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Esboço de psiquiatria forense

HISTÓRIA DA PSIQUIATRIA

ENSAIO

Esboço de psiquiatria forense* * Franco da Rocha, Francisco. Esboço de Psiquiatria Forense. São Paulo: Laemmert, 1904. A ortografia do texto foi atualizada; as notas de rodapé são de Franco da Rocha. Seleção dos trechos e revisão de Francis Moraes de Almeida.

Francisco Franco da Rocha

Primeiro Fragmento (páginas 1 a 5)

Alienação Mental

Todo o esforço para definir a loucura tem sido baldado. Traçar a linha divisória entre a razão e a loucura é tarefa inexeqüível no estado atual das ciências médicas. Com clareza inexcedível já mostrou Maudsley que entre a razão e a loucura há uma zona de gradações tão sutis, que impedem a limitação justa – tal seria a definição – entre um e outro estado.

Há indivíduos, e contam-se por legiões, que não são declaradamente loucos nem de mentalidade perfeitamente normal: são os degenerados que, gradativamente, sem linha bem-definida, estabelecem a transição entre o louco e o são de espírito.

Para as aplicações das leis, são eles um verdadeiro escolho.

O maior número de casos difíceis, realmente, é fornecido pela degeneração nas suas múltiplas variedades – histeria, epilepsia, paranóia simples, loucura moral, obsessão e impulsão, dipsomania, prodigalidade, perversões sexuais etc.; – mas outros casos ainda, fora da degeneração, apresentam dificuldades na aplicação das leis. Certas lesões orgânicas, sejam ou não incluídas entre as alterações da involução senil, que trazem consigo alteração, às vezes de um único elemento psíquico, da memória por exemplo, não são menos capazes de criar embaraços aos médicos chamados para auxiliar aos juízes, quer no foro criminal, quer no cível.

A palavra loucura tem significação muito limitada e não abrange hoje os casos em que a lei deve ter aplicação.

Para o objetivo deste livro é de conveniência procurar estabelecer a diferença entre alienação mental e loucura. Basta lembrar que alienação mental é um termo mais geral, que abrange a loucura; podemos, portanto, empregar o termo alienação significando loucura, porém não o inverso.

Para nós, a alienação é uma perturbação ou anomalia, temporária ou perpétua, das relações normais preestabelecidas entre um indivíduo e o seu meio social, resultante sempre de um estado patológico ou teratológico do cérebro.

Às expressões perturbação e anomalia correspondem respectivamente as expressões temporária e perpétua, como também os estados patológico e teratológico. Por temporária se deve entender tanto a perturbação de alguns momentos como a de muitos meses.

É preciso notar a restrição do meio social, porque um ato que é loucura no Brasil pode não o ser na China. Deve-se atender ao meio em que se desenvolveu o indivíduo submetido a exame. Não é sem fundamento esta observação. O exemplo é fácil: se um homem de espírito cultivado atribuir qualquer insucesso de sua vida à feitiçaria e procurar conjurá-la por meio de rezas, chamará sobre si suspeitas de loucura; se o fato se der com indivíduo rústico, ignorante, essa suspeita será fútil, porque no raciocínio de tal indivíduo essas idéias nada têm de extraordinário.

Nas diversas camadas de que se compõe uma sociedade civilizada se acham representadas as três fases da evolução mental desde o fetichismo até o estado científico, sendo os representantes da fase positiva um mínimo em comparação com os outros.

Na fase metafísica os representantes são em maior número que na positiva, mas ainda assim resumidos em comparação com o número dos representantes da fase teológica, que são a quase totalidade.

Tem sua importância este conhecimento, como a pouco vimos, e Eugène Sémérie,1 1 Thèse pour le Doctorat. Des symptomes intellectuals de la folie. Paris, 1867. num trabalho inspirado pelas doutrinas de A. Comte, demonstra que um dos primeiros sinais de fraqueza cerebral é o pronto regresso da mentalidade a uma fase inferior àquela em que se achava o paciente. Há no estado de loucura, diz ele, um regresso ao teologismo.

No Hospício de Alienados de São Paulo, temos visto o regresso chegar ao fetichismo. Não é só na loucura; em qualquer sofrimento profundo, a tendência a voltar ao teologismo é facilmente observável. Na loucura a volta ao fetichismo é um fato mais comum do que parece.

É este um ponto de vista social, necessário na apreciação da loucura, e que foi bem frisado pelos positivistas. Sem esta concepção seria fácil confundir ignorantes com loucos.

Quer na esfera dos sentimentos, quer na da inteligência, bem reconhecemos que, infelizmente, há muito de vago e indefinido na expressão relações normais preestabelecidas; mas, apesar de sua latitude, há sempre meios de averiguar se há ou não um desvio de tais relações, revelador de moléstia ou má conformação cerebral, que possa ser prejudicial ao próprio indivíduo ou ao seu meio social. Dentro dessa definição caem os criminosos de certa categoria. Foi mesmo o estudo da psiquiatria que levou Lombroso a revolucionar o Direito Penal, tão estreitas se mostram as relações entre alienados e criminosos. Seja ou não aceita por completo a concepção de Lombroso, ele conseguiu imprimir nova direção ao estudo do Direito Criminal, chamando a atenção dos juristas diretamente para o indivíduo delinqüente, estreitando as relações entre os juristas e os psiquiatras, criando um novo ramo comum de estudos – a Antropologia Criminal. Esta se encontra com a psiquiatria num terreno neutro, vasto, onde as duas disciplinas se confundem. Representa bem esta intimidade de estudos o jornal dirigido por Lombroso, Archivio di Psichiatria, Scienze Penal ed Antropologia Criminale.

Quando o criminoso apresenta uma anomalia mental de qualquer espécie (seja ou não simulada) cai na alçada da psiquiatria; constitui ela o objeto das relações da Medicina com o Direito Penal. Se um indivíduo sofre uma anomalia mental e o Direito tem de protegê-lo e garantir os seus bens, para ele ou para a família, a psiquiatria é chamada para verificar essa anomalia, que é objeto das relações entre o Direito Civil e a Medicina. Acidentalmente, em outras circunstâncias também a psiquiatria pode ser chamada, para dar esclarecimentos em juízo.

A esfera da Psiquiatria Forense é exatamente determinar a existência ou não existência desse estado mórbido cerebral, a fim de poder o juiz, de acordo com a opinião dos peritos psiquiatras, aplicar as determinações dos códigos.

Não há dificuldade alguma em verificar um caso de loucura de caráter difuso, geral, com perturbação bem-acentuada em todos os componentes da mentalidade. Nem são mesmo esses os casos que se apresentam mais freqüentemente a exames por exigências jurídicas; encontram-se mais vezes os casos intrincados em que, a par da lógica aparente do doente, a sua conduta desperta suspeitas de insanidade mental.

Nenhuma enfermidade se apresenta ao médico tão rodeada de complicações e interpretações difíceis como a loucura. Basta lembrar que as aquisições mais importantes da fisiologia do cérebro têm sido fornecidas pela anatomia patológica deste órgão.

Segundo Fragmento: sobre a psiquiatria forense em matéria criminal

(páginas 167 a 174)

Passando às questões criminais, não somos mais felizes. A mais justa das concepções da nova escola penal – basear o direito de punir na defesa da sociedade, julgar, portanto, o delinqüente pela sua temibilidade – ainda é uma simples aspiração – isso mesmo para uma parte dos juristas atuais. Os códigos ainda são inspirados pelas velhas doutrinas do Direito Criminal.

Na prática, vemos a todo o momento apelarem os advogados para o estado de mal epiléptico, manifestado por seu equivalente psíquico, como dirimente da responsabilidade criminal. O resultado é um absurdo inqualificável: o júri reconhece a irresponsabilidade, e volta para o seio da sociedade um indivíduo que se acha em condições de assassinar a A ou B, em plena rua, sem motivo algum. Eis aí o que dispõe o nosso Código Penal. Da vítima ninguém mais se lembra. É uma lástima este estado de coisas!

Se se trata de um caso de loucura que não tem intermitência, que apresenta marcha contínua, crônica, pode se dizer que é uma felicidade – sob o ponto de vista social, já se vê. Neste caso, o Código manda recolhê-lo a uma casa de tratamento de loucos e aí fica ele o resto da vida: a sociedade está protegida. Mas não é isto o que se dá sempre; só se observa este fato numa parte dos casos. Os exemplos não faltam, como veremos adiante. O direito de punir ainda está entendido como castigo e não como defesa da sociedade. É esta a causa do mal.

Castigar ou tentar corrigir a criminosos que tenham praticado atos puníveis em conseqüência de moléstia será realmente incompreensível, porque nesses casos o ato criminoso tem o caráter de um desastre. Entretanto, ninguém nega que é preciso remover a causa do desastre, para que ele se não repita. E tão evidente o é, que dispensa demonstração. Os fatos, porém, aí estão para indicar que há necessidade de se chamar para eles a atenção dos poderes competentes.

A lei inglesa é, respectivamente, muito prática e muito criteriosamente trata de defender a sociedade. Por essa lei (Act to Amend the Law respecting the Trial and Custody of Persons charged with offenses – de 25 de agosto de 1883) tem o júri que responder: 1º, se o acusado praticou o crime; 2º, se estava em estado de insanidade mental quando o praticou. Reconhecido o crime e a irresponsabilidade do delinqüente por insanidade mental, o Tribunal (the Court) mandará pôr o acusado em segurança, à disposição de sua Majestade "till Her Magesty's pleasure shall-be know". Se por acaso o criminoso for posto em liberdade sob certas condições, ainda assim ficará sujeito a voltar de novo à prisão, desde que as condições não tenham sido satisfeitas. Isto, porém, é raríssimo; a frase "till Her Magesty's pleasure" já é conhecida como condenação perpétua. O júri, neste caso, não serve para isentar um criminoso e deixá-lo de novo no seio da sociedade, como um perigo; pronuncia o seu veredicto – "guilty, but insane", e o juiz sabe o que deve fazer.

Uma série de casos importantes deu lugar a discussões sérias e demoradas, em épocas diversas sobre esse importante assunto, tendo resultado do estudo dos legisladores ingleses a lei acima citada, de 1883. Lá se trata de averiguar: 1º, se o indivíduo acusado é ou não criminoso; 2º, no caso afirmativo, se é ou não passível de punição legal, e é esta a significação da palavra – responsabilidade – em questões criminais. Verificado que não é responsável, é posto em lugar seguro. A lei admite que o indivíduo seja criminoso e ao mesmo tempo irresponsável.

O Código Penal brasileiro diz:

Artigo 27 – Não são criminosos:

§3º Os que por imbecilidade nativa, ou enfraquecimento senil, forem absolutamente incapazes de imputação;

§4º Os que se acharem em estado de completa privação de sentidos e de inteligência no ato de cometer o crime;

§7º Os surdos-mudos de nascimento, que não tiverem recebido educação nem instrução, salvo provando-se que obraram com discernimento.

Artigo 29 – Os indivíduos isentos de culpabilidade em resultado de afecção mental serão entregues às suas famílias, ou recolhidos a hospitais de alienados, se o seu estado assim exigir para segurança do público.

Sobre este artigo temos uma observação a fazer, que vem justificar brilhantemente a lei inglesa, quando exige do júri as duas respostas: 1º, se o acusado é criminoso; 2º, se é passível de punição legal.

Dado o caso do acusado responder ao júri em período de saúde aparente, tendo cometido o delito em condições mentais que dirimem a sua responsabilidade (fato este freqüente em certas formas de alienação mental, por exemplo, a epilepsia) perante o nosso código, ele não é criminoso; pela lei inglesa ele é criminoso e, como conseqüência, tem responsabilidade, não penal, mas responsabilidade social pelo perigo que oferece. Praticamente está preenchido, neste terreno, o pensamento da nova escola penal. Dado este caso, repetimos, não compete ao juiz indagar se o delinqüente oferece perigo público, antes de pô-lo em liberdade segundo o veredicto?

O juiz ficaria assim a coberto de censuras. Seria, na verdade, mais um encargo pesado aos médicos peritos, que tomariam a si a responsabilidade, caso julgassem o delinqüente em condições de viver na sociedade.

Hoje, se o perigo social é denunciado e a polícia toma medidas preventivas, o indivíduo requer habeas-corpus. Se o paciente é submetido a prolongado exame pericial, de 5, 6 e mais meses, será posto em liberdade se durante esse tempo não tiver apresentado perturbação alguma. Aí está o perigo iminente, até para o próprio médico que julgou perigoso o paciente.

Se o artigo 29 fosse mais severo; se estabelecesse que todos os acusados dessa espécie fossem indistintamente internados em hospícios, até que os médicos dessem parecer por escrito, declarando-os incapazes de cometer outro crime por loucura, não haveria odiosidade alguma contra esta ou aquela pessoa, por se tratar de um efeito da lei. Isso, porém, é o que não se dá atualmente. O médico que declarar perigoso o paciente, para livrar a sociedade de suas ameaças, chamará sobre si a sociedade de suas ameaças, chamará sobre si a odiosidade, e talvez até arrisque a própria vida.

Outra medida complementar se torna necessária para que vigore este artigo convenientemente: a organização de um manicômio especial para os indivíduos que nele incidirem.

O §3º do artigo 27 abrange casos completamente diversos, tais são a imbecilidade nativa e o enfraquecimento senil. Realmente, a imbecilidade nativa colhe um grande número de criminosos alienados, incluindo-se entre eles os idiotas; pois com toda a certeza foi essa a intenção de quem deu aquela expressão ao Código.

Inútil de todo é o §7º, porque o surdo-mudo que não recebeu educação nem instrução está nas condições exatas do idiota ou do imbecil.

O legislador, usando das expressões "enfraquecimento senil", dá margem a dúvidas que não existiriam se tivesse empregado as expressões demência senil. Certamente foi essa a sua intenção; porque pode haver enfraquecimento senil (e muitos são os casos) sem demência senil, coisa que, na aplicação das leis civis, apresenta sérios embaraços ao perito psiquiatra.

O §4º encerra um absurdo quanto ao estado de completa privação de sentidos e de inteligência. Esse estado é, em suma, o estado comatoso. O professor dr. Souza Lima, que criticou seriamente o Código Penal, diz no seu Tratado de Medicina Legal, página 378: "Depois que escrevi o artigo da Revista dos Cursos da Faculdade, em que tratei deste assunto, soube do ilustre autor do Código Penal vigente que privação está aí em vez de perturbação, e assim, retifico, por prejudicada, a crítica que fiz sobre a impropriedade daquela palavra".

Não podemos compreender como, num código, se possa empregar uma palavra por outra tão diversa ... Mesmo com aquela emenda, seria preferível a expressão do velho código, substituindo-se apenas a palavra loucos pelo termo alienados, que melhor corrigiria o artigo 27, §4º, dispensando os §3º e §7º, muito melhor que a correção apresentada em seu livro pelo ilustre professor de Medicina Legal. Diria então o artigo 27 – os alienados de todo o gênero – evitando assim interpretações psicológicas sobre o valor das expressões consciência, juízo, raciocínio etc., que se prestariam a toda a espécie de discussões bizantinas.

O artigo 42, §10º dá como circunstância atenuante: "Ter o delinqüente cometido o crime em estado de embriaguez incompleta, e não procurada como meio de o animar à perpetração do crime, não sendo acostumado a cometer crimes nesse estado".

A respeito da embriaguez diremos alguma coisa na parte especial. Por enquanto fique, porém, notada a péssima influência que esse artigo pode exercer como incentivo para o abuso do álcool. Tornem-se criminosos o bêbado e qualquer indivíduo, que tenha prestado bons serviços à sociedade, e o legislador os emparelha. É o que se conclui dos §§ 9º e 10º. Não se trata aí da dipsomania, já prevista em outro artigo. Trata-se do bêbado comum, que se embebedou porque quis, visto saber que o álcool produz esse efeito.

Não diremos que se vá até considerar a embriaguez como circunstância agravante; mas achamos despropositado que um vício condenável sirva de atenuante.

O dr. Alcântara Machado sustenta doutrina infensa, ao nosso modo de ver, fundamentando sua opinião na noção de justiça. É uma opinião simpática, mas platônica; só traz desvantagem à sociedade que, custe o que custar, precisa é de se defender, não de castigar. Por conseqüência, o Código Penal poderia com grande proveito suprimir o § 10º do artigo 42. Não se deve esquecer que no subconsciente de quase todo o mundo a noção de embriaguez implica a de irresponsabilidade. É preciso que se implante bem fundo em todas as consciências que a embriaguez não é atenuante de nenhum crime. Disso consciente, não conseguirá o espírito paralisar a mão que empunha o copo? Sim, e por muitas e muitas vezes. Atualmente a noção dominante é esta: eu estava bebendo quando fiz isso; não sabia o que fazia.

Vejamos agora um exemplo de relatório pericial motivado por crime de morte.

Relatório médico-legal sobre o estado das faculdades mentais de S. elaborado pelos doutores F. e M., médicos pela Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro.

S., de 35 anos de idade, branco, estrangeiro, nascido em B., casado, negociante, residente em ... há 5 anos.

Histórico:

Tendo ele poucos parentes neste país, recorremos a todos eles para obter as informações que aqui vamos expor. Tem um tio louco, do lado paterno; tem uma irmã louca, que ainda existe na sua pátria. O paciente informa, e confirmam os parentes, que sofre, desde a infância, ataques ou acessos de raiva quando o contrariam, e mesmo por motivo fútil, chegando algumas vezes a perder de todo a consciência (perder a cabeça – segundo a sua própria expressão).

Diz ter tido moléstias venéreas, provavelmente não sifilíticas, pensamos nós, porque não encontramos nele sinais positivos de tal infecção. Entre os fatos notáveis de sua vida anterior, destaca-se o caráter tristonho, seco, sem expansão na conversa. Foi sempre assim. Seus sócios de comércio o encarregavam sempre de serviços em que não se desse o seu contato com a freguesia, afastando assim a oportunidade de explosões coléricas, fato que mais de uma vez se dera e era freqüentíssimo na intimidade da família. Nessa intimidade, a família já o conhecia tanto que evitava contrariá-lo certos dias, quando a sua irritabilidade denunciava perigo de explosão colérica. Esta informação coincide com a do carcereiro, que declara ter visto o paciente em acessos de furor cego, por motivos fúteis, e mesmo sem motivo algum, contra companheiros de prisão, sendo fora disso um bom homem.

Uma vez atirou-se como um tigre contra um companheiro que, sem maldade alguma, lhe tirou um garfo do prato. Outra vez, sem o menor motivo, correu precipitadamente para um outro preso, cobrindo-o de murros, voltando depois a si, algum tanto espantado, sem saber explicar o que fizera. Na noite de seu casamento, sem motivo que o justificasse, no jantar de bodas, tomou bruscamente um lampião de sobre a mesa e arremessou-o no meio da sala, fazendo um estardalhaço terrível, que cessou sem que se chegasse a saber qual o motivo que o provocara.

Sofreu sempre, e ainda sofre, de repetidas cefaléias.

Informam que costuma apresentar-se com epistaxe depois das grandes dores de cabeça ou dos acessos coléricos. Informa o próprio paciente que é sonâmbulo, isto é, que se levanta à noite, sem consciência disso, passeia pela casa, agitado, fato que tem ocasionado sustos a sua esposa; estes acidentes lhe têm sido revelados pela própria esposa, que confirma a informação.

Exame antropométrico:

Exame somático atual:

Cabeça malconformada, face assimétrica; tem no meio da fronte, quase na linha de limite com o couro cabeludo, uma depressão de forma irregular; apresenta uma cicatriz linear ao nível da extremidade externa da pálpebra esquerda; uma pequena cicatriz irregular acima do punho posterior; uma cicatriz irregular no maxilar direito; no antebraço direito, acima do punho, face posterior, uma tatuagem representando São Jorge e, abaixo, um leão com a espada na mão; tem as cartilagens do nariz numa disposição congênita disforme. [Segue descrição do exame oftalmológico com ilustração representando o campo visual].

Nada revelam de anormal a auscultação e o exame dos outros órgãos. Os reflexos patelares são exagerados. O exame da sensibilidade acusa embotamento da sensibilidade tátil em pontos diversos, principalmente nos punhos e nos flancos. Apresenta no dorso, ao nível das omoplatas, cicatrizes lineares antigas e muito regulares, como sarjaduras. Informa o examinando que tais golpes foram feitos para o curar dos ataques de que sofria desde criança. Tem os bordos da língua irregulares, cheios de sinais, que não são cicatrizes, mas impressão de dentes – defeituosamente implantados.

Exame psíquico:

É um indivíduo de educação mental muito deficiente. Sabe ler e escrever apenas o estritamente necessário; fala mal o português. Homem de aspecto sorumbático, tristonho, responde ao que se lhe pergunta com certa secura, sem expressão na conversa. Mostra ignorar tudo que diz respeito ao ato criminoso que lhe é imputado. Memória, regular em tudo o mais, bem como a atenção. Não tem alucinações nem ilusões. A associação de idéias, normal. Quanto aos sentimentos afetivos, sabemos que é muito ciumento e excessivamente irascível, até por motivos fúteis.

A sua negação relativamente aos tiros de revólver é de interpretação dificílima; tanto pode ser negação consciente, proposital, como verdadeira amnésia. Dos depoimentos consta que pela esposa fora ele retirado de uma luta de corpo a corpo com a vítima, tendo corrido imediatamente para a casa, de onde voltara armado e disparara tiros. O fato da fuga imediata não implica, entretanto, a consciência perfeita do ato praticado, porque há casos em que a fuga se dá nessas condições sem ter o indivíduo conhecimento exato do que está praticando. Essa fuga, portanto, nada esclarece quanto ao estado de consciência de S. naquele momento.

Não é esse o primeiro crime de S. No fórum há outro processo por tentativa de morte, em que ele, por motivo fútil, disparou cinco ou seis tiros de revólver contra um negociante.

Em seu país, informa um seu patrício, praticara tais desatinos, que a família tinha sérios receios dele. Com a sua vinda para o Brasil, a família se libertou de contínuos sobressaltos.

Do que fica exposto, isto é, das informações obtidas e do exame do paciente, concluímos, com bons fundamentos, que se trata de um degenerado impulsivo, um epilético de forma psíquica. Entendemos por esta expressão um indivíduo que manifesta uma tara cerebral, que é sujeito a descargas nervosas intermitentes, desordenadas, a alucinações, com abolição do poder inibitório dos centros cerebrais superiores, e com predomínio e excitação violenta dos centros encefálicos inferiores.

São os seguintes os fundamentos de que tiramos a conclusão supra: 1º os antecedentes hereditários do paciente, isto é, os parentes loucos; 2º os antecedentes próprios, os ataques que tem tido desde a infância, de cujo tratamento lhe ficou indelével sinal; 3º os estigmas físicos acentuados, dentre os quais se destaca a astenopia e o estreitamento do campo visual, que embora mais comum nos histéricos, como se vê na estatística de Parinaud, feita no serviço de Charcot na Salpetrière, é no entanto um estigma próprio dos degenerados, estigma que também se encontra na epilepsia física, podendo dar-se como prova a excelente observação de Codeluppi,2 2 Vide Archivio di Psichiatria ed Antropologia Criminale de 1896. o estudo do professor Ottolenghi,3 3 No mesmo Archivio (de 1895). sob o título A propósito di nuove ricerche sul campo visivo di passi morali, o testemunho de Otto Schwars,4 4 Em seu livro Die Bedeutung der Augenstörungen für die Diagnose der Hirnkrankheiten, página 98. e o de Luigi Roncorono em seu Trattato dell'epilessia; 4º o embotamento parcial da sensibilidade tátil; 5º o seu estado afetivo habitual – sorumbático, desconfiado, irascível e violento; 6º seus dias de mau humor e explosão colérica não motivada, fato verificado no dia do casamento e até na prisão, ainda há bem pouco tempo; 7º o fato de ter tido uma briga pouco antes de dar os tiros. Todos os que conhecem intimamente os epiléticos sabem a influência extraordinária que tem o estado emotivo da raiva sobre a explosão dos acessos; é um conhecimento banal nos hospícios. Diante deste conjunto de sinais tão importantes, parece inegável o diagnóstico de degenerado impulsivo, vítima de acessos agressivos violentos, ou, mais resumidamente, epilepsia psíquica.

Banimos a idéia de simulação, porque justamente essa forma da epilepsia é a menos conhecida (não falando entre médicos), a menos própria para simulação; além disso, no conjunto apresentado há sinais que excluem a simulação: os estigmas somáticos.

A ausência de um ataque completo da epilepsia comum em nada infirma o diagnóstico. Em grande número de indivíduos esses ataques não existem, e só se manifestam os equivalentes epiléticos. Este fato verificamo-lo nós diariamente no Hospício, onde observamos dezenas de tais doentes.

Passamos a responder aos quesitos apresentados:

1º S. é um espírito normal ou é uma vítima de qualquer degenerescência?

R – É um degenerado.

2º Qual o gênero de anormalidade do espírito?

R– É um impulsivo, vítima de acessos de cólera furiosa, em que perde a consciência durante pouco tempo, mesmo por motivos fúteis.

3º Influi isto sobre seu caráter, alterando a determinação de seus atos?

R – Sim.

4º O seu desequilíbrio de espírito permite-lhe, nas ocasiões de crise, o domínio da vontade?

R – Não.

5º Em tais casos a sua inteligência funcionará e os seus sentidos levarão ao espírito, pela impressão, a imagem real das coisas?

R – Não.

6º Preso da degenerescência que o afeta, S. pode ter, nos acessos, perfeita consciência de atos praticados?

R – Não.

É nosso parecer, que assinamos,

São Paulo, ... de 1903.

Dr. F.; Dr. M

Este indivíduo teve acessos de cólera na própria sessão do júri, quando o promotor o acusava.

Eis aqui um caso típico para frisar a falta de concordância entre o progresso científico que, de tempos a esta parte, vem reconhecendo certos criminosos como verdadeiros doentes, e o modo de proceder para com eles, modo que não acompanha o progresso. Se a temibilidade deste criminoso, tão clara e evidente como se mostra, fosse o critério para o seu julgamento, não seria preciso que os dignos promotores públicos se esfalfassem, como alguns com razão o fazem hoje, para obter a condenação de um doente. O órgão da justiça pública procede muito corretamente tentando, pela eloqüência, obter a condenação de tais indivíduos, porque se tal não o fizer, a sociedade não terá proteção alguma da justiça. Quando ele assim não procede, concorre para o disparate que todos temos visto: dá-se liberdade a um assassino inconsciente, que pode cometer outro assassinato porque... porque é inconsciente! A dissonância é por demais sensível entre os progressos da medicina legal e a defesa a que a sociedade tem direito, e que lhe não é dada pelas leis. Os médicos peritos não podem mentir à sua consciência, declarando responsáveis tais criminosos. Eles dizem o que a ciência ensina. Os juízes, porém, não sabem servir-se do artigo 29 senão nos casos de loucura contínua e espetaculosa, quando, no entanto, esse artigo lhes abre a porta a um procedimento corretíssimo.

Se eles confiam nos peritos para indagar se o criminoso é ou não doente, por que não lhes confiar também o encargo de verificar se o mesmo é ou não perigoso à sociedade?

Interrogado neste sentido, o perito exigiria longo tempo, ou tempo indeterminado, de observação num hospício de alienados criminosos, anexo à penitenciária, ou num asilo comum, até que existisse o hospício especial; e no fim de um, dois ou três anos, teria ciência perfeita da índole do doente, e poderia então responder se ele era ou não perigoso à sociedade. Tudo isso pode ser feito já. O nosso código não é tão atrasado, pois prevê o caso, embora um tanto timidamente.

O paciente estrangeiro poderia ser entregue à família, sem inconveniente algum, com a condição de não permanecer no país. Haveria nisso uma dupla vantagem, e sem violência alguma, porque seria uma escolha entre a reclusão, num lugar estranho, e a liberdade em sua pátria ou em outro qualquer país; seria, ao mesmo tempo, uma carga de menos para o Estado.

Terceiro Fragmento (páginas 207 a 211)

Classificação das moléstias mentais

Estabelecer uma classificação em psiquiatria é traçar um método de estudo sempre artificial, enquanto este ramo da medicina não estiver assente em base sólida e uniforme.

A noção fisiológica da evolução cerebral, de que se serviram Magnan, Schüle e outros, é muito boa sob o ponto de vista geral, e permite a divisão das moléstias mentais em duas grandes classes, bem-distintas nos extremos. Mas nenhum critério há para marcar o fim da primeira classe e o começo da segunda.

A predisposição, hereditária ou não, domina em todo o campo da patologia mental. Na gravidade progressivamente crescente dessa predisposição, da excitação maníaca, por exemplo (como psiconeurose de um cérebro que chegou ao grau normal de evolução), até à imbecilidade inferior que, por sua vez, se confunde com a idiotia; nessa série, perguntamos, qual o critério para se julgar se o doente é da primeira ou da segunda classe? A separação entre uma e outra é uma violência que cria embaraços.

A classificação que ora adotamos é a mesma do professor Teixeira Brandão, com pequenas modificações que não são essenciais, mas que melhor se acomodam à noção prática que nos vem de quinze anos de observação.

Cada nova classificação que se estabelece é um embaraço oposto aos trabalhos de conjunto, necessários de tempos em tempos para se apurar o material colhido neste estudo ainda tão eriçado de dificuldades.

Por isso muito hesitamos antes de modificar a classificação do nosso mestre, classificação que nos serviu até o presente.

Facílima é a correspondência entre uma e outra; não há, portanto, grande perturbação. Não nos passa pelo espírito a pretensão de a supor livre de objeções; é tão sujeita como as outras. Uma das maiores dificuldades para a classificação é a existência, em clínica, de tipos mistos e de transição, bem como a coexistência de diversas formas no mesmo indivíduo.

O tipo nítido, destacado, não é o mais freqüente em moléstias mentais.

Classificação

1ª Classe

1º Grupo

Perturbações desenvolvidas em cérebros que atingiram ao grau normal de evolução.

Têm por caráter fundamental uma perturbação afetiva. São curáveis, e não produzem modificação estrutural do cérebro, salvo nos casos de muito acentuada predisposição, casos em que terminam por um enfraquecimento psíquico secundário. São também encontradas como parte do complexo sintomático de outras afecções distintas.

2º Grupo

Perturbações agudas, consecutivas a intoxicações de origens diversas, e atuando sobre um cérebro inválido; perturbações graves da nutrição.

3º Grupo

Incluímos aqui as formas que, em nosso modo de ver, estabelecem transição entre a 1ª e a 2ª classes; há grande predisposição lunática, sem que haja propriamente degeneração caracterizada por sinais físicos e psíquicos desde a infância. Já dissemos que esta separação é muito artificial e só feita em atenção a alguns doentes que não são positivamente degenerados, no sentido usual deste termo. A prova de que é artificial está nos inúmeros casos de degenerados que se apresentam com essas formas. Esta classificação se presta a objeções, como todas as outras.

Catatonia

Delírio sistematizado crônico progressivo (tipo de Magnan)

2ª Classe

Loucuras dos cérebros francamente degenerados

Loucura moral

Neurastenia

Histeria

Epilepsia

Demência paranóide

Hebefrenia

Imbecilidade

Grupo Demencial

Lesões cerebrais grosseiras

Este grupo separa-se inteiramente dos outros por apresentar um sinal característico: demência mais ou menos acentuada, conseqüente a lesões grosseiras do órgão psíquico, difusas ou em foco. Tais formas podem ser vistas em indivíduos perfeitamente livres de taras hereditárias. Pertencem a este grupo as intoxicações e infecções crônicas, que só apresentam sintomas psíquicos depois de lesarem o cérebro.

Francisco Franco da Rocha (1864-1933)

Natural de Amparo, São Paulo, fez sua formação na Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro, sob os auspícios de Teixeira Brandão. Fundou a instituição que seria conhecida como Hospício de Juquery em 1898 e a dirigiu até 1923. Foi o primeiro professor de Neuropsiquiatria da Faculdade de Medicina de São Paulo (1918-1923) e um dos membros fundadores da Sociedade Brasileira de Psicanálise (1927).

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    Franco da Rocha, Francisco.
    Esboço de Psiquiatria Forense. São Paulo: Laemmert, 1904. A ortografia do texto foi atualizada; as notas de rodapé são de Franco da Rocha. Seleção dos trechos e revisão de Francis Moraes de Almeida.
  • 1
    Thèse pour le Doctorat.
    Des symptomes intellectuals de la folie. Paris, 1867.
  • 2
    Vide
    Archivio di Psichiatria ed Antropologia Criminale de 1896.
  • 3
    No mesmo
    Archivio (de 1895).
  • 4
    Em seu livro
    Die Bedeutung der Augenstörungen für die Diagnose der Hirnkrankheiten, página 98.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      23 Jul 2008
    • Data do Fascículo
      Mar 2008
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