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“Somos nosso cérebro?” ou sobre um livro na subjetividade de sua época

“Are we our brain?”: or about a book in the subjectivity of its times

Somos nosso cérebro? Neurociência, subjetividade, cultura\Vidal, Fernando; Ortega, Francisco. São Paulo, SP: n-1 Edições/Hedra, 2019, 345 págs.

Essa obra, fruto da parceria de Vidal e Ortega, é altamente indicada àqueles interessados em ter algumas chaves de leitura da subjetividade de sua época, em bom e claro português. Um livro que contribui para todos aqueles que, ao serem o eixo de tantas vidas (psicanalistas, clínicos, pesquisadores, estudiosos das neurociências, dentre outras incidências da partícula neuro na contemporaneidade), buscam saber algo do movimento dialético no qual estão inseridos simbolicamente (Lacan, 1953/1998Lacan, J. (1998). Função e campo da fala e da linguagem em psicanálise. In Escritos (p. 322). Rio de Janeiro, RJ: Jorge Zahar. (Trabalho original publicado em 1953)., p. 322).

Os autores, inicialmente, partem de alguns pressupostos do campo neuro, como, por exemplo, o argumento da “década do cérebro”, alcunha para os anos 1990, seguindo rumo à chamada “virada neural”, “neurovirada” e “virada neurocientífica”, que roubaram a cena em vários campos interdisciplinares e de investigação mundialmente. Ecos dessa “virada” também se localizam na clínica, quando a própria definição do sofrimento psíquico passa a ser nomeada pelo Instituto Nacional de Saúde Mental dos Estados Unidos (NIMH) como transtornos mentais, sendo estes entendidos e tratados como transtornos cerebrais (Insel, 2011Insel, T. (2011). Mental Illness Defined as Disruption in Neural Circuits. Recuperado em 1 fev. 2020, de: <https://www.nimh.nih.gov/about/directors/thomas-insel/blog/2011/mental-illness-defined-as-disruption-in-neural-circuits.shtml>.
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; Rose, 2019Rose, N. (2019). Our psychiatric future: The Politics of Mental Health. Cambridge: Policy. 269p.).

Esse livro apresenta uma leitura precisa e crítica de “algumas afirmações mais extravagantes e algumas aplicações mais imprudentes do neuro” (p. 14), o que eu modestamente chamaria de um “uso selvagem das neurociências”, seja na prática clínica, ou mesmo na produção de subjetividades. Portanto, os autores tecem um profícuo e fecundo diálogo com outros trabalhos críticos de autores renomados no campo (Rose e Abi-Rached, 2014Rose, N.; Abi-Rached, J. M. (2014). Neuro: The New Brain Sciences and the Management of the Mind. Princeton, N.J.: Princeton University Press.; Berrios, 2015Berrios, G. (2015). Rumo a uma nova epistemologia da psiquiatria. São Paulo, SP: Escuta. 296p.; Rose, 2019Rose, N. (2019). Our psychiatric future: The Politics of Mental Health. Cambridge: Policy. 269p.; Carvalho et al., 2020Carvalho, S. R. et al. (2020). Our psychiatric future and the (bio)politics of Mental Health: dialogues with Nikolas Rose. Interface - Comunicação, Saúde, Educação [online]. 24. Recuperado em 1 fev 2020, de: <https://doi.org/10.1590/Interface.190732>.
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).

O livro, sem dúvida, irá contribuir como uma referência em língua portuguesa para uma análise ampla e sóbria ante a naturalização do neuro, contribuindo para o questionamento da “maioria das interpretações do lugar-comum segundo o qual a mente é o que o cérebro faz” (p. 14).

Um dos eixos críticos do livro retoma estudos de historiadores e cientistas sociais de diversas disciplinas que examinam, desde os idos de 2000, as incidências do neuro na cultura contemporânea. Em destaque, cito o interesse dos autores sobre a redutibilidade dos humanos a seus cérebros, processo esse denominado de “cerebralização”, cujos traços foram examinados ao longo dos capítulos do livro. Assim, os autores rastrearam as marcas do neuro no “governo dos vivos”, marcas estas que são efetivamente cruciais para processos de subjetivação (Rose e Abi-Rached, 2014Rose, N.; Abi-Rached, J. M. (2014). Neuro: The New Brain Sciences and the Management of the Mind. Princeton, N.J.: Princeton University Press.; Rose, 2019Rose, N. (2019). Our psychiatric future: The Politics of Mental Health. Cambridge: Policy. 269p.; Carvalho et al., 2020Carvalho, S. R. et al. (2020). Our psychiatric future and the (bio)politics of Mental Health: dialogues with Nikolas Rose. Interface - Comunicação, Saúde, Educação [online]. 24. Recuperado em 1 fev 2020, de: <https://doi.org/10.1590/Interface.190732>.
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). Um dos exemplos instigantes do processo supracitado se encontra no capítulo 3, intitulado “Cerebralizando o sofrimento psíquico”. Além desse neologismo transportar os leitores às veredas de Guimarães Rosa, os autores trabalham incidências clínicas precisas dessa delimitação do neuro na subjetividade humana, em ativo processo corrente, como bem marcado pelo gerúndio. Destaco, sem construir uma antecipação apressada que reduza a amplitude e a complexidade transposta pelo capítulo em questão, as vicissitudes do significante “neurodiversidade”. Os autores aportam, dentre outras correntes de leitura, os efeitos identitários desse significante, efeitos numa leitura de orientação lacaniana, eminentemente imaginários, como costumam ser os efeitos regidos pela vertente identificatória. No capítulo supracitado, o transtorno do espectro do autismo (TEA) torna-se o cenário privilegiado ao debate da neurodiversidade, terreno este em que os autores capturaram de forma delicada e metódica, suas marcações biossociais e culturais, debates que podem ser transpostos ao contemporâneo em que o ser e o ter, dialeticamente seguem se retroalimentando, como é possível notar algo semelhante nas discussões atuais sobre gênero, na política do recovery e da Global Mental Health (Carvalho et al., 2020Carvalho, S. R. et al. (2020). Our psychiatric future and the (bio)politics of Mental Health: dialogues with Nikolas Rose. Interface - Comunicação, Saúde, Educação [online]. 24. Recuperado em 1 fev 2020, de: <https://doi.org/10.1590/Interface.190732>.
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) dentre outros. Nesse mesmo capítulo, os autores também retomam a busca da objetividade no campo dialógico neuro e psi, tendo no terreno clínico o constructo de depressão e a sua constante cerebralização ao longo das últimas décadas, debate este dirigido pelo empuxo à busca pela causalidade, elevando-a ao zênite de uma doença clínica como o diabetes.

Da “década do cérebro” às conjeturas da “big science” e dos cálculos preditivos da “big data”, à localização de um “espectro neurocultural”, um universo em expansão (Vidal e Ortega, 2011Vidal, F.; Ortega, F. (2011). “Approaching the Neurocultural Spectrum: An Introduction”. In Ortega e Vidal. Neurocultures: Glimpses Into an Expanding Universe (pp. 7-27). Berlin, Germany: Peter Lang .), o livro percorre em seus quatro capítulos, territórios que partem da neuroascese (a autodisciplina cerebral). No primeiro capítulo, seguindo o panorama das “neurodisciplinas”; no segundo, rumo ao entendimento da “cerebralização” do sofrimento psíquico, um território em disputa; e, finalmente, encerrando suas análises no quarto capítulo, em que os autores destacam os ravinamentos do neuro na cultura popular, campo este que também é permeável por uma tensão instável possivelmente advinda de ambivalência estrutural inerente ao sujeito dito cerebral (Rose e Abi-Rached, 2014Rose, N.; Abi-Rached, J. M. (2014). Neuro: The New Brain Sciences and the Management of the Mind. Princeton, N.J.: Princeton University Press.; Rose, 2019Rose, N. (2019). Our psychiatric future: The Politics of Mental Health. Cambridge: Policy. 269p.; Carvalho et al., 2020Carvalho, S. R. et al. (2020). Our psychiatric future and the (bio)politics of Mental Health: dialogues with Nikolas Rose. Interface - Comunicação, Saúde, Educação [online]. 24. Recuperado em 1 fev 2020, de: <https://doi.org/10.1590/Interface.190732>.
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)

Em suma, um livro bem escrito, uma leitura lúcida da ideologia do neuro (p. 16) como uma realidade social, cultural e psicológica, trazendo um panorama ampliado dessa temática polimórfica. Finalizo com seu triplo argumento: o neuro toca em noções de pessoa e de identidade pessoal, e como objeto de pesquisa, a cerebralização dele decorrente é um pressuposto subjacente determinante ao modo como a pesquisa é feita, interpretada e divulgada, e consequentemente, a “cerebralização” torna-se uma espécie de tecido conectivo, um leito de rocha mais ou menos solapado, mais ou menos exposto às intempéries da paisagem biopsicossocial. Boa leitura!

Referências

  • Berrios, G. (2015). Rumo a uma nova epistemologia da psiquiatria São Paulo, SP: Escuta. 296p.
  • Carvalho, S. R. et al. (2020). Our psychiatric future and the (bio)politics of Mental Health: dialogues with Nikolas Rose. Interface - Comunicação, Saúde, Educação [online]. 24 Recuperado em 1 fev 2020, de: <https://doi.org/10.1590/Interface.190732>.
    » https://doi.org/10.1590/Interface.190732
  • Insel, T. (2011). Mental Illness Defined as Disruption in Neural Circuits Recuperado em 1 fev. 2020, de: <https://www.nimh.nih.gov/about/directors/thomas-insel/blog/2011/mental-illness-defined-as-disruption-in-neural-circuits.shtml>.
    » https://www.nimh.nih.gov/about/directors/thomas-insel/blog/2011/mental-illness-defined-as-disruption-in-neural-circuits.shtml
  • Lacan, J. (1998). Função e campo da fala e da linguagem em psicanálise. In Escritos (p. 322). Rio de Janeiro, RJ: Jorge Zahar. (Trabalho original publicado em 1953).
  • Rose, N. (2019). Our psychiatric future: The Politics of Mental Health Cambridge: Policy. 269p.
  • Rose, N.; Abi-Rached, J. M. (2014). Neuro: The New Brain Sciences and the Management of the Mind Princeton, N.J.: Princeton University Press.
  • Vidal, F., & Ortega, F. (2011). Approaching the Neurocultural Spectrum: An Introduction. In Ortega & Vidal, Neurocultures: Glimpses Into an Expanding Universe (pp. 7-27). Berlin, Germany: Peter Lang.
  • Vidal, F.; Ortega, F. (2011). “Approaching the Neurocultural Spectrum: An Introduction”. In Ortega e Vidal. Neurocultures: Glimpses Into an Expanding Universe (pp. 7-27). Berlin, Germany: Peter Lang .
Editora/Editor: Profa. Dra. Marta Regina de Leão D'Agord

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    24 Jul 2020
  • Data do Fascículo
    Apr-Jun 2020

Histórico

  • Recebido
    25 Abr 2020
  • Aceito
    27 Abr 2020
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