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Familiares como pesquisadores de serviços de atenção psicossocial: um desafio para a promoção do cuidado e autonomia na perspectiva do recovery1 *1 Artigo oriundo da Dissertação de Mestrado intitulada Participação de familiares em pesquisa como estratégia de empoderamento: análise de uma experiência piloto em Centros de Atenção Psicossocial desenvolvida em parceria com o grupo de pesquisadores do Núcleo de Pesquisa em Políticas Públicas de Saúde Mental do Instituto de Psiquiatria da Universidade Federal do Rio de Janeiro (NUPPSAM/IPUB/UFRJ), defendida, em 2018, no Programa de Pós-Graduação em Psiquiatria e Saúde Mental do Instituto de Psiquiatria da Universidade Federal do Rio de Janeiro.

Family members as researchers of psychosocial care services: Challenges for the promotion of care and autonomy in recovery

Les membres de la famille en tant que chercheurs des services de soins psychosociaux: un défi pour la promotion des soins de santé et de l’autonomie dans la perspective du recovery

Los familiares como investigadores de los servicios de atención psicosocial: un desafío para la promoción del cuidado y la autonomía en la perspectiva de recuperación

Resumos

O presente estudo discute a inserção de familiares cuidadores de pessoas com transtornos mentais graves e persistentes em uma pesquisa acadêmica de modelo participativo. O estudo se apoia no conceito de recovery para discutir a participação ativa de familiares no processo de avaliação dos serviços de saúde mental e de produção compartilhada de conhecimento. Trata-se de uma pesquisa qualitativa que emprega instrumentos de avaliação participativa nas diferentes etapas de inserção de familiares como pesquisadores. Conclui-se sobre o protagonismo de familiares no desenvolvimento de pesquisas como uma ferramenta potente para o recovery na medida em que amplia o conhecimento, qualifica a relação dos usuários com os serviços, fortalece os vínculos sociais e o compartilhamento de experiências e favorece processos emancipatórios e democráticos de controle social.

Palavras-chave:
Pesquisa participativa em Saúde Mental; Recovery; Centros de Atenção Psicossocial; Protagonismo de familiares


This qualitative study discusses the inclusion of family caregivers of people with severe and persistent mental disorders in a participatory academic research. Based on the concept of recovery, the paper addresses the active participation of family members in the evaluation process of mental health services and shared knowledge production. Data was collected by means of participatory assessment instruments in the different stages of inserting family members as researchers. In conclusion, the protagonism of family members in research development is a powerful tool for recovery as it expands knowledge, qualifies user relationship with services, strengthens social bonds and the sharing of experiences, and favors emancipatory and democratic processes of social control.

Key words:
Participatory Research in Mental Health; Recovery; Mental Health Services; Family Protagonism


Cette étude qualitative traite de l’inclusion des aidants de personnes atteintes de troubles mentaux sévères et persistants dans une recherche universitaire participative. Basé sur le concept de rétablissement, l’article aborde la participation active des aidants dans le processus d’évaluation des services de santé mentale et la production de connaissances partagées. Les données ont été collectées au moyen d’instruments d’évaluation participative dans les différentes étapes de l’insertion des membres de la famille en tant que chercheurs. En conclusion, le protagonisme des membres de la famille dans le développement de la recherche est un outil puissant pour le rétablissement car il élargit les connaissances, qualifie la relation de l’utilisateur avec les services, renforce les liens sociaux et le partage d’expériences, et favorise les processus émancipateurs et démocratique de contrôle social.

Mots clés:
Recherche participative en santé mentale; rétablissement; centres de soins psychosociaux; protagonisme des membres de la famille


El presente estudio discute la participación de los cuidadores familiares de personas con trastornos mentales graves y persistentes en una investigación académica de modelo participativo. El estudio utiliza el concepto de recuperación para discutir la participación activa de los familiares en el proceso de evaluación de los servicios de salud mental y producción de conocimiento compartido. Esta es una investigación cualitativa que utiliza instrumentos de evaluación participativa en las diferentes etapas de inserción de los familiares como investigadores. Se concluye que el protagonismo de los familiares en el desarrollo de la investigación es una poderosa herramienta de recuperación, ya que amplía el conocimiento, califica la relación de los usuarios con los servicios, fortalece los vínculos sociales y el intercambio de experiencias, y favorece los procesos emancipatorios y democráticos de control social.

Palabras clave:
Investigación participativa en salud mental; recuperación; centros de atención psicosocial; protagonismo de familiares


Introdução

O presente trabalho é o desdobramento de uma pesquisa de mestrado que buscou inserir familiares cuidadores de pessoas com transtornos mentais graves e persistentes em uma pesquisa acadêmica de desenho participativo. O estudo emprega as bases conceituais do recovery para discutir e recolher os efeitos dessa participação tanto para os familiares e usuários de serviços públicos de saúde mental quanto para a produção do conhecimento no campo da atenção psicossocial.

O atual modelo de cuidado em saúde mental, que preconiza a inserção participativa de usuários e familiares nos serviços, está diretamente relacionado com o incentivo da Organização Mundial da Saúde - OMS de participação dos familiares no planejamento e avaliação dos serviços de saúde mental (WHO-SATIS, 1996 apudBarroso, 2006Barroso, S. M. (2006). Sobrecarga de familiares de pacientes psiquiátricos: fatores associados. (Dissertação de Mestrado), Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte, MG, Brasil.). Em alguns países, esse movimento se desenvolve de maneira sólida, como no sistema público de saúde britânico, onde a participação de usuários compondo equipes de pesquisa torna-se fundamental (Presotto et al., 2013Presotto, R. F., Silveira, M., Delgado, P. G. G., & Vasconcelos, E. M. (2013). Experiências brasileiras sobre participação de usuários e familiares na pesquisa em saúde mental. Ciência & Saúde Coletiva, 18(10), 2837-2845. https://doi.org/10.1590/S1413-81232013001000008
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) para a produção de conhecimento, assim como na Austrália e na Nova Zelândia, onde a participação é um direito dos usuários da saúde mental (Happell & Roper, 2007Happell, B., & Roper, C. (2007). Consumer participation in mental health research: articulating a model to guide practice. Australasian psychiatry: bulletin of Royal Australian and New Zealand College of Psychiatrists, 15(3), 237-241. https://doi.org/10.1080/10398560701320113
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). Em 2003, a comissão presidencial especial em saúde mental dos Estados Unidos elaborou um relatório em que reforçava a necessidade de aumentar as oportunidades para que usuários e seus familiares pudessem partilhar seu conhecimento, habilidades e experiências de recovery (Costa, 2017Costa, M.N. (2017). Recovery como estratégia para avançar a reforma psiquiátrica no Brasil. Cadernos Brasileiros de Saúde Mental, 9(21), 1-16.). A inclusão dessa clientela no panorama científico e acadêmico traz perspectivas únicas para as pesquisas (Boote, Telford & Cooper, 2002Boote, J., Telford, R., & Cooper, C. (2002). Consumer involvement in health research: a review and research agenda. Health policy, 61(2), 213-236. https://doi.org/10.1016/s0168-8510(01)00214-7
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; Telford, Boote & Cooper, 2004Telford, R., Boote, J. D., & Cooper, C. L. (2004). What does it mean to involve consumers successfully in NHS research? A consensus study. Health expectations: an international journal of public participation in health care and health policy, 7(3), 209-220. https://doi.org/10.1111/j.1369-7625.2004.00278.x
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) e podem contribuir com o conhecimento prático e cotidiano, singulares para a política de Atenção Psicossocial.

No Brasil, o paradigma de cuidado pautado no modelo da Atenção Psicossocial exige avaliar, constantemente, seus impactos no âmbito do Sistema Único de Saúde - SUS e nos rumos traçados para a produção do conhecimento compartilhado como uma política de pesquisa estratégica para o campo da saúde mental (Bursztyn & Delgado, 2017Bursztyn, D. C., & Delgado, P. G. (2017). Conhecimento compartilhado e estratégias colaborativas de pesquisa na atenção psicossocial. Estudos Contemporâneos da Subjetividade, 7, 68.). As pesquisas avaliativas participativas em saúde mental, por exemplo, visam contribuir com a análise desses efeitos para a política de Atenção Psicossocial, fazendo-a de modo mais sensível e mais alinhado à realidade do campo (Furtado & Onocko Campos, 2008Furtado, J. P., & Onocko Campos, R. T. (2008). Participação, produção de conhecimento e pesquisa avaliativa: a inserção de diferentes atores em uma investigação em saúde mental. Caderno de saúde pública, 24(11), 2671--2680.; Reis, 2018Reis, T. L. (2018). Participação de familiares em pesquisa como estratégia de empoderamento: Análise de uma experiência piloto em centros de atenção psicossocial. (Dissertação de Mestrado em Saúde Mental), Instituto de Psiquiatria da Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, RJ, Brasil.). Nessa modalidade de estudo, o conhecimento é construído e validado a partir da participação de diferentes atores no processo de elaboração da pesquisa (Presotto, 2013Presotto R. F. (2013). Participação de Usuários de Serviços de Saúde Mental em Pesquisas: Um Olhar a partir dos conceitos de Empowerment e Recovery. Dissertação de Mestrado, Unicamp, Campinas, SP, Brasil.); tal como a de familiares e usuários, situados como atores sociais essenciais para a compreensão do cenário dos serviços de saúde mental.

O marco teórico do recovery, assim como o do empoderamento e da reabilitação psicossocial, vem associado à participação de usuários em todas as etapas da pesquisa científica, como um tema difundido no contexto internacional, mas ainda pouco disseminado no cenário brasileiro. A participação de usuários e familiares no panorama nacional de pesquisas ainda se limita ao papel de “sujeitos de pesquisa” (Presotto et al., 2013Presotto, R. F., Silveira, M., Delgado, P. G. G., & Vasconcelos, E. M. (2013). Experiências brasileiras sobre participação de usuários e familiares na pesquisa em saúde mental. Ciência & Saúde Coletiva, 18(10), 2837-2845. https://doi.org/10.1590/S1413-81232013001000008
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), mesmo em projetos com alto potencial de produção de autonomia e empoderamento. De outro modo, a pesquisa no campo do recovery deve necessariamente incluir os usuários como protagonistas na produção de conhecimento, mantendo os princípios das ações orientadas para o recovery de usuários que protagonizam seus planos terapêuticos. Esses atores sociais, por sua vez, tornam-se colaboradores essenciais, mas também críticos em relação ao modo como as ações e os estudos em saúde mental, não raro, desconsideram suas vivências e perspectivas, sua produção de autonomia e, consequentemente, seus processos individuais de recovery (Presotto, 2013Presotto R. F. (2013). Participação de Usuários de Serviços de Saúde Mental em Pesquisas: Um Olhar a partir dos conceitos de Empowerment e Recovery. Dissertação de Mestrado, Unicamp, Campinas, SP, Brasil.).

O modelo conceitual do recovery surge, na década de 1970, a partir de um movimento de usuários engajados na discussão de estratégias emancipatórias que propiciem uma vida autônoma às pessoas que vivem algum tipo de sofrimento mental (Costa, 2017Costa, M.N. (2017). Recovery como estratégia para avançar a reforma psiquiátrica no Brasil. Cadernos Brasileiros de Saúde Mental, 9(21), 1-16.). Na década de 1980, o suporte interpares ganha forças como dispositivo de cuidado integrado ao sistema de saúde mental, a partir da reivindicação do envolvimento de usuários e familiares em todos os níveis do sistema, com forte influência do movimento de recovery. Desde então, o dispositivo vem sendo integrado ao sistema de saúde de diversos países como essencial para os processos de recovery. No entanto, cabe assinalar que, como um movimento pessoal, o recovery não depende de serviços ou de profissionais de saúde para se desenvolver, embora estes possam promover um ambiente de esperança, incentivo à autonomia, ao empoderamento e ao restabelecimento de laços sociais e comunitários (Baccari, Onocko Campos & Stefanello, 2015Baccari, I. O. P., Onocko Campos, R. T., & Stefanello, S. (2015). Recovery: revisão sistemática de um conceito. Ciência & Saúde Coletiva, 20(1), 125-136. https://doi.org/10.1590/1413-81232014201.04662013
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).

A tradição do recovery porta a marca do protagonismo dos usuários, proporcionando experiências com familiares como um caminho promissor, que produz efeitos positivos para a autoestima e o empoderamento (Serpa Junior et al., 2017Serpa Junior., O. D., Muñoz, N. M., Lima, B. A., Santos, E. S., Leal, E. M., Silva, L. A., de Souza, L. E. M., Nascimento, M. A. L., Souza, N. S., de Barros, O. V. D., & Delgado, P. G. (2017). Relatos de experiências em Recovery: Usuários como tutores, familiares como cuidadores/pesquisadores e efeitos destas práticas em docentes e pesquisadores em saúde mental. Cadernos brasileiros de saúde mental, 9(21), 250-270.). Do mesmo modo, o movimento de recovery por parte dos familiares, associado à participação em pesquisas avaliativas, permite que esses possam se posicionar de forma mais ativa e colaborativa nos serviços de saúde. Com efeito, a criação de um espaço de trocas entre pesquisadores e usuários--pesquisadores contribui tanto para o avanço do campo da saúde mental quanto para a sustentação do processo de recovery dos pesquisadores parceiros (Dahl et al., 2017Dahl, C. M., Souza, F. M., Susser, E., Lovisi, G. M., & Cavalcanti, M. T. (2017). Suporte interpares no contexto de uma pesquisa clínica: Dificuldades, facilitadores e experiências significativas no processo de trabalho. Cadernos Brasileiros de Saúde Mental, 9, 179-198.; Presotto et al., 2013Presotto, R. F., Silveira, M., Delgado, P. G. G., & Vasconcelos, E. M. (2013). Experiências brasileiras sobre participação de usuários e familiares na pesquisa em saúde mental. Ciência & Saúde Coletiva, 18(10), 2837-2845. https://doi.org/10.1590/S1413-81232013001000008
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).

Objetivos

O presente estudo visa identificar e discutir os possíveis efeitos da inserção dos familiares em uma pesquisa de avaliação de viés participativo para o processo de recovery desses atores. A pesquisa buscou promover a participação ativa de familiares no processo de desenvolvimento de indicadores para avaliação dos serviços de saúde mental, articulada à proposta de controle social e de trabalho colaborativo com os Centros de Atenção Psicossocial - CAPS.

Percurso metodológico

Trata-se de uma pesquisa qualitativa que emprega instrumentos de avaliação participativa nas diferentes etapas de inserção de familiares ao longo do processo de análise e avaliação dos serviços de saúde mental. A metodologia dialoga com o estudo de Furtado, Onocko Campos, Moreira e Trapé (2013) sobre participação em pesquisa de diferentes atores do campo da saúde mental, tendo dois parâmetros de envolvimento: amplitude e profundidade. A amplitude está relacionada à diversidade de participantes envolvidos na pesquisa; já a profundidade se refere ao nível de implicação e intervenção desses atores nos diferentes momentos do estudo.

O estudo envolveu a participação de seis familiares1 1 Apesar deste artigo não se dedicar à descrição e análise do perfil sociodemográfico dos familiares-pesquisadores, convém assinalar a predominância de cinco mulheres cuidadoras (mães e irmãs de usuários e usuárias de serviços públicos de saúde mental) em relação à participação de um homem cuidador (pai de usuária de serviço público de saúde mental) como familiares integrantes da equipe de pesquisa. de usuários de serviços de saúde mental na equipe de 18 pesquisadores, dentre eles alunos de graduação e pós-graduação, docentes, familiares de usuários e um profissional de saúde mental. A participação de todos os envolvidos ocorreu de forma deliberativa e decisiva, preservando um papel igualitário entre os integrantes da equipe de pesquisadores, desde a discussão da bibliografia, do desenho das etapas do percurso e das ferramentas metodológicas, do estabelecimento do campo empírico, até a discussão dos dados e divulgação dos resultados. A seleção dos familiares pesquisadores foi realizada a partir de uma consulta aos membros da Associação Círculo de Familiares Parceiros do Cuidado2 2 Durante a pesquisa, a Associação Círculo de Familiares Parceiros do Cuidado esteve composta por um grupo de familiares do Projeto Familiares Parceiros do Cuidado do Núcleo de Pesquisa em Políticas Públicas de Saúde Mental do Instituto de Psiquiatria da Universidade Federal do Rio de Janeiro (NUPPSAM/IPUB/UFRJ), juntamente com profissionais, estudantes e usuários, tendo o objetivo, como associação, de incentivar, propor e participar de ações autônomas em defesa do direito dos usuários dos serviços de saúde mental. realizada em uma etapa preliminar de composição da equipe de pesquisa. Em seguida, definiu-se conjuntamente as quatro etapas do percurso metodológico: grupos de estudo, oficinas de consenso, capacitação para o trabalho de campo e trabalho de campo levando-se em conta a dinâmica do modelo de avaliação participativa na qual cada etapa pode ser repensada de acordo com as reações e os comentários dos familiares envolvidos. Os encontros proporcionados pelas etapas do percurso metodológico foram gravados e transcritos como registro das diferentes fases deste estudo, permitindo extrair e demonstrar, neste trabalho, as percepções relacionadas ao processo da pesquisa vivenciado pelos familiares junto aos demais pesquisadores.

O modelo de pesquisa empregado apresenta um ritmo mais lento em relação às pesquisas avaliativas convencionais, porém os resultados são mais coerentes e mais próximos da realidade do campo estudado (Furtado et al., 2013Furtado, J. P., Onocko Campos, R. T., Moreira, M. I. B., & Trapé, T. L. (2013). A elaboração participativa de indicadores para a avaliação em saúde mental. Cadernos de Saúde Pública, 29(1), 102-110. https://doi.org/10.1590/S0102-311X2013000100012
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; Dimov, 2016Dimov, T. (2016). Participação de usuários da saúde mental em pesquisa: a trajetória de uma associação de usuários. (Tese de Doutorado), Universidade de São Paulo, São Paulo, SP, Brasil.). As etapas envolvendo a participação direta de familiares-pesquisadores se desenvolveram no período de fevereiro de 2016 até dezembro de 2017, de modo cauteloso, a fim de evitar o aumento da sobrecarga do familiar-cuidador e de favorecer seu movimento de recovery.

Na primeira etapa, constituiu-se o grupo de estudos organizado em quatro encontros como proposta de imersão na literatura acadêmico-científica sobre participação de familiares e usuários em pesquisa, destacando conceitos-chave como recovery, protagonismo e empoderamento, associados ao modelo de pesquisa participativa. Os artigos selecionados foram tratados previamente como um esforço de tradução para uma linguagem mais compreensível, clara e acessível para a compreensão dos familiares, evitando que a precisão dos principais conceitos se perdesse no processo de aprendizagem dos familiares pesquisadores em relação aos termos pertinentes ao campo.

No segundo momento, realizaram-se as duas oficinas de consenso apoiadas pela Técnica de Grupo Nominal (Deslandes & Lemos, 2008Deslandes, S. F., & Lemos, M. P. (2008). Construção participativa de descritores para avaliação dos núcleos de prevenção de acidentes e violência, Brasil. Revista Panamericana Salud Pública, 24(6), 441-448.): a primeira oficina aconteceu com os familiares pesquisadores e a segunda com profissionais representantes de seis CAPS do Estado do Rio de Janeiro. A técnica empregada identifica como especialista ou expert os participantes com profundo conhecimento do assunto discutido pelo grupo e não, necessariamente, com um maior conhecimento acadêmico, exigindo a participação de todos nesse espaço de fala democrático para compartilhar saberes e experiências (Onocko Campos et al., 2010Onocko Campos, R. T., Miranda, L., Gama, C. A. P., Ferrer, A. L., Diaz, A. R., Gonçalves, L., & Trapé, T. L. (2010). Oficinas de construção de indicadores e dispositivos de avaliação: Uma nova técnica de consenso. Estudos e Pesquisas em Psicologia, 10(1), 221-241. https://doi.org/10.12957/epp.2010.9029
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). A partir da sistematização dos indicadores extraídos das duas oficinas, foram construídos os instrumentos para o trabalho de campo: o roteiro de observação participante e os roteiros de entrevistas semiestruturadas adaptados, respectivamente, para profissionais, usuários e familiares dos CAPS.

A etapa de capacitação para o trabalho de campo foi configurada por um conjunto de atividades que possibilitou aos familiares a vivência de dinâmicas e técnicas de pesquisa qualitativa, sanando dúvidas e reduzindo as inseguranças relativas ao trabalho empírico. Durante a capacitação, empregou-se um esforço para exercitar certa neutralidade em relação aos serviços de saúde mental, ressaltando-se, ao mesmo tempo, a importância de uma observação curiosa para que os familiares-pesquisadores pudessem conhecer os serviços com um novo olhar lançado para as características comunitárias, territoriais e emancipatórias da atenção psicossocial.

Para a última etapa do trabalho de campo, elegeram-se quatro CAPS de diferentes municípios da região metropolitana do Estado do Rio de Janeiro como campo empírico para a observação participante do familiar pesquisador, realizada em dupla com outro integrante da equipe da pesquisa. A organização das datas para observação participante nos serviços selecionados contemplou dois dias de visita ao campo: no primeiro dia, considerado um dia típico de funcionamento do CAPS, foram realizadas as entrevistas com usuários, profissionais e familiares e, no segundo dia de reunião de equipe, os familiares-pesquisadores participaram desenvolvendo observações livres e também guiadas pelo uso de um roteiro.

O estudo compõe as ações de pesquisa e extensão do Projeto Familiares Parceiros do Cuidados, aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa do IPUB/UFRJ sob o número 15 - liv. 4-11, CAAE 0044.0.249.000-11, com anuência dos serviços de saúde mental envolvidos.

Resultados e Discussão

No campo da Atenção Psicossocial, os familiares ocupam um lugar fundamental no cuidado aos usuários, podendo inclusive sofrer com a experiência de sobrecarga decorrente da intensidade do cuidado contínuo, sendo este um importante desafio da Reforma Psiquiátrica Brasileira (Delgado, 2014Delgado, P. G. G. (2014). Sobrecarga do cuidado, solidariedade e estratégia de lida na experiência de familiares de Centros de Atenção Psicossocial. Physis, 24(4), 1103-1126.). Nesse cenário, destaca-se a importância do acolhimento e inclusão da família nos serviços substitutivos, que devem incentivar sua participação ativa e buscar estratégias para a diminuição dessa sobrecarga (Reis, 2018Reis, T. L. (2018). Participação de familiares em pesquisa como estratégia de empoderamento: Análise de uma experiência piloto em centros de atenção psicossocial. (Dissertação de Mestrado em Saúde Mental), Instituto de Psiquiatria da Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, RJ, Brasil.).

Sobre isso, Glynn, Cohen, Dixon e Niv (2006)Glynn, S. M., Cohen, A. N., Dixon, L. B., & Niv, N. (2006). The potential impact of the recovery movement on family interventions for schizophrenia: opportunities and obstacles. Schizophrenia bulletin, 32(3), 451-463. https://doi.org/10.1093/schbul/sbj066
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destacam que algumas intervenções podem ser utilizadas: oferecer conhecimento sobre os transtornos mentais e sobre o próprio serviço de saúde, não utilizar um discurso patologizante, desenvolver junto às famílias habilidades de comunicação e solução de problemas, além de trabalhar o estímulo à esperança. O acesso ao conhecimento é uma das principais ferramentas de fortalecimento do recovery e de diminuição da sobrecarga sentida pelos familiares (Vianna et al., 2009Vianna, P. C. de M., Xavier, H. C., Teixeira, L. L., Vilaça, L. V., & Silva, T. C. (2009). Grupo de Familiares: espaço de cuidado para as famílias de portadores de sofrimento mental. Reme Revista Mineira de Enfermagem, 13(4), 607-613.; Delgado, 2014Delgado, P. G. G. (2014). Sobrecarga do cuidado, solidariedade e estratégia de lida na experiência de familiares de Centros de Atenção Psicossocial. Physis, 24(4), 1103-1126.; Reis et al., 2016Reis, T. L., Dahl, C. M., Barbosa, S. M., Teixeira, M. R., & Delgado, P. G. G. (2016). Sobrecarga e participação de familiares no cuidado de usuários de Centros de Atenção Psicossocial. Saúde em Debate, 40(109), 70-85. https://dx.doi.org/10.1590/0103-1104201610906
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; Brandão & Sampaio, 2017Brandão, A. D. L., & Sampaio, I. G. (2017). Uma experiência de acolhimento a familiares de usuários da rede de saúde mental sob a perspectiva do recovery. (Monografia de conclusão de curso), Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, RJ, Brasil.), tendo sido um tópico amplamente discutido ao longo das etapas da pesquisa e elencado pelos familiares-pesquisadores como um importante indicador de um bom serviço de saúde mental.

… hoje, com esse trabalho [de pesquisa], eu estou tendo conhecimento do que é a saúde mental. O que nós estamos aprendendo com vocês é muito importante. Às vezes eu não consigo colocar da maneira que deve ser colocado, mas eu estou colocando com as minhas palavras. (FP3)

O acesso à informação recebe destaque, em especial na oficina de consenso realizada com os familiares-pesquisadores: conhecer os próprios direitos, a legislação a respeito do CAPS, a medicação e seus efeitos, o plano terapêutico, o diagnóstico e tipos de transtorno mental, entre outros, é um dos principais caminhos para o movimento de autonomia e diminuição de sobrecarga de familiares. O conhecimento sobre a rede de saúde mental também facilita a relação com os serviços e possibilita a postura de solidariedade com o CAPS e seus profissionais, entendendo que o cuidado no campo da atenção psicossocial exige um trabalho colaborativo (Firmo & Jorge, 2015Firmo, A. A. M., & Jorge, M. S. B. (2015). Experiências dos cuidadores de pessoas com adoecimento psíquico em face à reforma psiquiátrica: produção de cuidado, autonomia, empoderamento e resolubilidade. Saúde e sociedade, 24(1), 217-231.).

A gente tem que entender que o CAPS é um serviço que está ali para nos ajudar; eles [profissionais] também não têm muito conhecimento, né? Porque nós saímos de um manicômio (…), eu não passei por isso, mas a gente estudando, tendo conhecimento, vai vendo o desespero que as famílias passavam e hoje não. (FP1)

Além de uma mudança em relação ao apoio a estratégias e serviços que promovam a autonomia e qualidade de vida das pessoas que sofrem com transtornos mentais, o debate em torno do conceito de recovery tem como importante consequência a necessidade de inclusão de usuários em todas as etapas do desenvolvimento de pesquisas científicas. Presotto et al. (2013)Presotto, R. F., Silveira, M., Delgado, P. G. G., & Vasconcelos, E. M. (2013). Experiências brasileiras sobre participação de usuários e familiares na pesquisa em saúde mental. Ciência & Saúde Coletiva, 18(10), 2837-2845. https://doi.org/10.1590/S1413-81232013001000008
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defendem que a pesquisa no campo do recovery deve necessariamente incluir os usuários como protagonistas na produção de conhecimento, mas que as poucas experiências que começam a surgir no país, principalmente a partir do ano 2000, ainda ocorrem de modo pouco sistemático.

De acordo com Tew et al. (2006)Tew, J., Gould, N., Abankwa, D., Barnes, H., Beresford, P., Carr, S., Copperman, J., Ramon, S., Rose, D., Sweeney, A., & Woodward, L. (2006). Values and methodologies for social research in mental health. The Policy Press., a pesquisa científica é tradicionalmente mantida por uma elite e os ditos “sujeitos de pesquisa” possuem pouca ou nenhuma participação no processo e na forma como os resultados são disseminados e utilizados. Os autores defendem uma abordagem emancipatória que democratize a pesquisa, colocando o conhecimento nas mãos dos indivíduos que geralmente se encontram impotentes diante das próprias vidas e destituídos de seus direitos fundamentais. Durante os encontros de capacitação para o trabalho de campo, percebemos entre os familiares certo “orgulho” em se apresentar nos serviços como pesquisadores, mas um receio de não serem bem recebidos por serem familiares, o que demonstrava a percepção deles diante dessa disparidade de papéis.

A pesquisa é justamente para isso, né, para tentar buscar argumentos, subsídios, para tentar melhorar alguma coisa que não está bem esclarecida, que não está caminhando bem (...) e nós estamos tendo a oportunidade, familiares participando de uma pesquisa (...) a pesquisa vai nos dar esse caminho, transformar. (FP2)

(...) acredito que nossa equipe [de pesquisa] contribui de alguma maneira. No mínimo entre nós e para o trabalho. É muito importante participar. É um compromisso com a causa, com os serviços. (FP4)

Promover essa mudança, orientada pelos princípios do recovery, é tarefa ao mesmo tempo desafiadora e empoderadora tanto para os pesquisadores acadêmicos quanto para os profissionais que trabalham em serviços de saúde. Ao afastar dos profissionais a exclusividade na detenção do conhecimento, o que muitas vezes os leva a ocupar um lugar paternalista, as pesquisas que envolvem usuários contribuem para que esses trabalhadores busquem novas práticas que possam apoiar usuários e familiares a retomar o controle de suas próprias vidas (Tew et al., 2006Tew, J., Gould, N., Abankwa, D., Barnes, H., Beresford, P., Carr, S., Copperman, J., Ramon, S., Rose, D., Sweeney, A., & Woodward, L. (2006). Values and methodologies for social research in mental health. The Policy Press.).

Nessa direção, os mesmos autores (Tew et al., 2006Tew, J., Gould, N., Abankwa, D., Barnes, H., Beresford, P., Carr, S., Copperman, J., Ramon, S., Rose, D., Sweeney, A., & Woodward, L. (2006). Values and methodologies for social research in mental health. The Policy Press.) apontam para duas vertentes de pesquisa envolvendo usuários: aquelas que são controladas pelos mesmos em todos os processos, embora possam contar com pesquisadores não usuários, e as que funcionam como uma parceria ou colaboração entre usuários e não usuários. Estas, ressaltam, só teriam seu potencial emancipatório caso usuários e familiares-cuidadores participassem como parceiros igualitários e não como subordinados aos demais pesquisadores. O presente trabalho se enquadra na segunda vertente ao contar com familiares como parceiros no desenvolvimento das diferentes etapas de pesquisa: participação nos grupos de estudo, na formulação do percurso de pesquisa, nas oficinas de consenso, na capacitação e no trabalho de campo.

No momento das entrevistas realizadas com familiares, notou-se a importância de ter um familiar-entrevistador para produzir maior liberdade de fala, demonstração de confiança e fluidez nos relatos dos familiares entrevistados. Um exemplo se destacou, na etapa das entrevistas, quando uma das familiares-pesquisadoras pôde acolher o relato de uma mãe que compartilhava as dificuldades enfrentadas no seu cotidiano, ressaltando a importância dessa familiar também cuidar de si e convidando-a a conhecer projetos que visam o empoderamento e protagonismo de familiares. Não foram raras essas demonstrações de acolhimento, apoio e solidariedade entre os familiares ao longo da pesquisa.

Ao assumirem o papel de pesquisador, foi possível observar que os familiares se apropriaram do estudo e, com isso, demonstraram maior segurança nas etapas das entrevistas. Em contrapartida, o familiar entrevistado demonstra maior confiança tanto no conteúdo a ser pesquisado quanto no acolhimento no momento da entrevista. Este compartilhamento entre familiares funciona como um bom indicador de validade e viabilidade do estudo (Dimov, 2016Dimov, T. (2016). Participação de usuários da saúde mental em pesquisa: a trajetória de uma associação de usuários. (Tese de Doutorado), Universidade de São Paulo, São Paulo, SP, Brasil.) e de confiança nos resultados por parte da comunidade (Onocko Campos et al., 2017Onocko Campos, R., Furtado, J. P., Trapé, T. L., Emerich, B. F., & Surjus, L. T. (2017). Indicadores para avaliação dos Centros de Atenção Psicossocial tipo III: resultados de um desenho participativo. Saúde em Debate, 41(spe), 71-83. https://doi.org/10.1590/0103-11042017s07
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).

Na etapa de capacitação para a ida a campo, os familiares-pesquisadores que tiveram maior facilidade em organizar suas anotações se prontificaram em ensinar estratégias que pudessem auxiliar os que estavam com dificuldade. Além disso, em todas as etapas em que o grupo se reunia, era frequente a dispersão do tema de pesquisa proposto para que pudessem compartilhar suas experiências de sobrecarga, assim como suas conquistas apesar das dificuldades encontradas.

Tal acontecimento chamou a atenção da equipe de pesquisa por mostrar a importância de poderem compartilhar suas experiências e serem acolhidos, além de trazer importantes reflexões sobre os processos de recovery de familiares, que identificam com clareza as dificuldades enfrentadas no cuidado com os usuários, assim como o aprendizado diário, as conquistas e estratégias utilizadas por eles para lidar com os desafios. Grigolo, Alvim, Chassot e Silveira da Silva (2017)Grigolo, T. M., Alvim, S., Chassot, C. S., & Silveira da Silva, V. V. (2017). Plano Pessoal de Ação para Bem-estar e Recovery: Experimentando o “WRAP” no Brasil. Cadernos Brasileiros de Saúde Mental, 9(21), 300-320. identificaram fenômeno semelhante na realização de oficinas com usuários em uma das etapas de pesquisa, situando uma aproximação do grupo com uma dimensão de apoio e suporte mútuo. Sobre isso, Dahl et al. (2017)Dahl, C. M., Souza, F. M., Susser, E., Lovisi, G. M., & Cavalcanti, M. T. (2017). Suporte interpares no contexto de uma pesquisa clínica: Dificuldades, facilitadores e experiências significativas no processo de trabalho. Cadernos Brasileiros de Saúde Mental, 9, 179-198. ressaltam a existência de diversas experiências, relações e processos de ajuda e suporte mútuo que se constituem espontaneamente, formando redes de solidariedade entre usuários e familiares, no contexto dos serviços comunitários.

Os resultados encontrados durante o percurso da pesquisa e discutidos a partir do conceito de recovery demonstram que o modelo de pesquisa participativa contribuiu para o aumento da autoconfiança dos familiares-pesquisadores. A participação de familiares nas diferentes etapas do estudo possibilitou aos mesmos um maior conhecimento sobre o funcionamento dos serviços de saúde, adquirindo uma postura mais solidária e colaborativa com os profissionais dos CAPS. Além disso, os familiares-pesquisadores puderam refletir sobre os próprios processos de recovery e o quanto são benéficos também para o recovery dos usuários que vivem sob seus cuidados, pois muitos familiares relataram que costumavam “controlar” os usuários de modo que nenhum dos dois levava uma vida autônoma. Notou-se, ainda, a ideia da esperança não em uma cura, mas em estabelecer relações mais saudáveis entre usuários, serviços e família no intuito de promover um cuidado mais acolhedor e colaborativo.

Eu achava que o caso do meu filho era dali pra pior, mas é totalmente diferente. (...) eu saí do serviço por causa do meu filho, pra ficar isolada com ele. Hoje eu trabalho, faço curso, participo de pesquisa, tenho a minha vida e ele continua lá. Não dá pra dizer que ele ficou bom, ele continua com o mesmo problema, ele tem o transtorno dele mas está bem; e eu também estou bem. E o que eu falo é que nós não devemos perder a esperança nem no serviço de saúde mental e nem na vida. Sempre tem aquela luzinha no final do túnel e a gente sabe que vai dar a volta por cima e a gente vai vencer. (FP2)

Entre os diversos desafios apontados para a prática da pesquisa colaborativa, destacamos a sensibilidade no que tange às relações de poder entre pesquisadores usuários e não usuários e a acessibilidade dos resultados (Tew et al., 2006Tew, J., Gould, N., Abankwa, D., Barnes, H., Beresford, P., Carr, S., Copperman, J., Ramon, S., Rose, D., Sweeney, A., & Woodward, L. (2006). Values and methodologies for social research in mental health. The Policy Press.), podendo alcançar diferentes públicos e ter uma linguagem acessível ao público de maior interesse. Sobre esse aspecto, ressaltamos o esforço constante da equipe de pesquisa para que os espaços fossem horizontais e acessíveis, para que de fato se tornassem emancipatórios e potentes ao empoderamento e recovery dos participantes.

Considerações finais

A participação dos familiares na pesquisa de monitoramento de Centros de Atenção Psicossocial - CAPS foi conduzida como uma ação colaborativa de controle social, não fiscalizatória, como um trabalho horizontalizado capaz de fortalecer o vínculo desses atores com os serviços, além de enriquecer o desenvolvimento e os resultados da pesquisa, por meio da contribuição singular desses atores sociais (Happell & Roper, 2007Happell, B., & Roper, C. (2007). Consumer participation in mental health research: articulating a model to guide practice. Australasian psychiatry: bulletin of Royal Australian and New Zealand College of Psychiatrists, 15(3), 237-241. https://doi.org/10.1080/10398560701320113
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; Dimov, 2016Dimov, T. (2016). Participação de usuários da saúde mental em pesquisa: a trajetória de uma associação de usuários. (Tese de Doutorado), Universidade de São Paulo, São Paulo, SP, Brasil.).

Apesar de a literatura sobre a participação de usuários e familiares em pesquisa revelar-se ainda incipiente, o presente estudo permitiu traçar um paralelo entre a experiência do protagonismo de familiares em uma pesquisa acadêmica e as iniciativas que incentivam o processo de recovery de usuários e de seus cuidadores. Dessas experiências e iniciativas destacam--se: a ampliação dos laços sociais a partir do compartilhamento de vivências similares (El-Jaick et al., 2016El-Jaick, F. S., Berg, K. B., Peixoto, M. M., & Serpa Junior, O. D. (2016). Usuários da saúde mental como educadores: o que suas narrativas podem nos ensinar?. Interface, 20(56), 227-238.), o desenvolvimento de autonomia (Presotto et al., 2013Presotto, R. F., Silveira, M., Delgado, P. G. G., & Vasconcelos, E. M. (2013). Experiências brasileiras sobre participação de usuários e familiares na pesquisa em saúde mental. Ciência & Saúde Coletiva, 18(10), 2837-2845. https://doi.org/10.1590/S1413-81232013001000008
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) e a contribuição para o processo de recovery a partir da criação de um ambiente de trocas entre equipe de pesquisa e usuários parceiros, bem como entre usuários parceiros e demais usuários (Dahl et al., 2017Dahl, C. M., Souza, F. M., Susser, E., Lovisi, G. M., & Cavalcanti, M. T. (2017). Suporte interpares no contexto de uma pesquisa clínica: Dificuldades, facilitadores e experiências significativas no processo de trabalho. Cadernos Brasileiros de Saúde Mental, 9, 179-198.).

O estudo, porém, apresenta limitações. Como desdobramento de uma pesquisa de mestrado acadêmico concluída em 2018, o presente artigo se dedicou a refletir sobre as inflexões conceituais do recovery nos resultados obtidos pela pesquisa sem, no entanto, conseguir abranger a totalidade da equipe de pesquisadores na autoria deste artigo. Contudo, tendo destacado os instrumentos de avaliação participativa empregados nas diferentes etapas de inserção de familiares como pesquisadores, pode-se afirmar a horizontalidade da participação dos familiares na equipe de pesquisadores como representativa do processo de recovery desses atores e de iniciativas de produção compartilhada de conhecimento. Os familiares mostraram em alguns momentos o receio de não serem “reconhecidos como pesquisadores”, isto é, de não incorporarem os traços distintivos dessa atividade acadêmica. O perfil socioeconômico indica diferenças de pertencimento a classes sociais entre familiares e demais pesquisadores, que pode ter tido consequências na forma de participação dos familiares-pesquisadores, situação que deve ser melhor analisada em estudos futuros. Os resultados elencados podem contribuir para ampliar o estudo acerca da temática do recovery associada ao campo das pesquisas participativas envolvendo familiares de CAPS. Defende-se, portanto, uma abordagem emancipatória que democratize a pesquisa para usuários e familiares tomando-os como protagonistas na produção de conhecimento no campo da atenção psicossocial. Estamos diante do desafio de afirmação de uma política de pesquisa sensível às características culturais, comunitárias e econômicas dos usuários dos serviços públicos de saúde mental.

  • *1
    Artigo oriundo da Dissertação de Mestrado intitulada Participação de familiares em pesquisa como estratégia de empoderamento: análise de uma experiência piloto em Centros de Atenção Psicossocial desenvolvida em parceria com o grupo de pesquisadores do Núcleo de Pesquisa em Políticas Públicas de Saúde Mental do Instituto de Psiquiatria da Universidade Federal do Rio de Janeiro (NUPPSAM/IPUB/UFRJ), defendida, em 2018, no Programa de Pós-Graduação em Psiquiatria e Saúde Mental do Instituto de Psiquiatria da Universidade Federal do Rio de Janeiro.
  • 1
    Apesar deste artigo não se dedicar à descrição e análise do perfil sociodemográfico dos familiares-pesquisadores, convém assinalar a predominância de cinco mulheres cuidadoras (mães e irmãs de usuários e usuárias de serviços públicos de saúde mental) em relação à participação de um homem cuidador (pai de usuária de serviço público de saúde mental) como familiares integrantes da equipe de pesquisa.
  • 2
    Durante a pesquisa, a Associação Círculo de Familiares Parceiros do Cuidado esteve composta por um grupo de familiares do Projeto Familiares Parceiros do Cuidado do Núcleo de Pesquisa em Políticas Públicas de Saúde Mental do Instituto de Psiquiatria da Universidade Federal do Rio de Janeiro (NUPPSAM/IPUB/UFRJ), juntamente com profissionais, estudantes e usuários, tendo o objetivo, como associação, de incentivar, propor e participar de ações autônomas em defesa do direito dos usuários dos serviços de saúde mental.
  • Financiamento/Funding: Este trabalho não recebeu apoio / This work received no funding.

Agradecimentos

Este estudo foi fruto de muitas mãos e agradecemos a gentil colaboração de toda a equipe dos CAPS e demais serviços parceiros, das estagiárias e da equipe do Núcleo de Pesquisa em Políticas Públicas em Saúde Mental. Agradecemos também a participação essencial dos familiares parceiros.

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Editor/Editor: Prof. Dr. Nelson da Silva Jr.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    02 Maio 2022
  • Data do Fascículo
    Mar 2022

Histórico

  • Recebido
    17 Ago 2021
  • Aceito
    25 Dez 2021
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