas de luz e sombra das palavras e das formas. Podemos aqui evocar Paul de Man: ele afirma que a tradução "põe o original em funcionamento para descanonizá-lo, dando-lhe o movimento de fragmentação, um perambular de errância, uma espécie de exílio permanente" (Bhabha, 1998Bhabha, H. (1998). O local da cultura. Belo Horizonte: UFMG., p. 313).

Retornemos à pergunta: "O que pode a arte?". A pergunta pelo "o que pode" implica como sombra uma outra questão: "O que não pode a arte?". As duas interrogações nos impulsionam, portanto, a esboçar um caminho, tentando circunscrever um campo possível de definições. Traçar uma linha é dar forma. Contudo, o que aqui nos interessa mais é apreender como se dá a passagem de uma forma para outra. Temos de procurar mapear o intervalo entre as formas, desvendar a dissecação da forma, abrindo espaço para uma reflexão sobre o informe. O informe não é o avesso da forma, mas, ao contrário, a afirma, mesmo que em uma condição de provisoriedade, instabilidade, suspensão e incompletude.

A arte como transgressão aciona o informe como uma força capaz de mudar posições. Entre o que pode e o que não pode surge o desenho de uma interdição. A interdição adquire aqui uma função propulsora e positiva, na medida em que nos permite indagar sobre as condições de possibilidade do ato de criação. É este ato de criação que funciona como uma espécie de estilete, recortando o espaço de totalidade e nos mostrando os territórios que interessam à arte. A arte busca os espaços do enigma. Paul Valery (1999), ao lembrar que a obra de arte só existe como ato, recupera a condição de passagem à forma, movimento este que instaura a obra. Assim, nos alerta sobre a tentação de nos anestesiarmos com a forma, esquecendo a história que a fez nascer. Desta história também não podemos saber tudo, já que ela é igualmente composta pelos limites da expressão e da intenção. Dito de outro modo, devemos estar atentos para que a sedução da forma não cegue nossa capacidade crítica e de leitura do mundo, não fetichizando assim o objeto. Quando fazemos do objeto um fetiche, simplesmente anulamos a força do ato que lhe deu origem. O fetiche produz um saber sobre o objeto e o gozo. Este saber vem enclausurar a verdade, tentando reequilibrar nosso desamparo diante do mundo. Para a psicanálise, este saber pode ser nomeado como sintoma. O ato de criação vem, portanto, reintroduzir um campo de resistência à força silenciadora deste saber.

Gilles Deleuze (1991)Deleuze, G. (1991). A dobra: Leibniz e o Barroco. Campinas: Papirus. chega à reflexão sobre a existência do corpo por meio de um método que eu nomearia como negativo. É a sombra que revela a existência. "Devo ter um corpo; é uma necessidade moral, uma 'exigência'. Em primeiro lugar devo ter um corpo, porque há o obscuro em mim" (p. 129). Seguimos esta pista do obscuro. Como identificá-lo? Que elementos mínimos precisam estar presentes para percebermos sua presença? O obscuro remete a um campo que dissolve literalmente as imagens e a certeza de um ponto de foco. Como então dar visibilidade ao que é da ordem do obscuro? Neste ponto, a arte tem muito a dizer, pois tal questão está nos fundamentos mesmos de sua função. A arte institui o espaço de uma mediação entre "a coisa" e a imagem. Eliane Robert de Moraes (2002)Moraes, E. R. (2002). O corpo impossível. São Paulo: Iluminuras. no seu ensaio sobre as relações entre corpo e arte lembra a célebre escultura de Man Ray, de 1920, "O enigma de Isidore Ducasse", também chamado de "Objeto desconhecido embrulhado num pano". "Man Ray empacotou uma mesa de dissecação onde se encontravam um guarda-chuva e uma máquina de costura. Inventar um objeto implicava, a princípio, escondê-lo" (p. 15).

O trabalho de Christo, artista búlgaro, que empacota prédios, pontes, objetos e a própria natureza, segue este mesmo princípio. O obscuro metaforizado pela forma atrás do pano revela seu desejo de visibilidade e convoca o olhar. Adquire, portanto, uma certa qualidade de informe - que em maior ou menor grau, todo espaço sem luz possui. Georges Bataille se recusou a definir o informe em seu dicionário. Para ele "se trata de um termo que serve a desclassificar" (citado por Alain-Bois & Krauss, 1996Alain-Bois, Y., & Krauss, R. (1996). L'informe: mode d'emploi. Paris: Centre Georges Pompidou., p. 15). Esta é a atitude fundamentalmente transgressiva na arte: injetar desordem nas classificações.

Entre o campo do que pode a arte e o que não pode a arte encontramos o ato de criação. Todo ato nos coloca diante do obscuro, pois é deste ato que o sujeito pode se ressituar diante do objeto. É o ato que indica a posição do sujeito, a condição de enunciação da obra. Este ato necessariamente produz uma zona de sombra, um intervalo que dissolve nossas intenções e nos faz nascer para o que é horizonte em nós. O obscuro é, portanto, nosso ponto de perspectiva. Toda criação implica uma marca de interdição materializada pelas zonas obscuras. Estamos, assim, diante do que Paul Celan buscava em seus poemas como função do interditar. Celan definia suas poesias como os "cercamentos em torno do sem palavra, sem limites" (citado por Lacoue-Labarthe, 1986Lacoue-Labarthe, P. (1986). La poesie comme experience. Paris: Christian Bourgois., p. 23).

Não há passagem direta da intenção à expressão como sonharia a lógica perversa. Pensar no resíduo, na passagem de um para outro, é fundamental, pois faz obstáculo à arrogância que quer controlar a intenção e colocá-la no mercado de ideias e dos objetos. A arte vem instaurar a descontinuidade que permite que novos sentidos possam se fazer, desde que hajam perguntas. Como muito bem definiu Paul Valéry (1999)Valéry, P. (1999). Primeira aula do curso de Poïética. In Variedades. São Paulo: Iluminuras.: "A obra oferece-nos em cada uma de suas partes o alimento e o excitante ao mesmo tempo. Ela desperta continuamente em nós uma sede e uma fonte" (p. 189).

E o que não pode a arte? Inicialmente poderíamos dizer que não pode suprimir o abismo, o intervalo, a descontinuidade entre a intenção e a expressão. Há uma diferença fundamental entre o sujeito/autor e seu plano de intenções e o ato que o mesmo produz. As estratégias de suturar o intervalo entre autor e obra, minimizando assim o que há de noturno no ato, são assustadoras, e a lógica perversa da burocracia, que regula a vida, goza com isto. Vivemos no império da economia de mercado. Então, diz o consenso: não temos tempo a perder em derivações transcendentais e ainda correndo o risco de uma abstração vazia, pouco "eficiente" e complexa. Mostremos logo o real! Mostremos o corpo do real! É possível mostrar o real de forma direta, sem mediações? De que real estamos falando? O real que ainda faz questão é justamente o que produz um furo no saber. Este furo é o que pode nos deixar com um resto na mão, com um "eu não sei" e que possa instaurar um desejo de saber.

Vamos brevemente examinar uma imagem que me foi sugerida pela leitura do livro de Henri-Pierre Jeudy, O corpo como objeto de arte. Numa primeira cena alguém corta a orelha, embrulha num pequeno pacote e envia para outra pessoa. Em uma segunda cena pinta um autorretrato com o curativo. Será que temos hoje discernimento para diferenciar entre a primeira e a segunda cena? O que faz a diferença? Sem dúvida é a ideia de mediação instaurada pelo ato. A mão não toca no mesmo ponto nas duas cenas. Seria esta ideia de mediação um limite para a arte? Não precisamos ficar capturados no exemplo de Van Gogh para avançarmos nossa interrogação já que ele mesmo situava as duas ações em contextos distintos. Contudo, hoje esta não parece ser uma questão consensual. O que a arte corta? O que não pode cortar? Insisto, portanto, que não pode cortar este lugar de mediação. Jeudy (2002)Jeudy, H. (2002). O corpo como objeto de arte. São Paulo: Estação Liberdade. discorre sobre uma série de exemplos onde identifica um excesso de frenesi exibicionista, nos indagando se não deveríamos ainda guardar algum pudor e angústia diante dos excessos de visibilidade. Haveria uma imagem que é obscena? Gunter Von Hagens, professor e anatomista alemão, disseca (corta) cadáveres em público. Não o faz para estudantes de medicina, mas para o público em geral que lota os espaços de museus de arte e galerias para assisti-lo. Ele inventou uma nova técnica de preservação dos corpos, a plastinação. Trata-se de uma tecnologia científica, desenvolvida no Instituto de Plastinação de Heidelberg e que consiste num processo químico que substitui os fluídos orgânicos do corpo por produtos sintéticos (silicone e resinas) impedindo assim a decomposição das peças anatômicas. A plastinação produz, portanto, um corpo que permanece maleável, mantém sua cor e torna-se inodoro. Vemos aí a obscenidade pela irrupção do espaço íntimo da morte em espaço público. Aponta também o ideal da ciência de tornar tudo visível e transparente. Qual o corpo que está aí em questão? Será que a lição de anatomia de Rembrandt não teria muito mais a nos responder sobre esta pergunta?

A transgressão da arte interrompe o fluxo dos circuitos automáticos, abrindo outros espaços de significantes que nos ajudam a desenhar outras geografias de mundo.

  • Adorno, T. (1980). Minima Moralia - réflexions sur la vie mutilée. Paris: Payot.
  • Alain-Bois, Y., & Krauss, R. (1996). L'informe: mode d'emploi. Paris: Centre Georges Pompidou.
  • Bataille, G. (1987). O erotismo. Porto Alegre: LPM.
  • Bhabha, H. (1998). O local da cultura. Belo Horizonte: UFMG.
  • Deleuze, G. (1991). A dobra: Leibniz e o Barroco. Campinas: Papirus.
  • Duchamp, M. (1975). O ato criador. In G. Battock (Org.), A nova arte. São Paulo: Perspectiva.
  • Dunker, C. (2010). A perversão nossa de cada dia. Revista Cult, São Paulo, 13(144), 42-46.
  • Freud, S. (1981a). O poeta e os sonhos diurnos. In Obras Completas. Madrid: Biblioteca Nueva. (Trabalho original publicado em 1908).
  • Freud, S. (1981b). Los origenes del psicoanalisis - Cartas a Wilhelm Fliess. In Obras Completas. Madrid: Biblioteca Nueva. (Trabalho original publicado em 1950).
  • Jeudy, H. (2002). O corpo como objeto de arte. São Paulo: Estação Liberdade.
  • Kangussu, I. (1999). Walter Benjamin e Kant: inexprimível - a herança do sublime na filosofia de Walter Benjamin. In M. Selligmann (Org.), Leituras de Walter Benjamin. São Paulo: Annablume.
  • Lacan, J (1988). O seminário. Livro XI. Os quatro conceitos fundamentais em psicanálise. Rio de Janeiro: Jorge Zahar. (Trabalho original publicado em 1964).
  • Lacoue-Labarthe, P. (1986). La poesie comme experience. Paris: Christian Bourgois.
  • Lima, L. (1996). A dignidade da poesia. São Paulo: Ática.
  • Matta-Clark, G. (2010). Desfazer o espaço. São Paulo: Museu de Arte Moderna de São Paulo.
  • Moraes, E. R. (2002). O corpo impossível. São Paulo: Iluminuras.
  • Passeron, R. (2001). Por uma poïanálise. In E. Sousa, E. Tessler, A. Slavutzky (Orgs.). A invenção da vida - arte e psicanálise. Porto Alegre: Artes e Ofícios.
  • Valéry, P. (1999). Primeira aula do curso de Poïética. In Variedades. São Paulo: Iluminuras.
  • Citação/Citation: Sousa, E. L. A. de. (2014, setembro). A transgressão que salva. Revista Latinoamericana de Psicopatologia Fundamental, 17(3-Suppl.), 787-796.
  • Editor do artigo/Editor: Prof. Dr. Manoel Tosta Berlinck
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    Trabalho apresentado no Colóquio Internacional sobre a Metapsicologia da Perversão. Laços Sociais da Perversão, realizado em Recife, PE. nos dias 26, 27 e 28 de agosto de 2013.
  • Financiamento/Funding: O autor declara não ter sido financiado ou apoiado / The author have no support or funding to report.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Jul-Sep 2014

Histórico

  • Recebido
    15 Mar 2014
  • Aceito
    15 Abr 2014
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