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Narrativas imaginativas na sala de análise. W. Bion, Antonino Ferro, Thomas Ogden e Mia Couto

Imaginative narratives in the doctor’s office. Wilfred Bion, Antonino Ferro, Thomas Ogden and Mia Couto

Récit d’imagination dans la salle de consultation.Wilfred Bion, Antonino Ferro Thomas Ogden et Mia Couto

Narración imaginativa durante la consulta. Wilfred Bion, Antonino Ferro Thomas Ogden y Mia Couto

Imaginäre Erzählungen in der psychoanalytischen Praxis. Wilfred Bion, Antonino Ferro, Thomas Ogden und Mia Couto

在咨询室里的想象性叙述,Wilfred Bion,Antonino Ferro Thomas Ogden 和Mia Couto

Resumos

O artigo apresenta alguns conceitos de Bion, tais como: função α, elemento α, pensamento onírico da vigília, fato selecionado e reverie, a partir das expansões de dois psicanalistas contemporâneos: Antonino Ferro e Thomas Ogden. O conceito de derivado narrativo de Ferro é colocado em destaque como uma expressão privilegiada na sessão analítica do pensamento onírico da vigília. Finalizo o texto com uma interlocução com o conto de Mia Couto, de modo a iluminar os conceitos apresentados, em articulação com o ofício do analista, que é comunicar e transformar as experiências emocionais; a imagística das interpretações narrativas é acesso privilegiado ao pensamento onírico da vigília.

Função α; pensamento onírico da vigília; reverie; derivado narrativo


This paper presents some of Bion’s concepts, such as α function, α element, daydream thought, selected fact and reverie, based on the expansions of two contemporary psychoanalysts – Antonino Ferro and Thomas Ogden. Ferro’s concept of narrative derivative is highlighted as a privileged expression in the session that analyses daydream thought. The paper closes with a dialogue using a tale by Mia Couto, in order to clarify the concepts presented, in articulation with psychoanalysts’ work, which is to communicate and transform emotional experiences; the images of narrative interpretations are a privileged access to daydream thought.

α function; daydream thought; reverie; narrative derivative


Cet article présente quelques uns des concepts de Bion, tels que la fonction α, l’élément α, la pensée onirique de l’état de veille, le fait sélectionné et la rêverie, à partir des développements de deux psychanalystes contemporains : Antonio Ferro et Thomas Ogden. La notion de dérivé narratif de Ferro est mis en relief comme expression privilégiée dans la session analytique de la pensée onirique de l’état de veille. L’article termine par un dialogue avec le conte de Mia Couto, de façon à mettre en lumière les notions présentées, en rapport avec le cabinet de l’analyste, soit de communiquer et de transformer les expériences émotionnelles. L’imagerie des interprétations narratives est l’accès privilégié aux pensées oniriques de l’état de veille.

Fonction α; pensée onirique de l’état de veille; rêverie; dérivé narratif


El artículo presenta algunos conceptos de Bion, tales como: función α, elemento α, pensamiento onírico de la vigilia, hecho seleccionado y reverie, a partir de las ampliaciones de dos psicoanalistas contemporáneos: Antonino Ferro y Thomas Ogden. El concepto de narrativa derivada, de Ferro, se destaca como una expresión privilegiada en la sesión analítica del pensamiento onírico de la vigilia. El artículo finaliza con una interlocución, con el cuento de Mia Couto, con el fin de aclarar los conceptos presentados, en articulación con el oficio del analista, que es comunicar y transformar las experiencias emocionales; las imágenes de las interpretaciones narrativas es un acceso privilegiado a los pensamientos oníricos de la vigilia.

Función α; pensamiento onírico de la vigilia; reverie; narrativa derivada


Dieser Artikel stellt ein paar Konzepte vor, die von Bion entwickelt wurden, wie z.B. die Alpha-Funktion, das Alpha-Element, träumerische Gedanken im Wachzustand (Traumgedanken), ausgewählte Fakten und Tagtraum (Rêverie). Diese Konzepte werden auf der Basis der Erweiterungen zweier zeitgenössischer Psychoanalytiker diskutiert: Antonino Ferro und Thomas Ogden. Ferros Begriff vom narrativen Derivat wird in den Vordergrund gestellt, als privilegierter Ausdruck der analytischen Sitzung von Traumgedanken. Eine Kurzgeschichte von Mia Couto wird abschließend diskutiert, um die vorgestellten Konzepte in Beziehung zur Arbeit des Psychoanalytikers zu setzen. Diese Arbeit besteht darin, emotionale Erlebnisse mitzuteilen und zu verwandeln. Das Bilderrepertoire der erzählerischen Interpretationen ist ein privilegierter Zugang zu den Traumgedanken.

Alpha-Funktion; Traumgedanken; Rêverie; narratives Derivat


本文介绍了一些Bion的概念,如:α函数,α元素,清醒状态下的白日梦,选择性的事实和遐想。作者阐述了两个当代精神分析学家安东尼诺•费罗和托马斯•奥格登对Bion的理论所作的扩展。 Ferro的派生性叙事的概念在白日梦的解析中占有显著的地位。最后, 我们以Mia Couto的故事为对话,结束本文,以阐明分析师的职责,即交流和转化情感体验。我们主张用意象主义方法去解析和阐述白日梦。

α函数; 清醒状态下出现的白日梦思想; 遐想; 派生性叙事


A capacidade imaginativa no setting analítico é nada menos do que sagrada.

Ogden, 2010Ogden, T. H. (2010). Esta arte da psicanálise (D. Bueno, trad.). Porto Alegre, RS: Artmed.

A partir das conceituações de Bion, interessa a um analista as transformações ocorridas na sala de análise, no aqui-e-agora da sessão. Penso que o essencial de uma sessão, como o essencial de qualquer experiência, é irreproduzível e irrepresentável. Lidamos apenas com fenômenos, não com a coisa em si; lidamos com os resultados de múltiplos, encadeados e infinitos processos de transformação, nunca com a origem dessas transformações. O ma- terial clínico, ainda que já contenha algumas formas e padrões, está muito longe de ter o fechamento e a univocidade capazes de determinar de uma vez por todas a transformação psicanalítica mais apropriada (Figueiredo, Ribeiro e Tamburrino, 2011Figueiredo, L.C., Ribeiro, M., &Tamburrino, G. (2011). Bion em nove lições. Lendo transformações. São Paulo, SP: Escuta.).

Ogden (2013)Ogden, T. H. (2013). Reverie e interpretação (T. M. Zalcberg, trad.). São Paulo, SP: Escuta. inicia seu livro Reverie e Interpretação com a seguinte frase: “A palavras e frases, bem como a pessoas, deve-se facultar certa imprecisão. (...) A imaginação depende de um jogo de possibilidade” (p. 21). Considerando que a imaginação na sala de análise é simplesmente sagrada (Ogden, 2010Ogden, T. H. (2010). Esta arte da psicanálise (D. Bueno, trad.). Porto Alegre, RS: Artmed., p. 47), e levando em conta que a capacidade imaginativa da mente é constitutiva da reverie, abordo aqui teoricamente alguns conceitos fundamentais para o trabalho analítico. O que mais nos interessa como analistas é o que acontece na sessão e como acontece, algo complexo e sofisticado, mesmo que para um leigo possa parecer uma simples conversa.

O material clínico contém uma dimensão enigmática, intru-siva, perturbadora, que nos obriga a trabalhar: working-though. Estamos cercados por desconhecidos, e vivemos tanto mobilizados no esforço de enfrentá-los, como inevitavelmente geramos novos desconhecidos, inclusive aqueles que advêm desse esforço (Figueiredo, Ribeiro e Tamburrino, 2011Figueiredo, L.C., Ribeiro, M., &Tamburrino, G. (2011). Bion em nove lições. Lendo transformações. São Paulo, SP: Escuta.). No enfrentamento do desconhecido, é fundamental a qualidade das transformações que se realiza na sala de análise, dentro do campo analítico (Baranger, 1962/2010Baranger, M., & W. (2010). A situação analítica como um campo dinâmico. (T. M. Zalcberg, trad.). Controvérsias a respeito de enactment. Livro Anual de Psicanálise XXIV. São Paulo, SP: Escuta. (Trabalho original publicado em 1962).). A dupla analítica tanto constrói narrativas quanto desconstrói, forma e desforma.

Sucintamente, o conceito de campo analítico do casal Baranger (1962/2010)Baranger, M., & W. (2010). A situação analítica como um campo dinâmico. (T. M. Zalcberg, trad.). Controvérsias a respeito de enactment. Livro Anual de Psicanálise XXIV. São Paulo, SP: Escuta. (Trabalho original publicado em 1962). consiste em considerar o encontro das duas subjetividades em constante interação presentes na sala de análise, gerando tanto novos pensamentos como também levantando defesas inconscientes, os baluartes, formados a partir de uma fantasia inconsciente da dupla.1 1 Para um aprofundamento sobre o conceito de campo analítico, cf.: Gina Tamburrino, O analista no campo analisante: dos impasses às transformações possíveis. Tese de doutorado. PUC-SP, 2013. Tudo o que acontece no campo analítico é fruto do funcionamento tanto da mente do analista como da mente do analisando em interação, sendo que a responsabilidade na condução do processo analítico é do analista.

Bion escreveu que o analista é o comandante no campo de batalha — ele também corre o risco de se ferir ou morrer, mas tem a responsabilidade do comando. A aparência confortável da sala de análise é o espaço para que a turbulência da experiência emocional ocorra. A dimensão inefável de toda e qualquer experiência emocional está sempre convocando a função alfa do analista, sendo que o elemento α apenas pode ser captado na vigília, através dos fenômenos de reverie e de “flash onírico” (Ferro, 1996Ferro, A. (1996). Antonino Ferro em São Paulo. Seminários. M. O. de A. F. França & M. Petricciani (Orgs.). Acervo Psicanalítico. Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo.).

O elemento α é a maneira através da qual é pictografada, em tempo real, toda experiência senso-êxtero-proprioceptiva. Cada pictograma emotivo-sensorial é então colocado em sequência com outros elementos α. A sequência dos elementos α é incognoscível, a não ser através do derivado narrativo. (Ferro, 1996Ferro, A. (1996). Antonino Ferro em São Paulo. Seminários. M. O. de A. F. França & M. Petricciani (Orgs.). Acervo Psicanalítico. Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo., p. 15)

Bion (1962/1991Bion, W. R. (1991). Learning from Experience. London: Karnac. (Trabalho original publicado em 1962). e 1976/1992Bion, W. R. (1992). Conversando com Bion. Quatro discussões com W.R. Bion. Bion em Nova Iorque e em São Paulo. Rio de Janeiro, RJ: Imago.) postulou a contínua formação dos elementos α, tanto na vigília como durante o sono, o que pode ser ilustrado como as estrelas no céu, sempre nascendo e morrendo; durante o dia, não podemos percebê-las, apenas com a escuridão as estrelas são vistas.2 2 Essa ilustração com as estrelas no céu foi feita por Ogden e Gabbard (2011, p. 118). O sonho da noite é a manifestação do pensamento onírico, mas como ver estrelas durante o dia? Podemos vê-las pelo flash visual e na experiência da reverie (Ferro, 2000Ferro, A. (2000). A psicanálise como literatura e terapia (M. Petricciani, trad.). Rio de Janeiro, RJ: Imago., p. 74). O flash visual são imagens oníricas projetadas para o exterior — vemos fora da mente, quase como uma alucinação, mas é possível encontrar o sentido dessa imagem onírica projetada; por esse motivo, não se trata de uma alucinação na qual o sentido se perde e não há possibilidade de conexão.

A reverie como o próprio sentido da palavra francesa revela, é o sonho acordado, o devaneio. A capacidade imaginativa da mente é a reverie; implica a permeabilidade e a disponibilidade mental e emocional à comunicação do outro. Grande parte do movimento psíquico de uma sessão implica a capacidade de reverie do analista e a possibilidade do seu uso nas interpretações. No entanto, essa experiência, muitas vezes, é desorganizadora, pois é vivida como algo extremamente pessoal e íntimo, compreendida inicialmente mais como uma falha técnica do que como algo que emerge do encontro entre as duas mentes presentes na sala. Se pudermos fazer uso dela, a reverie funciona como uma verdadeira bússola, indicando nortes do campo emocional gerado pelo encontro de duas mentes, do analista e do analisando (Ogden, 2013Ogden, T. H. (2013). Reverie e interpretação (T. M. Zalcberg, trad.). São Paulo, SP: Escuta.).

Bion (1992Bion, W. R. (1992). Conversando com Bion. Quatro discussões com W.R. Bion. Bion em Nova Iorque e em São Paulo. Rio de Janeiro, RJ: Imago./2000, p. 158) escreve que os elementos α são processados em forma narrativa, necessitando ter essa qualidade para se aproximarem das experiências emocionais e, podemos dizer, serem compartilhados. Bion se utiliza das expressões “forma narrativa” e “qualidade narrativa”; Ferro postula o conceito de derivado narrativo dos elementos α. A expressão “derivado” é encontrada na obra freudiana para discorrer sobre a comunicação entre os sistemas inconsciente, pré-consciente e consciente: “É preciso dizer, em suma, que o Ics continua nos assim chamados ‘derivados’, que é suscetível aos influxos da vida, influencia constantemente o Pcs e até se acha sujeito, por sua vez, a influências por parte do Pcs” (Freud, 1915/2010Freud, S. (2010). O inconsciente. (P. C. de Souza, trad.) São Paulo, SP: Companhia das Letras. (Trabalho original publicado em 1915)., p. 131).

A sala de análise propicia um campo de elementos oníricos, favorecidos pela técnica psicanalítica: a atenção livremente flutuante e as associações livres do analisando. As narrativas que ali ocorrem estão impregnadas de elementos oníricos. O texto narrado na sessão pode ser compreendido como produção do funcionamento onírico da dupla analista e analisando. Ferro (2011)Ferro, A. (2011). Evitar as emoções, viver as emoções. (M. Petricciani, trad.). Porto Alegre, RS: Artmed. escreve que “(...) não há nada do que é dito, narrado, desenhado na sala de análise que não possa ser considerado um ‘derivado narrativo do pensamento onírico da vigília’ ou do que restou dele” (p. 28).

Os pensamentos oníricos são produzidos continuamente pela mente durante a vigília e o sono. Os derivados narrativos são fruto das transformações do pensamento onírico, e os pensamentos oníricos são constituídos por inúmeros elementos α conjugados, frutos da função α. O derivado narrativo é qualquer elemento narrativo presente na sessão captado pela atenção flutuante do analista e sua capacidade de reverie; podemos dizer que o derivado narrativo é constituído a partir do fluxo associativo do paciente. Narrar a experiência emocional envolve um grande número de habilidades, é fruto de várias transformações, resultante de um processo psíquico, no qual a origem das transformações é algo que não é possível captar — a origem da experiência emocional é incognoscível, estamos em contato com suas inúmeras transformações, ou seja, temos contato apenas com os derivados das experiências senso-êxtero-proprioceptivas, sendo que o derivado narrativo tem um lugar privilegiado; trata-se do talking cure, como escreveu Freud.

As narrativas imaginativas (Grotstein, 2010Grotstein, J. S. (2010). Um facho de intensa escuridão. O legado de Wilfred Bion à psicanálise (M. C. Monteiro, trad.) Porto Alegre, RS: Artmed.)3 3 O título deste artigo inspira-se nesse parágrafo de Grotstein. são construídas na sala de análise a partir da interação das mentes do analista e do analisando. Tais narrativas são preponderantemente visuais, e o caráter muitas vezes poético das imagens geradas se assemelha às imagens oníricas, revelando uma origem que parece ser comum.

O vocabulário emocional fornecido pela função α é usado no sonhar para construir narrativas imaginativas, preponderantemente visuais, como “ficções arquivísticas” verdadeiras, as quais contêm emoções que emergiram de elementos-β convertidos e transduzidos. (Grotstein, 2010Grotstein, J. S. (2010). Um facho de intensa escuridão. O legado de Wilfred Bion à psicanálise (M. C. Monteiro, trad.) Porto Alegre, RS: Artmed., p. 263)

A poesia, ou a prosa poética possui um lugar privilegiado na narrativa onírica. Ou seja, tanto os sonhos como a narrativa poética parecem ter a mesma origem. Tal postulação foi desenvolvida por Ella Sharpe, em 1937, ano em que a autora publica um livro baseado nos seus seminários sobre a análise dos sonhos, ministrados no Instituto da Sociedade Britânica de Psicanálise entre os anos 1934-1936:

As leis do fraseado poético, desenvolvidas pelos críticos a partir da grande poesia, e as leis de formação onírica, tal como descobertas por Freud, originam-se das mesmas fontes inconscientes e possuem muitos mecanismos em comum.

A elocução poética dever ser “simples, sensorial e apaixonada” (Milton), porque a missão do poeta é comunicar experiência. O seu veículo de comunicação básico é o som e, unido a este, o poder de evocar a imagística. Para este fim, a elocução poética dá preferência à imagística pictórica sobre a enumeração de fatos, evita a expressão genérica e escolhe a especial. (...) Ela substitui frases por epítetos. Através de meios como estes, um poema apela para o ouvido e a vista e torna-se uma tela animada. (Sharpe, 1937/1971Sharpe, E.F. (1971). Análise dos sonhos. Um manual prático para psicanalistas (C. M. Oiticica, trad.). Rio de Janeiro, RJ: Imago. (Trabalho original publicado em 1937)., pp. 5-6)

O ofício do analista, a partir de Bion, é comunicar e transformar as experiências emocionais. A imagística das interpretações narrativas facilita o acesso, ou melhor, é acesso privilegiado ao sonho, é manifestação onírica narrativa, poderíamos dizer. A prosa poética, que tem a metáfora como um dos seus principais componentes, entre outros, é via régia para os elementos oníricos. Sharpe (1937/1971)Sharpe, E.F. (1971). Análise dos sonhos. Um manual prático para psicanalistas (C. M. Oiticica, trad.). Rio de Janeiro, RJ: Imago. (Trabalho original publicado em 1937). aproxima as leis do fraseado poético às características da formação onírica: o uso de metáforas pessoais, o artifício poético da metonímia, a sinédoque, a onomatopeia, entre outras.

Narrativas imaginativas

Tomando de empréstimo a prosa poética de Mia Couto, faço aqui um exercício que intenciona refletir sobre os conceitos aqui trabalhados. O conto4 4 Agradeço a Claudia Perrotta pela apresentação desse belíssimo conto de Mia Couto. A menina sem palavra poderia ser a narrativa de uma sessão, ou o transcurso de uma análise.

A menina não palavreava. Nenhuma vogal lhe saía, seus lábios se ocupavam só em sons que não somavam dois nem quatro. Era uma língua só dela, um dialecto pessoal e intransmixível? Por muito que se aplicassem, os pais não conseguiam percepção da menina. Quando lembrava as palavras ela esquecia o pensamento. Quando construía o raciocínio perdia o idioma. Não é que fosse muda. Falava em língua que nem há nesta actual humanidade. Havia quem pensasse que ela cantasse. Que se diga, sua voz era bela de encantar. Mesmo sem entender nada as pessoas ficavam presas na entonação. E era tão tocante que havia sempre quem chorasse. (Couto, 2013Couto, M. (2013). A menina sem palavra. Histórias de Mia Couto. São Paulo, SP: Boa Companhia., p. 33)

Dando asas à imaginação, esse poderia ser o início ou o percurso de um processo analítico. A prosa poética de Mia Couto é impregnada de elementos oníricos. Couto escreve que a menina tinha um dialeto pessoal e “intransmixível”; todos nós temos um dialeto pessoal, a metáfora pessoal, e parcialmente transmissível. Ferro (2011)Ferro, A. (2011). Evitar as emoções, viver as emoções. (M. Petricciani, trad.). Porto Alegre, RS: Artmed. diz que a interpretação do analista precisa respeitar o texto manifesto do paciente, o dialeto do analisando, sem provocar cesuras interpretativas: “(...) um trabalho de transformação passa, frequentemente, por intermédio de ‘narrações transformadoras’ que operam no nível (aparentemente) manifesto” (p. 157).

Mia Couto, a partir de uma licença poética, escreve “intransmixível”; podemos pensar que, por mais que os pais se aplicassem, não conseguiam percepção da menina, não era possível sonhá-la, algo não se misturava, contido e continente não se “mixavam”, as mentes não acoplavam. Perma-necia o enigmático do material clínico, sem sonho. O tom da voz da menina emocionava, o sensorial puro tocava, sem narração. Até que uma palavra foi dita: mar. O percurso transformador se inicia, inundando de angústia a dupla, analista e analisando, a menina e o pai.

— Vamos, filha! Caso senão as ondas vão nos engolir. (...) O mar enchia a noite de silêncios, as ondas pareciam já se enrolar no peito assustado do homem. Foi quando lhe ocorreu: sua filha só podia ser salva por uma história! (Couto, 2013Couto, M. (2013). A menina sem palavra. Histórias de Mia Couto. São Paulo, SP: Boa Companhia., p. 34)

Ferro (1998)Ferro, A. (1998). Na sala de análise. Emoções, relatos, transformações. (M. Petricciani, trad.). Rio de Janeiro, RJ: Imago. escreve que “temos a percepção do pensamento onírico da vigília através dos ‘derivados narrativos’ dos elementos alfa, que são também continuamente ‘sinalizadores do texto’ linguístico-emocional da sessão” (p. 29). Somos salvos por histórias, somos feitos de histórias, narrativas escritas a quatro mãos, não existe um se não houver dois, não existe o eu se não existe o outro. A cura pela palavra sonhada, produzida pelas reveries do analista, e também do analisando, revela a força da imagística das palavras: manifestação onírica narrativa.

O setting fornece a moldura, as emoções da dupla proporcionam a tela e as tintas, as palavras têm função de agregação e organização das mesmas, até que delas derive uma forma, uma estrutura no mais das vezes como personagens, contos, histórias (...), mas estas figurações, que variam de acordo com o estado emocional e das relações do par, nada mais são do que o único modo de que as mentes dispõem para narrar o que acontece entre elas (...) (Ferro, 1995Ferro, A. (1995). A técnica na psicanálise infantil. A criança e o analista: da relação ao campo emocional (M. Justum, trad.). Rio de Janeiro, RJ: Imago., p. 71)

Pai e filha, analista e analisando constroem uma narrativa onírica. Mia Couto é tão bem-sucedido na sua escrita, que mergulhamos em um sonho acordado, um devaneio, no qual a dupla corre o risco do afogamento nas intensas emoções que circulam, o enigmático do material clínico a ser sonhado. “Nesta forma de proceder, a transformação conarrativa, ou mesmo a conarração transformativa toma o lugar da interpretação” (Ferro, 2000Ferro, A. (2000). A psicanálise como literatura e terapia (M. Petricciani, trad.). Rio de Janeiro, RJ: Imago., p. 18). O analista precisa estar à deriva (Ogden, 2013Ogden, T. H. (2013). Reverie e interpretação (T. M. Zalcberg, trad.). São Paulo, SP: Escuta.), atenção livremente flutuante (Freud), sem memória e sem desejo (Bion), para que sua função α opere, produzindo elementos α, que, conectados, formam o pensamento onírico que se manifesta nos derivados narrativos da sessão.

Então, se abriu uma fenda funda, a ferida de nascença da própria terra. Dos lábios dessa cicatriz se derramava sangue. A água sangrava? O sangue se aguava? E foi assim. Essa foi uma vez. (Couto, 2013Couto, M. (2013). A menina sem palavra. Histórias de Mia Couto. São Paulo, SP: Boa Companhia., p. 35)

A fenda funda, nossas cisões constitutivas, a ferida de nascença da vida psíquica. Ou, momentos nos quais a mãe não foi suficiente, momento no qual a reverie materna não pôde acontecer, deixando o bebê a mercê de seus terrores, do enigmático da experiência emocional.

Chegado a este ponto, o pai perdeu voz e se calou. A história tinha perdido fio e meada dentro da sua cabeça. Ou seria o frio da água já cobrindo os pés dele, as pernas de sua filha? E ele, em desespero: — Agora, é que nunca. (Couto, 2013Couto, M. (2013). A menina sem palavra. Histórias de Mia Couto. São Paulo, SP: Boa Companhia., p. 3)

Estar à deriva também pode levar ao abismo psíquico, a dupla corre os mesmos riscos, mesmo que de forma assimétrica: pai e filha no conto, analista e analisando na sessão. Agora, é que nunca, uma dissolução do eu? Bion diz que o analista está no campo de batalha junto com o analisando, ele tem a responsabilidade do comando, mas também pode morrer, como dito anteriormente. O comando é a condução ética do analista, tendo sempre o setting analítico como moldura, e seu compromisso de se manter pensante, mesmo que em alguns momentos o analista perca fio e meada.

A menina, nesse repente, se ergueu e avançou por dentro das ondas. O pai a seguiu, temedroso. Viu a filha apontar o mar. Então ele vislumbrou, em toda extensão do oceano, uma fenda profunda. O pai se espantou com aquela inesperada fractura, espelho fantástico da história que ele acabara de inventar. Um medo fundo lhe estranhou as entranhas. Seria naquele abismo que eles ambos se escoariam? (Couto, 2013Couto, M. (2013). A menina sem palavra. Histórias de Mia Couto. São Paulo, SP: Boa Companhia., p. 35)

Bion escreve sobre a fé do analista, a fé de que o sentido vai emergir — o analista não precisa buscar o sentido, ele brota na sessão, como água da fonte, como a reverie na mente, desapercebidamente insurge. A mente se alimenta do sentido, em expansão constante. Diante do abismo psíquico na sessão, a fé do analista é um fator preponderante. A fé para Bion é um estado mental científico, sem memória e sem desejo. A confiança de que o fato selecionado emergirá e fará sentido ao enigmático da experiência (Bion, 1970/1973Bion, W. R. (1973). Atenção e interpretação. (C.H.P. Affonso, trad.). Rio de Janeiro, RJ: Imago. (Trabalho original publicado em 1970).). A capacidade de o analista ouvir a si mesmo enquanto ouve seu analisando, e identificar o fato selecionado que emerge dessa escuta do campo analítico (Baranger, 1962/2010Baranger, M., & W. (2010). A situação analítica como um campo dinâmico. (T. M. Zalcberg, trad.). Controvérsias a respeito de enactment. Livro Anual de Psicanálise XXIV. São Paulo, SP: Escuta. (Trabalho original publicado em 1962).), é um exercício ímpar, no qual a vida emocional privada do analista está em jogo, mas nos bastidores das interpretações narrativas.

Bion (1973)Bion, W. R. (1973). Atenção e interpretação. (C.H.P. Affonso, trad.). Rio de Janeiro, RJ: Imago. (Trabalho original publicado em 1970). comenta:

(...) quando nos aproximamos do inconsciente — isto é, daquilo que não conhecemos —, estamos certos de ser perturbados. Todo aquele que amanhã vai encontrar um paciente deveria, de algum modo, experimentar medo. Em cada consultório, deveria mais precisamente haver duas pessoas amedrontadas, o paciente e o psicanalista. Se não estão, então seria o caso de perguntar por que estão se incomodando em descobrir o que cada um sabe. (p. 15)

A mente do analista está constantemente sendo desafiada a enfrentar estados mentais virgens — por mais experiente que seja um analista, um novo paciente é sempre uma jornada que ainda não foi vivida; trata-se de desbravar territórios psíquicos que ainda não foram habitados pela narrativa, o sempre enigmático da experiência emocional.

“O pai a seguiu, temedroso” (Couto, 2013Couto, M. (2013). A menina sem palavra. Histórias de Mia Couto. São Paulo, SP: Boa Companhia., p. 35). O paciente é nosso melhor colega, como diz Bion, precisamos segui-lo mesmo que temedrosos do colapso do nosso próprio funcionamento psíquico; afinal, toda mudança é catastrófica, a expansão do psiquismo implica o enfrentamento da desorganização psíquica. “Seria naquele abismo que eles ambos se escoariam? ... espelho fantástico da história que ele acabara de inventar” (Couto, 2013Couto, M. (2013). A menina sem palavra. Histórias de Mia Couto. São Paulo, SP: Boa Companhia., p. 35). Estar em uníssono (at-one-ment)5 5 “Em análise, a coisa importante não é aquilo que o analista e o analisando podem fazer, mas o que a dupla pode fazer; deve haver algo que a dupla possa fazer, onde a unidade biológica é dois, e não um” (Bion, 1992, p. 62). com o analisando é quase uma experiência de espelhamento; a interpretação narrativa do analista torna-se a realidade psíquica vivida pelo paciente, sonhada pela capacidade de reverie do analista.

Ao invés de recuar a menina se adentrou mais no mar. Depois, parou e passou a mão pela água. A ferida líquida se fechou, instantânea. E o mar se refez, um. A menina voltou atrás, pegou na mão do pai e o conduziu de rumo a casa. No cimo, a lua se recompunha. — Viu, pai? Eu acabei a sua história! E os dois, iluaminados, se extinguiram no quarto de onde nunca haviam saído. (Couto, 2013Couto, M. (2013). A menina sem palavra. Histórias de Mia Couto. São Paulo, SP: Boa Companhia., p. 36)

E os dois, analista e analisando, iluaminados, se extinguiram na sala de análise de onde nunca haviam saído.

Referências

  • Baranger, M., & W. (2010). A situação analítica como um campo dinâmico. (T. M. Zalcberg, trad.). Controvérsias a respeito de enactment. Livro Anual de Psicanálise XXIV São Paulo, SP: Escuta. (Trabalho original publicado em 1962).
  • Bion, W. R. (1973). Atenção e interpretação. (C.H.P. Affonso, trad.). Rio de Janeiro, RJ: Imago. (Trabalho original publicado em 1970).
  • Bion, W. R. Conferências brasileiras I/1973 (P. D. Corrêa, trad.). Rio de Janeiro, RJ: Imago.
  • Bion, W. R. (1991). Learning from Experience London: Karnac. (Trabalho original publicado em 1962).
  • Bion, W. R. (1992). Conversando com Bion. Quatro discussões com W.R. Bion. Bion em Nova Iorque e em São Paulo Rio de Janeiro, RJ: Imago.
  • Bion, W. R. (1992). Conferências brasileiras I (P. D. Corrêa, trad.). Rio de Janeiro, RJ: Imago.
  • Bion, W. R. (2000). Cogitações (P. C. Sandler, trad.). Rio de Janeiro, RJ: Imago. (Trabalho original publicado em 1992).
  • Couto, M. (2013). A menina sem palavra. Histórias de Mia Couto. São Paulo, SP: Boa Companhia.
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  • 1
    Para um aprofundamento sobre o conceito de campo analítico, cf.: Gina Tamburrino, O analista no campo analisante: dos impasses às transformações possíveis. Tese de doutorado. PUC-SP, 2013.
  • 2
    Essa ilustração com as estrelas no céu foi feita por Ogden e Gabbard (2011Ogden, T. H., & Gabbard, G. O. (2011). Tornar-se psicanalista. Livro Anual de Psicanálise XXV. São Paulo, SP: Escuta., p. 118).
  • 3
    O título deste artigo inspira-se nesse parágrafo de Grotstein.
  • 4
    Agradeço a Claudia Perrotta pela apresentação desse belíssimo conto de Mia Couto.
  • 5
    “Em análise, a coisa importante não é aquilo que o analista e o analisando podem fazer, mas o que a dupla pode fazer; deve haver algo que a dupla possa fazer, onde a unidade biológica é dois, e não um” (Bion, 1992Bion, W. R. (1992). Conversando com Bion. Quatro discussões com W.R. Bion. Bion em Nova Iorque e em São Paulo. Rio de Janeiro, RJ: Imago., p. 62).
  • Financiamento/Funding: A autora declara não ter sido financiada ou apoiada / The author has no support or funding to report.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Jan-Mar 2017

Histórico

  • Recebido
    20 Jun 2016
  • Aceito
    18 Ago 2016
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